sábado, 9 de julho de 2016



A Origem dos Vigilantes 


"A ampla simbologia maçônica, que evoluiu para interpretações morais e místicas no seu avanço especulativo ou moderno, nasceu na sua maioria dos costumes e da organização das corporações de construtores, basicamente fundamentada em suas funções e trabalho. Nos rituais, podemos entender muito destas razões".

Entre as corporações de ofício da Idade Média, hoje englobadas, sob o rótulo de 

Maçonaria de Ofício ou Operativa, destacava-se a dos Canteiros, ou esquadrejadores de pedras, ou seja, os obreiros que tornavam cúbica a pedra bruta, dando-lhe cantos, para que ela pudesse se encaixar nas construções. (Canteiro é o operário que trabalha em Cantaria, palavra derivada de canto, já que a função é fazer os cantos, ou ângulos retos na pedra). 

Os canteiros costumavam delimitar os seus locais de trabalho (que, por extensão, acabaram sendo chamados de canteiros de obras, denominação encontrada até hoje), cercando-os com estacas fincadas no chão e nas quais eram introduzidos aros de ferro, que se ligavam a outros elos, formando uma corrente. A abertura dessa cerca estava na parte ocidental do recinto de obras. Transpondo-se essa cerca, encontrava-se, bem na entrada, na parte frontal, ou lateral, um barracão, que funcionava como uma espécie de almoxarifado, onde eram guardados os planos da obra, o material de trabalho e os instrumentos necessários. 

Como responsável por todo esse material, havia um operário graduado, que era o Warden, ou seja, Zelador ou Vigilante. Este obreiro, além de tomar conta de todo o material, pagava o salário aos operários, despedindo-os então, no fim da jornada diária de trabalho. Posteriormente, para maior agilização dos trabalhos foi criado o encargo de mais um zelador, ou vigilante, postado geralmente ao sul, ou ao meio-dia. O hábito de chamar o sul de meio-dia é originário da França, onde o sul é chamado de midi. 

Assim, esse hábito dos trabalhadores medievais, principalmente dos canteiros, além de ser a origem da Cadeia de União e até da Corda de Oitenta e um Nós, deu, também, origem aos cargos de Vigilantes de uma Oficina maçônica, os quais, além de outras funções, devem, simbolicamente, ao fim do dia de trabalho, pagar aos obreiros o salário da jornada diária, despedindo-os, então, contentes e satisfeitos, por terem recebido sua paga.


Extraído de http://docslide.com.br/documents/fraternidade-maconica.html

sexta-feira, 8 de julho de 2016




AS ORIGENS DA CABALA 

Autor: João Anatalino

Graficamente, a palavra Cabala deriva da raiz hebraica Qibel, que significa “receber”. Assim, ela originou o termo hebraico Qabalah (Kabbalah), aportuguesado para Cabala, que por definição se refere ao recebimento da doutrina “não escrita” que supostamente estaria escondida em nomes e termos bíblicos, alguns deles intraduzíveis para as linguagens desenvolvidas pelos povos do ocidente, pois remetem a conceitos esotéricos só conhecidos pelo povo de Israel. Dessa forma, entende-se a Cabala como sendo uma tradição oral transmitida de geração a geração por alguns iniciados na mística da religião judaica e que pretende conter as verdades enunciadas por Deus aos profetas de Israel, verdades essas que não são reveladas na Torá escrita. E nas partes em que essas verdades são recepcionadas nos cinco livros atribuídos á Moisés, elas aparecem cifradas em títulos, nomes e outros termos, cuja transposição para letras e valores numéricos confere á essas verdades diferentes significados, só conhecidos pelos iniciados.(1) 

Resumindo, podemos dizer que a Cabala é uma tradição que acompanha a saga do povo de Israel desde a sua mais remota origem. Provavelmente, como bem assinala Dion Fortune em seu excelente estudo, suas raízes venham de antigas crenças do povo caldeu, de onde Abraão e seus descendentes a receberam, e por transmissão oral ela foi passando de geração em geração, como forma de tradição, e esta, por fim, acabou desembocando na corrente rabínica dos mestres da religião de Israel, que a desenvolveram em um sistema filosófico-místico nos primeiros séculos da nossa era.(2)

A tradição costuma atribuir a codificação da Cabala a um rabino chamado Simeon Ben Yohai, que viveu no século II da era cristã, no governo do Imperador Adriano. Segundo essa tradição o imperador romano o teria condenado á morte, razão pela qual Ben Yohai viveu boa parte da sua vida escondido em uma caverna. Teria sido esse rabino, muito famoso na história da religião judaica, que reuniu os ensinamentos dos antigos mestres e repassou-os oralmente ao seu filho, Rabi Ben Eleasar e a outros discípulos seus, na forma de discursos, feitos em uma linguagem simbólica e mística. Estes, por sua vez, reuniram esses ensinamentos em um livro denominado Sefer Há-Zhoar (o Livro do Esplendor), que se tornou a Bíblia cabalística por excelência. Esse livro é composto de vários comentários rabínicos, reunidos em diversos blocos, denominados “Siphras” entre os quais os mais importantes são o Siphra Ditzeniovtha, (Livro do Mistério Oculto), o Há Idra Rabba Kadisha (A Grande Assembleia Sagrada) e Há Idra Zuta Kadisha (A Assembleia Sagrada Menor).´

Há vários outros livros e tratados que se referem á essa tradição, como o Sepher Yetzirah e seus comentários, que contém a cosmogonia cabalística, o Sepher Sefiroth com suas referências, que esclarecem a teoria das séfiras, e o Asch Metzareph, que é um tratado que relaciona Cabala e alquimia, passível de ser entendido somente por quem domina o arsenal de simbolismo dessas grandes tradições. Porém, o mais importante dos tratados cabalísticos é mesmo o Sepher Há - Zohar³, não esquecendo também os livros escritos pelo grande mestre Isaac Luria, especialmente o “Livro das Revoluções das Almas” no qual esse famoso rabino desenvolve a tese da transmigração das almas e as obras de Maimônides, em especial o seu “Guia dos Perplexos”.(4)

Historicamente, porém, como bem demonstra Alexandrian em seu tratado sobre a filosofia oculta, o Sepher Há - Zhoar só aparece no Ocidente em fins do século XIII, revelado por um rabino judeu espanhol, chamado Moisés ben Schemtob (1250- 1305) mais conhecido como Moisés de León , que ensinou os princípios da Cabala nos reinos de Leão e Castela.(6) A partir de investigações conduzidas ainda na Idade Média, relatadas pelo autor acima citado, muitos estudiosos chegaram á conclusão que o Zhoar, na verdade, seria um trabalho compilado no século XIII, e dele teriam participado vários autores, a maioria oriundos da região do Languedoc, liderados por Moisés de Leon. (6) Nessa região, também conhecida como Provença, uma próspera colônia judaica florescera nos territórios dominados pelos príncipes simpáticos á doutrina cátara.(7) Todavia, ainda que se aceite esse pressuposto, não se pode negar que essa tradição já estava bem desenvolvida na Europa na época medieval, sendo de larga aplicação junto á comunidade judaica e também entre os cristãos gnósticos, anteriormente ao advento do catarismo. A prova disso é a existência de várias escolas de ensinamento cabalístico pelo continente europeu muito antes de a região do Languedoc ter se tornado a capital do misticismo na Europa e a heresia cátara a principal preocupação da Igreja de Roma. Exemplos dessas escolas foi a de Isaac, o Cego, que ensinou a Cabala entre 1160 e 1180 na Provença e seu aluno Ezra ben Salmon, que lecionou, na mesma época, essa disciplina na Espanha. Na Itália destacaram-se os famosos sábios cabalistas Abraham Abulafia (1240-1291) e na Alemanha Yehuda Ben Samuel, o Piedoso, e Eliazar, rabino de Worms (1176-1238), os mais famosos cabalistas medievais. (8)

Como já foi referido, ao longo do tempo os praticantes desse sistema desenvolveram dois tipos de aplicação para a tradição cabalística. Um deles, relacionado com as coisas divinas, foi chamado de Cabala sagrada, também dita Cabala prática ou operativa. Essa vertente trata dos elementos de magia relacionados com talismãs, rituais e cerimônias mágicas, invocativas de forças sobrenaturais. Essa tradição parece ter vindo de antigas fontes sumérias, nas quais os descendentes de Abraão se abeberaram. São fartas, no Antigo Testamento, as referências aos urins e tumins, espécie de amuletos mágicos que os patriarcas e sacerdotes hebraicos usavam para tentar adivinhar a vontade de Deus.(9)
Um dos magos dessa arte teria sido o próprio Moisés, cujas demonstrações frente aos sacerdotes egípcios e depois, quando invocou sobre o Egito as pragas e catástrofes que obrigou o faraó a libertar o povo de Israel, constitui um dos relatos mais impressionantes da Bíblia. 

É nesse sentido que Fílon de Alexandria (20 a. C - 50 e. C), historiador e filosofo judeu, que também cultivou a Cabala, e Maimônides (Rabi Mussa bin Maimun ibn Abdallah, 1135-1204) um dos mais famosos cabalistas medievais, entendiam ser a Cabala a verdadeira mensagem divina contida na simbologia da linguagem e na mensagem das formas geométricas. Fílon foi o filósofo que procurou interpretar as inspirações proféticas judaicas no contexto da filosofia grega, especialmente as ideias de Platão. Ele foi o precursor da escola de pensamento que se tornou conhecida mais tarde como neoplatonismo, a corrente filosófica que deu origem ao gnosticismo. Para esse sábio judeu o significado dos preceitos veiculados na Lei (a Sitrê Toráh) só podiam ser interpretados pelos iniciados no simbolismo iniciático da religião judaica, pois eles continham verdades metafísicas sobre a origem, o desenvolvimento e o destino do universo, que se revelados ao vulgo, causariam uma grande tragédia. Por isso Deus as colocara em símbolos, visões e metáforas que somente uns poucos eleitos conseguiam entender.Isso porque a Torá era o instrumento de Criação do mundo, pois ela própria era o Inefável Nome de Deus. Ela era , no jargão cabalístico, “ a séfira Hochmah (Sabedoria).(10)

Filon é o precursor da filosofia que vê o mundo sendo criado pela palavra Divina. Deus é o Logos, o Verbo, a Palavra que se transforma em obras. O Logos é a ferramenta com a qual Deus constrói o mundo. Os anjos são logói,ou seja, palavras saídas da boca de Deus, as primeiras coisas criadas, que combinadas em seus sons e valores tornam-se instrumentos de criação. O Verbo é, pois, a verdadeira ferramenta da Criação e através dele Deus fez todas as coisas. Por isso, Deus, ao apresentar-se a Moisés no Monte Horeb, não declinou o seu Nome, limitando-se a dizer: Eu Sou.

Destarte, na filosofia de Fílon, toda a verdade sobre o mundo e o homem estava contida na Torá na forma de símbolos e alegorias que precisavam ser adequadamente descodificadas para serem corretamente entendidas. Assim, criador e criatura tornavam-se uma coisa só, unida por um vínculo de causa e efeito onde o destino escatológico do mundo se consumava na própria necessidade de Ser. Por isso Deus era o Verbo. Deus era Eu Sou. O finito era o infinito tornado real, e entender o homem era penetrar na mente de Deus.

As ideias de Fílon, como se pode notar, apresentavam um caráter bastante místico que não agradou aos judeus tradicionalistas. Mas alcançou grande repercussão entre os praticantes da nascente doutrina que iria dominar o pensamento ocidental nos séculos seguintes. Essa doutrina era o Cristianismo. Foi sobre as especulações de Filon acerca do Logos e a cosmogonia que delas se derivou, que os pensadores cristãos, classificados como gnósticos, arquitetaram a maioria das suas concepções. Por isso boa parte da doutrina gnóstica apresenta um arsenal de simbolismo que só pode ser entendido por quem domina a linguagem própria dos iniciados na Cabala.(11)

Maimônides, nascido em 1135 na cidade espanhola de Córdoba, foi um dos mais importantes cabalistas da Idade Média. Foi ele o filósofo que transformou a Cabala numa verdadeira doutrina filosófica, colocando uma ordem lógica numa tradição que havia se abastardado com a influência das diversas doutrinas que invadiram o pensamento ocidental após o advento do Cristianismo. Essas doutrinas vinham principalmente do pensamento cristão gnóstico, impregnado pelos ensinamentos de Aristóteles e pelas concepções do Islamismo, que ganhara muita influência com as conquistas muçulmanas na Europa.

Maimônides era médico e filósofo. Como médico fez importantes contribuições á medicina, especialmente com seus comentários ao compêndio chamado Halachá. Esse compêndio, que contém as principais prescrições dos sábios israelenses sobre questões de saúde, foi grandemente enriquecido pelos comentários desse sábio cabalista. Em sua famosa oração do médico, ele mostra ter plena convicção do poder espiritual na medicina e que esta exercia influência fundamental sobre o corpo, porque alma e o corpo são indivisíveis, sendo que a cura de um depende da plena saúde do outro.
Deus era, para Maimônides, o Médico Celestial, e o médico terrestre não tinha muita força sem a presença Dele ao seu lado. Corpo e alma andavam de mãos dadas e sem força espiritual para curar as doenças a cura não aconteceria. É o que qualquer bom médico moderno reconhece: quando o paciente não ajuda, não há remédio que funcione. A atitude do doente em relação á cura é mais importante que os medicamentos. Um dos seus principais pressupostos dizia: "Para os mal-humorados, sua vidas não é vida" Ou seja, a alegria é a fórmula para a conservação da saúde.

Mas foi principalmente o seu trabalho como comentador da Torá que o tornou famoso entre os intelectuais. Os comentários de Maimônides sobre os dois Talmudes, o de Jerusalém e o da Babilônia, são considerados, até hoje, verdadeiros clássicos da literatura rabínica. Esse conjunto de comentários compõe a chamada Mishnê Torá.(12)

Outra de suas obras clássicas é o chamado Guia dos Perplexos, conjunto de 14 livros que contêm 982 capítulos e comentários sobre milhares de leis judaicas, escrito numa linguagem acessível, expurgando a tradição judaica das influências míticas e místicas que lhe foram dadas por Fílon e os neoplatônicos.

Maimônides pode ser considerado o verdadeiro codificador da tradição religiosa dos judeus e o fundador da Cabala filosófica, pois sem o seu trabalho a Cabala teria continuado a ser uma doutrina muito confusa, perdida entre as concepções judaicas e gregas do mundo, coisa que abalava os judeus em sua fé e não ajudava em nada aos cristãos que buscavam uma alternativa filosófica entre o atavismo dogmático de Roma e as concepções um tanto delirantes dos gnósticos.

Maimônides simplificou bastante o problema da linguagem que tornava ao estudioso comum o estudo da tradição oral da religião judaica. O seu Guia dos Perplexos, escrito justamente com essa finalidade (desmistificar principalmente as concepções cabalistas dessa tradição) é dividido em três partes. A primeira é dedicada á discussões dos equívocos que podem surgir diretamente do texto da Torá, que em sua opinião, apresentavam apenas contradições aparentes, geradas por comentadores influenciados por doutrinas estrangeiras. A segunda ataca problemas que brotam das incompatibilidades entre as chamadas abordagens "científicas" (inspiradas na filosofia de Aristóteles) e a visão bíblica de Deus e do mundo. A terceira discute temas filosóficos e teológicos, como a natureza do bem e do mal, o propósito do mundo, o significado ético e sociológico que está por trás dos mandamentos do Decálogo e o caráter moral e filosófico da pura devoção.

Malgrado o seu esforço para expurgar a tradição oral judaica dos aportes que lhe deram Filon e os neoplatônicos, os quais subsistem ainda hoje na Cabala, Maimônides não escapou da influência que o Sepher-há-Zhoar, o texto básico do misticismo judaico, tem sobre toda a tradição oral da religião de Israel.

Apesar disso, mais do que um grande intelectual, notável comentador do Talmude, Maimônides é considerado um grande cabalista. O seu Guia dos Perplexos foi responsável pela abertura de uma nova era de investigação filosófica sobre a Bíblia e seu conteúdo, não só em termos religiosos, mas também morais e sociológicos. Sua extensa obra vem abrindo campo para novas pesquisas e servindo, tanto como base fundamental para o estudo das obras antigas, quanto como um catalisador para as teses cabalísticas subsequentes.(13)


  
                                                                                                       

                                                                    Maimônides                                                                            

                                                      
                                                                     Isaac Luria

                                                 
 Da Cabala filosófica, pode-se dizer que esse tipo de doutrina, embora profundamente impregnada de ensinamentos esotéricos, tinha, não obstante, um objetivo bem prático. Sua função era revelar aos seus iniciados os grandes segredos da natureza, mediante os quais se poderia conseguir poder sobre ela. Nesse sentido ela se equiparava á alquimia, e em muitos casos, as duas tradições conviveram estreitamente, compartilhando os mesmos símbolos. Esse ramo mágico da Cabala acabou inspirando vários pensadores místicos cristãos, que viam nela uma forma de conhecimento da natureza. Foram esses filósofos cabalistas os mestres que precederam os pensadores rosacrucianos no desenvolvimento da filosofia oculta e no apostolado do livre pensamento, numa época em que discordar, ou pensar diferente dos doutores da Igreja significava a prisão, a tortura nas masmorras e a morte nas fogueiras. Entre estes pensadores podemos listar os filósofos Pico dela Mirandola (1463-1494), Marsilio Ficino (1433-1499), Johann Reuchlin (1455- 1522), Cornélius Agrippa (1486- 1535), Giordano Bruno (1548-1600), Guilherme Postel (1510-1581), Schelling (1775- 1854)e conhecidos ocultistas como Blaise de Vignére, Fabbre d’Olivet, Eliphas Lévi e Estanilau de Guiata, famosos mestres da filosofia oculta e consagrados alquimistas. (14)

Esse tipo de Cabala acabou inspirando também uma filosofia moral, destinada a aperfeiçoar o caráter humano e tornar mais feliz a vida do homem na terra. Dois dos nomes mais importantes desse ramo foram o já citado rabino Isaac Luria (1534-1572) que introduziu nessa doutrina o tema da transmigração das almas (Guilgou Neshamot) e Moisés Cordovero. (15)

Com a interpolação desse tema, mais os conceitos desenvolvidos acerca do processo cármico e a teoria da reencarnação, elementos fundamentais para o entendimento da doutrina cabalística, essa tradição acabou derivando, em sua parte filosófica, uma vigorosa disciplina de autoajuda, erigindo, ao mesmo tempo em que pugnava por uma liberdade de pensamento estranha aos costumes da época, um edifício cosmológico e ético que viria contribuir em muito para a construção das correntes de pensamento que influenciaram a Reforma religiosa e o sistema filosófico que se seguiu, o Iluminismo. Isso porque a Cabala recuperava a espiritualidade da experiência bíblica, conspurcada, de certo modo, pelas ideias gnósticas, cuja contaminação pelas doutrinas gregas era visível. Através dos mitos e dos símbolos, uma nova gnose estava sendo desenvolvida pelos intelectuais que trilhavam o caminho da Reforma. Grandes escritores, artistas e filósofos, como Dante, Milton, Francis Bacon, o pintor Rembrandt, Spinoza, Leibnitz, Hegel, Schelling, e principalmente Victor Hugo, Goethe, o poeta William Blake e outros, devem á Cabala algumas das suas mais profundas inspirações. Alguns dos movimentos filosóficos e literários mais importantes da história do pensamento ocidental também sofreram grande influência das doutrinas cabalistas. Citam-se, apenas á guisa de exemplo os movimentos conhecidos como idealismo, que congregou vários intelectuais de renome, principalmente na Alemanha e países da Europa central, entre os quais Hegel e o grande Franz Kafka, tido por muitos críticos literários um verdadeiro autor cabalista.(16)

Esse ramo da Cabala é hoje o mais difundido entre os povos de cultura cristã, pois encampa um vasto domínio nas doutrinas de conteúdo moral, sendo utilizado inclusive por profissionais da psicologia e da psicanálise para subsidiar estudos sobre o conteúdo mais profundo da mente humana. O exemplo mais conhecido da aplicação dessa doutrina na psicologia se encontra nos trabalhos do grande psicanalista e pesquisador Carl Gustav Jung.

Jung faz muitas referências à Cabala em seus escritos, especialmente quanto ás relações que ele encontrou entre os sonhos de seus clientes e os símbolos cabalísticos. Em muitas de suas obras ele fala da necessidade de se estudar essa tradição do ponto de vista científico, pois os símbolos e as visões presentes nessa doutrina estão intimamente conectados com o conteúdo psíquico que se hospeda no chamado inconsciente coletivo da humanidade.(17).

É nesse sentido que a Cabala desperta, ainda hoje, um grande interesse entre as pessoas que se preocupam em aperfeiçoar o seu caráter e desenvolver maiores padrões de espiritualidade.


1. As citações bíblicas aqui registradas foram extraídas da Bíblia Hebraica, traduzida por David Gorodovitz e Jairo Fridlin, publicada pela Editora e Livraria Séfer Ltda, São Paulo, 2015.
2. Dion Fortune- A Cabala Mística; Ed. Pensamento, São Paulo, 1957.
3. Zhoar significa Luz. É o Livro do Esplendor (brilho, luz), que propaga “o brilho da Torá”, a Luz de Deus.
4. Na verdade há milhares de obras cabalistas, umas mais importantes que outras, porque introduzem correntes doutrinárias diversas, que compõem a monumental literatura da Cabala. Citamos aqui apenas as mais importantes do ponto de vista histórico e doutrinário, porque elas constituem verdadeiros marcos no estabelecimento dessa doutrina.
5. Sarane Alexandrian, História da Filosofia Oculta, Esfinge, Lisboa, 1970.
6.Scholen também concorda com essa opinião. Segundo David Biale, (A Cabala e Contra História, Ed. Objetiva, São Paulo, 1982) a maior parte do Zhoar foi escrita por Moisés de Leon.
7. O Languedoc foi assim chamado por causa da língua falada nessa região. Era a língua occitana,também conhecida como occitânica, langue d'oc, ou provençal (em francês, langue d'oc; em occitano,lenga d'òc). Língua derivada do latim, era falada no sul da França, ao sul do rio Loire, em territórios italianos nos Alpes e algumas partes da Espanha e Portugal. A língua portuguesa arcaica sofreu muita influência do provençal. O Languedoc foi a terra dos cátaros, famosa seita gnóstica da Idade Média, cujo extermínio pela Igreja de Roma é considerado um dos maiores genocídios da História.
8. Alexandrian, História da Filosofia Oculta, citado.
9. Algumas referências bíblicas a esses amuletos podem ser encontradas em Êxodo 28:30, Levítico 8:8,Números 27:21 Deuteronômio 33:8 1 Samuel 28:6 Esdras 2:63 Neemias 7:65. Segundo os estudiosos, esses oráculos deixaram de ser usados depois da destruição do Primeiro Templo de Jerusalém, mas Flávio Josefo (As Guerras dos Judeus, Vol II) diz que eles foram usados até o tempo de João Hircano (século II a,C.).
10.Que na doutrina gnóstica era conhecida pelo nome de Sofia.
11. O próprio evangelista João, tido por muitos estudiosos como gnóstico, usou a expressão Logos para referir-se a Jesus. “No princípio era o Logos (Verbo), o Logos estava com Deus e o Logos era Deus.”- João 1:1,2
12. O Talmude é o livro que contém os comentários dos rabinos sobre a interpretação da Torá e seus mandamentos (os mitsvot). São comentários que desdobram a Bíblia em conhecimentos sobre medicina, anatomia, astronomia, filosofia e outras ciências. Vem desse ecletismo o fato de a Cabala abranger assuntos tão amplos como a física, a biologia, a astronomia e outras ciências modernas.
13. Na imagem, os grandes mestres cabalistas Maimôides e Isaac Luria. Fonte: Portal da Cabala.
14. História da Filosofia Oculta, op. citado. 
15. Vide o capítulo XX deste estudo que se refere ao conceito de Guilgou Neshamot (a transmigração de almas). Moisés Cordovero (1522- 1570) foi o principal intérprete e organizador da Cabala no início da chamada Idade Moderna. Ele deu á Cabala uma estrutura de doutrina filosófica.
16. Ver nesse sentido, as obras da historiadora inglesa Frances Yates, que mostra, com muita propriedade, a influência desse tipo de pensamento sobre os filósofos da Renascença, especialmente o grande Giordano Bruno. Seus dois estudos, Giordano Bruno e a Tradição Hermética e O Iluminismo Rosacruz, são obras fundamentais para o entendimento do pensamento que inspirou a Reforma religiosa e as correntes filosóficas que a seguiram, como o Iluminismo e própria Maçonaria. Ambas foram editadas no Brasil pela Editora Cultrix. Sobre a influência do sabataísmo (corrente cabalista liderada por Sabatai Tzvi) no movimento idealista alemão e sobre o Iluminismo ver a obra já citada de David Biale, Cabala e Contra História.
17. Idem para as obras de Jung e Kafka, pags. 76, 77. Ver também Harold Bloom- Abaixo as verdadesSagradas, 2012.
João Anatalino

quinta-feira, 7 de julho de 2016




Autor João Anatalino

O salmo133


A primeira referência que um maçom encontra ao participar de uma seção em Loja Simbólica é o salmo 133.[1] Esse salmo, que é chamado “cântico de romagem de Davi” supostamente teria sido composto pelo famoso rei de Israel, quando se encontrava sitiado por tropas inimigas e precisava dar aos seus comandados uma âncora que os mantivesse unidos e lhes proporcionasse a confiança necessária para lutar pela sua pátria e a sua crença. 

O fato de os maçons terem adotado essa oração para ancorar a abertura de seus trabalhos em Loja de Aprendizes se explica pelo fato de a Maçonaria estar centrada em três fundamentos básicos que lhe dão suporte e fundamento. O primeiro é a idéia que está no núcleo central da sua própria existência como instituto cultural. Essa ideia é a de que uma ordem social perfeita só pode alcançada quando há pessoas com espíritos adequadamente preparados para implantá-la e, principalmente, para defendê-la e preservá-la. 

Essa ideia só pode ser realizada através da união entre as pessoas mais preparadas e comprometidas com a ordem social. É uma união que se faz “interpares” e que se realiza através da estratégia da Confraria. É nesse sentido que a invocação ao Salmo 133 realiza esse propósito: “Como é bom e agradável viverem Irmãos em harmonia. É como o óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, do qual escorrem gotas para sua barba, e daí para suas vestes. É como o orvalho do Hermon, que vem cair sobre as montanhas do Tsión, como bênçãos ordenadas pelo Eterno. Sejam elas perpetuadas em sua vida”.[2]

Isso quer dizer que todos os maçons são iguais e entre eles deve reinar a harmonia. Por isso, a virtude da Confraria, que se traduz na congregação dos Irmãos reunidos em Loja se realiza no simbolismo desse salmo, que consagra a união fraternal.
Na luta por um ideal, no respeito por uma crença, na confiança da realização de um objetivo.

A cadeia da União

O segundo fundamento é a prática que resulta da aplicação da Cadeia da União. Essa prática concita os membros da Confraria maçônica a se unir para servir a sociedade, como se esta fosse a sua própria família. Aqui está implícita a virtude da Fraternidade, que é outra divisa consagrada pela Ordem. É esse espírito fraterno, simbolizado no próprio ambiente gerado pela Loja que resulta em uma egrégora, captando e distribuindo entre os Irmãos a energia que ali circula. Daí a oração final, de encerramento das seções, fechando a Loja Simbólica.[3]

─ Ó Gra .·. Arq .·. do Univ.·., fonte fecunda de Luz, de Felicidade e Virtude, os OObr.·. da Arte Real, congregados neste Augusto Templo, cedendo aos movimentos de seus corações, Te rendem mil graças e reconhecem que a Ti é devido todo bem que fizeram. 
─ Continua a nos prodigalizar os Teus benefícios e a aumentar a nossa força, enriquecendo as nossas CCl .·. com OObr.·. úteis e dedicados.

─ Concede-nos o auxílio das Tuas Luzes e dirige os nossos trabalhos á perfeição. Concede que a Paz, a Harmonia e a Concórdia sejam a tríplice argamassa com que se ligam as nossas obras.[4]

E por fim a instituição, que é a própria organização conhecida como Maçonaria, pessoa jurídica organizada a nível internacional, que congrega milhões de cidadãos em todas as partes do mundo, irmanados por uma promessa, um código de conduta, uma tradição mística e um ideal comum, que é a defesa da Liberdade, da Igualdade entre as pessoas e a Fraternidade entre os povos do mundo. Essa proposta está consagrada nas palavras finais de encerramento dos trabalhos da Loja Simbólica do Aprendiz, através da pergunta feita pelo Venerável Mestre ao Primeiro Vigilante e da consequente resposta deste:

─ VEN.·. Para que nos reunimos aqui?

─ 1º VIG .·. Para combater o despotismo, a ignorância, os preconceitos e os erros. Para glorificar a Verdade e a Justiça. Para promover o bem-estar da Pátria e da Humanidade, levantando templos á virtude e cavando masmorras ao vício.[5]

Essa tradição está fundamentada na Bíblia. Em Êxodo, 28, 1:2, encontramos a informação de que Moisés consagrou o Tabernáculo na forma como o Grande Arquiteto do Universo lhe havia ordenado, santificando depois a Aarão e seus filhos como primeiros Sumos Sacerdotes de Israel. Depois espargiu sobre a cabeça de Aarão o óleo precioso, que escorreu para suas vestes, descendo ate ás orlas do seu vestido. Assim, na sagração do Tabernáculo e na unção do seu sacerdote, consumou-se a União que doravante deveria existir entre Jeová e seu povo, União essa que seria sacramentada toda vez que o povo eleito se reunisse em Assembleia. Nesse cerimonial, presidido por Moisés no deserto, aconteceu, pois, a instituição da Loja israelita, com todo o sentido simbólico que ela representa. Os maçons, no simbolismo do seu ritual, nada mais fazem do que evocar a mística dessa cerimônia para consagrar a reunião da sua própria Loja.


A força da egregóra

Essa é a disposição que também encontramos no estudo e na prática da Cabala. Como diz M. MacGregor Mathers, no preâmbulo da Kabbalah Revelada, de Von Rosenroth: “Grande importância é dada ao ideal de fraternidade. A potência da fraternidade sempre foi um fato essencial em uma ordem oculta, separada do seu ideal altruísta; há também o espiritual e o físico. Qualquer quebra na harmonia de um círculo permitirá a entrada de uma força oposta. Um espiritualista experiente testemunhará a favor da verdade desta afirmação.” [6]

Quer dizer: tanto na Cabala, quanto na Maçonaria, é a força da egregóra que leva o grupo á consecução do seu objetivo. O processo assim o exige, pois como já anteriormente declarado, a lei que rege a formação do universo é a Lei da União.[7]

A Cabala explica esse simbolismo da seguinte forma: a barba do Macroprosopo (Deus manifestado como realidade física) simboliza o fluxo de energia que nasce na primeira sefirá e percorre toda a Árvore da Vida (símbolo do universo), unificando a totalidade das realidades existentes no mundo.[8) Como se sabe, a Árvore Sefirótica, desenho mágico-filosófico com a qual os cabalistas explicam a formação do mundo é uma representação simbólica do universo como realidade macro e projeta o seu reflexo no homem como realidade micro. Por outro lado, sabemos que a palavra barba, em hebraico se escreve Hachad. Por aplicação da técnica chamada guematria essa palavra, quando decomposta em suas letras, tem valor numérico igual a 13. (A=1, CH=8, d=4 = 13). Esses valores correspondem às partes da barba do Macroprosopo, também chamado de Andrógino Superior, Vasto Semblante e Adam Kadmon, imagem usada pelos mestres cabalistas para designar a Energia Divina que se espalha pelo espaço cósmico, gerando a realidade que nós conhecemos como Universo. Na Siphra Dtzeniovtha, (O Livro do Mistério Oculto, parte do Sefer há Zhoar, Bíblia cabalista), se diz que “da barba, menciona-se que não é feita nem criada. Esta é o ornamento do todo. Ela procede dos ouvidos e tem o aspecto de uma circunferência que se expande constantemente pelo espaço aberto, enquanto seus caracóis sobem e descem. Está dividida em treze partes que pendem com treze adornos.” [9]
Nesse estranho e enigmático texto os mestres cabalistas querem dizer que a barba do Macroprosopo é a energia que unifica o total existente no Cosmo, fazendo dessa totalidade dispersa uma unidade, ou seja, umUniverso. Ela procede do ouvido porque o universo é feito através das combinações das letras do alfabeto sagrado (o hebraico) e o Nome Inefável de Deus. Tem o aspecto de uma circunferência porque esta é a forma geométrica que o Grande Arquiteto do Universo escolheu para dar formato ao universo físico. Essa é uma das razões de a Maçonaria ter na Geometria um dos objetos do seu cullto. É circunferência que se expande pelo espaço aberto, exatamente como faz o universo físico em sua expansão. Caracóis que sobem e descem são as ondas e partículas, formas de energia com a qual a matéria universal é produzida. As treze partes são os doze signos do Zodíaco, pelos quais a ciencia antiga dividia o universo, mais a parte sutil, o Pleroma, o espaço divino, de onde tudo emerge.

Sendo a energia que unifica ela (a barba do Macroprosopo) é a argamassa que dá liga ao mundo para que ele se torne um organismo único. É o símbolo da União. Para os antigos israelitas a invocação desse salmo designava o espírito de unidade e a fraternidade que devia imperar entre o povo de Deus. Essa Irmandade era simbolizada pela barba de Aarão, cujo corpo era tido como uma imagem da Árvore da Vida, na qual o fluxo da energia divina percorria desde a cabeça (a sefirá Kether) até a orla dos seus vestidos, ou seja, os pés, representados pela sefirá Malkuth ( o universo físico ). 
Assim, o Salmo 133, na verdade, é um simbolismo que está centrado em um segredo arcano de extraordinário significado e a Maçonaria, ao adotá-lo na abertura de suas Lojas não está apenas contemplando a ideia da Fraternidade pura e simples, mas realizando o objetivo cósmico de integração total de todas as emanações da energia divina. Trata-se, na verdade, de um mantra poderoso, uma âncora fundamental para o eliciamento da energia cósmica necessária para a formação da egrégora maçônica.

Que os Irmãos, ao ouvirem o Orador pronunciá-lo na abertura de suas reuniões tenham em mente essa informação, para melhor aproveitamento espiritual dessa invocação.


[1] A Loja Simbólica se refere ás seções previstas para os três primeiros graus, ou seja, os graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre.
[2] Texto conforme a Bíblia Hebraica, traduzida Por David Gorodovits e Jairo Fridlin- Editora e Livraria Sefer Ltda. São Paulo, 2015. Para uma interpretação mais pormenorizada do simbolismo do salmo 133, ver a nossa obra “ O Tesouro Arcano”, publicada pela Editora Madras, 2013.
[3] Egrégoros, do grego “egrêgorein” são esferas de energia, emanadas dos pensamentos emitidos pelos indivíduos agrupados e ligados mentalmente por um objetivo comum. Aqui o termo é usado como símbolo de corrente energética.
[4] Cf. o Ritual do Aprendiz. As abreviações seguidas de três pontos se referem á Deus (O Grande Arquiteto do Universo) e á Colunas e Obreiros, que se referem á Maçonaria e seus membros, no jargão maçônico. 
[5] Idem, Ritual do Aprendiz.
[6] A Kabbalah Revelada- Ed. Madras, 2004
[7] Por isso o simbolismo da “Cadeia da União” que é renovada a cada seis meses, através da transmissão da palavra semestral.
[8] As sefirots (no singular sefirá) são esferas de energia segundo a qual Deus se manifesta para formar o universo físico. São em número de dez e constituem o que, na Cabala, se chama a Árvore Sefirótica, ou Árvore da Vida. São várias as formas de escrever essa palavra em português. Neste trabalho usamos a forma adotada no livro” Cabala e seu Simbolismo”, de Gerson G. Shollen, traduzido por Hans Borger e J.Guinbusrg, publicado pela Ed. Perspectiva, São Paulo 2015.
[9] A Kabbalah Revelada, citado, pg. 89.
João Anatalino