quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO III

ESPIONAGEM E TRAIÇÃO


João Anatalino Rodrigues

Jacques de Molay tinha muitas razões para se preocupar, pois Filipe, o Belo, e seus ministros Nogaret e Marigny, já andavam tramando um ataque á Irmandade há algum tempo. Há cerca de dois anos antes da invasão do castelo do Templo ser decidida, Nogaret havia plantado entre os Templários uma dezena de espiões para obter informações sob o que se passava no interior da organização. 

A maioria desses espiões havia abastecido o ministro com uma série de informações, mas elas eram tão desencontradas que ele não pudera usá-las até então. É que a maioria desses espiões não conseguira passar dos primeiros graus de iniciação na Ordem e assim não tinham entrado na posse dos segredos mais profundos, que só os mais altos dignatários possuíam. 

Essa era uma consequência normal da forma como a Ordem estava estruturada. Na prática, havia uma cadeia iniciática que todo Irmão deveria cumprir para crescer na hierarquia da organização. Embora a cerimônia de recepção de um noviço fosse precedida de um ritual, no qual ele jurava cumprir a regra da Irmandade e fazia votos de castidade, pobreza e estrita obediência ás ordens superiores, esse ritual era simples e nada de estranho se exigia dele. Ele já estava previsto nas regras que São Bernardo havia escrito para eles e todos podiam ter conhecimento delas. Mas havia outras coisas que não constavam das Regras. Elas se referiam á certos atos litúrgicos acrescentados ao longo do tempo no cerimonial de iniciação na Ordem, e estes não faziam parte desse documento. Um desses atos, que talvez provocasse alguma consternação ao iniciando era o beijo ritual, que o Preceptor dava na boca do noviço. Mas isso, segundo se dizia, era normal em quase todas as cerimônias de recepção praticadas nas demais Ordens monásticas. Havia também aquela outra prática, que a maioria achava mais estranha ainda, que consistia no ato de negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Mas aquilo, diziam os Preceptores, era apenas uma encenação, necessária para provar a coragem e a firmeza do noviço. Se havia um significado mais profundo nessa ritualística, só os altos dignatários do Templo sabiam e isso não era comunicado aos neófitos.

O problema vinha depois, quando o noviço era entregue aos veteranos para que estes lhes dessem as “primeiras instruções”. Aí sim, segundo o relato dos espiões, todo o caráter infame da Ordem era revelado, pois então a eles era dito que os votos de castidade feitos pelo neófito na sua admissão só se referiam ao uso de mulheres, e que se o Irmão não pudesse resistir aos apelos da carne ele estaria livre para aliviar-se com outro Irmão. E ele era logo convidado a praticar atos de sodomia, em obediência a tais preceitos. Os noviços que se recusavam a ceder a tais impulsos eram severamente castigados.

Como todos eles se recusaram a servir sexualmente aos veteranos, disseram os espiões, foram logo colocados em ocupações subalternas e não puderam compartilhar dos “segredos” divulgados nos Capítulos mais avançados da Ordem. Por isso não dispunham de maiores informações a respeito do que se passava nos círculos mais altos da Irmandade. 

Somente um desses espiões, um sujeito chamado Esquin de Floyran, havia conseguido subir na hierarquia da organização templária. Ele fora Preceptor durante algum tempo na província de Bézier e Prior em Montfalcon. Mas fora preso e castigado e depois expulso da Ordem por conduta inadequada. Segundo constava, ele desviara dinheiro da organização para utilização em proveito próprio. Esse cavaleiro, provavelmente por vingança, já havia se apresentado ao rei de Aragão, Jaime II, com uma série de acusações contra a Ordem, mas aquele monarca tinha em alta conta a Irmandade e não dera importância ás suas denúncias. Ele foi então a Nogaret, que o levou á presença de Filipe, no castelo real de Loches, onde ele fez um relato completo das cerimônias de iniciação dos Templários e das práticas obscenas que, segundo ele, os Irmãos adotavam no claustro.

– Como Preceptor em Bézier vós iniciastes vários candidatos nos quadros da Irmandade. É verdadeira essa informação? – perguntou Guilherme de Nogaret ao traidor.

– Sim, Excelência, é verdade – respondeu Floyran.

– Então conheceis bem as práticas realizadas nas cerimônias de iniciação?

– Sim, Excelência. 

– Podeis relatá-las para nós?

Filipe, com o queixo entre as mãos, braços apoiado no tampo da grande mesa de carvalho, postura que lhe era tradicional, fixou no rosto do traidor os seus grandes olhos azuis. Costumava fazer isso com todas as pessoas com quem falava. Era um olhar frio, penetrante, que parecia vir do rosto de um deus de pedra, que não obstante a ausência de movimentos oculares emanava uma atração irresistível da qual as pessoas não conseguiam escapar. Passava uma sensação de implacabilidade e frieza que costumava gelar o sangue da pessoa a quem ele era dirigido. Funcionava como se fosse uma pinça que extraia de dentro da própria alma do interrogado a informação que estava buscando.

Mas o renegado templário não se mostrou intimidado pela pressão daqueles olhos frios e percrustadores. Filipe logo viu que aquele indivíduo não tinha medo dele. Talvez tivesse percebido a importância das informações que estava dando. Porque se o próprio rei se dignara a recebê-lo pessoalmente, então devia tratar-se de assunto de muita relevância. Quem sabe pudesse obter um bom preço por elas. 

– Fiquei preso nas masmorras do Templo por cerca de cinco anos, Majestade, e minha memória já não é tão boa. Além disso, se a Irmandade souber que eu estou revelando os seus segredos, a minha vida não valerá uma libra de sal – disse Esquin de Floyran, olhando diretamente para o rei, ao invés de responder á Nogaret.

Filipe entendeu. Balançou levemente a cabeça em sinal de concordância. “Eis aí um pilantra esperto”, pensou.

– Se vós disserdes tudo que sabeis sobre os costumes secretos dos Templários poderemos aquilatar o quanto valem essas informações. Quanto á vossa segurança, ficareis protegido em uma das nossas senescalias até que tenhamos dado um jeito nesses patifes – disse Nogaret.

O traidor olhou para o rei, como se esperasse uma confirmação. O rei assentiu com um menear de cabeça.

– Bom, vejo que isso interessa muito á Vossas Excelências. Sendo assim, vou fazer um esforço para lembrar-me de tudo – disse o antigo Templário, mostrando um sorriso amarelo, de poucos e puídos dentes.

Esquin de Floyran, depois de alguns minutos de estudada postura, na qual simulava estar fazendo um enorme esforço para puxar pela memória, afirmou, com toda a convicção, que os Templários, há muito tempo já não tinham mais fé nos preceitos e na doutrina da Santa Madre Igreja. Em consequência, estavam praticando uma religião muito diferente daquela que os bons cristãos professavam. 

─ No cerimonial de recepção ─ disse ele ─ os noviços são constrangidos a negar Cristo por três vezes e a cuspir sobre a cruz. Quando alguns deles perguntam a razão dessa barbaridade, lhes é respondido que aquilo é apenas uma cerimônia ritual sem importância, que faz parte das regras de admissão. Os que se negam a fazê-lo são presos numa masmorra e submetidos a vários constrangimentos físicos e morais. Os que sucumbem á essas exigências são recepcionados e recebem o beijo ritual, que o Preceptor lhes dá na boca. Depois ele é convidado a beijar o umbigo e o ânus de um Irmão veterano em sinal de submissão. 

─ Vós também fostes submetido a esse ritual obsceno quando da vossa admissão na Ordem? ─ perguntou Nogaret.

─ Sim, Excelência. Todos são. Segundo fui informado, esses rituais são praticados desde que o venerável Grão- Mestre Robert de Creon governou a Ordem e os introduziu na cerimônia de recepção.

─ E qual a razão dessas barbaridades? ─ inquiriu Filipe, pela primeira vez, com uma estudada postura de horror na face marmórea.

─ Eles dizem que a história do Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo nos é ensinada pelos catecismos, é falsa. Foi uma história inventada pela Igreja para justificar e conservar o poder que ela tem sobre as almas das pessoas. 

─ Como assim? ─ perguntou Nogaret, que já entrevia nessas informações a confirmação de que os Templários estavam contaminados por algum tipo de heresia, que ele, aliás, já conhecia bem. Essa informação poderia ser a chave que ele estava procurando para abrir as portas da fortaleza templária e demoli-la por dentro. Por isso insistiu com o traidor para que ele descesse aos detalhes.

─ Eles dizem que Jesus Cristo não era filho de Deus, pois Deus é um só e não tem filho. Que ele não nasceu de uma virgem, porque era filho de José, um carpinteiro, um homem comum e Maria, também uma mulher comum. Que morreu na cruz por conta dos seus próprios pecados e ambições e não ressuscitou de verdade, como os evangelhos dizem ─ afirmou o ex-templário, com uma convicção que não deixava dúvidas.

─ E como justificam tais blasfêmias? ─ perguntou Nogaret.

─ Não sei ao certo, Excelência, pois essas informações só os altos dignatários da Ordem detém. Alguns dizem que os Irmãos que fundaram a Ordem tinham provas de que Jesus foi um homem comum e que elas estavam bem guardadas em uma das nossas preceptorias, cuja localização só o Grão-Mestre sabe ─ respondeu Floyran. 

─ E que provas são essas? ─ perguntou Filipe, que parecia cada vez mais interessado.

─ Não me foi informado exatamente o que seria Majestade, mas parece que se trata de documentos escritos e relíquias do corpo de Nosso Senhor, que eles teriam encontrado no Santo Sepulcro.

─ Alguma vez vistes essas relíquias? ─ perguntou Nogaret, franzindo a testa.

─ Não as verdadeiras, Excelência ─ respondeu Floyran ─, mas em alguns Capítulos mais avançados, segundo alguns Irmãos me disseram, são mostradas a réplica de um crânio, com ossos de tíbias arranjadas em forma de cruz em baixo dele. E a todos é dado entender que tais relíquias se referem aos ossos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outros dizem que se tratam dos ossos de São João Batista, que segundo alguns dos Irmãos mais graduados, foi o verdadeiro Cristo e não Jesus. 

─ Que barbaridade! ─ disse Filipe, sacudindo negativamente a cabeçorra de mármore.

─ Uma bestialidade! ─ completou Nogaret.

Depois entrou no assunto que parecia incomodá-lo, ou fasciná-lo mais.

─ Dizem que nas iniciações templárias os noviços são forçados a dar beijos obscenos nas partes íntimas dos Irmãos, isso é verdade?

─ Sim, Excelência, essa é a pura verdade.

─ E qual a razão dessa obscenidade? ─ inquiriu Nogaret.

─ Eles dizem que esses beijos são rituais e têm uma finalidade sagrada que só os iniciados dos Capítulos mais adiantados podem conhecer, Excelência.

─ Que tipo de sacralidade pode conter em se beijar a bunda de alguém? ─ perguntou Filipe, com sarcasmo.

─ Não me foi dado saber ─ Majestade. ─ Também se beijava nos lábios e no umbigo. O porquê disso, como já disse, só os Mestres de mais alto grau sabem. 

─ São mesmos uns depravados ─ murmurou Filipe.

─ E quanto á pratica da sodomia. É verdade que tais coisas ocorrem dentro do Templo? ─ perguntou Nogaret.

─ De todos é exigido o voto de castidade ─ respondeu Floyran. ─ Mas aos noviços é dito que se eles não tiverem forças suficientes para resistir aos impulsos da carne, que eles tinham a licença para se aliviarem com seus Irmãos. Que isso não era pecado, pois a proibição só se referia á mulheres. E o que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo também fora adepto dessas práticas. 

─ Meu Deus! Que blasfêmia ─ murmurou Filipe.

─ Praticastes, alguma vez, conjunção carnal com vossos Irmãos? ─ perguntou Nogaret.

─ Nunca! ─ afirmou o renegado templário.

─ Mas recomendastes isso a todo noviço que recepcionastes em vossa preceptoria? ─ tornou Nogaret.

─ Não, Excelência. Eu deplorava tais comportamentos e me recusava a recomendá-los aos noviços. Por isso fui expulso da Ordem e amarguei cinco anos nas masmorras do Templo.

Filipe e Nogaret sabiam que o traidor Esquin de Floyran estava mentindo a esse respeito. Tinham conhecimento que ele havia sido expulso da Irmandade e cumprira pena de prisão por roubo, peculato e outros comportamentos proibidos pelas regras da Ordem, mas no momento não estavam preocupados com isso. Eles já tinham o necessário para começar a minar a fortaleza do inimigo. Aliás, essas informações já circulavam á boca pequena, em círculos muito restritos. Na verdade, a Ordem do Templo se tornara uma sociedade secreta, semelhante a certas seitas que a Igreja condenava. Uma das coisas que mais incomodava á Igreja era o fato de que as iniciações templárias eram geralmente realizadas á noite, e de forma tão secreta, que a cripta onde eles eram realizados tinha que ser guardada por cavaleiros armados. Somente cavaleiros e monges portadores dos mais altos graus podiam entrar. A promessa solene de não revelá-los a ninguém que não fosse daquele grau era outra coisa que causava desconfiança. Segundo os informantes, a inconfidência era punida com a prisão perpétua, e ás vezes, até a morte. 

Não importava a Filipe e certamente menos ainda a Nogaret, que sua testemunha, além de ser um proscrito, tivesse vindo da região do Languedoc, sua terra natal, onde florescera a Heresia Albigense. E que as práticas que estava imputando aos Templários eram de conhecimento público, pois já haviam sido atribuídas aos habitantes daquela região tempos atrás. 

Os Cátaros haviam sido suprimidos em uma cruzada que ceifara a vida de milhares de pessoas. Mas a memória dessa seita e das crenças que eles professavam ainda estava muito presente na cultura da região e os Templários tinham uma forte representatividade ali. Dizia-se até que eles eram os herdeiros naturais dos Cátaros e tinham adotado, em suas práticas e na doutrina que professavam intramuros, uma boa parte da tradição dos popelicans. Em outras palavras, a Heresia Albigense, como era chamada a crença dos Cátaros, fora suprimida externamente, mas internamente sobrevivia entre os Templários.

Não foi difícil para Nogaret achar outras testemunhas para corroborar o depoimento do ex-templário traidor. Logo foi procurado por vários outros indivíduos, proscritos da Ordem, dispostos a falar cobras e lagartos contra os seus antigos Irmãos, em troca de algum estipêndio. 

Munido dessas informações Filipe havia se encontrado com o papa Clemente V em Poitiers, alguns meses antes do seu assalto ao Templo e apresentado a sua lista de acusações contra os Templários. 

– Todas essas informações foram confirmadas por antigos membros da Ordem e Vossa Santidade poderá comprová-las pessoalmente – disse o rei.

– Mas se foram feitas por antigos cavaleiros expulsos da Ordem, elas não poderiam estar contaminadas pelo desejo de vingança? – objetou o papa. 

– Essa possibilidade existe – respondeu Filipe – mas não podemos descartá-las apenas por causa disso. Há muito tempo que se fala das estranhas práticas adotadas pelos monges do Templo em suas iniciações e nas reuniões dos Capítulos. E esse caráter de segredo que eles teimam em manter é muito suspeito.

– Tendes razão quanto a isso – disse o papa. – Mas eu gostaria de deixassem comigo esses depoimentos para que eu possa estudá-los com cuidado – sugeriu, timidamente.

– Isso pode durar muitos anos e os Templários, enquanto isso, poderão destruir todas as provas – protestou o rei.

– Permita-me Vossa Majestade que eu reflita um pouco mais sobre essa questão. Trata-se de um assunto extremamente delicado que precisa ser tratado com muito critério – insistiu Clemente V, como se estivesse constrangido perante a insistência do rei.

– Vossa Santidade é soberano nessa questão – respondeu Filipe. – Mas peço que leveis em consideração o perigo que a fé cristã está correndo se essas acusações forem verdadeiras. Não podemos nos esquecer da Heresia Albigense. O quanto custou em recursos para a Santa Madre Igreja eliminá-la. 

– Hei de dar a esse assunto a importância que ele merece ─ respondeu o papa, pensando, intimamente, o quanto as pessoas podiam ser hipócritas na defesa dos seus interesses.

Em Chipre, onde Jacques de Molay se encontrava na ocasião, despachos vindos da França o haviam alertado sobre os encontros havidos entre Filipe e o papa e as declarações dadas por Esquin de Floyran. A Ordem tinha informantes dentro da corte do rei e também junto ao papado. Há muito que ele já sabia que o ministro Nogaret andava procurando antigos membros da Ordem para interrogá-los sobre as práticas da Irmandade. Estava seguro quanto a isso, mas assustou-se quando descobriu que tais cavaleiros desapareceram e estariam, provavelmente, reclusos em alguma fortaleza, sob a guarda de Nogaret, ou mesmo de Guilherme de Paris, o chefe da Inquisição na França. Com essa preocupação na cabeça, ele fora até Poitiers, onde o papa se encontrava, para uma entrevista com ele.

– Creio que o Irmão Grão-Mestre tem conhecimento das acusações que estão sendo levantadas contra o Templo – disse Clemente V, solenemente.

– Tenho ouvido algumas insinuações, Santidade – respondeu o Grão-Mestre. 

– O que respondeis sobre isso? – perguntou o papa.

– Que são calúnias e grosseiras difamações. Vossa Santidade sabe muito bem que a nossa Irmandade é extremamente dedicada á Santa Madre Igreja e jamais praticaria qualquer ato que profanasse a nossa fé – respondeu de Molay. 

– Essas acusações – continuou – pelo que me foi informado, foram feitas por antigos cavaleiros expulsos da Ordem por causa do comportamento incompatível com as regras da Irmandade. São mentiras urdidas pelo ódio e pelo espírito de vingança desses fascínoras.

A face pálida do Grão-Mestre do Templo estava vermelha de uma indignação que as espessas barbas não conseguiam ocultar. Nesse instante, Clemente V percebeu o quanto Jacques de Molay estava velho e frágil. Teve pena e comiseração pelo ancião, que embora ainda ostentasse uma figura imponente, em seu vistoso manto branco, ornado com a respeitada cruz vermelha no peito, parecia o retrato da degeneração que uma vida ascética e sujeita a tantas pressões, como deveria ser a vida de um monge-soldado com tais responsabilidades, provocava nas pessoas a ela sujeita. Pensou nele mesmo e no quanto a sua própria saúde havia piorado nos últimos tempos, desde que fora eleito papa. O peso daquela tiara estava ficando cada dia maior. 

– Creio piamente em vossas palavras – disse o papa. – Tenho certeza de que se trata de calúnias urdidas com maldade, inveja e desejo de vingança – completou.

– Tenho confiança no julgamento de Vossa Santidade – respondeu o Grão-Mestre. – Não obstante – continuou –, penso que seria conveniente, para a Ordem e para a Igreja, que se abrisse um inquérito para apurar tudo isso, de modo que não paire nenhuma dúvida sobre a isenção de Vossa Santidade. 

– Essa medida, será, sem dúvida, uma necessidade e a solução ideal – concordou o papa, que intimamente já se decidira por ela. Ficou aliviado ao ver que o próprio de Molay concordava com ela e ele mesmo a sugeria. 

– Podeis ficar tranquilo – disse o papa, batendo amigavelmente no ombro do imponente ancião. – O Templo não corre nenhum perigo – completou.

Todavia, Clemente V não se apressou em cumprir o prometido a de Molay. Dormiu sobre a promessa de abrir o propalado inquérito, mas nem bem o comandante templário tinha deixado a sua presença ele se pôs a escrever uma carta ao rei Filipe, o Belo, dando conta do resultado da sua entrevista com ele. Informou o rei do inquérito que pretendia abrir para apurar as acusações feitas contra os Templários e da reiterada recusa do Grão-Mestre á proposta de fundir o Templo com o Hospital numa única Ordem. Na mesma missiva, ele pediu ao rei que este enviasse todos os relatórios que possuia sobre o caso e prometeu deixá-lo a par de tudo que fosse apurado.

Assim, o papa achava que podia aplacar a sanha de Filipe contra a Ordem. Mas enganava-se redondamente. O rei não queria, de modo algum, deixar o assunto nas mãos da Igreja. Sabia que Clemente V jamais seria capaz, por si mesmo, de fazer alguma coisa contra o Templo. A Igreja estava por demais ligada à sua Commilitonum Christi Templique para que ele tivesse a coragem de tomar qualquer medida que pudesse prejudicá-la.

Mas Filipe tinha seus próprios planos a respeito. Já decidira suprimir a Ordem do Templo e apossar-se dos seus bens. Não deixaria que a Igreja o impedisse de fazê-lo. Evidentemente, sabia que esse não seria um plano de fácil execução. A Ordem tinha seus defensores, mesmo no seu próprio palácio. Seu irmão, Carlos de Valóis, era um deles. Sua filha Isabel, casada com Eduardo II, herdeiro do trono da Inglaterra, era outra. Afinal, Jacques de Molay fora seu padrinho de batismo. Um acirrado debate foi travado entre os ministros e conselheiros do rei em meados de agosto de 1307.

– Vossa Majestade não pode deixar esse assunto nas mãos do papa – insistiu Nogaret. – Ele não é isento e jamais tomará qualquer atitude contra os Templários.

Enguerrand de Marigny, o ministro das finanças, era da mesma opinião. – Vossa Majestade deve invocar para si essa competência – disse ele. – Está dentro de vossa autoridade uma decisão sobre esse assunto, visto que o Templo, sendo proprietário de terras no território francês é, por direito, vosso vassalo.

Carlos de Valóis discordava. – O Templo não está sujeito á autoridade real, mas apenas ao papa – argumentou. – Se Vossa Majestade tomar qualquer medida contra a Ordem, sem a anuência dele, além de ilegal, provocará a reação da Igreja e seus aliados.

– A autoridade do rei sobre seus vassalos supera a do papa – insistiu Marigny. – Não é assim, Messieur de Presles?

– Assim penso, Messire Marigny – respondeu servilmente Raul de Presles, secretário do rei e advogado da corte. 

─ Concordo com Messieur de Presles ─ disse Guilherme de Plaisians, também conselheiro e advogado do rei. ─ Os Templários, como todos nós sabemos, comem o pão da promiscuidade e bebem a água da desolação ─ disse ele, repetindo uma frase que tinha ouvido de um padre franciscano, velho inimigo da Ordem.

– Ademais – insistiu Nogaret – o próprio papa desconfia que alguma coisa de muito ruim está acontecendo dentro da Ordem. Senão não teria manifestado a intenção de investigá-la. Voss

Majestade tem bastante ascendência sobre ele. Não acredito que ele seja capaz de qualquer reação mais séria se Vossa Majestade tomar esse assunto em vossas mãos.

– Não esqueçais – disse Carlos Valóis – que o Templo é a mais veneranda e respeitável Ordem de Cavalaria existente em toda a cristandade. Ao atentarmos contra ela estaremos atentando contra toda uma instituição. 

─ A Cavalaria é outra instituição que precisa ser revista ─ retrucou Nogaret. ─ Mas nesse momento é dos Templários que estamos tratando. E como sabemos, como Ordem de Cavalaria não tem mais sentido a sua manutenção. 

─ Mas é a Igreja que tem que decidir isso e não vós, Messire de Nogaret, nem este Conselho ─ disse Valóis.

– A defesa da fé justifica essa medida – respondeu Nogaret.

─ É mesmo o zelo pela fé que vos move, Messire de Nogaret? ─ perguntou Valóis, com sarcasmo.

─ Eu o faço pelo zelo com a fé cristã e pelo bem do povo e do Estado francês, coisas que não parecem interessar-vos ─ respondeu Nogaret. 

─ Ou será para o vosso próprio bem?─ retrucou Valóis.

– Podemos fazê-lo com ou sem a aprovação formal do papa – interveio Guilherme de Plaisians, interrompendo aquele perigoso diálogo.

– Como? – perguntou Carlos de Valois ─ voltando-se para o advogado da Corte.

– Denunciando a Ordem ao Tribunal da Inquisição – disse ele. – Se a denúncia for formalizada, nem o papa poderá impedir que o processo seja desencadeado.

– É isso mesmo – disse Raul de Presles, pegando o gancho. ─ O Tribunal da Inquisição tem poderes para iniciar um inquérito sem precisar da aprovação do papa.

─ Contra pessoas, sim ─ lembrou Marigny ─ mas não contra uma Ordem instituida pela Igreja. 

─ Isso é apenas uma filigrana jurídica. Se conseguirmos incriminar seus líderes, o papa será obrigado a agir contra a Ordem toda ─ disse Nogaret, com os olhos brilhando, como se tivesse chegado a uma conclusão irrefutável. – E como Guilherme de Paris é o Inquisidor-Mor, não vejo nenhuma dificuldade em iniciarmos esse processo. Afinal, ele deve o cargo à Vossa Majestade ─ concluiu o ministro Guarda-Selos, dirigindo-se ao rei.

─ E creio que não teremos nenhuma dificuldade em trazer o Inspetor- Visitador da Ordem, Hugues de Peyráuld, para o nosso lado. Com um pouquinho de pressão e algumas promessas ele nos dirá tudo que precisamos saber para acabarmos com esses hereges sodomitas ─ concluiu Marigny.

Durante todo esse debate, Filipe, o Belo, tinha se mantido na sua postura favorita. Cotovelo apoiado no espaldar do trono, cabeça apoiada nas mãos, olhos passeando de um a outro conselheiro, não dissera uma única palavra. Era próprio dele essa postura. Adorava ver seus ministros e conselheiros se digladiando. Quem não o conhecesse bem diria que ele estava enfadado por ter que estar ali, perdendo tempo com tal assunto, quando poderia estar caçando, cavalgando ou praticando exercícios das lides cavaleirescas, que eram a sua grande paixão. Mas sua postura não verbal mostrava muito pouco do que se passava em sua mente. Por isso ele era conhecido como o “Rei de Mármore”.

Intimamente ele já tinha a convicção de que os Templários eram todos culpados das acusações que lhes eram feitas. E se convencera também que cabia a ele, como defensor da verdadeira fé, suprimir esse cancro que ameaçava toda a cristandade. E se o papa se sentia impotente para fazê-lo, ele, Filipe, o Belo, tomaria sobre seus ombros esse pesado fardo. A História julgaria quem tinha razão. E se a História viesse a provar, mais tarde, que ele estava errado, ele não estaria mais ali para pagar pelo seu erro. No momento, a única coisa certa a fazer era, na verdade, salvar a França da bancarrota e segurar a sua própria coroa, que certamente escaparia das suas mãos se o reino quebrasse de vez.

Foi então que o rei se levantou e disse as únicas palavras que pronunciou naquela fatídica reunião.

– Messire Nogaret, preparai a acusação e enviai-a ao Tribunal do Santo Ofício. Antes, convocais todos os bailios e senescais das cidades onde há preceptorias templárias para uma reunião aqui no palácio. Temos que fazer os nossos planos.

E com certa indolência, levantou-se e deixou a sala de reuniões. Quem o visse pensaria em uma estátua de mármore, que de repente tinha adquirido vida.












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