quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XXX

ECOS DA MALDIÇÃO

João Anatalino Rodrigues

Filipe, o Belo, estava morto. Atingido por um acidente de caça, ou pela fatalidade, que cedo ou tarde, alcança todos os nascidos de ventre de mulher, ele estava agora sendo velado em seu castelo de nascimento. Imediatamente, como era o costume, os vinte e quatro cavaleiros encarregados de anunciar a morte do rei e saudar o novo, saíram a galope pela grande porta do castelo de Fontainebleau. Ali, do lado de fora das muralhas eles se separaram em quatro direções. Seis para o norte, seis para o sul, seis para leste e seis para oeste. Em seguida, sumiram em meio á floresta nevada que circundava o imponente edifício.

Em cada cidade e cada aldeia que entravam a galope eles buscavam os edifícios públicos, as prefeituras e as gendarmarias, para gritar, a plenos pulmões: “o rei está morto, salve o novo rei.” E depois caberia aos senescais, bailios e prebostes a comunicação de que o rei estava morto e a França tinha um novo rei. 

Então, começava o repicar intermitente dos sinos. Eles serviam para chamar o povo para a oração e anunciar as boas novas, como o nascimento de um herdeiro real, ou a vitória em uma batalha. Os sinos das igrejas serviam também para anunciar as grandes tragédias que se abatiam sobre o reino e esse, sem dúvida, era um infausto acontecimento que a França demoraria muito para esquecer. 

Pois assim era considerada a morte de um rei. Especialmente um rei que reinara durante vinte e nove anos, deixando para o país um legado de grandeza e poder que há muito não era visto naquele reino. 

Porque Filipe, o Belo, tinha sido, desde Carlos Magno, o mais poderoso dos reis que ocupara o trono dos francos. Fora um rei altivo, ativo, sagaz, corajoso e determinado. Sob seu governo, os nobres haviam sido dominados e a unidade nacional, sob uma única lei, alcançada. O povo simples e a burguesia oprimida pela nobreza feudal participavam agora do conceito de estado, como cidadãos com direitos, tanto quanto os nobres. As amarras e as obediências feudais, o poder do clero, as intermináveis, inúteis e destrutivas guerras entre os feudos, que ensanguentavam e empobreciam o país, haviam sido contidas. O povo, em paz, podia empregar-se em atividades produtivas, tanto nos campos quanto nas cidades. A atividade econômica, garantida por um exército nacional, que obedecia a uma única autoridade, a do rei, trazia para o reino uma prosperidade pouca vezes antes alcançada. A França se tornara, no reinado de Filipe, o Belo, a maior e mais poderosa nação da Europa.

No entanto, para realizar essa proeza ímpar, Filipe, o Belo, tivera que impor-se a ferro e a fogo. Fora impiedoso com inimigos e adversários. Entrara em conflito com a Igreja e a vencera, tornando-se, ele mesmo, o eleitor mais influente na escolha do papa. Obrigara a corte papal a deixar Roma e se instalar em Avignon, onde estaria sob a sua influência. Taxara as rendas da Igreja e reduzira o poder do clero, transformando-o numa mera competência burocrática de um grupo de funcionários incumbidos de prestar serviços ao povo. 

Reduzira o poder dos nobres a uma simples participação consultiva. Seu governo tinha um Conselho Executivo, formado pelos pares do reino, os membros da sua família e seus ministros. E um Conselho Consultivo formado pelos Estados Gerais, composto por membros da burguesia, pelos nobres e pelo clero, Conselho esse que seus ministros Nogaret e Marigny dominavam completamente. A França, enfim, quando os sinos de todas as igrejas anunciavam a morte de Filipe, o Belo, e a assunção de Luis, o Cabeçudo, ou Turbulento, seu filho mais velho, era, praticamente, um estado nacional. O rei era a única autoridade do reino, um verdadeiro ditador.

Mas uma única vida, ainda que seja a de um rei, não é suficiente para modificar o espírito de um povo. Ainda mais quando essa vida, para realizar os seus intentos, eliminara tantas outras, fazendo poderosos inimigos. As pessoas são como plantas. Cortadas no tronco morrem, mas se já produziram sementes que são deixadas na terra, elas renascem em suas próprias raízes ou florescem em outras partes. Pois carregam o germe do futuro e também conservam o ranço do passado, que são as suas tradições. E estas, só o tempo pode extinguir. 

Filipe, o Belo, tinha deixado muitos inimigos. A oposição tinha sido silenciada, mas não extinta. Nem bem o seu corpo esfriara na tumba e eles já se movimentavam para devolver á França o seu antigo formato feudal. Dois partidos se engalfinhavam para tomar o poder, que seu fraco e incompetente filho, Luis X, o Cabeçudo, não conseguira absorver. 

De um lado, estava o poderoso irmão de Filipe, o Belo, Carlos de Valois, tio de Luís. Este sonhava com a restituição da França á sua antiga conformação. Era um cavaleiro, um nobre, que amava as instituições feudais e odiava a estrutura que seu irmão, Filipe, o Belo, montara. Queria a volta dos poderes feudais, a reconstituição da Cavalaria, com todas as suas prerrogativas, a abolição dos poderes dos Estados Gerais, a volta da burguesia á sua antiga posição social subalterna, enfim, era o retorno puro e simples do sistema feudal. 

De outro lado, os partidários da estrutura montada por Filipe, o Belo. Nesse grupo estavam os ministros do rei, os servidores plebeus dos Estados Gerais e a maior parte do povo em geral, que sob o reinado de Filipe havia alcançado uma liberdade e uma prosperidade que jamais lhes viria no antigo regime. Esse grupo, após a morte de Nogaret, tinha como principal líder o ministro Enguerrand de Marigny. 

A consequência dessa luta de morte seria sentida já no ano seguinte. Um inverno mais rigoroso que todos os outros que os franceses daquela época conseguiam recordar, devastou os campos franceses, deixando uma população faminta e desesperançada, a perambular pelas cidades e vilas á procura de empregos que não existiam e de comida que ficava cada vez mais cara. Assim se passou o primeiro ano de governo de Luis X, o Turbulento, que se mostrava cada vez mais incompetente para governar e cada dia mais dominado por seu poderoso tio, Carlos de Valois.

Pois este havia imposto o seu domínio sobre o fraco e indeciso rei e com muita astúcia e determinação assumira o papel de principal mandatário de reino. Ele era o verdadeiro poder por trás do trono. Suas energias, durante o reinado de Luis X, tinham sido canalizadas para destruir o seu principal rival, Enguerrand de Marigny, o qual, depois de uma longa e sórdida campanha de difamação e desonra pública, acabou sendo julgado e condenado á forca pelo Conselho de Ministros. 

Assim, a maldição dos Templários, segundo o imaginário popular, estava alcançando não somente o papa, o rei Filipe, o Belo, e sua família, mas também seus ministros e por tabela, todo o país. Primeiro fora Nogaret, envenenado pela tinta com que assinava os decretos e as ordens que haviam mandado para a fogueira centenas de Templários. Depois fora o próprio rei, que sucumbira depois de um acidente estranho, caçando um ainda mais estranho cervo.

Agora era a vez de Enguerrand de Marigny, que experimentava o próprio remédio que receitara a tantos inimigos. 

– Eis a maldição de Jacques de Molay, que recai sobre vós também – disse Carlos de Valois, ao acompanhar a carroça que levava Marigny ao patíbulo de Montfalcon, onde o seu pescoço seria pendurado em uma corda. 

– A única maldição da França sois vós – respondeu Marigny. 

Carlos de Valois soltou uma sonora gargalhada em resposta a essa acusação. 

– Nós somos todos amaldiçoados, Messire de Marigny – disse Carlos Valois – todos nós que adquirimos poder e temos que exercê-lo a qualquer custo. A única maldição do homem é a sua sede de poder. Por ele morreram os Templários. Por ele morrem os papas, por ele morreu Messire Nogaret e meu irmão, o rei. E por ele morrerão, mais cedo ou mais tarde, todos aqueles que sentirem essa sede e precisarem estancá-la sugando ou derramando o sangue alheio. 

– E vós também, Messire de Valois –. O vosso dia chegará – disse Marigny, antegozando a visão do corpo do inimigo sem vida.

– Sem dúvida chegará, Messire Marigny. Mas enquanto ele não vem, deixai-me gozar a imagem da vossa carcaça, estrebuchando no patíbulo.

Enguerrand de Marigny foi enforcado no dia trinta de abril de 1315 e o jovem rei Luis X, o Turbulento, morreu no ano seguinte, no dia cinco de junho de 1316. Reinou apenas dezoito meses e seu reinado fez jus ao apelido que adquirira: o Turbulento. Ele foi supostamente assassinado, por envenenamento causado pela condessa Mafalda de Artois. Esse crime, ela o teria cometido para colocar no trono o seu próprio genro, Filipe, conde de Poitiers, que era casado com uma de suas filhas, Jeanne de Borgonha. Filipe de Poitiers era o segundo filho de Filipe, o Belo, e o segundo na linha de sucessão, caso o jovem rei Luis X não tivesse filhos para sucedê-los. Ele teve um filho, mas esse príncipe também foi envenenado, ainda recém-nascido, pela mesma condessa Mafalda. Ao que parece, ela não se importava de colecionar assassinatos para realizar os seus intentos. 

Mas do ponto de vista de muita gente, ela talvez não fosse mais do que a mão que Deus, ou do Diabo, suscitara para realizar a maldição que Jacques de Molay tinha lançado sobre a linhagem de Filipe, o Belo. “Sereis maldito até a décima-sexta geração” havia gritado o velho Grão-Mestre, em meio ás chamas que o consumiam. 

Porque não só de mortes e traições se consumava a maldição de Jacques de Molay. Nem bem os arautos da morte, como eram chamados os vinte e quatro cavaleiros encarregados de anunciar a todos os quadrantes da França a morte de Luís X e a assunção ao trono de seu irmão Filipe V, novas tragédias se abatiam sobre a família real. Três semanas depois de sua coroação, em Reims, morria o seu herdeiro, o recém-nascido filho que Jeanne de Borgonha lhe dera. Ela se tornaria estéril a partir do parto e não lhe daria mais filhos. Em consequência, morria com o jovem rei Filipe V a sua esperança de uma linhagem real a partir da sua descendência.

A par isso, o clima continuava inclemente em França. No outono de 1317 a fome tinha atingido a maior parte da população francesa. De repente e sem nenhum aviso, uma imensa massa de camponeses deixou o campo e começou a invadir e assaltar vilas e aldeias, destruindo, matando, queimando e roubando tudo que encontravam. O caos tomou conta do país. 

Eram vários bandos errantes, que tomaram de assalto as estradas, invadindo cidades, pilhando e matando quem resistia. Levavam á frente de suas hordas uma cruz, gritando palavras de ordem e divisas utilizadas pelos antigos cruzados, como o conhecido refrão “Deus o quer”.

Apareceram de início, centenas, que depois se tornaram milhares. As milícias do rei eram impotentes para detê-los. Toda a França foi tomada de assalto por essas hordas, que como bandos de gafanhotos, pareciam obedecer a um comando mágico. 

Nem o próprio papa João XXII, em sua utópica Avignon, se sentia seguro.

De onde vinham aquelas hordas famintas, miseráveis e rancorosas, que afrontavam os poderes constituídos e não respeitavam sequer os lugares sagrados? Não demorou muito para alguém levantar a hipótese de que tudo aquilo fazia parte da maldição dos Templários. Pois que aquela balbúrdia, aquela loucura coletiva, aquele furor, brotara das ruínas do Templo. Á frente das turbas exaltadas foram vistos cavaleiros vestidos com o manto branco dos Templários, talvez enlouquecidos pela tortura e pelo aviltamento de caráter que aquela experiência lhes provocara. E principalmente pelo anátema que sobre eles pesava. Taxados de sodomitas, hereges, idólatras e conspiradores, eles haviam se tornado pregadores da desgraça, arautos da vingança, anunciadores do apocalipse. Foram julgados bandidos e bandidos se tornaram muitos deles. Alguns viraram assaltantes de estradas, outros se empregaram como mercenários, vários se tornaram mendigos. Junto a eles vinham os monges sem diocese, os pedreiros sem emprego, os comerciantes falidos, os soldados desmobilizados, os camponeses sem terra, os pedreiros sem obras para construir. Em cada cidade, ou aldeia por onde passava a malta enlouquecida, a ela se juntavam os mendigos, as prostitutas, os sem-teto, os desempregados e os simples bandidos e malfeitores, em nova cruzada, diziam eles, em direção á Terra Santa para libertá-la, mas na verdade, o que eles queriam mesmo era subverter a ordem vigente e promover o caos. 

Em todas as cidades do país, as hordas furiosas causaram terrível devastação. Foi a chamada “Cruzada dos Pastores”, uma enorme onda de distúrbios que durou mais de um ano. Uma multidão de cem mil pessoas tomou de assalto Paris, saqueou as lojas, os mosteiros, as casas, os castelos. Chacinaram o preboste e sua guarnição. Cercaram o palácio real e exigiram que o rei aparecesse na sacada para falar com eles. Depois que o rei lhes dirigiu algumas palavras de apaziguamento, misteriosamente, aquela massa furiosa, que no momento anterior estava pronta para invadir o palácio e chacinar toda a família real, se acalmou, como se um remédio tranquilizante lhe tivesse sido aplicado. E a uma voz de comando, deixaram a praça do palácio real e tomaram de novo a estrada em direção a Orleans, Bourges, Limoges, Perigord. Logo estavam em Auchi, Albi, Toulouse, Carcassonne. Todo o Languedoc foi tomado de assalto. 

Por todo o caminho as chacinas eram comuns e diárias. Na sua fúria homicida, os “cruzados pastores” invadiram igrejas, castelos, mosteiros e mataram centenas de monges. Os judeus também sofreram a consequência daquela que parecia ser uma vingança do céu. Contavam-se aos milhares os cadáveres nas cidades e aldeias. 

Então o Estado e a Igreja saíram da sua perplexidade letárgica e começaram a reagir. Os próprios monges e seus agregados pegaram em armas para se defender. Os nobres também. Batalhas campais se travaram em todas as cidades de França. A carnificina foi geral. Os “cruzados” endoidecidos, repelidos para os campos e para os pantanais, morreram aos milhares. Em consequência, as propriedades rurais de França ficariam abandonadas e inexploradas, prolongando a miséria e a fome por muitos anos. 

O bom e simplório povo francês agora tinha certeza. A maldição dos Templários não era uma lenda. Pois á frente das hordas destruidoras, como os Cavaleiros do Apocalipse, sempre se encontrava uma voz de comando. E atrás dela todos acreditavam ver um manto branco, ornado com uma cruz vermelha, ou negra, no peito. Se os Templários não haviam evitado a dissolução da sua Ordem e o sacrifício de seus principais mandatários, eles agora estavam se vingando da forma mais cruel que alguém podia imaginar. Com uma carnificina sem precedentes, que mesmo reprimida, estava longe de terminar.

















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