quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XVI

O PAPA QUE SE DANE


João Anatalino Rodrigues

Clemente V não era homem para enfrentar Filipe, o Belo. Todavia, a sua carta ao rei, censurando-o por prender os Templários franceses sem a sua autorização e pior ainda, de ter se apossado dos bens do Templo, que por direito pertenciam á Igreja, representava um ato de coragem. Isso fez ver ao monarca francês que o caso não seria resolvido assim, tão simplesmente, pela força da sua autoridade. Depois, os Templários não constituíam apenas uma Ordem monástica de caráter militar, mas sim uma organização que tinha ramificações profundas em toda a sociedade medieval. Dentro da Ordem havia lavradores, pastores, moageiros, palafreneiros, ferreiros, carpinteiros e principalmente pedreiros. Estes últimos, mais organizados, haviam escapado, em sua grande maioria, da prisão, mas os primeiros, gente comum, que não possuía a têmpera do soldado endurecido na batalha, nem a sutileza espiritual dos mestres pedreiros e alquimistas, que tinham consciência da sua própria situação perante á Igreja, certamente não resistiriam á dor da tortura física, nem á pressão da tortura moral e logo confessariam o que quer que se exigisse deles.

Ademais, como o papa logo iria perceber, o que poderiam saber aqueles pobres diabos acerca das complicadas teorias doutrinárias que estavam sendo discutidas na questão Templária? Se até os próprios cavaleiros, em sua grande maioria, gente ignorante e iletrada, não as compreendia, como esperar que aldeões ainda mais incultos, pudessem entender que estavam praticando heresia pelo simples fato de estarem ligados á Ordem do Templo numa relação jurídica de adesão voluntária, ou forçada pelas leis feudais, ou ainda meramente profissional? Eles nem sabiam o que acontecia nos círculos mais altos da Ordem.

No entanto, a polícia de Filipe havia prendido indiscriminadamente todos os que foram encontrados nas preceptorias varejadas no território da França. E encarcerados em masmorras, estavam sendo torturados sem critério nem piedade. Mesmo sabendo que esses “Homens dos Templários”, como era conhecido o imenso contingente de mão de obra que apoiava a estrutura da Irmandade, não eram, por assim dizer, iniciados nos segredos rituais da Ordem, os engenheiros da dor que Guilherme de Paris havia arregimentado para extrair as confissões, não estavam poupando ninguém. Filipe, o Belo, ao detonar sua operação contra o Templo, não dera qualquer instrução no sentido de poupá-los. Suas ordens foram para que fossem arrebanhados, onde quer que fossem encontrados, todos os que, de alguma forma, tivessem alguma ligação com o Templo.

A preocupação de Clemente V não era sem razão. No mês de janeiro de 1308 ─ não se passara três meses da infeliz ação do dia 13 de outubro do ano anterior ─ trinta e seis dos cento e trinta e quatro cavaleiros templários presos no Templo em Paris já tinham admitido alguma veracidade nas acusações feitas á Ordem. Se os próprios cavaleiros, homens treinados e enrijecidos na forja da guerra, haviam sucumbido á tortura, ou á mera ameaça dela, o que dizer de um simples operário, ou camponês, que mal resistia ás intempéries da vida?

Porém, até mesmo o papa ficou boquiaberto e sem ação quan-

do soube que o próprio Jacques de Molay e os altos dignatários dio Templo haviam confessado ter cometido os crimes que eram imputados à Irmandade. Até aquele momento, ele havia duvidado que houvesse qualquer verdade naquelas acusações, mas as confissões dos seus comandantes o deixaram perplexo. E o pior disso tudo era a declaração dos acusados de que tudo o que haviam confessado era espontâneo e não lhes havia sido arrancado sob tortura. 

Foi então que Clemente V resolveu entrar na dança. Se Filipe o Belo, lhe apresentava um fait acompli, ele iria aproveitar esse fato consumado em seu próprio benefício. Tão logo tomou conhecimento da confissão de Jacques de Molay ele escreveu a todos os reis cristãos da Europa, pedindo a eles que, discretamente e sem alarde, com muito cuidado, prendessem todos os Templários em seus respectivos reinos e mantivessem os bens deles em custódia para a Igreja, até que os devidos processos fossem concluídos e uma destinação pudesse ser dada. Nesse mesmo documento, intitulado Pastoralis praeminentiae, ele elogiava o rei Filipe pela sua iniciativa, que correspondia á fé e ao zelo que um rei cristão deve ter, mas que o comando de tais procedimentos era de exclusiva competência da Igreja e não devia ser exercido pelo braço secular. O medo de Clemente V era óbvio. Não queria que no restante da cristandade ocorresse a mesma coisa que em França, ou seja, que os bens da Ordem fossem engordar os tesouros reais.

Mas competia à Igreja apurar a verdade dos fatos. Clemente V não podia deixar isso simplesmente ao braço secular, pois se o fizesse, o que aconteceu em França ocorreria no resto da Europa. E o papado, que já enfrentava problemas com a perda de poder na França e na Inglaterra, onde a guerra de Eduardo II contra os rebeldes escoceses o tinha exposto, gerando oposição junto aos dois lados, enfrentaria sérios problemas.

Foi com essas preocupações em mente que Clemente V enviou uma carta a Filipe, nomeando três cardeais, Berengar, secretário particular da Santa Sé, Estevão, cardeal presbístero de Therminis e Landolf, cardeal diácono de St. Angel, para interrogar os altos dignatários do Templo. Em outros termos, o papa estava assumindo o comando da Inquisição e tirando o processo das mãos do Inquisidor-Mor, Guilherme de Paris. 

Mas nessa manobra do papa, Filipe o Belo, não estava disposto a se deixar envolver. Escreveu de volta, repetindo todas as acusações e as confissões obtidas. Numa velada ameaça, disse que “Deus detestava os mornos” e que todo atraso na repressão dos crimes dos Templários representaria conivência com eles. Lembrou ao atrapalhado Pontífice que os inquisidores cumpriram uma obrigação e não se podia admitir que fossem contraditos no ministério que haviam recebidos de Deus.

Filipe não poderia ser mais claro. Com todas as palavras, estava dizendo ao papa que não aceitaria injunções de nenhuma ordem nesse caso. Pois, conforme disse, “era o defensor da fé, e não poderia tolerar tal injúria contra os inquisidores, pois se o fizesse estaria quebrando seu juramento”. Isso queria dizer, em alto e bom tom, que a Igreja poderia fazer as investigações que quisesse, mas isso não mudaria nada do que foi feito. Em outras palavras, o papa que se danasse. 

Eram cento e quarenta os Templários presos no dia 13 de outubro de 1307. Todos estavam confinados nas dependências do Templo em Paris. Em toda a França esse número subia a mais de dois mil, entre monges-cavaleiros iniciados e apenas combatentes. Todos haviam sido, de algum modo, torturados. E após a tortura, submetidos ao interrogatório por parte de Guilherme de Paris, ou por delegados seus. Cento e trinta e seis deles confirmaram as declarações de seus dignatários, acusando ou confirmando que a Ordem do Templo era culpada das práticas das quais estava sendo acusada. Guilherme de Nogaret, em nome de Filipe, mandou que os arautos do rei proclamassem por todo o reino as confissões dos Templários, causando na população francesa uma grande comoção. A opinião pública se dividiu. Muita gente, que já não gostava dos Templários, pediu a fogueira e o cadafalso para os malditos hereges arrogantes e promíscuos. Mas não foram poucos os que duvidaram da veracidade das declarações apregoadas pelos arautos. Não acreditaram que tais declarações fossem espontâneas, pois sabiam que os carrascos da Inquisição eram mestres no uso da tortura e costumavam arrancar dos pobres diabos que caiam em suas garras, qualquer declaração.

Filipe estava a cavaleiro da situação. Apenas quatro Templários foram suficientemente fortes para aguentar a tortura e negar as acusações. Seus nomes foram registrados para a memória dessa vilania. Chamavam-se Jean de Chateauvillars, Henry de Herçingy, Jean de Paris e Lambert de Toisy. Eram muito poucos para fazer frente ás declarações em contrário de 136 Irmãos, inclusive os próprios comandantes da Ordem, mas mesmo assim isso já preocupou Guilherme de Paris, que providenciou para que esses depoimentos fossem minimizados e não divulgados. 



Clemente V sentiu-se muito fortalecido com as posições adotadas pelo restante das autoridades seculares da cristandade, quando começou a recebeu as respostas á sua ordem para prender os Templários nos demais reinos. Eles tinham cumprido a ordem papal, mas nada havia sido apurado até então que justificasse qualquer ação contra o Templo.

Tanto que, em fevereiro de 1308, armou-se com coragem suficiente para enfrentar o monarca francês e anulou os poderes dos inquisidores, chamando oficialmente o caso para sua própria autoridade. 

Mas Filipe não se deu por vencido com essa súbita crise de autoridade do papa e buscou apoio junto aos doutores de teologia da Universidade de Paris. Perguntou a eles se os teólogos aprovavam sua atitude e se o poder temporal poderia agir em caso de comprovada heresia, como era o presente caso dos Templários. Os doutores responderam que o rei não tinha poder para abrir processo nesse caso, a menos que fosse requerido pela Igreja. Que o máximo que poderia fazer, se comprovada realmente a existência de uma heresia perigosa para a fé cristã, seria prender os acusados e entregá-los á Santa Madre Igreja para julgamento. Em outras palavras, os doutores estavam dizendo a Filipe que ele não tinha poderes para dirigir a Inquisição. 

Assim, claramente, toda a inteligência jurídica francesa concordava que os membros do Templo não estavam sujeitos á autoridade secular, o que tirava do rei o poder de julgá-los. Somente a Igreja podia decidir sobre a culpa deles e condená-los pelos crimes dos quais estavam sendo acusados. 

Filipe até se conformaria com esse parecer dos juristas da Universidade de Paris, se no mesmo arrazoado eles não tivessem escrito que os bens da Ordem pertenciam á Igreja, pois eles foram dados ao Templo na qualidade de defensores da Terra Santa, e como tal deviam ser “fielmente administrados e conservados com vistas ao dito fim.”. 

Essa resposta, como se podia esperar, não agradou ao rei e ele decidiu contra atacar. Guilherme Nogaret também era advogado e foi ele quem deu solução ao intrincado problema de jurisdição.

– Como podemos tratar essa situação? ─ perguntou o rei.

– Da mesma forma como tratamos o vosso conflito com o papa Bonifácio VIII, Majestade ─ respondeu Nogaret, 

Filipe se lembrava bem do seu conflito com o velho e teimoso Pontífice que havia desafiado a sua autoridade e queria sobrepor-se ao poder de todos os reis. Quanto á questão da opinião pública, Nogaret lembrou-lhe que ela também era hostil ao rei naquela ocasião.

– Naquela ocasião ─ lembrou Nogaret ─ Vossa Alteza convocou os pares do reino, as assembleias dos cidadãos e do clero e expôs-lhes a situação com tanta clareza que ninguém objetou que enviássemos uma tropa armada a Anagni para pressionar Bonifácio VIII.

O episódio do atentado de Anagni ainda estava bem presente na memória de Filipe. Naquela ocasião, a sua capacidade de persuasão fora bem empregada. Não custava ver se ainda tinha a mesma habilidade. Assim, o rei convocou uma reunião de todos os pares do reino, aqueles que viriam, mais tarde, a formar os Estados Gerais de França. Dessas assembleias participavam os presidentes das câmaras setoriais e provinciais, almotacés, senescais, bailios, cônsules, os nobres e os representantes do clero. E para garantir que cada uma das organizações participantes dessas assembleias estivesse de acordo com suas pretensões, ele, de próprio punho, enviou uma carta aos seus representantes, explicitando as suas razões para “livrar a Santa Madre Igreja da abominável Ordem dos Templários.”

Com essa intenção, Filipe reuniu em Tours uma grande assembleia de todos os pares do reino e autoridades civis e eclesiásticas, na qual expôs suas razões para a prisão dos Templários. A reunião durou dez dias e Filipe dela saiu bastante fortalecido, com todo o povo da França apoiando a sua ação.

Mais uma vez, a atuação de Pierre Dubois, com sua oratória inflamada e Guilherme de Plaisians, com sua extraordinária habilidade discursiva, foram de fundamental importância no convencimento da assembleia ali presente. 

– O povo do reino da França – disse Dubois – que sempre foi e será, pela graça de Deus, obediente e devoto à Santa Madre Igreja, mais que qualquer outro, solicita que seu Senhor, o rei da França, faça ver ao nosso Santo Padre, o papa, que ele enfureceu demasiado os franceses e provocou grande escândalo entre o povo, por que castiga apenas com palavras a heresia dos Templários. 

E Dubois afirmava, em sua diatribe, que o papa estava sendo tolerante com os Templários porque a Ordem tinha dinheiro. E mais: que o Santo Padre se escudava no nepotismo para garantir suas posições, já que um bom número de bispos e cardeais recém nomeados pertenciam á sua família. E por fim, depois de minar todo e qualquer possível apoio que se levantasse em favor de Clemente V, ele o exortava a pedir desculpas aos nobres inquisidores, perante os quais os hereges do Templo haviam confessado seus abomináveis crimes, que agora ele queria encobrir. 

Dubois e Plaisians se sucederam na tribuna, todos assacando violentas críticas ao papa e apoiando o rei em sua ação contra o Templo. Advogaram a supressão da Ordem, mesmo á revelia da autoridade papal, com argumentos tão fortes que a assembleia ali reunida não pode deixar de dar ao rei, mais uma vez, sua anuência para agir.

E assim, Filipe, o Belo, apoiado pelo povo de França, decidiu continuar com o processo, á revelia da própria Igreja. 

Afinal de contas, pensava ele, Clemente V, nem de longe era um adversário á sua altura, como tinha sido, no passado, Bonifácio VIII. Se áquele velho turrão ele havia vencido sem muito esforço, a este Pontífice covarde e submisso, então...

─ Tem razão ─ disse Filipe a Nogaret. ─ O papa que se dane! Vamos continuar com o processo. 

O objetivo era fazer o povo crer que Filipe tinha obrigado a agir por causa da leniência do papa em tomar uma decisão. Então, na falta de firmeza do Pontífice, o rei tomava em suas mãos a tarefa de defender a fé violada pelos promíscuos Templários. Dessa ação adviria um grande ganho político para o rei francês em sua cruzada para se tornar o grande líder da cristandade, desbancando, nesse papel, o próprio papa. 

Ele estava agora, pronto para um confronto com Clemente V. Foi com essa disposição que ele se propôs ir a Poitiers para um encontro com o Pontífice. 













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