OS MONGES MALDITOS
CAPÍTULO X
OS JUBELOS DO TEMPLO
João Anatalino Rodrigues
Jacques de Molay tinha sessenta e três anos quando foi preso. Estava completando nove anos como Grão-Mestre geral da Irmandade.
Embora sexagenário, apresentava-se em boas condições físicas e parecia gozar de boa saúde. Tanto é que, três meses antes da sua prisão, juntamente com dez Irmãos, cavalgara os trezentos e tantos kilômetros que separam Poitiers de Paris. Em Poitiers se avistara com o papa e conversara sobre as acusações que pesavam sobre a Irmandade que ele presidia. Essa investigação, o próprio de Molay já havia solicitado, em face das notícias que já haviam chegado aos seus ouvidos. Ele sabia que o rei Filipe havia apresentado á Clemente V uma lista com uma série de acusações contra o Templo. Essas acusações eram baseadas em testemunhos de antigos cavaleiros que haviam deixado a Ordem, segundo o que papa o informara.
– Concordo com Vossa Santidade – respondeu de Molay. – Os inimigos da nossa Ordem estão cada vez mais ativos e é preciso tomar muito cuidado.
Clemente V havia apresentado ao Grão-Mestre as imputações que lhe haviam sido feitas por Filipe, extraídas dos depoimentos de três antigos membros da Ordem, Esquin de Floyran, Bernard Pelet e Gérard de Byzol. Esses cavaleiros haviam sido todos expulsos da Irmandade e agora se dedicavam á tarefa de difamá-la onde pudessem e encontrassem quem quisesse ouvir.
– De certo que são difamações e calúnias urdidas por esses canalhas – disse o papa a de Molay. – E o rei Filipe está se aproveitando disso para atacar o Templo.
– Isso é verdade, respondeu De Molay. – Como Vossa Santidade está ciente, esses indivíduos foram expulsos da Ordem por conduta inadequada.
– Não é só por despeito que o rei quer destruir o Templo. Ele quer principalmente os seus bens – lembrou o papa.
– Estou ciente disso – respondeu De Molay. É principalmente a cobiça que leva o rei a querer nos destruir.
– Assim – disse o papa – com um olhar de viés, que não deixava dúvidas – seria conveniente tomar providências em relação ao tesouro do Templo.
– Entendo. Vossa Santidade tem razão. Isso será feito o mais rápido possível – disse o Grão-Mestre. ─ Mas e quanto ás nossas propriedades e bens de raíz, juntamente com suas rendas? Como haveremos de protegê-las? ─ perguntou De Molay.
─ Nós cuidaremos disso, meu filho ─ respondeu o papa.
O comandante do Templo era um velho teimoso e analfabeto, como Filipe o Belo, o apodava, mas não tinha nada de bobo. Sabia que o papa estava nas mãos do rei francês, e que algum acordo nesse sentido estava em curso. Alguns dias antes chegara ás suas mãos o documento assinado por um advogado de Paris, chamado Pierre Dubois, denominado De recuperatione terre sancte, na qual o referido causídico advogava veementemente uma nova cruzada para recuperação dos domínios cristãos na Terra Santa. E que essa cruzada fosse comandada por Filipe, usando os recursos das duas poderosas Ordens, a do Templo e do Hospital.
“Essencial para esse empreendimento”, dizia o documento, “é que a Ordem do Templo e o Hospital de São João sejam fundidas em uma só organização e colocadas sob um único comando.” Evidente que o comando único seria dado ao próprio Filipe, ou a alguém indicado por ele. Dado o pouco interesse demonstrado pelos Hospitalários nessa fusão, e a obstinada resistência de Jacques de Molay, já manifestada inclusive por escrito, o documento não fazia por menos: recomendava simplesmente que no caso de resistência á fusão, a “Ordem do Templo fosse destruída e para as necessidades da justiça, aniquilada por completo.”
Fora por isso que, uma semana antes do assalto ao Templo, ele ordenara ao Preceptor de Paris, Gérard de Villiers, que levasse o tesouro da Ordem para Gisors, onde ele ficaria escondido até poder ser embarcado para o exterior. Isso foi feito, e assim o dinheiro do Templo iria financiar as lutas dos portugueses contra os mouros e a guerra dos escoceses pela sua independência em relação á Inglaterra. Quanto ás relíquias do Templo, e em especial aquela, era preciso que fosse oculta em lugar que ninguém pudesse achá-la, por que, se encontrada, seria impossível administrar os problemas que isso causaria.
Filipe não conseguira botar as mãos no ouro do Templo, mas se apossara de todos os bens que estavam registrados em nome da Ordem em todo o território da França. Isso não havia passado despercebido aos olhos do papa. Embora respeitosamente, e com a devida cautela de um Pontífice que era refém do rei, Clemente V mostrou a sua indignação pelo ato de rapina praticado pelo monarca francês, escrevendo uma carta censurando-o por esse ato intempestivo e agressivo, prendendo os Templários e confiscando os bens da Ordem. “Vós, querido filho”, escreveu o papa ao rei, “violastes em nossa ausência todas as regras e deitastes a mão á pessoas e propriedades dos Templários. Vós também os aprisionastes e, o que nos entristece ainda mais, não os tratastes com a devida clemência (...) e acrescentastes ao desconsolo do encarceramento ainda outra aflição. Vós deitastes a mão á pessoas e propriedades que estão sobre a proteção direta da Igreja de Roma. (...) Vosso impetuoso ato é visto por todos, e de forma correta, como um ato de desrespeito para conosco e para com a Igreja Romana.”
Era, sem dúvida, um ato de coragem, praticado por um papa que tinha abdicado do seu poder e se submetera, covardemente, aos desígnios de um rei que fizera dele um mero títere. Clemente V não estava incomodado com o destino dos Templários, naquele momento, encarcerados em sua maioria, caçados por toda a França e alguns deles sendo mortos onde eram encontrados, se por acaso resistissem á prisão. Ele estava preocupado com os bens da Ordem, que Filipe surrupiara com mão grande.
Certamente que ele, sendo o Supremo Pontífice, poderia ter exercido a sua autoridade sobre Guilherme de Paris, para evitar que os membros da Ordem fossem submetidos aos suplicios da tortura. Afinal, embora o Tribunal da Inquisição tivesse certa independência até em relação á influência papal, nenhum inquisidor, por mais poderoso que fosse, se oporia aos desígnios do papa. Mas isso ele não ousou. Não tinha suficiente coragem para confrontar á vontade do rei da França.
Filipe nem se deu ao trabalho de responder á essa interpelação do papa. Tinha certeza de que logo, á vista do trabalho de convencimento iniciado pelos carrascos de Guilherme de Paris, os próprios Templários iriam oferecer munição suficiente para que Clemente V os condenasse. Porque, logo na semana seguinte, os inquisidores haviam iniciado o interrogatório. É a vista das negações dos altos dignatários do Templo, os instrumentos de tortura começaram a ser preparados. A par disso, uma intensa campanha de convencimento do papa havia sido iniciada. Uma campanha em que todas as armas seriam usadas.
No dia seguinte ao que Geoffrey de Charney fora interrogado, Jacques de Molay foi levado á presença de Guilherme de Paris. O monge dominicano d’Ennezat leu para ele acusações que já haviam sido feitas ao Preceptor da Normandia. Ao ouvi-las, de Molay mostrou a mesma indignação que seu Irmão de Ordem havia demonstrado ao ser confrontado com tais declarações.
– Infâmia – declarou o idoso cavaleiro, com uma expressão indignada, que as espessas barbas brancas não conseguiam esconder.
– Negais então as acusações que são feitas contra vós? – perguntou Guilherme de Paris.
– Nego, pela minha alma e pela minha devoção à Santa Madre Igreja e á Virgem, a quem servimos com devoção, que tudo não passa de falsidade e calúnia – disse o Grão-Mestre, mostrando a altivez que ainda conservava, apesar da idade e da situação desconfortável em que se encontrava.
A postura altiva do velho cavaleiro não deixou de ser observada pelo Inquisidor-Mor. “Maldito herege”, pensou Guilherme de Paris. “Vejamos se ainda conservará essa postura de arrogância depois de alguns dias no cavalete.”
– É do vosso conhecimento que essas acusações foram todas feitas por antigos Irmãos da Ordem? – inquiriu Guilherme de Paris.
– Essas acusações são falsas e foram feitas por membros expulsos da Ordem por conduta inadequada. Peço que essa circunstância seja levada em conta – disse de Molay.
– Certamente a levaremos – disse Guilherme de Paris, com um sorriso irônico. – Mas espero que vós sejais mais colaborativo e poupe o vosso tempo e o nosso dizendo logo o que queremos saber.
– Se vós vos referis á essas acusações absurdas que estão sendo feitas contra nós, reputo que são todas falsas e quem as fez são mentirosos e infames – repetiu de Molay.
– E quanto aos bens em espécie do Templo, o que foi feito deles? – inquiriu Guilherme de Paris.
Era a primeira vez que essa pergunta surgia no inquérito. Jacques de Molay logo percebeu que esse era o verdadeiro móvel de todo esse processo. Não pretendia entregar a coisa de modo tão fácil. Se Filipe queria destruir o Templo e ele certamente o faria, disso o Grão-Mestre estava certo, pelo menos teria que salvar o tesouro da Irmandade. Ele permitiria que a Ordem sobrevivesse mesmo que fosse suprimida em França e outros países onde Filipe detinha influência.
– Não existem tais bens em espécie – respondeu o imponente ancião.
– Vós estais faltando com a verdade – disse Guilherme de Paris. Todos sabem que o Templo de Paris guarda uma incalculável riqueza em espécie.
– Ela foi toda emprestada ao rei Filipe e outras organizações e pessoas – respondeu de Molay. – Como sabeis, a coroa deve uma soma imensa ao Templo.
Guilherme de Paris não estava disposto a deixar que o teimoso comandante do Templo desviasse o interrogatório para outra questão.
– Recusai-vos, pois, a nos dar essa informação?– insistiu Guilherme de Paris. – Por certo não ignorais que temos meios para arrancá-la á força. Insistis em negar?
– Nada tenho a dizer sobre essa questão – repetiu o Grão-Mestre.
– Sois um velho teimoso e tolo. A culpa por tudo que vos acontecer daqui por diante será toda vossa ─ vociferou o Inquisidor-Mor, com o rosto rubro de colera.
Só dois olhos altivos e frios responderam á sua ameaça.
– Levai esse velho arrogante e teimoso de volta á sua cela – ordenou Guilherme de Paris aos dois soldados que guardavam, impassíveis como estátuas, a porta da sala onde se processava o interrogatório. Vamos ver até quando ele continuará negando os seus abomináveis crimes.
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