domingo, 25 de novembro de 2018


ORFEU, ORFISMO E MISTÉRIOS ÓRFICOS


Por Luiz Marcelo Viegas
Extraído do Blog o Ponto Dentro do Círculo


Orfeu (descendo do morro para a cidade [o inferno]) :

“Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido – sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo mundo canta, todo mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez”.

                                                                                   Orfeu da Conceição – Vinícius de Moraes


Introdução

O mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura ocidental, tanto no passado como no presente. A primeira ópera conservada até hoje em sua totalidade é o L’Orfeo de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em 1607. O primeiro balé alemão – Orpheus und Eurydice – foi criado por Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou Orfeo ed Eurídice. No século XIX, Offenbach, não nos legou somente Os Contos de Hoffmann, mas também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi tema para os seguintes musicistas: Liszt, Benda, Paer, Milhaud, Malipiero, Casella, Krenek, Birtwistle e Stravinsky. O cinema, no século XX, apresentou-nos os dois Orfeus (Orpheus [1949] e Le Testament d’Orphée [1959]) de Jean Cocteau e o carnavalesco Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes – Orfeu da Conceição, testemunhando a modernidade do tema. Folheando-se os jornais hoje (maio/1999), depara-se com o último filme de Cacá Diegues – Orfeu – e o último livro de Salman ”Versos Satânicos” Rushdie – O Chão Que Ela Pisa – que, segundo a crítica, é um mergulho no universo pop e traz à tona o mito de Orfeu. Já que se passou para a literatura, não se pode deixar de citar o maior poeta lírico grego – Píndaro; Platão na República, no Górgias e no Banquete; as Geórgicas de Virgílio (principalmente o Livro IV); o Paradise Lost (Canto VII) e o L’Allegro (145) de Milton; as Pastorals de Pope; o romântico Novalis e o nosso brasileiríssimo e monumental poema barroco (no dizer de Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção de Orfeu (1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou um termo – cubismo órfico – que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger, Francis Picabia e Marcel Duchamp.

O porquê desta orfeumania é o que se tentará enfocar neste artigo.

Lendas sobre Orfeu

Numerosas fontes históricas relatam a existência dos mitos órficos. Tudo leva a crer que não era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.) mas, já no século VI, aparece em algumas tradições. O primeiro escritor grego a fazer menção ao “célebre Orfeu” foi Ibykos em meados do século VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca-o como um dos principais poetas e músicos da época heroica, ao lado de Homero e Hesíodo. Determinou a existência de uma religião especial – o orfismo – e de uma seita – os órficos – que se expandiu por todo o mundo grego e a Itália meridional.

Encontram-se alusões ao mito em Píndaro, Ésquilo, Eurípedes, Empédocles etc. É, contudo, o já citado Platão que o entroniza na República em plena época clássica (século IV a. C.). Ele e os neoplatônicos influenciaram vigorosamente o pensamento cristão. A humanidade herdou três obras completas, numerosos fragmentos e uma longa lista de obras, efetuadas pelo lexicógrafo grego Suidas, atribuídas ao próprio Orfeu.

Orfeu, do grego Oρφεύς, é um herói lendário grego dos tempos antigos com extrema habilidade na música, no canto e na poesia e que se tornou o patrono de um movimento religioso ritualizado por um corpus de escritos sagrados que teria sido composto pelo próprio.

Remanescem dúvidas se Orfeu teria sido um personagem histórico. A lenda, contudo, reza que teria nascido na Trácia e era filho de uma Musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica e a mais importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra versão, apresenta-o como filho do próprio Apolo.

Orfeu é considerado como o maior músico da antiguidade, não só pela música como pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara, pois, até mesmo esta, teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele, pois aumentou-lhe o número de cordas, de sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Seus acordes eram tão melodiosos que os homens e os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos ‘mistérios’, completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito, divulgou na Hélade a ideia da expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.

Juntou-se à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do navio Argos no qual embarcaram para a Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio transportou a fina flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se: Jasão, promotor e chefe da empresa, Héracles (que participou só no começo da missão), Argos, Castor e Pólux, Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses, Oileu, pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso poeta Orfeu e muitos outros. Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas oportunidades: seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua música, aos remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do Tosão de Ouro, ao som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das Sereias com o som de seu instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto Euxino, pelas Ciâneas (recifes móveis) também chamadas de Simplégades, por Cila e Caribdes etc. No tocante as Simplégades, seria interessante relacionar seu simbolismo aos ritos de iniciação. Spencer diz que:

“As Simplégades, eram duas rochas em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão e os Argonautas tinham de passar em seu barco. As Simplégades simbolizam a passagem para um outro mundo e têm uma tripla significação: elas representam o guardião do umbral; representam o terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição mundana; quando a passagem é realizada, elas representam a união dos opostos. Quando o homem deseja transferir-se deste mundo para outro, ele deve passar através de um intervalo sem dimensão e sem tempo, que divide duas forças relacionadas porém contrárias. No momento real da passagem, o herói abraça ambas as forças e deste modo anula os opostos. Nesse preciso momento ele se encontra no outro mundo” (Spenser, pg.31).

Mircea Eliade também dedica grandes parágrafos ao simbolismo iniciático das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).

Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice a quem amava perdidamente. Acontece que no dia de suas núpcias, o apicultor Aristeu tentou violar a esposa de Orfeu. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou em uma serpente que a picou, causando-lhe a morte. Possuído por um desgosto inconsolável, o poeta deixa de cantar e tocar e permanece em silêncio soturno pela morte da esposa. Resolveu, então, descer às profundezas do Hades, para trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Orfeu desce aos infernos, nos versos imortais de Virgílio e, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal modo o mundo plutônico que a roda de Exíon parou de girar; o rochedo de Sísifo deixou de oscilar; Tântalo esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher os tonéis sem fundo. Às margens do Styx, tange de tal modo sua cítara que Caronte e Cérbero deixam-no atravessar o rio. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, contudo, uma condição penosa: ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos. Enquanto caminhassem pelas trevas infernais, acontecesse o que fosse, Orfeu não poderia olhar para trás, até que o casal transpusesse os limites do império das sombras. Orfeu aceita a imposição e inicia a sua peregrinação. Estava quase alcançando a Luz quando uma dúvida lhe assalta o cérebro: e se tudo não fosse uma enganação dos deuses? E se sua amada não estivesse atrás dele? Acutilado pela incerteza, olhou para trás, transgredindo a ordem dos deuses. Ao voltar-se, viu Eurídice, esvaindo-se para sempre, “morrendo pela segunda vez…”. Tentou ainda retornar, mas o barqueiro Caronte foi implacável na sua recusa.

Inconsolável, tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas as mulheres da Trácia. Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu foi estraçalhado pelas enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente, afirmava que tinha sido esquartejado pelas Mênades por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de Apolo. Sintomático é que em ambas as versões, nota-se uma certa similaridade com o esquartejamento de Osíris e a junção dos pedaços por Ísis no Antigo Egito. É o tema da degradação do ovo original.

Sua cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos, o nome de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o país com uma grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e lhe fossem prestadas honras divinas. Após longas buscas, um pescador encontrou a cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em homenagem a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se a lira do poeta foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na também no firmamento onde se tornou a Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das estrelas de primeira grandeza.

Comentários sobre o Mito

Orfeu dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém salientar que pela cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o inferno. No orfismo, a topografia do Hades está divida em três regiões:
o Tártaro, a parte mais abissal, profunda, ou seja, infernal, pois os castigos eram cruéis e violentos;
o Érebo, com castigos não tão horrendos como o Tártaro; e
os Campos Elísios, destinados àqueles que, tendo passado pelos horrores dos dois primeiros, aguardavam o retorno.

Ao descer à mansão do Hades, Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo dos vivos se não tivesse olhado para trás, ou seja, mostrou estar ainda preso ao passado, à matéria, enfim, a Eurídice.

“Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante, jamais ‘retorna’. Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma catábase [ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções. Estas, bem como os lados e os pontos cardeais, possuíam, nas culturas antigas, um simbolismo muito rico.” (Brandão, vol.II, pg. 144).

Convém comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 17-26) quando os dois anjos recomendam a Lot que não olhasse para trás quando fugisse com sua família da destruição de Sodoma e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou para trás e foi transformada numa estátua de sal. Este olhar para trás dela representa a volta ao passado, o apego a uma cidade do pecado. A desobediência, tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça do infiel.

Na macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar para trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o interdito do olhar para trás: seja o agricultor ao plantar; a mulher ao fiar o tecido; o coveiro ao abrir a sepultura; os desfilantes ao acompanhar o cortejo fúnebre.

Com a harmonia (em grego, harmonia significa junção das partes) perdida ou rompida, Orfeu não mais podia tanger a lira e o seu canto perdeu a magia. Perdeu tudo: Eurídice, a música, o canto, ele mesmo.

O despedaçamento de Orfeu está ligado a ritos antiquíssimos, pois como se sabe, o neófito ou iniciado, despedaçava um animal e o comia, para significar seu renascimento em Dioniso ou algum deus tribal. O rito frenético de Dioniso, executado pelas bacantes, reflete a originalidade do deus no panteón bem comportado da religião estatal grega. A participação das bacantes demonstrava que Dioniso era um deus das mulheres. Tanto assim que uma delegação de mulheres atenienses, a cada três anos, se dirigia ao campo para serem possuídas pelo charme e a ‘folia’ do deus, longe das cidades, corriam e dançavam ao som de uma flauta, sobre as montanhas e as florestas.

A cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro também tem um significado lapidar. A cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas culturas, como uma das partes mais nobres e sagradas do ser humano, pois hospedava a alma. Possuir a cabeça de um inimigo, quanto maior a hierarquia maior a honra; era um troféu digno de um rei ou de um chefe tribal. Os deuses somente deram descanso aos mortais depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e lhe foram prestadas honras fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver, pois é o símbolo da voz, do verbo, da imortalidade.
Orfismo

Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos, principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no seio de suas obras. O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e obviamente orientais.

O orfismo oscila entre Dioniso, que sempre desejou romper a camisa de força da religião tradicional da pólis grega, e Apolo, que corrigia os excessos e os desvarios dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses antagônicos tem um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por ela sua esperança de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína dos valores das religiões homéricas.

Rejeita daquele os ritos, nos quais os iniciados despedaçavam a vítima viva e ainda palpitante, e a consumação imediata da carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente vegetarianos. A antropologia órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o primeiro Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu era filho de Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa Hera, pediu a Zeus que o queria ver com os olhos mortais, o que era um verdadeiro suicídio. Ao se apresentar a Zeus, a mortal não pôde suportá-lo em toda a sua radiante epifania. Morreu carbonizada e o feto foi recolhido por Zeus e agasalhado em sua coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a mando de Hera, após raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em seguida, o devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas. Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua natureza titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu que os Titãs tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém pois de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca, inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico. Além do mais, o êxtase dionisíaco manifestava-se de modo coletivo tanto quanto o orfismo é, por princípio, individual.

De Apolo, herdou uma componente da catarsis, ou seja da purificação, tão praticada no oráculo apolíneo de Delfos, mas era radicalmente contra a weltanschauung de Apolo. Este comandou a religião estatal com mão-de-ferro, freando qualquer inovação que significasse um rompimento com o métron, tão conhecidos na lição apolínea por excelência: ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’. A inteligência, a ciência e a sabedoria são consideradas pelos epígonos de Apolo como modelos divinos. A serenidade apolínea tornou-se, para o homem grego, o emblema da perfeição. A divergência residia até mesmo na catarsis, enquanto em Apolo, esta visava prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos purificavam-se nesta e na outra vida, visando libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.

Os órficos substituíram a ‘folia’ dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da prece e da oferenda, a purificação – catarsis – é um dos ritos principais das religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação, entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antiguidade grega, quando se cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime, tinha que ser não só individual como coletiva. Ao contrário dos cultos dionisíacos, os apolíneos eram públicos, pois rejeitavam os mistérios das iniciações e dos ritos secretos. Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas iniciações órficas. Eliade nota uma semelhança entre os ritos apolíneos e os xamânicos, pois ambos procuram o conhecimento, a sabedoria e a exaltação do espírito, ao contrário das histerias (no sentido grego) e das possessões dionisíacas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras reencarnações até a catarsis final.

A semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos aspectos religiosos, é por demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença na imortalidade da alma, a metempsicose, a punição no Hades, a glorificação final da psiqué nos Campos Elísios, o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações. Por outro lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos esotérico e não se imiscuía em política.

Orfeu é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes criou a lua e o sol, o outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”. A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso salientar Dioniso-Zagreus que terá realce fundamental no culto do orfismo.

É importante aqui salientar o caráter monoteísta dessa teogonia que representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos. O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades, simboliza a vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa em grego corpo-túmulo). Como consequência, a existência encarnada se assemelha mais a uma morte e o falecimento constitui o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’ não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos. Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo de animais, a alma vai se purificando. Nesses intervalos reincarnacionistas, a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal comum, profano, deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.

São outro artefato importantíssimo no orfismo as lamelas órficas ou orfo-pitagóricas. Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São, também, todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.

Numa das lamelas encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um caminho da direita e um da esquerda.

“À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o Lago da Memória, e os guardiões estarão lá. Diga-lhes… eu sou o menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água fresca que flui do Lago da Memória”.

Para a alma que deve retornar à Terra para reencarnar-se essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência terrestre mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O esquecimento não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será novamente projetada no ciclo do devir.

Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar é aconselhado evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta escrito numa das lamelas: “Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos”. Ao que Perséfone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”.

A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas, sobretudo, simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se para os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.
Conclusão

Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas romanas, encontram-se imagens de Orfeu tangendo sua lira no meio de animais simbolicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”.

A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o pecado original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego, Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista.

Para os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento, passando pelos hermetistas até os dias atuais, o Mundo Ocidental teima em não esquecer Orfeu. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.

Autor: William Almeida de Carvalho


Bibliografia

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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

COMO ERA A MAÇONARIA DOS ANTIGOS




 LucianoRodrigues Antigos, Modernos



Muitas vezes nos dizem que a Maçonaria especulativa nasceu em Londres, em junho de 1717, no bairro do “Fleet Street”. Mas sempre se esquece de salientar que, ao mesmo tempo se integrava um bom número de clubes de convivência, mais ou menos pitorescos e com tendências festivas, tais como os Gorgomons (Ancient Noble Order of the Gormogons) e outros grupos de taberna, próprios da Inglaterra daquele tempo.


De fato, aquela fundada no solstício de 1717, não era nem mais nem menos do que uma Sociedade de Taberna que se unia a outros clubes do mesmo tipo, em torno da ideia de realizar, em conjunto, uma festa de verão de São João para que ficasse menos caro para todos.


O que permanece como um particular desta fundação é a instituição que dali resultou.


Na medida em que este agrupamento ia se compondo de personalidades científicas e culturais de importância, decidiram dar-lhe um nome, referindo-se a uma sociedade já existente, garantindo uma boa imagem, uma tradição de proteção e até mesmo uma certa liberdade de ação.


A Maçonaria Antiga foi assim libertada de seus deveres e mistérios para se tornar “free”, “livre” e adotar o nome de “Freemasonry”. Foi organizada como um órgão de gestão e desenvolvimento, sempre com relação à antiga sociedade, passando a se chamar de “Grande Loja”.


Assim, foi basicamente, como se deu a originalidade da criação. A alegação de “liberdade” nasceu da maior restrição da Maçonaria: A Obediência.


Como o clube teve vocação universal, sua sede foi fixada em Londres e foi assim que a “Grande Loja de Londres” viu a luz.


O presidente foi indicado na pessoa de Anthony Sayer, um homem de pouca personalidade que em pouco tempo passou o papel de secretário a John Theophilus Desaguliers, pastor presbiteriano calvinista, cortesão e frequentador da pequena nobreza de Londres, que decidiu fazer deste clube de bairro, uma importante organização, cercada de poder.


Ele a viu como um excelente meio de ascensão social e de reconhecimento, sem relação com religião e para conseguir ser convidado de imediato, para a alta nobreza.


Afim de garantir a lenda e manter o mistério, ele pede a um amigo, o pastor James Anderson, um presbiteriano também, mas principal especialista em brasões duvidosos e genealogias de famílias imaginárias, para construir uma Ordem, na forma de Constituições.


Este clube de sociabilidade, tendo conseguido ser protegido pela nobreza, começou a buscar uma reputação, passando rapidamente a um jogo de influências entre católicos (Jacobitas) e protestantes (Hanoverianos).


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Tentativa protestante na França


Indo para Paris, em 12 de junho de 1725, data que foi criado, a pedido do Lord Derwenwater, refugiado católico jacobita, a Loja Saint Thomas, que se instala em uma taberna frequentada por imigrantes ingleses, em Barnabé Hute, Rua Açougues.


Uma loja rival foi instalada pelos protestantes calvinistas em 1732, algumas ruas depois, no Albergue do Louis d´Argent.


Mas o projeto protestante de “redirecionar” a maçonaria francesa, sob a égide dos presbiterianos, rapidamente foi extinto pois o país era extremamente católico, com inclinação para reunir o espírito místico da época.


O nascimento da primeira Grande Loja da França e da apropriação, pelos franceses, desta forma de sociedade, separa de imediato os destinos das duas ordens, pelo resultado de uma evolução particular no lado continental.


Essa evolução afastou a maçonaria francesa do conflito que ocorria em solo britânico, a corrente que se denominavam “antigos”, em referência a uma longa tradição que supostamente pertenciam, desde as lojas de York e as guildas de construtores, com os nobres intelectuais e cortesões, novos adeptos de um rigoroso protestantismo e que desqualificavam os “modernos”.


A Maçonaria francesa não poderia se envolver nisso, porque se fizesse isso, os “Modernos” poderiam acentuar as limitações e aumentar as disparidades.


Não vamos discutir agora esse problema, que seria mais especifico sobre a introdução de fato, de uma nobreza orgulhosa, a fim de reivindicações igualitárias e intelectuais, em vez de analisar os possíveis conteúdos místico-esotéricos mais do que duvidosos em sua maior parte.


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Voltando a Inglaterra, a estrutura da Maçonaria Inglesa reivindicada como a única “regular” foi intitulada de “Grande Loja Unida da Inglaterra”. Esta denominação se refere exclusivamente à Federação de lojas que foi constituída após o Ato de União, como uma continuação da ideia que evitou a falência da Maçonaria de 1717, totalmente endividada pela construção do Masonic Hall e terminando o conflito que opôs as duas formas, Antigos e Modernos, em 1813.


Esta Grande Loja com vocação universalista foi consagrada em 30 maio de 1816 durante a realização de uma cerimônia chamada “Grande Loja” presidida pelo Mui Venerável Grão-Mestre, Sua Alteza Real, o Duque de Sussex, com base em uma cerimônia onde o ritual foi formado especialmente, por 80% do ritual dos “antigos”, e que hoje em dia conhecemos como “Perfect Ceremonies” ou “Ritual Emulação”.


Quem eram os maçons antigos?


Os Maçons “antigos” do século XVIII são apresentados na forma de um agrupamento muito diferente das pequenas lojas independentes. Eles são de diversas origens, principalmente do nordeste da Inglaterra, Irlanda ou Escócia. Todos tinham um caráter nômade, herdado de seu tradicional deslocamento, de obra em obra.


Pretendiam ser da antiga fraternidade de Ofício, de onde a organização foi constituída por volta do século VIII, com os mosteiros Culdees, passando pelos estatutos Schaw e a antiga Loja de York que se autodenominou Grande Loja de Toda a Inglaterra em 1725, em reação aos “modernos”, mas que o Rei da Inglaterra e seus bispos governantes tinham conduzido desde o século IX.


Antes desse período do século XVIII, a maçonaria dos antigos jamais tinham se agrupado em uma federação geral, mas apenas em guildas estatutariamente independentes e dirigidas pelos Mestres de Obras nomeados pelo rei, tal como William Shaw.


As Lojas não existiam mais do que o tempo de uma obra e eram constituídas conforme a necessidade. Se reconheciam pelos conhecimentos e não por um “recibo de capitação”.


O que ainda surpreende hoje em dia, é a energia usada para competir com uma sociedade que era totalmente estranha e onde a sua existência, até certo ponto, estava declinando gradualmente.


Na verdade, a origem dos antigos como sendo puramente operativa, se reivindicava, com razão, como os únicos e verdadeiros membros da antiga maçonaria que proviam das antigas lojas e detentoras dos segredos da Geometria. Eles basearam sua antiguidade no fato de que sua corporação teria sido fundada e estruturada pelo lendário rei Athelstan no século IX.


Consequentemente, se apresentavam como os únicos praticantes do rito regular da Maçonaria e os únicos autorizados a comunicar os toques, sinais e palavras secretas… segredos mais antigos, eles diziam, que os formulados e inventados ou distorcidos pelos fundadores de 1717.


Esse grupo foi tardiamente chamado de Grande Loja dos Antigos. Tal apelido foi resultado de 1717, quando passou a ser mais fácil falar sobre Maçonaria por referência à obediência do que pela qualidade de maçom.


Hoje em dia sabemos uma série de coisas daqueles “antigos” e sua organização ritualística. Os graus, as ordens, seus vínculos e tudo que formava o foco de progressão, pois seus rituais e conhecimentos eram ensinados progressivamente. Já no início eram apresentados aos Aprendizes, os elementos que seriam estudados em uma progressão até a transmissão dos segredos do Arco.


Esses segredos sempre foram considerados como o “coração”, a “medula” da Maçonaria para os antigos, a tal ponto que uma das palavras mais usadas é “medula nos ossos”, “marrow in the bone”, “mah-ha-bone”.


A Maçonaria dos “antigos” tem outra diferença e tamanho. É organizado, pelo menos, desde as tradições dos Maçons de York, a cerca dos aprendizes e companheiros, quando estes últimos deveriam se tornar “homens de Marca” antes de ser Mestres de loja e, finalmente Companheiro do Real Arco.


Quando houve a exportação do rito para as colônias americanas, que se deu a separação entre a Marca, o Arco e os três graus, até que fosse integrada a lenda do Mestre, proveniente dos “Modernos”.


Podemos entender agora, porque esses maçons, principalmente imigrantes irlandeses e escoceses, ficaram surpresos ao ver seu acesso recusado nas lojas de Londres, onde raras vezes foram aceitos. Notamos que os Modernos não se contentaram em se organizar em torno de um poder central (Grande Loja), mas também modificaram a organização dos graus.


O reagrupamento de suas lojas “antigas” foi realizado por seis lojas independentes, sob a égide de Laurence Dermott, artesão e intelectual burguês de origem irlandesa.


O verdadeiro nome deste reagrupamento interessante, foi primeiramente “A Mais Antiga e Honrosa Fraternidade de Maçons Livres e Aceitos”, depois se tornou “Grande Loja de Maçons Livres e Aceitos da Inglaterra de acordo com as Antigas Constituições”.


Esta assembleia que formou a Grande Loja foi realizada em 17 de julho de 1751 na taberna “Turk´s Head” 1 na Greek Street, no bairro Soho, em Londres, ou seja, do outro lado do bairro Strand, bairro de lojistas, no lado oposto do local de fundação da Grande Loja dos “Modernos” em 1717.


As Crônicas de John Morgan, que trabalhava na secretaria, indicam a presença de sete lojas, nenhuma das quais e por boas razões, eram filiadas à Grande Loja de Londres em 1717.


Durante esta fundação, para o historiador Inglês Bernard Jones, não havia mais do que oitenta pessoas, todos comerciantes, mecânicos e pequenos artesãos, imigrantes, em sua maior parte de origem Irlandesa, instalados em Londres.


Esta nova estrutura rapidamente tomou o hábito de se reunir em uma taberna ocupada por uma oitava loja que se uniu a eles e ofereceu suas instalações, a loja “Temple and Sun” em Shire Lane, em Temple Bar, outro bairro de Londres.


Esta Grande Loja dos Antigos, também era conhecida na época, por Grande Loja Atholl, pelo nome dos Duques de Atholl, protetores da Corporação, de longa data e que ocuparam o Grão-Mestrado a partir de 1771. Esta nova instituição pretendia reunir todos de uma vez, o Grão-Mestre dos Antigos e da Grande Loja da Escócia, estabelecida em 1736, depois que os Saint-Clair de Roslyn foram removidos do seu cargo de protetores hereditários da Maçonaria escocesa.


Outra peculiaridade, é que os membros da Grande Loja dos Antigos, reivindicavam uma denominação particular, o de “Maçons Livres e Aceitos”. O adjetivo “livre” (free) era uma denominação da maçonaria especulativa, que gradualmente, foi transformado em freemason.


Há uma grande quantidade de literatura sobre esse desenvolvimento dos maçons de ofício, bem como a sua qualidade de artesãos itinerantes, eles tinham uma certa liberdade, um privilégio, de agir e de se reagrupar entre diferentes guildas de trabalhadores que existiam sob um sistema feudal.


Alguns autores, como Eric Ward, dizem que o termo freemason derivou de free-stone (algo como pedra polida) que geralmente era acompanhada do nome de quem trabalhou ela, o maçom (pedreiro). Essa fórmula teve sua primeira aparição no século XIV, com o estabelecimento de uma espécie de primeira lei do trabalho, Statutes of Labourers (Estatuto de Trabalhadores) em 1351, que definiu um estatuto para os mestres pedreiros, bem antes da redação do Poema Regius que se supõe ter sido escrito por volta de 1390, pois no documento não há data da redação. Daí surgiram diversos termos derivados do freemason, como por exemplo, frimason, freymason e free-stone mason.


Eric Ward, pesquisador da Ars Quatuor Coronatorum, remonta estes vestígios históricos dos séculos XIII e XIV, o que parece estar confirmado por certos documentos da época.


Essa explicação, baseada na mutação linguística e nas afirmações mais ou menos realistas, diz que os talhadores de pedra eram a maioria dos membros das corporações de maçons, porém enfrenta estatísticas sobre as antigas lojas escocesas, dadas por David Stevenson na década de 1980, onde demonstra que nas lojas se encontravam diferentes categorias de ofícios da construção civil e que os talhadores de pedra estavam longe de ser os únicos membros das guildas de maçons.


Então porque denominar todos os membros de uma sociedade com o nome de somente uma parte de seus membros?


Esta liberdade, este privilégio que qualifica o maçom é onipresente em vários escritos sobre as corporações de construtores e das antigas lojas onde eram realizados os negócios de construção de edifícios. Todos aqueles homens se reagruparam sob o nome de maçons “operativos”, ou seja, aqueles cujo trabalho era participar da operação de construção.


E esse termo ainda está em uso hoje em dia. Sabemos que os operativos formaram a Ordem, pelo menos, entre os “antigos” e se você quiser entender uma das realidades culturais do final do século XVIII, devemos observar o que dizem os mais antigos catecismos maçônicos, ou seja, que um maçom deve ser “nascido livre” e/ou nascido de uma “mulher nascida livre”.


Então, um maçom não pode ser nem escravo, nem nascido de uma escrava. Esses termos nos dão um tempo aproximado, fontes e consequências das correntes internas na Maçonaria, sejam simbólicas ou puramente sociais. As disposições relativas à liberdade, o privilégio do Maçom e seu nascimento livre, são ainda hoje associados com os candidatos que desejam receber a iniciação e não são trabalhadores do ofício. A compreensão total do sentido deste problema de “nascimento livre”, não pode ser alcançado, se não o colocar no contexto particular de uma sociedade que tinha isso registrado em suas regras.


É evidente, no estudo, que uma grande parte dos ritos anglo-saxões de estilo do Emulação e uma menor parte no Rito Escocês Antigo e Aceito, tem uma forte inclinação para fornecer uma imagem ordenada da sociedade vitoriana do século XIX, a fim de promover o modelo social como uma referência de uma civilização que, por vezes, deve justificar as diferenças.


A maioria dos escritores ingleses daquela época, eram intimamente convencidos da superioridade do modelo britânico e que deveria servir como referência. Da mesma forma, as sociedades muito católicas ou protestantes, calvinistas e luteranos no continente, começaram a rever alguns princípios para serem integrados em suas práticas e modelos sociais.


No que diz respeito a esta alegação particular de ser “nascido livre”, deve-se notar que a exclusão de “Cowans” desapareceram da ritualística moderna continental, provavelmente porque alguns historiadores da maçonaria não têm abordado a questão da definição de tal termo e os próprios maçons não sabem muito bem o que significa.


Para alguns, seriam trabalhadores contratados que trabalhavam nas obras, mas de forma intermitente, e que, por seu estatuto, não tinham a liberdade necessária para se tornar independentes.


Para outros, é uma antiga distinção entre os pedreiros que construíam sem argamassa (com as técnicas celtas e nórdicas tradicionais) que dariam à luz a Maçonaria de ofício, daqueles que usavam argamassa (método importado pelos cristãos do império romano), e haviam perdido por essa razão, a Arte da Geometria exata.


Entre os Companheiros das antigas lojas e pelo menos desde o século XVI, se constata a presença de outros membros cujo oficio não era nem a construção nem a arquitetura, mantendo laços com os construtores além de suas competências, mas particularmente, sabiam ler e eram versados no conhecimento da lei e dos costumes, além de conhecer o latim. Eles foram denominados de maçons “aceitos”.


Esta terminologia parece ter sido retomada para se qualificar os fundadores da Grande Loja de 1717 muito antes de serem chamados de “modernos”.


Para entender a diferença entre “aceito” e “especulativo”, tenha em mente que o ofício de Maçom é um artesão que não tem uma loja fixa e que o ofício exige que ele se mova de trabalho em trabalho. Esse é o coração da estrutura da antiga maçonaria: o nomadismo e a disseminação do conhecimento pelas viagens. As lojas tinham uma existência passageira e se estabeleciam para construir.


Os profissionais da construção seguiam as obras e para onde elas se encontravam. Com a evolução da sociedade e do progressivo desaparecimento do feudalismo, as guildas se viram obrigadas a aceitar novos corpos de ofício para salvaguardar os seus interesses e estabelecer as regras que poderiam apoiar suas corporações.


Estas transformações e negociações político-econômicas necessárias, exigiram a presença de esquires (membros da nobreza), senhores agricultores, membros de uma determinada categoria social nascido da revolução agrária ou representantes da nova burguesia cultivada, a fim de assegurar a proteção da corporação e salvar seus interesses.


Assim, os primeiros “Supervisores Gerais das Obra do Rei”, como William Shaw, no século XVI, não eram pedreiros de profissão, mas sim pessoas instruídas, próximas ao poder e com qualidades reconhecidas para gerir uma corporação de que muitas vezes dependia da imagem do soberano para a qualidade das obras que marcariam seu estilo. A guilda e seu endereço também ofereciam a garantia da estabilidade do poder que os nomeou e, com o tempo, se tornaram a imagem que outros grupos buscavam, com uma aparência similar.


Para ser mais preciso, sabe-se hoje em dia, que a “aceitação” foi onde personalidades encontraram recepção nas lojas entre os séculos XVI e XVII, as pessoas envolvidas na aristocracia ou da burguesia, foram permitidos ser recebidos entre os maçons de ofício.


No entanto, duas perguntas seguem sem respostas:


1 – Existiam rituais e práticas secretas, além da transmissão de segredos e palavras, nas lojas dos maçons antigos?


2 – Os maçons aceitos nas antigas lojas, eram autorizados a compartilhar os seus próprios mistérios confidenciais, próprios dos homens de ofício, formando uma sociedade interna, fornecendo dentro da guilda, os arcanos e mistérios de que eles próprios eram possuidores, ou o acesso aos mistérios da geometria era em si o mistério?


Agora podemos, reorganizando o conjunto, obter uma imagem do movimento maçônico mais arcaico, ou seja, dos Antigos. Se trata de um grupo de artesãos, praticantes de um ofício e que tinham uma certa liberdade de reunião e movimento de um trabalho para outro, sem o inconveniente de um contrato restritivo.


Juntaram outros companheiros, estranhos ao ofício, que foram recebidos pela Corporação por suas habilidades e conhecimentos para gerir os interesses das obras, das lojas e de seus membros, em um ambiente econômico e jurídico, mais complexo.


Foi então formado um grupo de Maçons Antigos, Livres (com privilégios) e Aceitos (Maçons Livres Antigos e Aceitos).


Estas questões são um tanto perturbadoras para a investigação sobre a natureza da maçonaria e até mesmo sobre a existência de cerimônias maçônicas ou teatralmente conceituadas e dramatizadas, que eram realizadas por “especulativos” antes de 1730. É um assunto pelo menos incerto, que também repousa sobre bases igualmente incertas.


Você pode então se perguntar se a famosa obra de Samuel Prichard, Maçonaria Dissecada, é uma verdadeira divulgação ou pura invenção. Essa é a questão, que a Grande Loja de 1717 não respondeu, mas o que seria realmente?


No primeiro caso, você pode pensar que descreve uma prática muito antiga, mas de onde ela viria?


No segundo caso, na medida em que Prichard tinha a reputação de anti-maçom, surge a questão da confiabilidade das fontes, sob o risco de ser uma eventual mentira.


Portanto, temos o direito de nos preocupar com o fato de que a “Maçonaria Dissecada” serviu como modelo e referência para inúmeras lojas e argumentos de muitos historiadores desde então. A preocupação torna-se maior quando se sabe que segredos são “sinais, toques e palavras” e que os maçons herdeiros de Prichard tomaram como verdade o que poderia até mesmo ser uma caricatura da realidade praticada.


Assim, embora possamos admitir que as referências mitológicas e do Antigo Testamento, propostas por Old Charges e catecismos antigos, formam um substrato coerente de comunicação de palavras e segredos relativos aos mistérios da Maçonaria de ofício, nenhum apresenta uma forma ritual anterior a publicação da Maçonaria Dissecada.


Podemos observar que os fatos apresentados no texto acima provêm diretamente da história da Maçonaria, inseparável da história política da Inglaterra, convergindo pelas formas de maçonaria, operativa e especulativa, que foram transpostas para o continente. Mas esta é uma outra história muito mais antiga e moderna … pelo menos à primeira vista.


NOTAS


I – As tabernas Turk´s Head e Queen´s Head eram muito antigas e serviram por um longo tempo, de assento para clubes de sociabilidade e círculos literários, filosóficos e artísticos. Foi em uma dessas duas tabernas, a Queen´s Head, onde se reunia a Sociedade Philomusicae, a mais antiga fonte de uma prática ritual do grau de Mestre.




BIBLIOGRAFIA

Cecille Revauger, 1999 – La querelle des anciens et des modernes, le premier siecle de la francmaçonnerie anglaise

Bernard E. Jones, 1950 – Freemasons guide and compendium

AQC – vol. LXXXI, 1978 – The birth of free-masonry

David Stevenson, 2000 – Les Premiers Francs-Maçons. Les Loges Écossaises originelles et leurs membres

Samuel Prichard – Maçonaria Dissecada

Blog Truthlurker – La Maçonnerie des “Ancients”



IMPERIALISMO, MAÇONS E MAÇONARIA NA CHIA (1842 - 1911)


Por Antonio Jorge.

Na língua chinesa: hanyu 漢語, a maçonaria é conhecida como a Sociedade gongjihui 共濟會.

Em 1767, os membros da Companhia das Índias Orientais organizaram oficialmente a primeira loja maçónica na China, com o nome de Amity na cidade portuária de Guangzhou ou Cantão, no sul do país.

A Loja Lodge foi patrocinada pela United Grand Lodge of England. A partir deste momento, conforme o imperialismo se foi intensificando, novas lojas foram estabelecidas, envolvendo um número significativo de estrangeiros, principalmente europeus, e a partir da última década do século XIX, chineses.

A chegada da modernidade à China coincidiu com o surgimento do Império Britânico como a potência mundial hegemónica. O iluminismo e sobretudo a revolução industrial levou-a a reconstruir uma nova ordem global à sua volta. As primeiras abordagens britânicas à China durante a segunda metade do século XVIII falharam, de modo que a sua influência se limitou a Cantão. No entanto, entre 1799 e 1815, as guerras napoleónicas pararam o avanço do imperialismo britânico, mas com a ordem política restabelecida e após o Congresso de Viena (1815), a inclusão da China na estrutura das relações internacionais do Império Britânico voltou a estar na agenda

Neste contexto, a China alimentou-se primeiro de uma modernidade imperialista para em seguida, fazê-lo por uma matiz dos ideais de progresso, civilização e do liberalismo, num momento de declínio da dinastia Qing 大 清 帝国.

Por isso, a análise seguinte contempla a construção de uma ordem mundial britânica e as suas relações com a história da China, já que a Maçonaria apresentou um carácter internacional durante um processo a longo prazo de inserção de modernidade na Ásia através de imperialismos.

Durante este período, as cidades portuárias chinesas adquiriram gradualmente uma nova dinâmica, à medida que começaram a interagir espaços de sociabilidade e ideias ou filosofias da Europa com as da China. Isto levou a um processo de apropriação, construção e representação de identidades, cultura e classes sociais ao longo do século XIX que se intensificou após a revolução de 1911.

Estes anos foram parte de uma situação mundial de progressos significativos no processo de criação de Estados-nação, da globalização do mercado internacional e secularização de padrões culturais. De facto, a Maçonaria representou uma expressão mais de modernidade, pelo que analisá-la funciona como uma janela para entender esta China.

A delimitação temporal corresponde ao período 1842-1911, quando a Maçonaria na China fazia parte de projectos promovidos pelos imperialismos europeus.

Essa delimitação corresponde a dois eventos. O primeiro inicia-se com a assinatura do Tratado de Nanjing 南京 條約, que intensificou o imperialismo no país, que por sua vez induziu a organização das lojas maçónicas. O segundo, no ano da revolução, quando a dinâmica das práticas próprias da modernidade, como a maçonaria, mudou completamente.

Esta ordem global veio de mãos dadas com o advento da modernidade, uma série de fenómenos históricos intra-europeos que propuseram novos paradigmas na vida diária, de compreensão da história, da ciência e da religião.

Durante o século XIX, a Grã-Bretanha instituiu-se como uma espécie de “Estado nacional imperial”, constituído por ingleses, escoceses, galeses e da norte-irlandeses. Com o sucesso da revolução industrial e a consequente expansão no ultramar, o (macho) britânico assumiu-se como “o escolhido” pela providência para melhorar o mundo.

Este tipo de protestante consciência messiânica protestante levou a desenvolver representações de superioridade étnica e fenotípica sobre todos os outros, “necessitados” da sua disciplina, civilização e da libertação das suas superstições religiosas. Deste modo, o modus operandi da Grã-Bretanha para o resto do mundo foi definido por sua missão civilizadora. Isto, enquanto a crescente comunidade Anglo-saxónica por todo o mundo, se caracterizou por uma consistência cultural, homogeneizada pela língua, pela religião e pelos estilos de vida (vestuário, arquitectura, hábitos, lazer, associações, sociabilidade, etc.).

Neste sentido, a Maçonaria oferece uma possibilidade distinta de entender a ordem global estabelecida durante a Pax Britannica, já que ao promover a sociabilidade, permite diferentes manifestações das classes sociais, remetendo para um nível intermediário de análise entre as capacidades materiais, as ideias e as instituições.

Por exemplo, se considerarmos o conceito de hegemonia, a ênfase seria colocada na administração das relações de poder entre os grupos sociais e as ideias, no momento de criar uma identidade ou unidade de propósitos garantidores da existência da situação hegemónica. Nela, instituições como a Maçonaria cumpriam um papel de serviço ao Império, pois faziam parte da administração da sua ordem, acolhendo padrões considerados universais e parte do senso comum (as suas ideologias). Da mesma forma, na ordem global britânica, a Maçonaria na China funcionava como uma manifestação imperialista, uma vez que integrava aqueles que representavam capacidades materiais, sejam económicas ou militares.

A modernidade é importante para a compreensão da Maçonaria, devido ao papel desta organização, directa ou indirecta, censitária ou não, na expansão da sociedade civil e na expansão da esfera pública. Não se deve esquecer que a construção ideológica da Maçonaria foi contemporânea de outros processos conjunturais como o iluminismo e o capitalismo industrial7. Consequentemente, a Maçonaria promoveu ideias-chave durante o advento da modernidade e integrou a burguesia nascente.

Um segundo conceito que precisa ser definido é o da sociabilidade.

Isto surgiu como uma reflexão teórica sobre a natureza do ser humano durante o iluminismo. Neste contexto, a Maçonaria representava os valores deste movimento cultural internacional, que exigia secularidade e modernidade. Por exemplo, as lojas britânicas na China tinham funções de sociabilidade e integração social, associando maçons iniciados na Europa (inicialmente só aceitavam europeus) e indivíduos que participavam dos interesses imperialistas, particularmente mercadores e militares.

Além disso, a maçonaria era muito rigorosa no perfil de seus iniciados, “homens bons e verdadeiros”, nascidos livres, maduros, discretos e de bom senso, não mulheres, não imorais ou escandalosos, e de boa apresentação. Sobre o exposto, ficou provado que durante o surgir e a consolidação da ordem global britânica, a Maçonaria desempenhou um papel significativo na educação da elite, funcionando como um veículo ideológico da modernidade e sendo um protagonista na promoção do establishment, da manutenção e do controle imperial.

Então, esta organização colaborou com a crescente hegemonia britânica em todo o mundo.

Com o objectivo de promover uma identidade imperialista entre os seus membros, a Maçonaria consolidou-se como uma força institucional discreta no quadro do imperialismo britânico. Tanto no plano prático como no ideológico, a sua ampla rede fomentava conexões interculturais que se mantinham junto ao Império. A rede maçónica conectou os imperialistas de ambos os lados do Atlântico, “De Kohat a Singapura“, nas palavras de Rudyard Kipling. Com os seus discursos pró-cosmopolitas, a Maçonaria constituiu-se como um espaço aparentemente ideal para contactos internacionais e a formação de redes de interculturais, colaborando na reafirmação da hegemonia britânica.

E quarto, o conceito de globalização.

Este é entendido como o processo histórico pelo qual o mundo cada vez mais se conecta e interdepende em escala global e afecta todos os aspectos da vida social. A globalização aumentou a sua velocidade a partir do iluminismo, colaborando na modernização das estruturas económicas, políticas e culturais ao redor do mundo. Portanto, a globalização não é novidade, pode ser rastreada há séculos. Esta não é uma condição estática, mas, ao contrário, um processo dinâmico que permite observar períodos de intensificação e reversão ou de desigualdade e limites de expansão.

Sumarizando, o estudo da Maçonaria funciona como um laboratório de dimensões globais da modernidade manifestadas em práticas culturais, sociabilidade e espaços associativos.

A Maçonaria no seu discurso civilizador reflecte muitos aspectos dos imperialismos na China, das suas redes, dos seus itinerários políticos, económicos e culturais.

A Maçonaria como sociabilidade desde as suas origens foi construída em termos globais, pois as suas redes superaram as fronteiras imperiais, regionais, estaduais e nacionais, seja por interesses económicos, militares, políticos, culturais, religiosos ou fraternos. Com o desenvolvimento dos imperialismos, pelo menos durante os séculos XVIII e XIX, a Maçonaria tornou-se um agente de globalização.

A Maçonaria tinha funções de sociabilidade internacional e mecanismo hegemónico do imperialismo britânico, actuando na engrenagem de instituições como empresas comerciais e o sistema de tratados, que reconstruiu os espaços portuários ao redor do mundo. Consequentemente, o desenvolvimento da Maçonaria esteve intimamente ligado à construção da ordem global, sendo seu produto, incorporando e legitimando ideologicamente as suas normas, cooptando as elites dos Estados periféricos e absorvendo as suas ideias hegemónicas. Desta forma, a expansão da ordem global britânica ao longo do século XIX teve como vanguarda um imperialismo voltado para a Ásia.

O facto da Maçonaria ter surgido no século XVIII, facilitou a sua adaptação ao sistema de relações em construção em torno do Império Britânico e as suas características industriais e iluministas.

Consequentemente, onde o império chegou, também chegou a Maçonaria e os Maçons. O mesmo aconteceu com os outros imperialismos. As actividades e relações maçónicas foram constituídas como um produto da ordem global britânica. No caso da China, como veremos mais adiante, na segunda metade do século XIX, praticamente todas as potências estrangeiras com interesses no país organizaram as suas lojas maçónicas.

As Cartas Patente eram o mecanismo administrativo mais importante para a expansão das actividades e das relações maçónicas. Estas permitiram que a Maçonaria se espalhasse através de lojas itinerantes como as forças armadas, uma vez que as fronteiras políticas para o encontro dos maçons foram removidas. Na China, vários casos são identificados. Por exemplo, o navio sueco Prince Carl no início dos anos 1750 obteve uma destas Cartas Patente das Grandes Lojas Suecas e Alemãs, chegando a celebrar em 1759 no porto de Macau, que até hoje é considerado o primeiro porto Maçónico em território chinês.

No que diz respeito ao desenvolvimento das redes sociais, a Maçonaria, pelo seu carácter de sociabilidade, funcionou como uma rede de interesses associativos e particulares.

A base desta rede foram as pequenas unidades associativas locais: a Loja. Na primeira metade do século XVIII, algumas lojas começaram a unir-se, dando origem às obediências ou federações de lojas ou Grandes Lojas. Este foi o começo da legitimidade maçónica, já que somente a nova Grande Loja teria autoridade para organizar novas lojas. As Grandes Lojas foram constituídas como eixos centrais, que ao aumentarem sua esfera de influência, organizaram Grandes Lojas provinciais, funcionando como nós regionais e criando uma estrutura de interacção e cooperação. Isto aconteceu na China durante a segunda metade do século XIX.

Com o avanço da ordem global britânica, intensificaram-se as actividades e as trocas sociais maçónicas. Isto em total concordância com a inserção dos imperialismos. Em cada território onde a influência de algum imperialismo veio, a rede maçónica expandiu-se. Na segunda metade do século XVIII, os imperialismos promoveram agressivamente a expansão comercial.

A Maçonaria fortaleceu os laços imperiais e facilitou as conexões interculturais entre o Atlântico e o Pacífico, uma vez que se apropriou dos ideais hegemónicos, legitimados na sua dinâmica de sociabilidade. As lojas prosperaram onde mercadores, navios de guerra e regimentos militares o fizeram, oferecendo um espaço de fraternidade e identidade a muitos homens distantes das suas terras natais. O acima mencionado deveu-se ao facto de que a Maçonaria integrou no seu sistema de valores, os regulamentos dos projectos imperialistas, facilitando, de passagem, a sua expansão no ultramar.

O contexto da segunda metade do século XVIII também se caracterizou pela expansão das redes maçónicas, à medida que os imperialismos avançavam.

As Grandes Lojas de Inglaterra, Irlanda e Escócia, organizaram Lojas ultramarinas em Gibraltar, no Caribe, em dez colónias da América do Norte, na Costa de Mosquitos na América Central, Argentina, Chile, nas Índias Orientais, no Cabo Senegâmbia, Egipto, África do Sul, Calcutá, Madras, Bombaim, as ilhas de Reunião e Maurícias e na Nova Gales do Sul.

Uma última situação sobre as Maçonarias no século XVIII, que merece ser comentada, apesar de não ocorrer em território chinês, teve a ver com a construção de uma consciência global interessada noutras culturas. O princípio disto é encontrado nos iluminismos europeios. Pensando na China, Voltaire exaltou a racionalidade do sistema moral confucionista; Quesnay elogiou o sistema de produção agrícola chinês; Leibniz, inspirado pelo neoconfucionismo, argumentou que a ideia da civilização europeia era apenas comparável à oferecida pela China; houve identificação com o taoísmo na formação do liberalismo; e filósofos como Malebranche e Montesquieu, apropriaram-se de conceitos confucionistas para articular o seu pensamento.

Neste contexto, a Maçonaria participou no iluminismo teosófico, movimento caracterizado por um fascínio com o passado Greco-romano, a religião egípcia, os celtas e as religiões orientais. Portanto, durante o século XVIII proliferaram nos círculos maçónicos: a pesquisas sobre o antigo, uma relativa tolerância para as religiões não-cristãs que levou para explicar as origens primitivas da Maçonaria por uma origem comum suposta de todas as religiões, incluindo as Chinesas, assim como o desenvolvimento de práticas rituais maçónicas inspiradas na filosofia chinesa.

Ricardo Martinez Esquível
Universidade da Costa Rica

COMO REVERTER A TENDÊNCIA DE ABANDONO DA ORDEM


José Filardo, M.´. I.´.


Vimos recentemente na TV GOB as entrevistas dos Grãos Mestres Estaduais relativas aos problemas de crescimento e de encolhimento da Ordem nos diferentes orientes da federação.

Pudemos notar, a partir das entrevistas, que o maior problema, ou seja, o abandono da Ordem é provocado por reversão de expectativas.

Cabe aqui uma digressão histórica que se refere especificamente à Maçonaria Brasileira e não à Maçonaria enquanto instituição.

A Ordem surge no Brasil com DNA francês e em um fervilhante momento político crucial para o futuro da colônia. A consequência imediata foi o seu envolvimento nos acontecimentos que levaram à emancipação do Brasil. Posteriormente, a sua história se confunde com a história do Brasil até pelo menos 1925, quando disputas internas provocam uma cisão da qual ela jamais se recuperaria. Isso, aliado à ação deletéria dos esbirros de Getúlio Vargas (que fechou as lojas e infiltrou as fileiras da Ordem) e uma segunda cisão na década de 70 provocaram a debandada dos poucos irmãos que ainda nutriam veleidades políticas.

Aqueles que sobraram, preferiram refugiar-se no escuro da loja e insistir comodamente em que não se discute política ou religião em loja, algo que não fazia parte da tradição maçônica brasileira. Passou a ser mais importante conduzir ritualisticamente a sessão, do que atuar na sociedade a exemplo dos nossos antepassados.

Mas, essa evolução histórica produziu uma situação esquizofrênica. Ora, a imagem pública da Maçonaria no Brasil é aquela representada pela presença marcante da instituição nos acontecimentos políticos e sociais mais importantes da história pátria. A consequência imediata disso é que a expectativa dos candidatos (uma vez que se preservou a cultura do segredo) é encontrar um grupo político aguerrido, voltado para a transformação da sociedade. A realidade, contudo, é diametralmente oposta. As lojas desenvolveram uma cultura conservadora, reacionária e retrógrada. A alienação é a norma. O imobilismo a consequência.

Some-se a isso, a tendência natural de acomodação e a falta de estudo sério da nossa história.

Estão colocadas todas as condições para o desastre.

Mais um dado vem complicar ainda mais as coisas no caso específico do Grande Oriente do Brasil: diferentemente da matriz inglesa, o GOB abriga em seu seio sete ritos diferentes: REAA, Moderno, Brasileiro, Emulação ou York, Adhoniramita, Schroeder e Escocês Retificado. Se por um lado é louvável a liberdade proporcionada pela instituição, por outro lado, ela se transforma em um balaio de gatos, onde cada rito puxa a brasa para sua sardinha, recusa-se a transigir e busca seu próprio crescimento sem considerar o interesse do conjunto. Rivalidades vêm à tona, traduzidas em disputas políticas e jogos de poder. Isso tudo complica a busca de uma solução para os problemas do encolhimento do número de obreiros, mas diríamos que nem tudo está perdido.

Naturalmente, uma solução exigiria mão firme dos Grãos Mestres Estaduais e do Grão Mestre Geral, assim como alterações conceituais nos processos de recrutamento.

A primeira alteração seria transformar o processo de recrutamento. Seria recomendado às lojas uma posição proativa na sociedade, detectando potenciais membros e buscando envolve-los e descobrir se eles não têm interesse em juntar-se a nós. Isso caberia aos membros das lojas, nos mesmos moldes atuais.

O Grande Oriente produziria um material “didático” que permitisse às lojas conduzir seminários explicando a natureza da Ordem e de cada rito (considerando que existem diferentes ritos em algumas cidades maiores) no caso de múltiplos candidatos, matéria esse que seria entregue ao(s) candidato(s). Somente depois desse seminário ou esclarecimento sobre TODOS OS RITOS, o candidato preencheria um formulário com os seus dados manifestando seu interesse por um determinado rito.

Também é urgente e necessário mudar a mentalidade dos padrinhos. Eles não precisam contar ao candidato como é uma sessão de loja, dar palavras, ensinar toques e palavras, mas também não podem ocultar tudo do candidato. Precisam deixar que o candidato à vontade para escolher (quando possível) o rito que melhor se ajusta à sua personalidade, depois que ele recebe o material “didático” com uma explicação detalhada da natureza de cada rito.

O padrinho não deve “puxar a sardinha” para o seu rito. Ele colherá os dados e os remeterá ao Grande Oriente para que este encaminhe o candidato à loja adequada.

O padrinho também deveria “abrir o jogo” com o candidato, explicando a ele que atualmente a maçonaria está em crise, não tem mais a mesma pujança e espírito que tinha antes de 1927, mas que ela oferece as condições para que o candidato encontre outros maçons com boas intenções e junte-se a eles em ações específicas sobre a sociedade que não envolverão a Maçonaria enquanto instituição. Precisa salientar a importância do networking que a Maçonaria oferece.

Um segundo critério necessário é o critério geográfico, onde o candidato seria encaminhado PELO GRANDE ORIENTE ESTADUAL para iniciação na loja mais próxima de sua residência, no rito escolhido por ele. Isso facilita a vida do candidato nas grandes cidades e favorece o comparecimento à sessão.

Essas providências cobririam a questão da reversão de expectativa, uma vez que o candidato receberia todas as informações ANTES DE ENTRAR na instituição.

A segunda ordem de problema – o abandono por parte de companheiros e mestres – é um pouco mais complicado, embora também esteja ligado a uma reversão de expectativa.

Na Maçonaria, por seu sistema de progressão, o irmão está sempre esperando que no próximo grau as coisas mudem. Até chegar lá. Aí descobre que nada muda, se a loja é, por sua própria natureza, alienada ou entropizada. Se a loja se resume a ler atas, cumprir o ritual e comer pizza, chegará um momento em que o maçom bem intencionado se cansará e deixará a Ordem.

É preciso revisar as proibições de discussão política em loja, visto que o brasileiro cada vez mais participa da vida social e precisa desse exercício. O que se tem a evitar é a política partidária, mas as grandes questões políticas precisam ser abordadas, sob pena de se ter sessões desinteressantes, maçantes e vazias.

As lojas precisam ter, NO MÍNIMO, ações beneficentes que mobilizem toda a comunidade da loja, envolva as cunhadas e os sobrinhos e crie um senso de confraternização, de participação na sociedade. Os irmãos precisam ter ALGUMA COISA A FAZER JUNTOS que não seja limitar-se a ler o ritual e comer pizza.

A visitação de lojas precisa ser incentivada para que o maçom adquira a consciência de que faz parte de uma rede poderosa que pode ser instrumentalizada. Precisa cultivar o networking que a visitação proporciona.

Essas providências podem não ser a resposta completa, mas pelo menos iniciaríamos uma ação voltada para a reversão da tendência atual.

MAÇONARIA E IGREJA CATÓLICA, RECONCILIAÇÃO IMPROVÁVEL
PARTE I


Por Luiz Marcelo Viegas



“… Do templo de Javé brotará uma fonte que irrigará o Vale das Acácias” (Joel, 4:18)[1]

A Maçonaria Operativa ou de Ofício[2], que dominava a arte de construir, nasceu e floresceu na Europa, sob o manto da Igreja Católica, por volta dos séculos XI ou XII, por intermédio das corporações ou confrarias dos mestres construtores de catedrais e mosteiros, que recebiam instrução e evangelização dos frades e protegiam os ensinamentos secretos da arquitetura e os interesses corporativos da classe.

A Igreja representava a maior instituição da época e o único poder capaz de assegurar o financiamento das construções, influenciando de forma marcante a vida cultural da Idade Média, constituindo-se a arquitetura religiosa a manifestação artística mais expressiva daquele período. Nesse sentido, o conhecimento, o saber, era monopólio da Igreja. A educação do povo estava aos seus cuidados. Os governos só educavam os nobres.

Regulamentos na forma de cartas e constituições, descrevendo os compromissos dos membros, bem assim os conhecimentos e instruções morais e religiosas, de conteúdo explicitamente cristão, formavam os “Antigos Deveres”, “Antigas Constituições” ou “Manuscritos”, delineando um sentido espiritual e material aplicáveis aos obreiros construtores, precursores da maçonaria moderna. O Museu Britânico e a biblioteca maçônica de West Yorkshire guardam vários desses documentos, que formam a base das constituições maçônicas.

Como não existia um organismo central que tomasse decisões para a totalidade das guildas de ofício, cada uma conservava sua autonomia e usava um manuscrito dos “Antigos Deveres” que melhor lhes aprouvesse e sobre os quais os juramentos eram prestados. Os mais famosos são o “Poema Regius” ou “Manuscrito Halliwell”, provavelmente de 1390, e o “Manuscrito de Cook”, estimado de 1450.

Alguns autores advogam a precedência da Carta de Bolonha, de 1248, como o primeiro documento maçônico conhecido. Esses documentos já denotavam que os membros originais especulavam sobre o uso emblemático e simbólico de seus instrumentos e ferramentas no contexto das práticas de construção.

A partir do século XV, com o declínio da construção de catedrais medievais, do nascimento da burguesia e do comércio, sem as tutelas eclesiástica e feudal, e enfrentando a diminuição de seus membros oficiais, a situação das lojas começou a mudar, com a entrada dos ditos “especulativos”, que não eram necessariamente homens ligados à arte de construir, mas cidadãos burgueses em geral, militares e comerciantes. Importa ressaltar que aquelas entidades já contavam em seus quadros com empregados para cuidar do acervo e solucionar problemas técnicos e administrativos.

A mudança significativa se deu no final do século XVI quando, em número cada vez maior, os denominados Maçons Livres e Aceitos, substituíram os trabalhadores, transformando-se em sociedade de auxílio mútuo e num espaço para a livre manifestação do pensamento, com seleção dos membros “entre os homens conhecidos pelos seus dotes culturais, pelo seu talento e pela sua condição aristocrática, que poderiam dar projeção a elas, submetendo-se, todavia, aos seus regulamentos” (Castellani, 2007).

Ainda em períodos anteriores, começando a reinar a intolerância em muitos Estados europeus, as corporações de ofício não conseguiram impedir a evolução representada pela aceitação de homens não operativos nas lojas (os adotados), não se tratando ainda de intelectuais e filósofos, mas de diversos sectários, hermetistas e daqueles que desejavam entregar-se às pesquisas espirituais fora do dogmatismo e atraídos pela calorosa fraternidade, segurança e liberdade que tinham para fazer reuniões, face às proibições impostas pelas autoridades por receio de conspirações.

Como, à época, não havia templos maçônicos – o primeiro só seria inaugurado na Inglaterra em 1776 – as reuniões aconteciam no interior de tabernas ou nos adros das igrejas, que tinham um papel social muito importante. O grande atrativo eram os jantares e confraternizações que permitiam formar uma rede de networking “avant la lettre”, além de ser uma distração, com o atrativo do mistério. Nos templos religiosos havia bibliotecas e escolas de música, funcionando também como centros de cultura e educação e como locais de reunião e difusão e de troca de ideias.

Em 1709, o reverendo Jean Theofhile Désaguliers, pastor presbiteriano, filósofo francês, foi iniciado na Loja São Paulo em Londres, também conhecida como “A Loja da Cervejaria” ou “O Ganso e a Grelha”, no adro da Catedral de São Paulo, o que iria apressar o processo de transformação do arcabouço para a moderna maçonaria (Castellani, 2007).

Assim, em 24 de junho de 1717[3], atendendo à convocação de Désaguliers, a essa altura membro da Real Sociedade de Londres (Royal Society) e amigo de Sir Isaac Newton, quatro Lojas reuniram-se em assembleia e a Inglaterra deu o primeiro passo em direção à organização nacional por meio das Grandes Lojas, fundando a Grande Loja de Londres, sob a direção de um Grão-Mestre, permitindo à maçonaria ampliar o seu escopo ao criar um sistema obediencial, concentrando por decisão própria o poder legislativo total.

Na fase operativa dos pedreiros trabalhadores, as lojas maçônicas não estavam submetidas a nenhuma jurisdição ou a um poder central que as aglutinassem, a não ser os vínculos fraternais e profissionais. A criação da primeira Obediência Maçônica do mundo, formada pelos Aceitos, é considerada o marco da moderna maçonaria, com o enfoque de sociedade de pensamento ou de construtora social, visando ao aperfeiçoamento moral e intelectual de seus membros, de caráter cosmopolita e secreto. Ainda hoje, a Grande Loja Unida da Inglaterra é a instituição central que “reconhece” ou “não reconhece” as obediências ou associações nacionais.

Especula-se sobre a influência que teria tido a Royal Society, fundada em 1660, pelo elevado nível intelectual de seus membros, no nascimento da maçonaria moderna, com o registro de vários nomes de prestígio em comum e a marca do Iluminismo. As premissas básicas da religião e da teologia eram questionadas pelos seus fundadores, evitando-se, contudo, os problemas de fé.

Na sequência da fundação da Grande Loja de Londres, a maçonaria conquista toda a Inglaterra, o continente europeu e, seguidamente, todas as partes do mundo. De 1721 a 1736, estabelece-se na França; de 1733 a 1741, na Alemanha; de 1723 a 1735, nos Países Baixos; em 1731, na Rússia; de 1735 a 1754, na Suécia; de 1743 a 1749, na Dinamarca; de 1727 a 1728, na Espanha; em 1733, na Itália; de 1733 a 1743, em Portugal; em 1737, na Suíça; em 1738, na Turquia (Grainha, 1976).

Evidências históricas do Século XVII demonstram que na Escócia a maçonaria era bem mais forte do que a Inglesa. O historiador David Stevenson (2009) defende a tese de que a maçonaria tal como se conhece foi uma invenção escocesa, inclusive quanto ao uso da palavra “Lodge”, no sentido maçônico, enterrando um antigo paradigma e lançando luzes sobre o estudo das suas origens.

O jesuíta José Antônio Ferrer Benimeli, (2007), no prefácio à 5ª edição de seu livro “Arquivos Secretos do Vaticano e a Franco-Maçonaria”, esclarece que deliberadamente ignora as polêmicas mais recentes a respeito das origens da Franco-Maçonaria: Stevenson versus Hamill, ou da Escócia contra a Inglaterra, “no âmbito de uma nova disputa pelos poderes e as influências maçônicas internacionais onde a França toma partido em favor da Escócia, de preferência à Inglaterra...”.

O Grande Oriente da França foi fundado em 1728[4]. “A mais antiga Loja de Paris, e provavelmente da França, havia sido fundada, em 1725, pelos partidários dos Stuart, que, por seus complôs contra os soberanos legais da Inglaterra, haviam sido obrigados a se refugiar na França” (Benimeli, 2007).

Entre 1727-1728 criaram-se lojas na Espanha, que se chocaram imediatamente com a Inquisição. A Inglaterra abriu oficinas nas possessões coloniais e, em 1730, fundou-se uma loja em Calcutá. Nos anos de 1732-1733, lojas foram criadas na América; Florença, em 1732; Milão e Genebra, em 1736; e Alemanha, em 1737. Essa expansão passou, assim, a incomodar os poderes dominantes (Jacq, 1977).

Os ataques então sofridos pela Maçonaria se deviam em especial ao seu caráter iniciático e pelo “sigilo” decorrente das modificações dos rituais introduzidos pela nova base legal escrita por James Anderson, escocês e pastor da Igreja Presbiteriana em Londres, conhecida como Constituição de Anderson ou Constituição dos Maçons Livres, divulgada em 1723 (vide Nota 2 acima). O trabalho contou com o auxílio de Jean Theophile Désaguliers, sob a influência de intelectuais, aristocratas e dissidentes religiosos.

Como a Constituição de Anderson não considerou no “Parágrafo Relativo a Deus e à Religião” o aspecto “Cristão Trinitário” das “Old Charges”, onde um maçom era obrigado a ser apenas daquela religião “na qual todos os homens de bem estão de acordo”, inaugurou-se então o conflito com a Igreja, em face da retirada do catolicismo como a religião tradicional da maçonaria.

É bom lembrar que a Inglaterra ignorava a autoridade do Sumo Pontífice desde o rompimento com a Igreja Católica, em 1534, com a criação da Igreja Anglicana pelo rei Henrique VIII, por este não ter obtido o divórcio para casar-se com a sua amante. Com isso, o rei se autoproclamara único protetor e chefe supremo da Igreja e do clero da Inglaterra, confiscando os bens e abolindo o celibato dos padres.

As lojas maçônicas eram consideradas como centro de influência protestante inglesa e, portanto, contrárias aos interesses das famílias dinásticas europeias, de orientação católica. Passou também a incomodar os poderes dominantes de cada país, despertando o receio de conspirações para derrubada e tomada do poder pelo grande afluxo de nobres e aristocratas aos seus quadros.

Ao assumir um caráter liberal e libertário, ainda que clandestina, criou-se, então, um fosso entre a maçonaria e a Igreja Católica, “uma vez que esta, conservadora, apoiava os regimes monárquicos absolutistas, deles participando ou até comandando-os” (Castellani, 2007). “O desenvolvimento da burguesia, de relações de produção capitalista, e do Estado Nacional Absolutista eram mudanças que representavam novas forças, cuja evolução se fazia em detrimento da sociedade feudal que tinha na Igreja Católica seu principal sustentáculo ideológico” (Aquino, 1993).

Em função das reuniões de caráter secreto, que julgavam prestar obediência a um poder central de Londres, muitos governantes pediam providências ou soluções ao Papa. Assim, por pressão dos inquisidores, Clemente XII, aos 86 anos, cego e preso ao leito quase que constantemente, assinou, em 28 de abril de 1738, a Bula “In Eminenti Apostolatus Specula”, que atribuía o castigo da excomunhão a quem frequentasse ordens iniciáticas secretas, incluindo-se a maçonaria, que ficou então na mira da Igreja.

Esse foi o primeiro documento oficial do Vaticano condenando a maçonaria, embora já existissem éditos de Estados temporais proibindo reuniões de maçons, considerados suspeitos de ir contra a ordem pública. Tal medida se deu muito mais por motivos temporais, diante do incômodo provocado pelo clima de segredo e de juramento de que era cercada a maçonaria, do que por temores de distúrbios espirituais e religiosos.

O Vaticano além do poder temporal representava também o poder espiritual e ao condenar a maçonaria perpetuou uma reação própria de uma determinada época e projetou-a para o futuro “até os dias atuais, quando isso parece um grande e insustentável anacronismo” (Castellani, 1996).

Benimeli (2007), afirma:

“Da documentação vaticana conhecida até o momento e que nós comentamos em capítulos anteriores se destaca um fato evidente: em Roma, não se sabia ao certo o que era a Maçonaria, nem o que ela pretendia; e isso apesar das informações pedidas a Haia e a Bolonha, apesar das denúncias recebidas de Florença”.

As proibições da Bula In Eminenti, por sua divulgação e proclamação, foram logo aplicadas nos países católicos, produzindo efeitos diversos, passando a maçonaria a ser considerada uma seita e uma congregação por aceitar simultaneamente pessoas de várias religiões e exigir um juramento solene de discrição e segredo absoluto aos seus membros sobre os assuntos tratados nas reuniões e do simbolismo envolvido.

Pesava ainda o fato de que, em época em que a liberdade de reunião era das mais restritas, a maçonaria apresentava-se como um espaço em que o intercâmbio de ideias era mais seguro. A Bula não conseguiu erradicar ou impedir a disseminação da maçonaria. Na Inglaterra os maçons católicos praticamente não foram afetados pelas proibições de Roma, dada a condição da maçonaria como instituição inclusiva e não sectária.

Os membros do clero que influenciaram a decisão do Papa tinham uma preocupação com as lojas maçônicas de algumas cidades Italianas, como Florença, Veneza e Pisa, onde teve curso uma verdadeira caçada à maçonaria e aos seus membros. Havia a desconfiança de que em todas as cidades da Itália estaria se espalhando “esse veneno”, e que eles se esforçariam para ganhar adeptos com o argumento de que todos os associados formariam um só corpo com a “Congregação” constituída na Inglaterra, antipapista e anticatólica. A punição acabou sendo estendida para toda a Europa continental.

Continua…

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, da Academia Mineira Maçônica de Letras, e para nossa alegria, também um colaborador do blog.

Notas

[1] Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Good News Bible, American Bible Society – Joel, 3:18

[2] As denominações variam conforme a fonte, considerando-se as principais (1) os “Collegia” romanos, já existentes na época pré-cristã; (2) as Associações monásticas, surgidas na século VII; (3) as Confrarias, surgidas no século XI; (4) as Guildas, a partir do século XII; (5) os Ofícios Francos ou Franco-Maçonaria, após o século XII (Castellani, 1987).

[3] Referida data é aceita por convenção. A fundação da Primeira Grande Loja, no dia de São João, em 1717, consta da narrativa contida na Constituição de Anderson que foi reformada e republicada em 1738. Muitos autores atribuem a Anderson a criação da maçonaria simbólica, em função desse trabalho, mas há controvérsias. Para outros, Jean Theophilus Désaguliers é considerado o pai da Maçonaria Especulativa Moderna.

[4] Consta do site a fundação em 1728, como Primeira Grande Loja da França, que tomou a sua forma e seu atual nome em 1773. Pratica a maçonaria liberal e define-se adogmática, não exigindo a crença em um ser supremo para iniciar novos membros. A Grande Loja Nacional Francesa foi fundada em 1913, a partir da loja do Grande Oriente de França. Há divergências entre essas datas, conforme a fonte de pesquisa.

PARTE II



A maioria esmagadora das lojas maçônicas europeias dos séculos XVII e XVIII foi fundada por ingleses, irlandeses e escoceses, das mais variadas áreas profissionais, considerados hereges pela origem, dado que a religião anglicana era caracterizada como uma seita pelos inquisidores.

O Tribunal do Santo Ofício, o braço jurídico da Igreja na Europa Ocidental, como também era chamado a Inquisição, tinha como objetivo investigar e punir sumariamente os crimes contra a fé católica, assim considerados aqueles que pusessem em dúvida os princípios e dogmas da Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, bem como quem exercesse culto que lhe fosse contrário. Num segundo momento, funcionou também como instrumento de coação, de forma a manipular autoridades e obter vantagens políticas.

Apesar disso, não havia algo sólido para que a maçonaria fosse de plano acusada de ‘heresia’, face à sua origem eminentemente Cristã. As citadas Constituições jamais foram colocadas no Index[5] pelo Santo Ofício, nem uma tendência propriamente doutrinária era imputada pela Bula à maçonaria. Quando os inquisidores foram à procura dos membros, muitas lojas já não se reuniam, com o receio da excomunhão. Outras permaneceram na clandestinidade. Ainda assim, onde a Bula foi aplicada, a Inquisição julgou e puniu inúmeros maçons, bem como aqueles assim equiparados.

Na França, o parlamento não aprovou a Bula In Eminenti e por isso ela não entrou em vigor naquele país. O Cardeal de Fleury, Primeiro Ministro de Luiz XV, “que era acima de tudo um diplomata experiente e um estadista, considerou que a vida política francesa já estava bastante complicada para fazer da maçonaria um grande problema, e principalmente depois de Roma ter falado.” (Benimeli, 2007).

O governante preferiu desobedecer ao soberano pontífice a descontentar a nobreza e perturbar a serenidade daquele país, onde se verificava acentuada participação do clero católico nas lojas e dos maçons nas atividades paroquiais, tendo a maçonaria ajudado a promover a aproximação social e até política da nobreza dominante e da burguesia ascendente, pois os elementos mais brilhantes e mais ativos da aristocracia, de uma forma subliminar, faziam parte dela.

A influência do Iluminismo da segunda metade do século XVIII, com destaque para os adversários do catolicismo, como os franceses Rousseau, Voltaire, D’Alembert e Diderot e que levou à deflagração da Revolução de 1789, marcou o divórcio entre a Igreja e a maçonaria, que estava entranhada em todas as classes sociais. A partir daí, não somente as reuniões, mas a instituição maçônica, por adiantar-se a seu tempo, é que tem seu funcionamento impedido, pela sua identificação com as ideias de liberdade e de democracia, que se opunham ao absolutismo reinante.

Nos anos de 1880, Leo Taxil, escritor e jornalista escroque francês, iniciado na maçonaria aos 27 anos, e logo em seguida expulso por condenação em processo de plágio, divulgou uma série de panfletos contra a Maçonaria (as fake news da época), sendo inclusive recebido em audiência privada com Leão XII. Posteriormente, desmentiu tudo o que havia escrito, confessando que queria apenas ganhar dinheiro à custa da Igreja. Porém, o estrago persiste e o lixo literário antimaçônico produzido continua sendo reciclado e utilizado como referência, com vários autores recopiando-se uns aos outros, lançando mão de informações de segunda ou terceira mão, sem uma avaliação mais criteriosa e isenta.

Quase todos os argumentos em desfavor de um arrefecimento dos ânimos, no que tange a uma posição mais acolhedora por parte da Igreja, tem como destaque o Grande Oriente da França que, em 14 de setembro 1877, suprimiu as referências religiosas de seus regulamentos, além de ações provocativas que acirraram as posições. Tudo isso tem reflexos ainda hoje em nosso país, tendo em vista que o Grande Oriente do Brasil é reconhecido simultaneamente e mantém relações com a Grande Loja Unida da Inglaterra e com o Grande Oriente da França.

No período jacobino (1792/1794), a maior parte das lojas francesas foi fechada, com fugas e execução de inúmeros maçons que não compactuaram com a nova ordem estabelecida. Apesar da sua influência decisiva na Revolução, esta também orientou fortemente os rumos da maçonaria, que funcionou também como veículo para expansão das ideias iluministas, atuando como um partido político camuflado.

Em Portugal, as duas primeiras lojas maçônicas modernas foram fundadas em 1733, sendo uma composta de protestantes e outra de católicos (Grainha, 1976). Segundo Clavel, citado por Benimeli (2007), as primeiras lojas foram erguidas em 1727, por delegados de Paris. Em 1738, ao ser promulgada a Bula condenatória de Clemente XII, a loja católica dissolveu-se, mas alguns dos obreiros não acataram a decisão papal, ingressando em outras clandestinas. A terceira loja estabelecida em Lisboa foi fundada em 1741, com maioria de franceses, pelo calvinista suíço naturalizado inglês John Coustos, e que se tornou um caso emblemático de atuação da Inquisição. Os estrangeiros que a fundaram acreditavam não estar abrangidos pela proibição.

John Coustos e o católico parisiense Alexandre Motton foram denunciados perante o Santo Tribunal em 1742, como maçons, em decorrência de comentários da mulher de um rival no ofício da joalharia. As autoridades eclesiásticas estimulavam as delações e os advogados de defesa sempre atuavam no sentido de exortar o acusado a que confessasse o crime que lhe era atribuído. A prisão deles e de seus companheiros foi determinada em março de 1743. Tal prisão ocorreu tão logo D. João V, tomado de loucura religiosa, promulgou um édito, sem a anuência das Cortes, segundo o qual se condenaria à morte, sem apelo, a qualquer que se comprovasse ser maçom.

Motton foi o primeiro a ser julgado e ficou nas prisões da inquisição durante um ano e três meses, sendo condenado a penas espirituais e a pagar pesadas custas. Simultaneamente, idêntico procedimento fora aplicado a Thomas Bruslé e João Bauptista Richart.

O processo de Coustos teve maior destaque, pois era o Venerável da Loja de Lisboa e não professava a religião católica. Por ser “considerado perturbador e causador de escândalos e de ruína espiritual das almas dos fiéis católicos romanos”, foi pedido que “ele fosse castigado com as penas mais graves, de acordo com o direito e as Bulas pontifícias”. Por ser “herege protestante” e de ter “introduzido e exercido na cidade de Lisboa a seita dos Pedreiros Livres, condenada pela Sé Apostólica”, sua sentença final foi de cumprir quatro anos nas galés (Benimeli, 2007).

Por interferência diplomática, Coustos conseguiu ser enviado para Londres, onde publicou em 1746 um relatório autobiográfico sobre a sua prisão e torturas em Lisboa, descrevendo a si mesmo como um herói que enfrentara os juízes da Inquisição. Referida publicação obteve grande repercussão e foi traduzida em várias línguas. Ainda segundo Benimeli (2007), documentos atualmente disponíveis “permitem corrigir um pouco a sua versão”.

Depois da morte de D. João V, em 1750, sucedeu-lhe no trono o seu filho D. José I, que reinou entre 1750 e 1777. Nesse período, em Portugal, lojas funcionaram com o favorecimento do primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Várias foram abertas em todas as cidades do Reino como filiais da de Lisboa e a maçonaria tivera então o seu prestígio, com forte influência francesa.

Consta que Pombal, maçom e iluminista, teria sido iniciado em Londres ou Viena, em 1745. Entre as ações modernizadoras, Pombal adotou uma Constituição liberal baseada na Inglesa, aboliu a Inquisição, expulsou os jesuítas de Portugal e das colônias (1759), além de afastar a igreja da administração do Estado.

Especula-se que a primeira Grande Loja fundada em Lisboa, foi instalada no convento de São Vicente e teve por Grão-Mestre um irmão do Marquês de Pombal. Estavam, portanto, a coberto dos privilégios e das imunidades de que gozavam os mosteiros e conventos, com grande pesar dos dominicanos, que rondavam as portas, mas não podiam entrar.

Gustavo Barroso, pensador católico, antissemita e antimaçom, no livro “História Secreta do Brasil” (2009), afirma que o Marquês de Pombal principiou “no reino lusitano a era dos maçons, que não passavam de cristãos novos, tanto que as duas palavras eram sinônimos e, no campo, pedreiro-livre era sinônimo de judeus”.

Com a morte de D. José I, em fevereiro de 1777, sucedeu-lhe no trono sua filha mais velha D. Maria I, que depôs Pombal, e as perseguições contra os maçons foram deflagradas pelo Intendente-Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, que acumulava vários cargos, tornando-se o grande senhor do governo de D. Maria I.

A rainha, por sua vez, reintroduziu a lei do seu avô contra os ‘pedreiros-livres’, iniciando um novo e triste período para a maçonaria portuguesa. Os homens mais eminentes do país tiveram de fugir para livrar-se das garras da Inquisição então reativada. Devido às perseguições, os maçons não faziam registros em documentos, que poderiam cair em mãos de denunciantes ou de um “Santo Inquisidor”. A Inquisição foi finalmente extinta em Portugal em 1821 e na Espanha em 1834.

Na Itália, as lutas de unificação tiveram com protagonismo uma minoria militante mobilizada e organizada por associações como a maçonaria e a Carbonária, esta também chamada maçonaria florestal, porém de caráter político independente, eminentemente secreto e revolucionária, com valores patrióticos e liberais, fundada em Nápoles em 1810 e tendo como finalidade principal a unificação da Itália. A condição de maçons dos principais líderes carbonários, como Cavour, Mazzini e Garibaldi gerou reflexos na imagem da maçonaria.

Em junho de 1871, o novo governo da Itália instalou-se em Roma, completando oficialmente a unificação e, logo depois, reconhecendo o poder temporal de Pio IX sobre o Vaticano e o pequeno território vizinho, representando uma grande perda, já que o poder de Roma abrangera uma extensa região da península itálica[6]. A implicação no processo de unificação da Itália pode ser considerada o marco decisivo para aprofundamento das animosidades em relação à maçonaria.

O Grande Oriente Lusitano, considerado a primeira grande loja regular portuguesa surgiu em 1804, aprovando-se sua Constituição em 1806. Ainda naquele ano foi decretado o Bloqueio Continental, que impediu o acesso dos navios ingleses a portos dos países então submetidos ao domínio do Império Francês de Napoleão Bonaparte, que em 1808 provocou a fuga da Coroa Portuguesa para o Brasil. Naquele momento, Inglaterra e França disputavam a liderança no continente europeu. Em 16 de dezembro de 1815, o Brasil foi elevado à categoria de reino: Reino Unido a Portugal e Algarves.

Continua…

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, da Academia Mineira Maçônica de Letras, e para nossa alegria, também um colaborador do blog.

Notas

[5] Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos): lista que continha a relação das publicações e teorias que iam contra os dogmas da Igreja Católica Romana, cujo conteúdo era considerado impróprio. Inicialmente foi uma reação contra o avanço do protestantismo e teria como objetivo prevenir a corrupção dos fiéis. A primeira versão foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559. Uma revisão foi autorizada pelo Concílio de Trento (1545-1563). A última edição foi publicada em 1948 e o Index só foi abolido pela Igreja Católica em 1966, pelo Papa Paulo VI (Wikipédia).

[6] Os Estados Pontifícios eram formados por um aglomerado de territórios, basicamente no centro da península Itálica, que se mantiveram como um estado independente entre os anos de 756 e 1870, sob a direta autoridade civil dos papas, e cuja capital era Roma (Wikipédia).


PARTE III


Charge de c.1870 a respeito da Questão Religiosa

Na Revolução Pernambucana de 1817, também conhecida como “Revolução dos Padres”, e na Confederação do Equador, de 1824, ambas com foco em Pernambuco e de influência maçônica, a liderança principal encontrava-se nas mãos de padres e frades formados em Olinda. Em 1817, dos 310 ditos subversivos, havia 60 padres e 10 frades. Em 1824 havia 40 padres, com destaques para a liderança de Frei Caneca, e do Padre Mororó, outra importante liderança, ambos executados a tiros. “O iluminismo chegou ao Nordeste pelas mãos dos padres Oratorianos…” (Terra, 1996).

“A Constituição de 1824 estabelecia o catolicismo como religião oficial do Império. O Brasil havia herdado de Portugal o “regalismo”, que subordinava a Igreja ao Estado. O monarca, exercendo a chefia do Estado, era o representante supremo da Santa Sé no país. Os membros da Igreja eram pagos e sustentados pelo Estado, como se fossem funcionários públicos, por isso o imperador tinha o direito do “padroado”, podendo nomear os sacerdotes para os principais cargos religiosos. Ainda pelo direito do “beneplácito” (Art. 102, § XIV), as bulas e breves do papado somente eram aplicadas após a aprovação do imperador.” (Gomes, 2016)

“Com essa independência em relação a Roma, o padre brasileiro atuava politicamente, raramente respeitava o voto de castidade e muitos viviam com sua mulher e criavam filhos. A vinculação a partidos políticos facilitava a nomeação e promoção. Os bispos que defendiam a moralização da Igreja lutavam contra a subordinação ao império e muitas vezes entravam em choques com as autoridades, na tentativa de impor aos seus subordinados as doutrinas que vinham de Roma e não tinham o beneplácito do imperador.” (Gomes, 2016)

“Grandes políticos do império, inúmeros sacerdotes e membros das irmandades religiosas eram militantes de lojas maçônicas. Entretanto, em 1864, Pio IX, através da bula “Syllabus”, proibiu qualquer ligação da Igreja com a Maçonaria. Em 1873, o bispo de Olinda, dom Vital Maria de Oliveira, disposto a reformar o clero e as irmandades, ordenou que os padres abandonassem a maçonaria e os maçons fossem excluídos das irmandades religiosas, encontrando muitas resistências. O mesmo fez o bispo do Pará, dom Antônio de Macedo Costa. Aí eclodiu a chamada Questão Religiosa, também conhecida como Questão Maçônica ou Questão dos Bispos.” (Gomes, 2016)

“A situação se tornou crítica quando, durante uma festa em comemoração à lei do Ventre-Livre, o padre Almeida Martins negou-se a abandonar a maçonaria, sendo suspenso de sua atividade religiosa pelo bispo do Rio de Janeiro. Essa punição tinha sido antecedida por um discurso feito pelo padre Almeida Martins em loja maçônica do Grande Oriente, no qual o religioso exaltou a figura do visconde do Rio Branco, que, como primeiro-ministro, era Grão-Mestre da maçonaria, porém da ala monarquista.” (Gomes, 2016)

“Neste processo, o bispo de Olinda, D. Vital e o de Belém, D. Macedo, determinaram o fechamento de todas as irmandades que não quiseram excluir seus associados maçons. A reação do governo foi rápida e enérgica, quando em 1874, o primeiro-ministro, visconde do Rio Branco, então Grão-Mestre da maçonaria, determinou a prisão dos bispos. Os atingidos recorreram ao Imperador, que pressionou os bispos a voltar atrás. Não acatando a ordem foram condenados a quatro anos de prisão.” (Gomes, 2016)

“Dom Pedro II, embora não sendo maçom, era simpatizante e circulavam notícias de que participaria das discussões filosóficas das lojas e por isso não acolheu bulas de Pio IX que proibiam fiéis de aderirem à Ordem. Em 1875, o gabinete conservador do duque de Caxias anistiou os dois bispos. Apesar da anistia a ferida não foi cicatrizada e o Império decadente perdia o apoio do clero e da população, constituindo-se num importante fator para queda do obsoleto regime monárquico e para separação do mesmo com a Igreja. As punições contra as irmandades do Pará e de Olinda foram suspensas por Roma.” (Gomes, 2016)

Sobre a “Questão Religiosa” o Bispo-auxiliar-emérito de Brasília, o jesuíta Dom João Evangelista Martins Terra, no seu livro Maçonaria e Igreja Católica (1996), afirma:

“Quem saiu vitoriosa dessa dolorosa questão foi a Igreja, que, forçando o Governo a recuar, deixou o Estado regalista desmoralizado e a maçonaria completamente abalada em seu prestígio. D. Vital passou à posteridade como Mártir da maçonaria”. Prossegue, assegurando: “Os ataques da imprensa maçônica ainda continuaram, mas o clero, escarmentado, saiu depurado.” (p. 61/62).

Na mesma obra, comentando sobre a situação dos bispos e padres maçons de então, ressalta que não é preciso negar esse fato, mas explicá-lo no contexto histórico, no sentido de que os envolvidos não se interessavam pelas doutrinas maçônicas e sim por desfrutar de ambiente secreto onde podiam discutir suas ideologias liberais ou ideias revolucionárias. Por outro lado, aduz que a maçonaria tinha-se infiltrado em quase todas as confrarias e irmandades da Igreja e pretendia dominar o próprio poder eclesial.

Ainda dentro da questão religiosa, o conflito entre a igreja e o governo rendeu agressões à maçonaria na Paraíba. A Revolta do Quebra-Quilos (1874-1875), considerada uma das mais importantes revoltas sociais no fim do Império, ocorrida da região Nordeste, foi motivada pela adoção do sistema métrico decimal francês (Lei 1.157, de 26 de junho de 1862), pela obrigatoriedade do alistamento militar (imposto do sangue) e pela criação do imposto do chão pago nas feiras.

Um dos efeitos colaterais foram os ataques a casas de maçons e lojas maçônicas, como foi o caso da loja maçônica “Segredo e Lealdade”, em Campina Grande, que foi saqueada e seus documentos destruídos. Os quebra-quilos, insuflados por padres, alegavam que várias autoridades na Paraíba e no resto do país pertenciam à maçonaria e eram responsáveis pela introdução daquelas medidas. Padres diziam que o imperador era maçom, assim como o fora seu pai e, portanto, haveria um complô maçônico no país (Gomes, 2016).

Durante o Estado Novo, nos anos de 1930 a 1945, a maçonaria enfrentou várias campanhas difamatórias, polêmicas e notícias falsas, fruto do desconhecimento de seus princípios, por várias organizações, decorrentes de pensamentos conservadores e de tendências autoritárias, alegando que os maçons articulariam a destruição de todas as pátrias, estando por traz de todos os acontecimentos revolucionários no Brasil e no mundo, segundo escreveu o intelectual católico Ramos de Oliveira em sua obra “A ilusão maçônica” (Gomes, 2018).

Na mesma linha, o supracitado Gustavo Barroso, também militante integralista e simpatizante do nazismo, atacou a maçonaria em várias de suas obras, defendendo a tese de que a mesma teria planos para o Brasil e que os principais acontecimentos da história brasileira seriam resultado de ações conspiratórias maçônicas. A imprensa integralista reforçou a associação entre maçonaria, judaísmo e comunismo (Gomes, 2018).

As transformações do século XX, no contexto social, tornaram as condenações sofridas pela maçonaria menos impactantes, vez que foram baseadas em momentos político-sociais em processo de evolução.

O historiador maçônico José Castellani (2007) analisa:

“O subdesenvolvimento intelectual do povo brasileiro, todavia, iria proporcionar ao clero de pequenas e médias cidades, a base popular de suas difamações contra os Maçons, gerando até fatos pitorescos: párocos que afirmavam que os Maçons adoravam ao diabo, realizando missas negras e cultuando bodes negros, faziam com que os fiéis de seus rebanhos, ricos em fervor religioso……. tivessem medo de passar em frente aos templos maçônicos e que se, forçosamente tivessem que fazê-lo, fizessem contritamente o sinal da cruz para se livrarem dos ‘maus fluídos’ daquelas ‘casas do diabo’”.

Todos esses acontecimentos ainda estão presentes na mente popular, fruto dessas sementes do passado, gerando descrédito e prevenção contra os maçons, sendo este um tema negligenciado pelos estudiosos e por muitos visto como exótico.

Entre 1751 a 1902 a Maçonaria sofreu severas condenações de parte da Igreja, todas sempre se reportando à In Eminenti, de Clemente XII, a “Bula Mãe”, adicionando-lhes elementos religiosos, sendo registrados vários pronunciamentos[7]. Em 25 de maio de 1917, as encíclicas e cartas apostólicas anteriores foram consolidadas no Código de Direito Canônico. A igreja declarava, no Cânone 2335, que “aqueles que se juntam a uma seita maçônica ou outras sociedades do mesmo tipo conspiram contra a Igreja ou contra as autoridades civis legítimas, estão sujeitos à excomunhão”.

No referido Código, por ter incorrido na excomunhão, dentre outras proibições, todo maçom deveria ser afastado dos sacramentos (confirmação, confissão, comunhão, unção dos enfermos), ainda que os pedisse de boa fé (cân. 2138, § 1); não poderia ser padrinho de batismo (cân. 765, n. 2), nem de crisma (cân. 795, n. 1). Para contornar esses constrangimentos e proporcionar um alento aos membros católicos, foram introduzidas na maçonaria as cerimônias de apadrinhamento, como a adoção de Lowtons, o reconhecimento conjugal e as pompas fúnebres.

Ainda em 1968, o padre jesuíta espanhol, José Antônio Ferrer Benimeli, no Livro “A Maçonaria depois do Concílio Vaticano II”, defendeu a tese de que a Maçonaria regular não deveria ser condenada. No seu ponto de vista, somente a Maçonaria irregular, ateia e anticlerical, seria passível de condenação.

O Código de 1917 foi revogado com a promulgação de um novo Código Canônico por João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, passando a constar do Cânone 1734 a seguinte redação: “Aquele que se entra para uma associação que conspira contra a Igreja deve ser punido com justa pena; aquele que promove ou dirige tal associação, no entanto, deve ser punido com interdito”.

Em virtude de várias interpretações e questionamentos, em especial no entendimento de que estaria implícita a aceitação de filiações na maçonaria regular, em novembro daquele ano, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu um comunicado declarando que os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de “pecado grave” e não poderiam receber a “Santa Comunhão”.

Segundo Lutffala Salomão (1998),

“A publicação da Declaração foi mais uma acomodação política dos minoritários insatisfeitos, feita nos últimos instantes, e pode-se até dizer a contragosto do Papa. Afinal ela afrontava uma decisão já tomada e aprovada, logicamente pela maioria de toda a Congregação reunida com a finalidade específica de renovação do Código”.

Comentando sobre a “Igreja e a Maçonaria Hoje”, o jesuíta D. Martins Terra (1996) ressalta que, no Brasil, o jesuíta Padre Alberton “publicou uma obra bastante apologética intitulada ‘A Maçonaria e a Igreja Católica, Ontem, Hoje e Amanhã’ (Edições Paulinas, S. Paulo, 1981)”. Resume dizendo que “a obra foi escrita antes da última declaração oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, que veio esclarecer autoritariamente a questão e por um ponto final às dúvidas e controvérsias hodiernas” e que hoje certamente o referido Padre teria feito comentários menos utópicos e mais realistas (p.82/83). Ocorre que a obra citada é em coautoria com o Padre Benimeli, considerado um dos melhores historiadores contemporâneos da Maçonaria, para muitos o maior maçonólogo do mundo, na qual os jesuítas Valério Alberton e Giovani Caprille fizeram as versões e adaptações para o português e o italiano, respectivamente[8].

O também jesuíta, Padre Jesús Hortal Sánchez, doutor em Direito Canônico, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, em artigo publicado na revista Direito e Pastoral, ano VI, nºs. 23-24, janeiro-abril de 1992. pp. 58-81, afirma:

“Duzentos e cinquenta anos após aquela primeira condenação, a posição da Igreja Católica parece não ter mudado muito. Como veremos, a razão básica da última condenação (23/11/83) continua a ser a mesma: a inconciliabilidade entre a afirmação sincera e plena da fé católica e o relativismo que parece ocultar-se atrás do universo simbólico maçônico”.

Não obstante o Cânon 2335, do Código de 1917, não ter sido introduzido no Código de Direito Canônico de 1983, a posição minoritária vencida tem seus argumentos constantemente alardeados por uma corrente eclesiástica que acredita que para a maioria dos fiéis “é impossível formar um juízo exato sobre este assunto” e que a Igreja deve “indicar aos fiéis onde se escondem os perigos para a sua fé e para a sua vida cristã”. Registra o artigo que a Maçonaria constitui “um perigo extraordinário” e muito “mais sutil” que o comunismo[9], “porque este é um inimigo declarado da Igreja, e a Maçonaria é mais hipócrita” (Infovaticana, 2017).

Frei Boaventura Kloppenburg (1992), afirmou que:

“Igreja e Maçonaria são dois senhores bem diferentes”….duas entidades inconciliáveis”, mas isso não significa que “não haja possibilidade de conciliação entre o pastor da Igreja e o cidadão católico afiliado a uma loja maçônica” e que “sempre encontrarão nos pastores da Igreja muita compreensão e pronta disponibilidade para ajudá-los, no que for possível, a fim de sair do estado de pecado grave”. Para ele, somente dessa forma “a conciliação é possível”.

Reforçando o argumento sobre a possibilidade de reconciliação, Frei Kloppenburg (1992, p.259/263), consignou que “Continuar na Maçonaria, conhecendo a Declaração de 1983, embora de fato nela tenha entrado de boa-fé, seria formalizar conscientemente o ato de desobediência em matéria grave”. Esse católico que se faz maçom é excluído, segundo ele, da comunhão eucarística, mas não é denunciado nem perseguido, estando a Igreja “sempre de braços abertos, pronta a receber o filho pródigo que retorna arrependido à casa paterna”.

Confundindo ainda maçonaria com religião, Frei Kloppenburg (1992) deduziu que “A Igreja não rejeitou a Maçonaria porque defende os princípios fundamentais do espiritualismo (ainda nisso, diz o religioso de forma surpreendente, ‘ela é digna de louvor’), mas porque fez questão de ignorar sistematicamente os princípios básicos do cristianismo”.

No entendimento daquele religioso, Roma tem o direito de “desaprovar e considerar irregular e infiel a Maçonaria como tal, pelo fato de ter riscado de seus rituais, orações e princípios toda e qualquer alusão à Augusta e Santíssima Trindade, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, o princípio fundamental de qualquer Cristianismo”. Faltou alguém confidenciar ao Frei sobre certo Rito Escocês Retificado, praticado desde 1778, que é fundamentado nos pressupostos da religião cristã, baseado na fé na Santíssima Trindade, o que poderia ter amenizado as críticas[10]. Ainda segundo ele, a maçonaria se refere a Deus como um “… abstrato, vago e indeterminado Grande Arquiteto do Universo”.

Retorquindo à obra de Frei Kloppenburg de 1956, intitulada “A Maçonaria no Brasil”, o escritor maçônico A. Campos Porto publicou, em 1957, o livro “A Igreja Católica e a Maçonaria”, onde analisa os argumentos desabonadores desenvolvidos naquela obra, ratificando que:

“A Maçonaria não combate o catolicismo, como não combate nenhuma religião, pois na sua organização fraternal ela abriga indistintamente irmãos que professam cultos diferentes…”. Enfim, que maçonaria não é “contra nenhuma outra religião que tenha por finalidade a grandeza, a felicidade e o respeito do homem concorrendo numa permanente colaboração para a Evolução, tudo sob a égide da Divindade”.

Por vezes subindo os tons do contraponto para o contexto da época, numa verdadeira troca de chumbo, Campos Porto (1957) aborda aspectos históricos para mostrar contradições no seio da própria Igreja Católica, bem como levanta questionamentos sobre as posições mais acolhedoras das demais religiões em relação à maçonaria e da sua contribuição ao longo dos tempos.

Dissidências de ambas as partes são uma realidade e os testemunhos de ex-padres e ex-maçons pululam nas redes sociais, conforme as experiências vivenciadas e de acordo com o público a que se destinam, sendo que em situações como essas, a primeira vítima é sempre a Verdade. Argumentos para reforçar decisões adotadas proliferam e, nesta seara, todos têm suas razões, por culpa ou não das instituições que não souberam dar as respostas adequadas, e que isso sirva-nos de escarmento, aproveitando o termo utilizado por Dom João Evangelista Martins Terra (1996), acima citado.

Continua…

Autor: Márcio dos Santos Gomes

Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, da Academia Mineira Maçônica de Letras, e para nossa alegria, também um colaborador do blog.

Notas

[7] Bento XIV, Providas Romanorum, 18 de maio de 1751; Pio VII, Ecclesiam A Jesu Christo, 13 de setembro de 1821; Leão XII, Quo Gravioria Mala, 13 de março de 1825; Pio VIII, Traditi Humilitati, 24 de maio de 1829; Litteris Altero, 25 de março de 1830; Gregório XVI, Mirari Vos, 15 de agosto de 1832; Pio IX, Qui Pluribus, 9 de novembro de 1846; Quibus Quantisque Malis, 20 de abril de 1849; Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864; Multiplices Inter, 25 de setembro de 1865; Apostolicae Sedis Moderatoni, 12 de Outubro de 1869; Etsi Multa, 21 de novembro de 1873; Leão XIII, Etsi Nos, 15 de fevereiro de 1882; Humanum Genus, 20 de abril de 1884; Officio Sanctissimo, 22 de dezembro de 1887; Dall’Alto Dell’Apostolico Seggio, 15 de outubro de 1890; Inimica Vis, 18 de dezembro de 1892; Custodi di Qualla Fede, 18 de dezembro de 1892; Praeclara, 20 de junho de 1894; e Annum Ingressi, 18 março de 1902.

[8] Entre os dias 7 e 9 de setembro de 2017, Padre Benimeli participou do I Congresso Internacional de Ciência & Maçonaria, realizado em Brasília. Ver palestras em: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2017/12/08/elevacao-e-declinio-da-maconaria-no-mundo/

[9] A Igreja Católica assinou, em 24.09.2018, um acordo dando ao Partido Comunista Chinês poder de decisão na nomeação de bispos que controlarão a instituição naquele país. A Igreja disse que “vai perseverar em seguir um caminho adequado a uma sociedade socialista, sob a liderança do Partido Comunista Chinês”.

[10] Registre-se ainda o Rito Sueco, mais praticado nos países escandinavos (Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia, além da Islândia), e em muita menor escala nos Países Baixos e na Alemanha, com origem a partir de 1759 e sentido profundamente cristão. Ver também: “A Influência da Bíblia na Maçonaria”, em: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2018/08/28/a-influencia-da-biblia-na-maconaria/


PARTE IV



Uma reconciliação ou eventual aliança entre a Igreja Católica e a Maçonaria, como instituição, tão sonhada e sempre distante, permanecerá improvável enquanto as partes se valerem de arroubos retóricos e continuarem a alardear o privilégio e a propriedade da Verdade, sem examinar as reais causas do conflito com espírito fraterno, e não vislumbrarem as características complementares do Exoterismo (Igreja) e Esoterismo (Maçonaria), estratégia essa que continuará a alimentar uma série de equívocos e incompreensões, enquanto os seus reais adversários de fato evoluem, renovam-se e conquistam terreno. Nesse impasse, perde-se a oportunidade de construir uma sociedade melhor para todos.

Caso a maçonaria ceda às pressões para tornar transparente seus rituais simbólicos e sua tradição de sociedade iniciática, restando a sua essência e sua aparência aberta aos não iniciados em seus arcanos, a Ordem perderá certamente seu glamour e a aura de sociedade discreta, transformando-se em algo parecido com um clube social ou de serviço, comprometendo sua sobrevivência na autenticidade construída ao longo dos últimos 300 anos, formando protagonistas e construtores sociais.

Vale reiterar que maçonaria não é uma instituição secreta, pois as Lojas têm endereço, CNPJ, Estatutos e Regimentos registrados em Cartório, porém somente entra quem é convidado, não existindo, portanto, um guichê de inscrições. Ademais, “maçons desfilam pelas ruas com seus ternos pretos, alguns levam sempre na lapela um distintivo, outros até usam decalque no seu carro, ou trazem seus chaveiros com emblemas maçônicos” (Vasconcellos, 1999).

Até aqui, a maçonaria sobreviveu aos ataques sofridos, tanto internamente, no sentido de controlá-la, por interesses particulares e disputas de poder, bem como à indiferença de muitos de seus membros, como externamente, visando a enfraquecê-la e suprimi-la. A maçonaria não pode, isso sim, perder de vista a sua condição de escola de civismo, de liberdade, de fraternidade, de progresso, de solidariedade e de formação de líderes, onde se estuda moral, arte e ciência e debatem-se questões sociais de relevo com o foco na responsabilidade social e cidadã, visando à felicidade da humanidade.

É notório que maçonaria não é religião, não faz apologia de nenhum líder espiritual, pois não existe um magistério maçônico, não oferece sacramentos, não podendo, pois, opor-se ao da Igreja. Contudo, seus membros são espiritualizados e comungam uma dimensão religiosa não limitada a uma religião específica, consubstanciando-se no efetivo ecumenismo. A comparação com uma “seita” é inapropriada, pois essa expressão é atribuída a uma religião falsa sob o ponto de vista da Igreja Católica.

Também não é uma escola ocultista e não tem uma filosofia própria, a não ser a prática do bem e da solidariedade, que não lhe são exclusivos. A maçonaria sempre respeitou a opção religiosa de seus membros e não proíbe as divergências de pensamentos. É reconhecido o apoio que prestou a várias denominações evangélicas que enfrentaram preconceitos e dificuldades para instalação em algumas localidades no Brasil.

“A Franco-Maçonaria apresenta-se como uma das vias de pesquisa do Conhecimento, via que não se choca com nenhuma crença. A arte de construir o templo, cara aos maçons da Idade Média, não interessará a todo homem preocupado com a autenticidade?” (Jacq, 1977).

Conforme demonstra Alec Mellor (1976), não existem dogmas maçônicos. “A própria noção de Landmark não se confunde com o do dogma”. Segundo ele, “a diferença está em que a Maçonaria não reivindica a Revelação…. longe de opor-se à Igreja, neste ponto, a incompatibilidade teria surgido se ela tivesse seus dogmas”.

Por outro lado, vislumbra-se estéril essa preocupação e expectativa de muitos maçons no sentido de que a Ordem e a Igreja assinem um tratado de paz e recebam as bênçãos para continuar os trabalhos como o fora nos tempos da maçonaria de ofício. A situação atual não se mostra incômoda a não ser para aqueles maçons inseguros, que não tem equilíbrio emocional, independência intelectual, coragem moral suficiente para assumir com todas as letras que são católicos ou de outra religião e maçons, e que tal postura não é dual, e sim complementar.

Já é hora de erguer-se uma ponta do véu. A Igreja, que já desfrutou de poder hegemônico e influência imediata junto à sociedade, tem os seus motivos regulamentares e contradições como todas as instituições e não pode sucumbir a pressões maçônicas para que se superem eventuais divergências. O Papa Francisco, na sua missão apostólica de liderança e renovação, enfrenta resistências da ala ultraconservadora e de alguns Príncipes da Igreja, além de outras verdades inconvenientes em seus bastidores.

Da mesma forma, sabe-se que muitos maçons ocupantes de posições não eclesiásticas nas igrejas, os ministros leigos, recebem por vezes pressão para que escolham ficar nos postos ou abandonar a maçonaria. Isso também depende da linha de pensamento de cada Diocese.

Não resta dúvida de que situações de decepção e frustração poderão ser enfrentadas por vários obreiros e familiares em suas comunidades religiosas, no sentido de sentirem-se discriminados ou considerados nocivos pelo fato de pertencerem à Ordem, e por vezes estigmatizados. Mas, isso é fruto de desconhecimento dos fatos e da história, sobre os quais muitos desafetos se felicitam pela incompreensão.

Ademais, acreditar que o fim do conflito oficial poderá acarretar o fim do conflito das ideias seria, no entanto, ilusório, pois resistências de religiosos e anticlericalismo de certos maçons, ainda que regulares, se circunscreve na seara da liberdade de pensamento e expressão. Nem por isso, Igreja e a Maçonaria deixarão de seguir seus caminhos. Lembrando Galileu Galilei: Eppur si muove!.

Por sua vez, ainda que a qualificação de “universal” da maçonaria faça transparecer uma falsa ideia de unidade, na realidade enseja uma instituição dividida em várias Potências ou Obediências, com milhares de Lojas, que gozam de autonomia administrativa, e vários Ritos e estes com seus respectivos graus, estando esse ideal de união em estado latente, como uma aspiração, uma quimera. Há outros, entretanto, que veem essa diversidade como vantagem.

E o desafio que se impõe aos Mestres Maçons é justamente reunir o que está disperso. Apesar dessas “várias maçonarias”, algumas com orientações mais particulares, pelo menos o espírito de união, de fraternidade, de reconhecimento e a interação entre os obreiros na base permanecem inabaláveis.

Como a pretensa reaproximação entre Igreja e Maçonaria vislumbra-se improvável, que os obreiros incomodados façam a escolha que ditar a consciência! Se não estiverem seguros dos pilares da maçonaria é melhor que aceitem o conselho do arrependimento e peçam para sair de forma honrosa e não sofram mais por isso. A vida é muito curta para que se suporte mais esse conflito. Se servir de consolo, importa relevar que mesmo fora, continuam maçons, visto terem passado pela “iniciação”, podendo ser reintegrados quando assim o desejarem e estiverem plenamente seguros de que na maçonaria não há coisa alguma que atente contra suas crenças.

Enfim, a Igreja é eterna e a Maçonaria tem prazo de validade. Conforme ensina Michel Cugnet, citado por Benimeli (2007, p.666):

“O mais belo futuro que poderia ser oferecido à Franco-Maçonaria seria que ela desaparecesse por não ter mais razão de ser, pois isto significaria, então, dizer que todos os seres humanos responderam sem restrição alguma ao ideal de Fraternidade e de Tolerância, vivendo em ‘Fé, Esperança e Caridade’, e que o Templo simbólico da Humanidade estaria terminado.”

“… examinem tudo e fiquem com o que é bom” (1 Ts 5,21)

Finis

Autor: Márcio dos Santos Gomes

* Trabalho apresentado na reunião de 02.10.2018 da Academia Mineira Maçônica de Letras – A Casa de Tiradentes.

Márcio é Mestre Instalado da ARLS Águia das Alterosas – 197 – GLMMG, Oriente de Belo Horizonte, membro da Escola Maçônica Mestre Antônio Augusto Alves D’Almeida, da Academia Mineira Maçônica de Letras, e para nossa alegria, também um colaborador do blog.

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