sexta-feira, 17 de março de 2017



ANTIGOS E ACEITOS 

BREVE HISTÓRICO DA FUNDAÇÃO DA GRANDE LOJA UNIDA DA INGLATERRA


Trabalho compilado pelo Ir.´. HERCULE SPOLADORE - LOJA DE PESQUISAS MAÇÔNICAS “BRASIL” 

Uma vez fundada a Grande Loja de Londres em 24.06.1717, como já se sabe da história da Ordem, que ocorreu na Cervejaria do Ganso e da Grelha (The Goose and Gridiron), onde se reuniram alem de uma Loja com o mesmo nome, mais três a saber: A Coroa (The Crown); A Macieira (The Apple) e a O Copázio (copo grande, copaço) e as Uvas (The Rummer and Grappes) 

Elegeram como primeiro Grão-Mestre o Irmão Sir. Antony Sayer. As três primeiras Lojas foram constituídas de maçons operativos e a quarta a do Copázio e das Uvas foi constituída por homens eminentes, nobres e entre eles o Reverendo James Anderson, que escreveria em l723 o famoso Livro das Constituições (Livre des Constituitones), mais conhecido como Constituições de Anderson. 

Era nessa época uma Maçonaria de apenas dois graus. Não havia o grau de mestre, havia o cargo de Mestre da Loja O grau de Mestre foi introduzido na Maçonaria em l725 e definitivamente incorporado em 1738. Em 11.05.1725 teriam sido elevados ao grau de Mestre os dois primeiros maçons na história da Ordem: Papillon Bul e Charles Cotton. Interessante que, os primeiros Grão-Mestres da Maçonaria no mundo eram Companheiros e não Mestres. 

Entretanto, apesar desta iniciativa da Maçonaria Inglesa, fundando a que seria a primeira potência maçônica, a Grande Loja de Londres, a sua influência na Inglaterra durante muito tempo, foi relativa pois uma grande parte das lojas inglesas em respeito aos antigos costumes onde os “Maçons livres em Lojas livres” predominavam, não queriam saber de novidades, principalmente em função do já conhecido conservadorismo inglês. O principal foco de resistência foi a velha Loja do condado de York. 

Os Maçons de muitas lojas teimavam em não seguir não só a uma organização obedencial, bem como eram refratários às inúmeras alterações que foram introduzidas sendo por esta razão chamados de Antigos e evidentemente os Maçons da Grande Loja de Londres eram chamados de Modernos. 

Em l725 na cidade de York foi fundada a Grande Loja se autoproclamando Grande Loja da Inglaterra. Cessou suas atividades mais ou menos 1740. 

Em 1751 foi fundada uma Grande Loja dos Antigos, formada de maçons irlandeses que haviam sido impedidos de pertencer às lojas inglesas. O maçom que mais se bateu contra os Modernos foi o irlandês Lawrence Dermott, publicando em 1756 as Constituições da Grande Loja dos Antigos sob o título Ahiman Rezzon (Ahim quer dizer Irmãos: manah, escolher e ratzon, lei) Ele afirmava que os Antigos deveriam ser chamados de Maçons de York porque a primeira Grande Loja da Inglaterra havia sido reunida em York em 926 pelo príncipe Edwin. Entretanto, sabemos que isso se trata de uma lenda e não da realidade maçônica inglesa dos séculos XVII e início do XVIII. 

Somente em 1761, foi reativada a Grande Loja de York, ligada à cidade do mesmo nome, com a seguinte sigla: Grande Loja de toda a Inglaterra (The Grand Lodge off all England). Os maçons desta Grande Loja criticavam a Grande Loja de Londres por ter esta realizado muitas alterações a saber: mudaram as formas de reconhecimento nos graus na Maçonaria, retiraram as orações dos procedimentos; descristianizaram o ritual, omitiram os Dias Santos, mudaram a forma de preparação do candidato; enxugaram o ritual, deixando de dar as instruções como até então eram ministradas; cortaram a leitura dos Antigos Deveres nas Iniciações; retiraram a Espada durante as Iniciações, mudaram o antigo método de arrumar a loja e também alterações e mudança na função dos diáconos, colocaram o Altar dos Juramentos no centro da loja, alem de outras alterações. 

Uma outra Grande Loja, a quarta, apareceu na Inglaterra em 1777 por ocasião da cisão havida na Loja Antiquity, quando parte da Loja acompanhou o grande maçom Willian Preston, separando-se da Grande Loja de Londres, porem voltando daí há onze anos em 1788 à Potência de origem. Willian Preston, grande palestrante e compilador dos então catecismos maçônicos. Ele teria sido o primeiro maçom a dar o significado simbólico às ferramentas de trabalho dos operários da construção. 

De fato, a Grande Loja de Londres, imprimiu um tipo de catecismo (não se chamava ritual naquela época), introduzindo uns procedimentos e retirando outros, mais no sentido de atualização e renovação. Criaram um Ritual muito parecido com o atual Rito de York Americano. 

Quanto aos maçons do condado de York e os outros que se opunham às modificações implantadas pela Grande Loja de Londres praticavam um ritual parecido ao que Samuel Prichard de maneira perjura, publicou num jornal de Londres em 10 de Janeiro de 1730 de dois graus. Eram conservadores e não admitiam modificações em hipótese alguma. 

Entretanto, a Maçonaria Inglesa chegou à conclusão que tanta divergência não levaria a Ordem a lugar algum, já em 1794 os dois Grão-Mestres rivais solicitaram ao Duque de Kent que intermediasse um acordo entre as duas Potências, no sentido de uma unificação. Em 1809, a Grande Loja de Londres constituiu uma Loja de Promulgação ou Reconciliação, com a finalidade de estudar a fundo o problema. Esta Loja chegou a conclusão após estudos que se poderia atender a todos os interessados, principalmente no tocante ao Ritual, isto é cederiam em favor dos Antigos em parte, suas maiores reivindicações. 

Em 1813 por coincidência dois nobres, irmãos de sangue eram os Grão-Mestres das duas Potências adversárias, o Duque de Sussex da Grande Loja de Londres e o Duque de Kent, Grão-Mestre da Grande Loja de toda a Inglaterra. Assim, em 27.de Novembro daquele ano, foi assinado um tratado com 3l artigos sacramentando a união de ambas as Obediências. Não foi lavrada ata, para se salvaguardar o segredo maçônico e o Duque de Kent propôs que seu irmão o Duque de Sussex fosse o primeiro Grão Mestre da nova Potência que passou a se chamar Grande Loja Unida da Inglaterra, nome este que permanece até a presente data. A partir daí a Maçonaria Inglesa entrou numa fase de paz e tranqüilidade. Acresça-se que apesar de terem chegado a um acordo acabou prevalecendo em quase 80% das práticas adotadas pelos Antigos. Há na Inglaterra uma certa tolerância, pois existem algumas pequenas diferenças nas práticas ritualísticas perfeitamente aceitas sem que isto venha a ser enxertos, invenções, adendos consistindo apenas em tradições sem constituir problemas entre os maçons ingleses, cuja mentalidade é bastante diferente da nossa, já que temos uma capacidade de inventar muito grande. 


BIBLIOGRAFIA 
O Rito de York ( Emulation Rite) Anatoli Oliynik Curitiba l997. 
Rito & Rituais (Volume 1) Francisco de Assis Carvalho –
Editora “ A Trolha” Ltda –Londrina -1993 

quinta-feira, 16 de março de 2017


Fé, Esperança e Caridade Saint Augustine: Faith, Hope and Charity 


Autor: Emerson DETONI (1)


Resumo: Diante da revelação de Deus, que propõe o seu projeto de salvação, o ser humano é convidado a responder através da fé, da esperança e da caridade. Crendo, esperando e amando o homem coloca-se na dinâmica de uma existência voltada para Deus. Mais do que um conjunto de conteúdos, é um caminho de vida, uma disposição, uma capacidade e disponibilidade de cumprir todos os dias um “atos de fé”, de colocar-se nas mãos de Deus com plena confiança, esperando Dele a plenitude dos bens e a vida eterna. Santo Agostinho aprofundou a interioridade da decisão da fé, a sua ligação com a esperança e a caridade, tudo com uma forte referência a Cristo. 

Abstract: Before the God’s revelation, that proposes his salvation project, the human being is invited to answer through faith, hope and charity. Believing, waiting and loving the man place himself into the dynamic of the existence towards to God. More than a set of contents, it is a life path, a disposition, a capability and availability of complying every day “acts of faith”, to place oneself in the God’s Hands with full confidence, hoping from Him the fullness of property and the eternal life. Saint Augustine has deepened the interiority of the faith decision, his connection with the hope and the charity. Everything with a strong suffering towards Christ. 

Palavras-chave: Deus – Santo Agostinho – Virtude – Fé. 

Keywords: God – Saint Augustine – Virtue – Faith. 

*** Por volta de 421 (2) Agostinho escreveu o Enchiridion de fide, spe et caritate (Manual sobre a fé, a esperança e a caridade) ao seu amigo Lourenço, e apresentou algumas inquietações práticas: quais as verdades que o cristão deve crer e as heresias que precisa evitar? Em que medida a razão pode intervir a favor da religião? O que foge ao seu alcance? O que deve ocupar o primeiro e o que deve ocupar o último lugar no ensinamento e na vida cristã? Qual o fundamento seguro e autêntico da fé católica (Ench.1.4)? 

Agostinho busca ser fiel às questões levantadas, mas as ultrapassa. Sua exposição é rica em idéias, aborda os principais dogmas do cristianismo, mesclando-o a questões morais. Este pequeno Manual será a obra norteadora deste texto.

Do texto, é possível extrair algumas noções básicas do pensamento agostiniano que são importantes numa consideração teológica sobre a virtude da fé, da qual nasce a boa esperança, acompanhada da santa caridade (Ench. 30.114). Sendo assim, após uma breve definição de virtude; voltaremos nossa atenção para a fé e depois abordaremos rapidamente as virtudes da esperança e da caridade; concluindo com uma abordagem sobre a interdependência das três. 

I. Virtude 

Ao lermos o Enchiridion, o percebemos menos como uma proposta de caráter intelectualista e mais como uma obra de aspecto histórico e prático, assim como práticas eram as inquietações de Lourenço. Embora não falte uma profunda reflexão teológica e espiritual, permanece no Bispo de Hipona uma preocupação de ordem formativa e pastoral, que permitiu colocar juntas as três virtudes em um equilíbrio dinâmico, realizando no tratado dessas como que um compêndio da vida cristã. 

Não encontramos no Enchiridion uma definição clara do termo virtude, aliás, é uma palavra pouca citada. Mas percebemos claramente no decorrer da obra que é a essência da vida cristã. A virtude é a ordem do amor, diz respeito à vivência concreta, é o meio através do qual a ordem moral se estabelece nas ações humanas. Ordem que pode realizar-se mediante o uso disciplinado da razão (Ench. 1.4). 

A virtude não é meta em si mesma, é caminho para a verdadeira felicidade humana que é a visão de Deus (Ench. 1.5). Caminho virtuoso que a razão sozinha não consegue percorrer, mas que iluminada pela Sabedoria divina, assume o compromisso de sustentar o cristão nesta vivência (Ench. 1, 4). 

Está de acordo com o pensamento agostiniano a distinção entre as virtudes naturais e as assim chamadas virtudes infusas ou teologais. As primeiras são derivadas da experiência e da razão, se referem a um bem finito, às quais o homem pode chegar pelos princípios de sua natureza. As segundas referem-se à felicidade ou a bem-aventurança que excede a natureza do homem, as quais ele pode chegar somente pela graça divina (Ench. 1.4). Chamamos de teologais as virtudes da fé, esperança e caridade porque tem origem no próprio Deus  que as infunde (dom absoluto), possuem Deus como objeto e fim, e se referem à sua veneração. Por elas somos ordenados a Ele (Ench. 1.3). 


II. Virtude da Fé 

Deus amavelmente vem ao encontro do ser humano para salvá-lo e doa a fé para que ele possa aceitar a verdade salvadora. Agostinho salienta o aspecto gratuito da fé, que é dom, é graça, é fruto da bondade de Deus que não abandonou o gênero humano na perdição do pecado, mas que na sua misericórdia propõe a salvação (Ench. 8.27). 

Uma definição de fé nos escritos agostinianos não é tão fácil. (3) Mais do que uma completa e exaustiva definição, propomos algumas citações contidas na obra que nos ajudam a compreender essa virtude. A princípio pode parecer um tanto complexa e desarticulada, mas posteriormente virá explicitada nas abordagens sucessivas. 

Nos escritos de Agostinho o substantivo fé e o verbo crer são utilizados como termos equivalentes. A fé é uma virtude sobrenatural (Ench. 1.6), um dom (Ench. 9.31) através da qual o ser humano, sob a autoridade divina, aceita livremente (Ench. 9.32) a verdade salvadora revelada por Deus em Jesus Cristo (Ench. 1.5). Verdade que vem testemunhada pela Sagrada Escritura e pela Igreja (Ench. 15.56). Crer é assentir à verdade da revelação acolhendo o mistério de Deus (Ench. 7, 20). 

Desta pequena definição, muitos elementos nos são apresentados. A fé é dom, mas também ato voluntário que implica empenho na aceitação dos conteúdos revelados que exprimem a intervenção histórico-salvífica de Deus. Aliás, o aspecto conteudístico é muito presente na visão agostiniana. Quando falamos em conteúdos, dizemos que a fé é uma forma de conhecimento (Ench. 1.1), porém diversa, específica. Um conhecimento das coisas que não se vêem (Heb 11,1). Uma participação na Sabedoria divina através da iluminação (Ench. 1.1). O que também não significa desprezo da razão, uma vez que esta é fundamental no movimento para a fé (Ench. 1.4). 

Caso mantenhamos a estrutura analítica tradicional do ato de fé, que compreende dom, vontade e intelecto, podemos afirmar que Agostinho os integra de maneira muito equilibrada. É verdade que o acento parece incidir sobre o primeiro, sobre o aspecto gratuito da fé (dom, graça). Mas é fundamental o aspecto intelectivo, uma vez que é sempre presente a relação fé e razão e porque Agostinho privilegia o aspecto do conteúdo da fé. Também não fica esquecida a pré-disposição (vontade) do homem que livremente acolhe esse dom e procura vivê-lo na concretude da sua vida (caridade). 

No Enchiridion a virtude da fé vem abordada através da explicação dos artigos do “Símbolo Apostólico” (Ench. 2.7), o qual diz o que e como se deve crer. Crer não é só uma experiência pessoal, íntima, mas também expressão verbal através de uma linguagem. O “Credo”, apresentando uma síntese breve do conteúdo a ser crido, pode facilmente ser conservado na memória. (4) Deve ser sabido de cor, escrito não em tábuas, mas no coração para que seja possível amar aquilo que se crê e a fé possa operar por meio da caridade. (5) O “Credo” exprime a pleno título à fé pessoal de cada crente que abre o seu coração para a ação da graça e com a boca professa a fé na Trindade. 

III. Fé na Trindade: Deus Pai
III.1. Gerados à imagem e semelhança de Deus 

O objeto da fé cristã não se encontra na pesquisa natural. O mais importante é crer que a causa de toda a realidade criada, celeste e terrestre, visível e invisível é unicamente a bondade do Criador, único e verdadeiro Deus que é Trindade (Ench. 3, 9). 

Iniciamos o Símbolo professando a fé na onipotência Criadora de Deus, significando que não existe nenhuma natureza que não tenha sido criada por Ele. (6) Todos os seres existentes, toda a natureza, toda a história humana tem as suas raízes neste acontecimento primordial. Deus é presente como substância criadora do mundo. O ser humano como criatura é ontologicamente dependente de Deus, que na sua bondade, é causa de todas as coisas criadas (Ench. 3 9). 

O homem, que saiu das “mãos” de Deus, traz consigo a possibilidade de “sair de si” e de relacionar-se, no conhecimento e no amor, com o Mistério que o criou. A “imagem e semelhança” (Gn 1,26), à qual foi criado, o coloca numa dinâmica que o orienta ao seu Criador, o que significa que ele não só é capaz de Deus, mas tende para Ele. A plena realização, a felicidade do ser humano está justamente nessa capacidade de relacionar-se com o “Tu” de Deus.(7) 

O homem não é dono de si e nem causa de si, não tem origem e nem fim em si mesmo, mas é de Deus e para Deus. Negar esse vínculo não é libertar-se, mas perder ou negar o próprio ser por uma auto-suficiência que não compete à criatura. (8) Ao contrário, quando reconhece a sua dependência do criador, torna-se autônomo. 

Tendo presente a própria experiência pessoal de Santo Agostinho, percebemos nele um profundo conhecedor do aspecto psicológico do ser humano que se move ou resiste à fé. A fé é o ponto de chegada de um coração inquieto, que enquanto não encontra e não adere a Deus não descansa. A busca de “sentido” de Agostinho é, ainda hoje, expressiva para nós. O seu coração quando se encontrou com a verdade da fé, encontrou também a felicidade na descoberta do genuíno amor de Deus. “Tarde te amei, beleza antiga e tão nova, tarde te amei. Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu fora”. (9) A inquietude do coração desaparece no encontro confiante do homem com Deus na fé. O homem foi feito para Deus e esse destino em Deus não é resultado da causalidade, mas do plano amoroso de Deus.(10) . 


III.2. Degeneração pelo pecado 

Toda a criatura em si mesma é boa. A bondade de Deus é a causa do bem (Ench. 3.10; 8.23). O mal é privação do bem, é causado pela vontade do homem ferida pelo pecado, vontade de um bem mutável que abandona um bem imutável (Ench. 8.23). Na linguagem do nosso autor o mal é corrupção do bem (Ench. 3.11-12). O ser enquanto tal é um bem e o mal é corrupção do ser. Deus não é nem direta nem indiretamente causa do mal. Ele é autor da natureza humana que é boa, é autor do homem e não do mal presente neste e por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir nas suas obras se não fosse poderoso o suficiente para fazer resultar o bem do próprio mal (Ench. 3.11). A verdadeira liberdade interior é alcançada quando conseguimos libertarmo-nos do mal que está dentro de nós. 

III.3. Regeneração em Cristo 

Jesus No centro da reflexão sobre o pecado, Agostinho apresenta o mistério redentor de Cristo (Ench. 10.33) e, portanto, da graça e da misericórdia divina. Deus na sua justiça poderia abandonar o gênero humano, que por sua vez abandonou os Seus ensinamentos, profanando a imagem do seu Autor. Mas Deus não é só justo, é também misericordioso e faz uso da sua misericórdia liberando quem não merece (Ench. 9.27). Deus se abaixou e exaltou o gênero humano(11). Desde o momento em que o ser humano rompeu o relacionamento primeiro com Deus através do pecado, teve a necessidade de um mediador. Esse é Cristo, Filho de Deus, Deus e homem. Enquanto Adão introduziu o pecado no mundo, Cristo, único mediador, cancelou não só aquele pecado, mas todos aqueles que se lhe acrescentaram. Por isso mesmo que a profissão de fé do cristão contempla a remissão dos pecados. Sem essa remissão não seria possível nenhuma esperança para a vida futura e para a libertação eterna.(12) 

III.4. Filho Redentor 

Não compreenderemos o processo de regeneração, do qual falávamos no parágrafo anterior, sem termos presentes o Evento Cristo no centro da reflexão. Evento que perpassa toda a obra agostiniana. É Ele, o unigênito de Deus e mediador, o fundamento seguro e autentico da fé católica (Ench. 1.5). 

Por se tratar de um “manual facilmente manejável”, Agostinho diz que seria muito longo desenvolver uma explicação cristológica como de fato mereça, além do que é preciso considerar os limites humanos que encontramos para falar dessa realidade (Ench. 10.34). Contudo, se fazem necessário algumas breves considerações. 

Professamos no “Símbolo” a fé na Pessoa de Jesus Cristo, Filho de Deus e Filho do homem: Deus antes de todos os séculos e homem do nosso “século” (Ench. 10.35). É Filho de Deus não por graça, mas por natureza, e como humano é cheio de graça. Sem diminuir a sua condição divina, assumiu a condição de servo (Fil 2,6-7). Viveu humanamente, mas nunca deixou de ser Deus. “Deus de Deus”, mas nascido como homem do Espírito Santo e da Virgem Maria, como substância divina e humana (Ench. 12,38).

Uma vez que a geração foi corrompida pelo pecado, era necessária uma regeneração (Ench. 13.46). Com a “queda” do ser humano, tornou-se impossível uma auto-reabilitação. Era necessário um mediador, um reconciliador, que aplacasse o pecado com um único sacrifício (Ench. 10.33). Somente livre do pecado o ser humano torna-se capaz de operar a justiça. E somente Cristo, o qual por não ser pecador, pode nascer sem necessidade de renascer, o sacrifício em sentido verdadeiro e pleno enquanto união perfeita com o Pai é capaz de libertar: “Se, pois, o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres” (Jo 8, 36). Assim, “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por Ele, nos tornássemos justiça de Deus” (2Cor 5, 21). 

Se por um homem o gênero humano foi condenado, por um único mediador, o gênero humano foi salvo (Ench. 14.48). Daí que, quem crer em Cristo pode ser regenerado, através do batismo, naquele mesmo Espírito, no qual Cristo foi gerado (Ench. 14.49). De modo que, quem renasce em Cristo é libertado do pecado e da morte, uma vez que o batismo de Cristo representa a sua morte, que é redentora. E como Cristo não parou na morte, mas ressuscitou, para o cristão, sua ressurreição é justificadora (Ench. 14.52). 

Na ótica agostiniana, a justificação se fundamenta no sacrifício e na ressurreição de Cristo. Sem o sacramento de Cristo não seria possível a justificação e a vida eterna. Somos mortos ao pecado, porque batizados na morte de Cristo. A verdadeira vida cristã não pode permanecer no pecado, mas na graça de Deus. Por isso também que professamos a fé na remissão dos pecados (Ench. 17.64). Embora sejamos conscientes que, enquanto dura a vida mortal, somos em constante conflito com a morte.

III.5. Espírito Santificador 

O objeto da fé cristã é a Trindade Criadora, Pai, Filho e Espírito Santo (Ench. 3.9). Obedecendo a ordem da confissão de fé, Agostinho menciona a necessidade de crer no Espírito Santo, que procede do Pai, único e mesmo Espírito do Pai e do Filho (Ench. 3.9). O Espírito como não é criatura, mas membro da Trindade Criadora vem, no Símbolo, professado primeiro que a Igreja (Ench. 15.56), que por sua vez é criatura, não objeto, mas sujeito de fé. 

No Enchiridion Agostinho trata do Espírito Santo e da Igreja no mesmo parágrafo (Ench. 15.56). Porém, ele não desenvolve o artigo do “Credo” que professa a fé no Espírito Santo, apenas limita-se a apresentá-lo como a terceira pessoa que completa a Santíssima Trindade e que está presente na Igreja, que é Templo da inteira Trindade (Ench. 15.56). 

Depois de falar de Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor nosso, acrescentamos de crer, como sabes, também no Espírito Santo, de modo que resulte completa a Trindade que é Deus. Vem também recordada a Santa Igreja; essa nos oferece a possibilidade de compreender que a criatura racional pertence à Jerusalém Livre (Gl 4,26), deve ser colocada como subordinada, depois da menção do Criador, isto é, da Suma Trindade (Ench. 15.56, tradução nossa). 

A ordem da confissão de fé exige que a Trindade preceda a Igreja. A Igreja não pretende ser “adorada” no lugar de Deus, ela é somente Templo de Deus, universal no céu e na terra (Ench. 15.57). A Igreja não é Deus e nem pede de ser crida como tal, mas a Igreja é corpo de Deus, e enquanto tal é sinal da sua presença no mundo e instrumento através do qual Ele chama todos à unidade verdadeira. Não creio na Igreja como tal, mas creio que ela existe como obra do Espírito, no qual eu creio. E creio de igual modo que o Espírito age através dela, que entre outros ministérios, exerce o do perdão dos pecados, de modo que esses venham redimidos e o cristão alcance a vida eterna (Ench. 17.65).

IV. Fé e razão 

Como comumente acontece nos escritos agostinianos, também no Enchiridion aparece o desejo de relacionar fé e razão (Ench. 1.2; 1.4; 3.9). A obra em si não nos dá elementos suficientes para uma análise profunda. Não encontramos abundantes citações. Mas é um tema presente e que não pode ser ignorado. Ao abordarmos essa problemática, não faremos referência direta ao início da fé (initium fidei), até porque a obra da qual nos ocupamos está dirigida a quem já está iniciado (Ench. 1.1). Porém, justamente porque a fé mora no crente, ela não pode existir se não acompanhada da razão (Ench. 1.4). 

A fé é dom de Deus e como tal é também sabedoria de Deus. Segundo Agostinho, o crente não precisa ser licenciado, é a própria fé a dizer o que se deve crer (Ench. 3.9). Já no início da obra, quando fala da piedade, como culto a Deus e sabedoria do homem ele distingue a ciência da sabedoria, não limitando a sabedoria ao aspecto científico (Ench. 1.2). A primeira diz respeito ao conhecimento das realidades materiais e mutáveis, a segunda refere-se à inteligência própria das realidades imutáveis e espirituais. É próprio do ser humano aprofundar e interrogar a natureza. 

Porém, quando se pede o que se deve crer, é necessário voltar-se à fé e não à ciência da natureza (Ench. 3.9). Até porque, a totalidade da ciência mundana será sempre um “nada” em comparação à sabedoria divina, de modo especial, no que se refere aos problemas essenciais do homem, tal como o seu fim último, a salvação ou visão beatífica. (13) 

Só podemos saber de Deus através de Deus mesmo, o que não significa irracionalismo e nem fideísmo. O Bispo de Hipona teve o cuidado de não defender uma fé cega e também de não racionalizá-la demais. Fé e razão se complementam (Ench. 1.4). Pois não se pode crer sem ter entendido as mediações históricas em que nos é concedido o conhecimento do objeto transcendente da fé. 

Para Agostinho o intelecto deseja ver o que crê e a fé exprime sua vontade de compreender. Um desejo de penetrar também com a compreensão na decisão de crer e contemplar a proposta da fé com a razão. A razão é parte constitutiva da condição espiritual do homem. Claro que os grandes mistérios da fé colocam limites à razão que procura cientificamente penetrá-los com seus métodos (Ench. 3.9), mas isso não dispensa o desejo de conhecer e de fazer o que humanamente é possível para aproximar-se (também de maneira racional) da Verdade. 

A fé é um caminho para o conhecimento. Mas um caminho adaptado pela mente e, portanto, é um caminho de “razão”. Ou seja, é razoável que acreditemos. Não se trata tanto de investigar para se chegar a certezas, mas da certeza que busca maior compreensão. E ao mesmo tempo em que a fé recebe certa legitimação da inteligência que a percebe como razoável, ela auxilia a uma intelecção mais profunda da realidade. 

A articulação entre fé e razão é de capital importância em Santo Agostinho, segundo ele “todos os homens querem entender, não há ninguém que não o queira, mas nem todos querem crer. Se alguém me diz: ‘Que eu entenda para que creia’, respondo: ‘Crê para que entendas’”.(14) A fé possui a precedência, mas ela precisa ser cultivada. 

Entre razão e fé não existe incompatibilidade, mas complementaridade. Ao menos em ordem de tempo, a fé vem primeiro, pois ela purifica o coração e o rende capaz de acolher a revelação. Mas precisa ser nutrida, regada, robustecida pela racionalidade. De forma que podemos dizer que a razão deve preceder a fé na consideração dos motivos de credibilidade. Parece justo reconhecermos uma recíproca ajuda. 

IV.1. A Certeza da Fé 

Agostinho não esquece o primado da revelação que deixa Deus na sua liberdade, enquanto oferece ao homem a via para alcançar a certeza da verdade (Ench. 1.2; 3.9). A revelação é coerentemente conhecida através da fé. Mas essa pede ao homem uma escolha radical: se crê ou não. Uma posição neutra de indiferença não é permitida porque restaria sempre na esfera da  incerteza e da dúvida, sem permitir o encontro de um sentido. A fé coloca-se como decisão radical, caso contrário não é fé em Jesus Cristo. (15)

Dizer que a fé possui uma certeza, não significa dizer que não traga consigo indagações. Pois indagando procura uma mais profunda inteligência do mistério. A tradição cristã sempre buscou a inteligência do mistério, recorrendo muitas vezes a conceitos filosóficos para compreender, aprofundar e transmitir o conteúdo da fé. Quando, porém, se trata de verdades que concernem à salvação, que não podemos agora compreender com a razão, à razão deve preceder a fé (Ench. 3.9). Essa purifica a mente e a rende capaz de perceber e sustentar, a luz da suprema razão divina, também aquilo que é uma exigência racional. 

Agostinho expressa sua vontade de integrar a razão no dinamismo da fé que busca a inteligência do seu objeto (16). Nesse dinamismo dois princípios são fundamentais: primeiro a autoridade da Sagrada Escritura e da Igreja, que são garantes para toda reflexão teológica (17) ; e em segundo o princípio da iluminação. 

IV.2. Fé e iluminação 

Agostinho usa como critério interno da teologia o conceito de iluminação, presente na tradição hebraica cristã (18), e assim mostra que a fé não é cega ou irracional. Antes, enquanto conceito especulativo, a iluminação é inseparável da imagem, recurso parabólico de explicação a que acudir para penetrar nas coisas criadas. “Tudo foi feito por meio do Verbo” (Jo 1, 3), é Ele o arquétipo exemplar que as constitui. Porém, ao que só a fé pode alcançar, enquanto participação teórica ou visão das coisas que estão na mente divina e se expressam no Verbo. De modo que a nossa iluminação é participação no Verbo (Jo 1, 9). (19) 

O conceito de iluminação é de fundamental importância na sistematização agostiniana do saber sobre o divino. Segundo Agostinho, a razão não conseguiria sozinha realizar o caminho na direção do objeto transcendente da fé sem a iluminação. Pois, como já dissemos não se pode passar do visível ao invisível. Temos como exemplo o próprio Jesus Cristo: o saber da razão não  ultrapassa a história de Jesus. Enquanto a fé alcança o Cristo. Uma vez que o próprio Cristo se converte nessa luz interior que torna possível a convergência da razão e a fé na sabedoria do iluminado. Cristo guia a razão até o transcendente. 

Agostinho segue reconhecendo a importância da iluminação divina no processo da fé. Essa antecede a fé. Leva-nos a compreender o que estamos professando e nos faz entender a Palavra divina que está presente em cada mente. No tocante à fé, tudo provém da graça de Deus, tanto o seu inicio, quanto o seu conhecimento. Claro que ele admite que não se possa crer, esperar e amar se não de acordo com a vontade. Mas também esta é de certa forma preparada pelo Senhor (Ench. 9.32). (20)  O Espírito Santo fala dentro do ser humano, que é ouvinte da Palavra de Deus. 

O movimento da fé se realiza na relação entre a graça de Deus que sana e nos atrai a si e a liberdade humana. A graça não subtrai o livre-arbítrio. Mas também o livre-arbítrio não vem afirmado a tal ponto de sermos ingratos à graça de Deus. A fé é abertura do coração humano operada pelo Espírito Santo (1Cor 2,10. 12). É Ele que nos dá a luz e a força interior para crer (2Cor 4, 6).

IV.3. A Fé como assentimento 

A fé implica assentimento e muitas vezes se deve crer mesmo se a verdade não é evidente (Ench. 7.20). A inteligência possui um valor essencial como atividade que conduz o homem à reflexão, pois ninguém crê alguma coisa, sem antes pensar que coisa crê. Assim, é necessário que tudo o que venha acreditado, venha pensado. Essa atividade do pensamento serve como preparação e disposição natural para a fé. Para crer não devemos renunciar à razão, ao contrário, devemos a ela recorrer, pois sem ela não é possível acreditar (Ench. 1.4). A capacidade de pensar é dada pelo próprio Deus para que possamos alcançá-lo. Crer não consiste se não em dar assentimento refletindo. Quem crê, pensa e pensando crê. A fé se não é pensada é vazia. (21) 

Assentir é um comportamento particular da pessoa que implica um empenho na aceitação dos conteúdos revelados. É assentir à verdade da revelação acolhendo o mistério de Deus. Na adesão e aceitação da fé, Agostinho pressupõe certa disposição de ânimo da parte do ser humano. Sem assentimento não existe fé, não se crê em nada (Ench. 7.20). O ato de fé assinala a inteira vida do crente e é o principio da participação na eternidade do amor de Deus. 

Embora não esteja contido no Enchiridion, faz-se necessário uma pequena alusão aos três aspectos distintos do processo de crer que são atribuídos a Santo Agostinho: “credere Deo”, “credere Deum” e “credere in Deum”. (22) Uma coisa é crer a Deus, outra crer Deus, outra ainda crer em Deus. Crer a Deus significa que é verdadeiro tudo o que ele disse; Crer Deus equivale a acreditar que Ele mesmo é Deus; Crer em Deus significa amá-lo. (23) São três aspectos do ato de fé e não três diversos modos de crer. 

– Credere Deo 
Exprime a dimensão formal da fé. O que constitui o fundamento, ou seja, a autoridade do próprio Deus no seu revelar-se (Ench. 3.9). Crendo, se aceita o testemunho que Deus dá de si. É Ele a garantia da verdade revelada. Credere Deo é submeter-se a autoridade de Deus, é uma oferenda, uma entrega confiante a Ele. Nós chegamos à fé “persuadidos” pelo chamado feito por Alguém a quem se crê, ou seja, chamados e atraídos pelo próprio Deus. A graça se dá para que creiamos e para que o façamos voluntariamente e com alegria. Mesmo afirmando o papel da graça, Agostinho defende o caráter voluntário da fé. A fé está embasada no assentimento à autoridade reconhecida de Deus, é uma adesão pessoal (Ench. 7.20). 

– Credere Deum 
É o que vem crido, ao conteúdo da fé, ao conhecimento da realidade revelada por Deus em Jesus Cristo (Ench. 1.5). Significa crer que é verdadeiro o que Deus revelou. Um mistério que não pode ser analisado plenamente com a razão, mas nem por isso é menos compreensível. 

– Credere in Deum 
Exprime o grau da fé verdadeira. Sintetiza as duas primeiras (existência e confiança), as quais são necessárias, mas não suficientes. É a terceira que exprime a nossa filiação divina, o sentido existencial, que traduz o fim para o qual tende a fé. (24 )

Agostinho sustenta que credere in, seguido pelo acusativo (Deum, Christum), é mais que Credere Deum (crer que Deus existe) - pois a existência de Deus é uma crença também comum aos demônios (Lc 4,35. 41) – e é mais que credere Deo – pois é possível crer a uma pessoa, mas não “em” uma pessoa. (25) Daí a insistência em alcançar o Credere in Deum (Christum), que se entende como uma adesão que exprime o valor dinâmico da fé e a sua dimensão interpessoal. Significa crer em uma Pessoa, o que comporta o desejo de querer conhecê-la sempre mais e de entrar em relação de amor. (26) Uma dinâmica que implica um crescimento constante na confiança e no abandono em Deus (Ench. 14.52). 

Credere in Deum implica um caminhar até Deus, um movimento de amor. Movimento que compreendemos perfeitamente quando lemos o Enchiridion e percebemos que a fé na existência de Deus não pode estar desprovida da Caridade, como era a fé dos demônios, que acreditavam unicamente para evitar Jesus e não para viver Nele (Ench. 2.8). A verdadeira fé “reclama” a graça, através da qual pode cumprir as boas obras que conduzem a Deus. Ou seja, a fé impetra a graça e ao receber o Espírito de amor, torna-se ativa (Ench. 31.117). Na visão de Agostinho, a única fé que se justifica é a fé que se faz ativa por meio do amor. 


V. A Virtude da Esperança 

Depois de trabalhar a virtude da fé, fazendo uma abordagem das afirmações do “Símbolo”, Agostinho desenvolve uma reflexão rápida sobre a esperança e a caridade, usando de forma especial da oração do “Pai-nosso”. “Quem invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10, 13). Mas ninguém invocará sem antes ter acreditado. Ou seja, primeiro crer, depois invocar. Primeiro o “Símbolo”, depois o “Pai-nosso”. 27 A vida cristã inicia-se com a fé, que opera por meio da caridade através de uma vida reta, na esperança de alcançar a visão beatífica (Ench. 31.117). A esperança nasce em Deus e é a Ele que 24 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano 2005 p. 93-95. 25 EUGENE TESELLE, “Fe”, in A. D. FITZGERALD, Diccionario de San Augustin, Burgos, 2001, p. 565. 26 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano 2005, p. 94-95. 27 AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso, 213, 1. COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 11 Tempo e Eternidade na Idade Média Tiempo y Eternidad en la Edad Media – Time and Eternity in the Middle Ages Jun-Dez 2010/ISSN 1676-5818 112 devemos pedir o bem que esperamos de cumprir ou aquele que esperamos de conseguir através das boas obras (Ench. 30.114). 

Com base no Enchiridion, definimos a esperança como a virtude teologal que exprime a aspiração da felicidade futura (Ench. 2.8), que diz respeito aos bens eternos ou temporais que esperamos (Ench. 30.15). Por isso, é a Deus que devemos pedi-la (Ench. 30.114) e em Deus é que devemos depositá-la (Jr 17, 5). 

Quando trata da “boa esperança”, Agostinho cita a oração do “Pai-nosso”, na qual, segundo o evangelista Mateus, fazemos sete pedidos: os primeiros três referem-se aos bens eternos e os outros quatro aos bens temporais (Ench. 30.115). Para que a esperança seja boa, primeiro devemos pedir a Deus a salvação sobrenatural e os bens eternos que comporta: adoração a Deus, entrada no seu Reino e a disponibilidade de fazer a sua vontade. E depois os bens temporais: pão quotidiano, remissão dos pecados, ajuda para não cair em tentação e a libertação do mal. Uma única esperança, no céu e na terra, colocada em Deus. Mas com um empenho total de fazer o bem no mundo. 

Entre os objetos da nossa boa esperança está a vida eterna e os meios para alcançá-la. De fato é na onipotência divina que esperamos. O que encontra na ressurreição de Cristo a sua fundamentação. A esperança diz respeito às coisas boas, e se refere unicamente ao tempo futuro (Ench. 2.8): “nossa salvação é objeto de esperança, ver o que se espera não é esperar (...). E se esperamos o que não vemos, é na esperança que o aguardamos” (Rm 8,4). Nesse aspecto a esperança é comum à fé, pois se considerarmos a fé como “certeza” das coisas que não se vêem (Eb 11,1), também a esperança é espera nos bens futuros, que no presente não os vemos. Entre os bens esperados o principal é a salvação eterna. (28)

 VI. A Virtude da Caridade 

Graças à fé é que podemos amar a Deus no qual acreditamos. É por meio dela que vêem operadas nossas boas obras (Ef 2, 8-9). Fé que age através da caridade (Gl 5, 6) e que não pode existir sem a esperança (Ench. 2.8). As três virtudes estão intimamente unidas, mas é a caridade, segundo o apóstolo Paulo, a exercer a primazia (1Cor 13). Quem não ama crê inutilmente, ainda se o que crê seja verdadeiro. E inutilmente espera, ainda se as coisas que espera dizem respeito à verdadeira felicidade. Mas quem ama retamente, crê e espera 28 AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso, 213,1. COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 11 Tempo e Eternidade na Idade Média Tiempo y Eternidad en la Edad Media – Time and Eternity in the Middle Ages Jun-Dez 2010/ISSN 1676-5818 113 retamente. (29) A caridade é a realização da vida cristã. Todos os mandamentos divinos a ela fazem referência (Ench. 32.121). 

Agostinho usa os termos amor e caridade como sinônimos. O amor é força da alma e da vida. É ele que a determina no sentido bom ou ruim, segundo o objeto que se ama. Amor é uma vida que combina o amante e o objeto amado. É movimento, uma inclinação, uma tendência que nos impulsiona a sair de nós mesmos, do nosso mundo em direção ao amado. Daí a importância do amor a Deus, a nós e ao próximo. São esses os “objetos” que devem ser amados. O amor está no centro da vida cristã e a identifica. 

Assim como a fé e a esperança, o amor é dom de Deus, que dota a vontade humana de uma aspiração divina. Nosso amor deve ser inspirado pelo amor divino e refletido em nossos atos concretos. Amamos com o amor divino derramado em nossos corações (Rm 5, 5). 

A salvação depende da fé que opera pela caridade (Gl 5, 6). E se, ao contrário, opera o mal, se permanece no pecado, é uma fé morta, que não poderá salvá- lo (Tg 2, 14. 17). Não basta ser cristão, é preciso operar o bem.30 Afinal, se Cristo ocupa o lugar central no coração do homem, de modo que nenhum outro fundamento venha anteposto, então ele estará pronto a superar, mesmo com sacrifícios (provado pelo fogo), as obras más (Ench. 18.68) e abraçar uma vida cristã digna desse nome. Se em Cristo, Deus amavelmente vem ao encontro do ser humano que está nas trevas para redimi-lo, esse deve como resposta, deixar que o amor de Deus possa guiar o seu coração movendo-o ao dom do serviço. Sua vida muda e centraliza-se na caridade. Um amor que não impõe limites, mas estende-se aos inimigos (MT 5,44). Um jeito de amar próprio de quem é filho de Deus e orienta o espírito para essa disposição, graças a uma vida de oração e boas obras (Ench. 19.37). 

Agostinho de certa forma reconduziu toda a doutrina e toda a vida cristã à caridade. O amor de Deus se faz presente no mundo e o fruto de quem é amado por Ele e se reconhece como filho, é a caridade. É o amor de Deus que nos faz amar. A caridade que ama o próximo é a mesma que ama a Deus. (29) “Chi ama rettamente, senza dubbio crede e spera rettamente; chi invece non ama, crede vanamente, anche se quanto crede è vero, e spera vanamente, anche se s’insegna che le cose in cui spera riguardano la vera felicità, a meno che l’oggetto della fede e della speranza sia tele che a colui che lo chiede possa essere concesso il dono di amarlo” (Ench. 31.117). (30) Em sua obra Fede ed opere, Agostinho defenderá a tese que nem todos os cristãos obterão a salvação, pois não basta ser batizado. A fé cristã, a sua identidade, vem acompanhada das obras de caridade. Existe uma diferença a considerar entre fé morta e fé ativa. A primeira é condenada, a segunda é essencial. A fé que salva é vivificada pela caridade. 

Nutrido no amor de Deus, o cristão pode e deve viver o mesmo amor no relacionamento com o próximo. A caridade não consiste tanto em “fazer”, pois também quem não é cristão pode fazer boas obras. O que a diferencia é a presença de Cristo no coração humano que o motiva às boas ações. É Cristo o modelo e fundamento da caridade cristã. (31) Quem O segue deve imitá-lo numa oferta da própria vida pelos irmãos. 

É com esse forte apelo ao amor que Agostinho conclui a sua obra (Ench. 31.121). A caridade possui a primazia, é a finalidade dos mandamentos, e ainda, Deus é caridade (1Jo 4, 8). Foi Ele que nos amou primeiro, e porque nos sentimos amados, podemos também amar e observar os seus mandamentos. A caridade é fonte, norma e fim da vida cristã. 

VII. Conclusão: 

Fé, esperança e caridade, virtudes interdependentes 

Diante das inquietações do amigo Lourenço, que buscava uma vida cristã autêntica através do conhecimento de algumas idéias básicas da fé católica (Ench. 1.4), Agostinho apresenta o caminho das virtudes teologais. Expondo o que se deve crer, esperar e amar, ele toca todas as questões levantadas (Ench. 1.4).

A esperança e a caridade nascem da profissão de fé contida no “Símbolo” e por isso a esperança é boa e a caridade santa (Ench. 30.140). Separadas da fé, tornam-se falsas, uma mentira do homem por negar Deus. A fé é início da salvação humana, fundamento e raiz de toda justificação (DS 1532), mas não une perfeitamente a Cristo, nem rende membro vivo do seu corpo, se a essa não se acrescentam a esperança e a caridade (DS 1531). Se deixarmos a fé na revelação de lado, a esperança fica limitada à vida terrena e a caridade é substituída pelas conquistas sociais. 

As três virtudes mesmo sendo diversas, implicam-se reciprocamente (Ench. 2.8). Formam uma tríade, completamente interdependente. Constituem uma forma de vida que é verdadeira adoração a Deus (Ench. 1.6). A maior parte do Enchiridion vem dedicada à virtude da fé (Ench. 9-113) e duas breves seções dedicadas à esperança (Ench. 114-116) e o amor (Ench. 117-121). O que não significa que as últimas duas tenham uma importância reduzida em comparação à primeira, mas é um modo de salientar que somente a fé correta produzirá a devida ordem da esperança e do amor. A esperança e a caridade encontram na fé o seu fundamento necessário (Ench. 30.114). 

Não se pode esperar sem crer no que se espera. E crer nos bens futuros não é outra coisa que esperar (Ench. 2.8). Contudo, é o amor a plenitude da vida cristã (1Cor 13,13). Sem amor a fé é inútil e a esperança não subsiste. Quem ama retamente, crê e espera retamente (Ench. 31.117). A fé deve operar pela caridade (Gal 5,6), que não pode subsistir sem esperança. Portanto, o amor não subsiste sem a esperança, nem a esperança sem amor, nem amor e esperança subsistem sem fé (Ench. 3.8). As três virtudes caracterizam a existência cristã e se apresentam na prospectiva de antecipação da visão de Deus, que acontecerá na plenitude futura. 

Agostinho não esquece nunca a centralidade cristológica do mistério da salvação, a fundamentação bíblica de cada verdade de fé e a sua consistência eclesiológica. Percebemos no estudo da obra que Cristo, a Bíblia e a Igreja são pontos centrais de referencia que permitem fugir ao perigo de um frio dogmatismo ou de um racionalismo teológico abstrato. A fé é uma forma peculiar de conhecimento que permite entrar no mistério e percebê-lo na sua importância para a vida pessoal. Ela diferencia-se do conhecimento empírico, pois enquanto esse se baseia na presença do que é visto ou entendido, aquela (fé) implica a sua ausência (Heb 11,1). 

Seguindo os passos de Agostinho vemos que o acesso ao objeto da revelação não é puramente intelectivo, mas implica assentimento da pessoa como um todo, num dinamismo integrado verso o Bem Supremo que é Deus. A vida cristã não é abstrata, mas uma orientação da existência humana no seu conjunto. A fé não é puro saber, mas vontade, amor, esperança, capacidade de caminhar verso Deus. É um ato global, um modo cristão de vida, que implica o desejo de salvação, de vida eterna (Ench. 23,84).

 *** Fontes 
AGOSTINO, Commento al vangelo e alla prima epistola di San Giovanni, NBA XXIV/1, Roma 1968. AGOSTINO, Contro Fausto Manicheo, NBA XIV/I, Roma, 2004. AGOSTINO, La Trinità, NBA IV, Roma 1973 AGOSTINO, La Vera Religione, NBA VI/1, Roma, 1995. AGOSTINO, Le confessioni, NBA I, Roma 1991. AGOSTINO, Predestinazione dei Santi, NBA XX, Roma 1987. AGOSTINO, Soliloqui, NBA III/1, Roma 1970. AGOSTINO, Spirito e lettera, NBA XVII/1, Roma 1981. AGOSTINO, Manuale sulla fede, speranza e carità, NBA VI/2, Roma 1995. AGOSTINO, Discorso 43, NBA XXIX, Roma 1979. AGOSTINO, Discorso sul simbolo rivolto ai catecumeni (Discorso 398), NBA XXXIV, Roma, 1989. COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 11 Tempo e Eternidade na Idade Média Tiempo y Eternidad en la Edad Media – Time and Eternity in the Middle Ages Jun-Dez 2010/ISSN 1676-5818 116 AGOSTINO, La fede e il simbolo, NBA VI/1, 1995. AGOSTINO, La fede e le opere, NBA VI/2 Roma 1995. Bibliografia ALICE L., “Introduzione al Manuale sulla Fede, speranza e carità” in NBA VI/2, Roma 1995, 455-461. BELLANDI A., L’amore pienezza della fede: solo la carità conosce, Milano 2004. EUGENE TESELLE, “Fe”, in A. D. FITZGERALD, Diccionario de San Augustin, Burgos, 2001. FISICHELLA R., La fede come risposta di senso, Milano 2005. IZQUIERDO V.C., Teologia Fundamental, Navarra 1998. LIBANIO J. B., Eu Creio, nós cremos. Tratado da fé, São Paulo 2000. RATZINGER J., Creazione e peccato. Catechesi sull’origene del mondo e sulla caduta. Torino 1986. LUBAC H., La foi chrétienne. Essai sur la structure du Symbole des Apôtres. Aubier, Paris 1969. NASH R., “Iluminación divina”, in A. D. FITZGERALD, Diccionario de San Augustin, Burgos 2001, 696-700. SCIACCA M. F., S. Agostinho, Brescia 1949. SCIACCA M.F., “Riflessione sull´enchiridiun di Sant´Agostino”, in augustinian studies 2 (1971) 105-113

(1) Professor de Filosofia da Natureza e Iniciação à Teologia no Instituto Sapientia de Filosofia. Email: emersondetoni@gmail.com. 
(2) Cf. L. ALICE, Introduzione al manuale sulla fede, speranza e carità. in NBA VI/2, p. 451- 452.
(3) Agostinho não possui uma análise especulativa geral e sistemática sobre o ato de fé, mas deixou uma herança muito grande e importante para as reflexões sucessivas.
4 AGOSTINO, La fede e il simbolo, 1,1.
5 AGOTINO, Discorso 212,2
6 Cf. AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso, 214,2. 
7 Cf. RATZINGER J., Creazione e peccato. Catechesi sull’origene del mondo e sulla caduta. Torino 1986, p. 39. 
8 Cf. M.F. SCIACCA, “Riflessioni sull’Enchiridion di Sant’Agostino”, in Augustinian Studies, 2, 1971, p.109. 
9 AGOSTINHO, Confessione, IX, 26,37. 
10 Cf. V.C. IZQUIERDO, Teología Fundamental, Navarra, 1998, 240. 
11 Cf. AGOSTINO, Discorso sul Simbolo rivolto ai catecumeni – Discorso, 398, 3.6. 12 Cf. AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso 213, 9.
13 M. F. SCIACCA, “Riflessioni sull´Enchiridion di Sant’Agostino”, in Augustinian Studies, 2 (1971), p. 108. 
14 S. AGOSTINO, Discorso, 43,9.
15 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano 2005, p. 128.
16 AGOSTINHO, Discorso, 43,7,9. 
17 Agostinho vê na Igreja e na Sagrada Escritura uma autoridade segura, um ponto luminoso na solução dos grandes problemas teológicos. É a Sagrada Escritura a voz primeira, que diz o que devemos crer. Igreja e Escritura constituem-se a regra de fé. 
18 Cf. Sl 36,10; Jo 1,9; Ef 1,18; 3,9; 2Tm 1,10; Hb 6,4; 10,32. 
19 AGOSTINO, La Trinità, 1,3. 
20 Lembramos que em seus escritos Agostinho procura sempre defender a fé católica contra as heresias da época. Por isso, afirma o caráter gratuito da fé contra os pelagianos, que valorizavam tanto a liberdade humana que a graça parecia não ser necessária, e que insinuavam que a fé ao menos no seu início dependia do poder do homem, desvalorizando a graça. Significativo também foi o afastamento dos maniqueus que sustentavam uma via a Deus e à verdade com a pura e simples razão. 21 Cf. AGOSTINO, Predestinazione dei Santi, 2,5. 
22 Cf. AGOSTINO, PL 40,1190.1191. 23 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano, 2005, p.92
24 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano 2005 p. 93-95. 
25 EUGENE TESELLE, “Fe”, in A. D. FITZGERALD, Diccionario de San Augustin, Burgos, 2001, p. 565. 
26 Cf. R. FISICHELLA, La fede come risposta di senso, Milano 2005, p. 94-95. 
27 AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso, 213, 1. 
28 AGOSTINO, Nella trasmissione del Simbolo, Discorso, 213,1. 
29 “Chi ama rettamente, senza dubbio crede e spera rettamente; chi invece non ama, crede vanamente, anche se quanto crede è vero, e spera vanamente, anche se s’insegna che le cose in cui spera riguardano la vera felicità, a meno che l’oggetto della fede e della speranza sia tele che a colui che lo chiede possa essere concesso il dono di amarlo” (Ench. 31.117). 
30 Em sua obra Fede ed opere, Agostinho defenderá a tese que nem todos os cristãos obterão a salvação, pois não basta ser batizado. A fé cristã, a sua identidade, vem acompanhada das obras de caridade. Existe uma diferença a considerar entre fé morta e fé ativa. A primeira é condenada, a segunda é essencial. A fé que salva é vivificada pela caridade. 

domingo, 12 de março de 2017



A MAÇONARIA E A TRADIÇÃO HERMÉTICA

Autor: João Anatalino



A principal marca da influência gnóstica na cultura maçônica aparece nos temas relacionados com a tradição hermética. Essa influência pode ser recenseada em praticamente todos os ensinamentos dos graus superiores, especialmente nos chamados graus filosóficos. [1]

O que chamamos de tradição hermética é um conjunto de doutrinas de caráter místico que compreendem especialmente três ramos distintos de pensamento, quais sejam, a Cabala, a Gnose e a Alquimia. Embora cada uma dessas três manifestações culturais tenham características próprias e sejam originárias de fontes diferentes (A Cabala é de fonte judaica, a Gnose é fundamentalmente cristã e a Alquimia, embora já praticada por povos antigos como os egípcios e os chineses, foi desenvolvida em sua forma moderna pelos árabes), vale dizer que, na época moderna elas se confundiram em um único sistema, que hoje é o fundamento do pensamento místico moderno.

O hermetismo, originalmente, é fruto do trabalho de um grupo de pensadores esotéricos, que escreveram seus trabalhos no segundo século da era cristã, reunidos sob o nome de um personagem mitológico conhecido como Hermes Trismegisto, que quer dizer três vezes grande. Ele era assim chamado porque dizia-se que tinha nascido três vezes no Egito, tendo na sua primeira vida inventado a astronomia, na segunda a medicina, e na terceira a alquimia.

Os escritos atribuídos a Hermes Trismegisto foram reunidos em três trabalhos chamados Corpus Herméticum, Discurs Parfair e Discurs Livre de Ostathas, que são, evidentemente, produtos de diferentes autores, já que apresentam conteúdos doutrinários diversos. De alguma forma, os trabalhos do suposto Hermes concordam com teses gnósticas muito em voga na época, especialmente as ideias defendidas pelo Bispo Valentino.

Essas teses defendiam a ideia de que o universo originou-se de uma energia, que antes de tudo, existia no nada absoluto. Essa energia, um dia manifestou-se no “nada absoluto” através de um nous macho-fêmea que deu origem a um Demiurgo, que por sua vez, produziu os Sete Arcontes que governam os sete céus que constituem o universo material.[2] No oitavo céu reside a Divindade Suprema. O Demiurgo hermético é identificado com o Sol, que é rodeado pelos planetas e responsável por tudo que neles existe. Nesse modelo está claramente exposta a visão do sistema solar, que era o universo conhecido até a época de Galileu, Kepler, Newton e outros cientistas que desvelaram ao mundo as faces do mundo moderno.[3]

A gnose hermética adotou também a idéia essênia do Homem Primordial, o Homem do Céu, como arquétipo do Homem da Terra, um conceito que também é desenvolvido na Cabala. Só que ao fazê-lo, identificaram-no com o mito grego de Narciso, pois “o homem primordial” gnóstico, tendo se inclinado sobre o mundo inferior, viu seu reflexo na água e achou-se tão belo que desceu para contemplar-se mais de perto. Nessa ação foi apanhado na armadilha da matéria e nela ficou retido, revestido de uma forma perecível, ao mesmo tempo em que é imortal em sua essência. Por isso, todas as disciplinas místicas hospedam em suas práticas o mesmo objetivo, ou seja, buscam libertar a luz que foi encerrada na matéria, para que ela, livre das impurezas que a matéria lhe agrega, possa voltar ao centro irradiante que é Deus. [4]

Na maçonaria essa ideia está presente principalmente no ritual de iniciação, onde a Luz é dada ao neófito como resultado do processo iniciatório. A originalidade aqui fica por conta da forma profana (no dizer de René Guénon) que a maçonaria assumiu depois que incorporou motivos políticos e filosóficos aos seus rituais, para adaptá-la às exigências modernas.[5] Essa tendência se expressa no simbolismo de uma frase muito usada na maçonaria, que diz que o maçom deve “levantar templos á virtude e cavar masmorras ao vício”. Com isso quer-se dizer que o objetivo da prática maçônica, hoje, é muito mais moral e ética do que, propriamente, esotérica, no sentido que lhe era dado pela tradição hermética. Em outras palavras, não se trata mais de uma “libertação interior” que proporcione ao iniciado um êxtase espiritual, mas sim de um aprendizado que lhe dê um caráter sem mácula, capaz de fazer dele uma reserva moral para a sua comunidade.

É importante lembrar que algumas tradições maçônicas se referem a Hermes como sendo um de seus fundadores. Essas tradições são mais desenvolvidas no rito de Misrain-Menfis, cujos praticantes entendem ser a maçonaria muito mais uma continuação dos Antigos Mistérios egípcios do que uma derivação de tradições cultivadas pelas corporações de oficio medievais. Para os maçons praticantes daquele rito, Hermes é o deus egípcio Thot, e também o deus romano Mercúrio. Em suas três encarnações ele combinou todos os atributos de um homem civilizado, sendo, ao mesmo tempo, legislador, sacerdote, guerreiro e filósofo, tendo também inventado a escrita e a ciência.

Foram os filósofos gregos do primeiro século cristão que criaram o mito de Hermes e desenvolveram a Alquimia como ciência da natureza. Eles acreditavam na existência de uma sociedade secreta, existente no Egito desde as mais remotas épocas da humanidade, que detinha os altos segredos da ciência, da filosofia e da religião. Essa fraternidade, chamada de “Filhos de Hermes”, tinha sede em Heliópolis e transmitia tais conhecimentos através de palavras de passes, toques, símbolos e métodos codificados de instrução, para evitar que caíssem em mãos profanas.[6]

Segundo alguns autores, essa fraternidade ainda hoje existiria e seria responsável pela manutenção dos mais profundos conhecimentos da civilização humana. Alguns dos segredos retidos por essa fraternidade seria a fórmula de obtenção da pedra filosofal (o sonho alquimico), o elixir da longa vida, a fórmula para ficar invisível, o poder de comunicação á distância (telepatia), etc. Esses, aliás, eram os poderes atribuídos aos irmãos da Rosa-Cruz, que em 1622 cobriram os muros de Paris com estranhos cartazes. [7]

Se existiu ou existe ainda tal fraternidade jamais saberemos com certeza, pois segundo a tradição ela se oculta da publicidade, não coopta mais pessoas que o estritamente necessário, e ainda assim, os cooptados são pessoas especiais, á nível de conhecimento e caráter. De acordo com a Enciclopédia Mackenzie, seus membros são pessoas de vasta erudição, falam diversas línguas, viajam pelo mundo todo, são discretos, simpáticos, humildes na aparência e no trato com as pessoas, calmos e seguros em tudo que dizem e fazem. Passam, muitas vezes, por professores de história, face ao conhecimento que dela mostram, como se tivessem, efetivamente, vivido os acontecimentos.[8]

Pawels e Bergier também parecem acreditar na existência de tal fraternidade. Escrevem aqueles autores: “A idéia de uma sociedade internacional e secreta, reunindo homens intelectualmente muito avançados, transformados espiritualmente pela intensidade do seu saber, desejosos de proteger as suas descobertas cientificas contra os poderes organizados, a curiosidade e avidez dos outros homens, reservando-se o direito de utilizar suas descobertas no momento oportuno, ou de sepultar durante vários anos, ou de apenas pôr em circulação uma ínfima parte-tal idéia é simultaneamente muito antiga e ultramoderna. Era inconcebível no século XIX, ou mesmo apenas há vinte e cinco anos. Mas hoje é concebível. Num determinado plano, ouso afirmar que essa sociedade existe neste momento. Certos hóspedes de Princeton (recordo especialmente um sábio viajante oriental) puderam ter consciência disso.”[9]

Os autores escreveram esse texto no século passado, por volta da metade dos anos cinqüenta. Hoje se sabe que existe um grupo de intelectuais, oriundo principalmente da universidade americana de Princeton que se denomina “os novos gnósticos” de Princeton. Congregam principalmente cientistas atômicos, astrônomos, biólogos e outros próceres da pesquisa cientifica avançada, bem como teólogos e filósofos de vanguarda.

Talvez o autor estivesse se referindo a esse grupo. O que importa, todavia, é apontar a correlação que existe entre a idéia da sociedade secreta e o saber. Essa correlação, como se vê, sempre existiu. Se no passado o saber se ocultava através de práticas chamadas iniciáticas, hoje ele se oculta em fórmulas só inteligíveis a alguns poucos espíritos de categoria. Em qualquer caso, porém, a aquisição desse saber só é possível através da adequada iniciação. O mito hermético, que antes se vinculava a uma idéia de religião, hoje está por trás da ciência mais avançada. 

Na nossa opinião, a maçonaria institucionalizada se inscreve nesse domínio, não como portadora de segredos iniciáticos impublicáveis, como diziam possuir os rosa-cruzes, ou conhecimentos científicos avançados, ou ainda verdades filosóficas que devam ficar ocultas dos profanos, mas sim como uma sociedade que “trabalha” tais conteúdos para que eles possam ser transformados em atitudes práticas, resultando em beneficio para a humanidade. Nesse sentido, ela estabelece uma ponte entre a mística e a realidade, ligando os domínios mais sutis do espírito humano á sua consciência, que é onde se formata a imagem exterior do caráter do homem.

Como se sabe, o movimento rosa-cruz está na origem da maçonaria moderna. Por isso, grande parte das alegorias utilizadas nos graus superiores do rito escocês e do Arco Real são de origem hermética, como já se disse. O próprio nome de Hermes Trismegisto é citado num dos graus filosóficos, como legatário dos ensinamentos que ali se desenvolve. Assim, se á maçonaria praticada nas Lojas simbólicas podemos chamar de arquitetura do espírito, á maçonaria dos graus superiores chamaríamos, sem nenhum constrangimento, de hermetismo moral.

Com isso fica mais fácil entender o catecismo maçônico que é, na sua essência, um misto de filosofia com teosofia, desenvolvido com uma finalidade bem prática, que é a dar uma contribuição á sociedade, formando líderes e criando uma base moral na qual ela possa se sustentar na sua busca por um equilíbrio “justo e perfeito”.


[1] Aqui nos referimos especialmente à maçonaria de influência anglo-saxônica, que engloba os dois principais ritos hoje praticados no mundo ocidental, quais sejam, o REAA (Rito Escocês Antigo e Aceito) e o Arco Real.
[2] Um corpo sideral, ou uma espécie de esfera energética semelhante ás que os cabalistas chamam de sefirá, ou se quisermos fazer uma analogia com simbolismos mais modernos, o campo energético que gerou o Big-Bang que está na origem do universo.
[3] Essa visão foi muito influenciada pelas ideias dos filósofos neoplatônicos, que estão na origem do pensamento gnóstico. Nessa visão está inserta principalmente o simbolismo-base da maçonaria, que vê o mundo como um edifício que é pensado por Deus (o seu Grande Arquiteto) e construído por seus agentes, que são os anjos e os homens.
[4]Alexandrian, História da Filosofia Oculta, pg. 60.
[5] René Guenón- Estudos Sobre o Esoterismo Cristão. São Paulo, Ed. Pensamento, sd.
[6] Não é sem razão que o alquimista Fulcanelli dedica seu livro O Mistério das Catedrais aos “Irmãos de Heliópolis”. Na imagem o deus Hermes.
[7] “Nós, delegados da agremiação principal dos Irmãos da Rosa-Cruz, fazemos uma estada visível e invisível nesta cidade, pela graça do Altíssimo em direção ao qual se dirige o coração dos Justos a fim de libertar os homens, nossos semelhantes, do erro mortal”. Citado por Pawels e Bergier – O Despertar dos Mágicos, pg. 47.
[8] Kenneth Mackenzie- The Royal Masonic Cyclopaedia.
[9] O Despertar dos Mágicos- pg. 48.