quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XV

A ENGENHARIA DA DOR


João Anatalino Rodrigues

O papa Clemente V estava preocupado. O caso dos Templários estava tomando um rumo indesejado. Desde o dia primeiro de novembro de 1306, quando ele se encontrara com os respectivos Grãos-Mestres do Templo e do Hospital para a conferência realizada em Poitiers, esse assunto não saia da sua cabeça. 

Embora a reunião tivesse sido adiada por causa de uma crise de gastropatia, mal que Clemente V sofria já ha algum tempo, Jacques de Molay conversara, dias depois, com o Santo Padre. Nessa ocasião ele expôs sua preocupação sobre os rumores que eram levantados em relação ás acusações que estavam sendo feitas aos Templários. O papa, mesmo acamado, prometeu estudar o problema e dar uma resposta o mais breve possível. Fá-lo-ia somente em fins de agosto de 1307, num encontro do qual também participou o Grão-Mestre do Hospital, Fouques de Vilaret. Nessa ocasião eles discutiram a realização de uma nova cruzada e a fusão das duas Ordens militares, o que foi desanconselhado pelo Grão-Mestre do Hospital e firmemente combatido por De Molay.

Foi nessa ocasião que De Molay pediu ao papa para abrir uma investigação a respeito, para que não pairasse nenhuma dúvida sobre a virtude dos membros da Ordem. Que fossem condenados os que assim se provassem ter cometidos delitos e inocentados os demais, que de Molay acreditava ser a grande maioria, “homens virtuosos, tementes a Deus e firmes na fé cristã”, como ele os definiu. O papa concordara com a proposta, mas não fizera nada para implementá-la.

Clemente V, sem dúvida, tinha o desejo de apurar tais acusações. Até porque ficaria numa situação complicada se não o fizesse. Não pensava, realmente, que os Templários fossem culpados de tais vilanias. Creditava tais acusações aos propagandistas de Filipe IV, especialmente Guilherme Nogaret, que já decidira levar a cabo sua campanha para destruir a Ordem do Templo. Ele odiava Nogaret por causa do episódio de Agnani e em razão das suas próprias invectivas contra ele e o clero.

Mas antes que ele tomasse qualquer providência a respeito, Filipe, o Belo, tinha tomado a sua frente. Com sua ação da sexta-feira treze, dia 13 de outubro de 1307, ele o havia sido colocado diante de um fato consumado, um feit accompli, cujas consequências precisavam agora ser sabiamente administradas.

O papa sabia que os Templários seriam submetidos á tortura e a maioria logo confessaria o que quer que fosse para evitar a mutilação dos seus corpos nos terríveis engenhos que a imaginação dos sábios padres da Inquisição havia desenvolvido para fazer os hereges, as bruxas, os feiticeiros e os contestadores da fé católica soltarem as línguas. 

Ele não estava preocupado á toa. Pois já no segundo interrogatório, duas semanas mais tarde, perante os inquisidores e uma plateia formada por prelados da Universidade de Paris, o Preceptor da Normandia, Geoffrey de Charney, apresentou-se como um velho alquebrado, abatido e frágil. Estava em um estado físico e moral totalmente lamentável, bem diferente da primeira vez que esteve ali. Nem parecia o mesmo cavaleiro orgulhoso e varonil que negara e até desdenhara, alguns dias antes, de todas as acusações que haviam sido feitas aos Templários. As marcas da tortura eram visíveis no corpo alquebrado do outrora altivo monge-guerreiro. Nos olhos encovados e no rosto macilento, que a comprida e espessa barba, ainda negra, não conseguiam esconder, estavam registradas a consequência da mutilação sofrida nos últimos dias. Dentes quebrados, lábios ressecados e rachados pela dieta de água e pão salitroso, pulsos e tornozelos dilacerados pelas argolas das correntes, pernas arqueadas e bambas pelas longas horas de tortura no balcão de estiramento, os polegares esmagados pelas “ratoeiras”, o mutilado dignatário de Templo mal conseguia articular palavras inteligíveis para responder aos inquisidores.

– Quando fostes recepcionado na Ordem? – perguntou Guilherme de Paris.

– Há trinta sete, ou trinta e oito anos atrás – respondeu Charney, com dificuldade.

– Quem vos recepcionou? – perguntou o Inquisidor-Mor.

– Um Irmão de nome Amaury de La Roche, juntamente com o Irmão Jean François, na época Preceptor de Paris – respondeu o Preceptor da Normandia.

O interrogatório prosseguiu. O inquisidor, sempre no mesmo tom incisivo e o inquirido respondendo, como se tivesse dando respostas decoradas. 

– Podeis descrever como foi essa recepção? – perguntou o inquisidor.

O Preceptor da Normandia ficou um momento em silêncio, juntando forças para falar. Por fim, como se estivesse saindo de um doloroso conflito interno e já desistira de lutar, respondeu, com voz cansada e dispersa. 

– Depois da vigília de praxe, na qual fiquei sozinho na cripta, orando, fui levado á presença do dito Irmão Amaury e do Preceptor de Paris, Jean François. Presentes também vários outros Irmãos, já falecidos. Fiz os juramentos de praxe e depois fui recebido com um beijo nos lábios. Em seguida o Irmão Amaury vestiu-me com o manto.

Geoffrey de Charney suspirou fundo como se alguma dúvida se passasse na sua cabeça. Guilherme de Paris prosseguiu, implacável.

– Continuai.

– Trouxeram-me uma cruz com a imagem de Cristo – disse ele, finalmente, como se aquela revelação lhe pesasse na alma.

– E o que vós fizestes? 

– O Irmão Amaury disse que Cristo era um falso profeta e que eu não devia acreditar nele. Não se tratava de um Deus.

– Continuai – ordenou Guilherme de Paris, cuja face, naquele momento, revelava uma alegria que não conseguia esconder.

– O Irmão Amaury me disse para renegar Cristo três vezes.

– E vós o fizestes?

– Sim. Mas apenas com os lábios e não com o coração.

– Cuspistes também na imagem de Cristo sobre a cruz?

– Não me lembro de tê-lo feito. 

– E quanto aos beijos obscenos que os noviços são obrigados a dar nas partes íntimas dos veteranos, o que podeis dizer sobre isso?

– Beijei o meu receptor no umbigo, por que assim foi mandado que o fizesse.

– Não praticastes conjunção carnal com vossos Irmãos?

– Nunca o fiz, nem me foi pedido que o fizesse. Mas ouvi o irmão Gérard de Sauzet dizer aos iniciados dos Capítulos que era melhor unir-se carnalmente com os Irmãos da Ordem, do que ter relações com mulheres. Que isso não era considerado uma quebra do nosso voto de castidade.

– Como Preceptor da Normandia recepcionastes pessoalmente a muitos noviços?

– Sim.

– E procedestes a essas recepções da mesma forma como fostes recebido pelo Irmão Amaury?

– Nas primeiras vezes sim, mas depois percebi que cada preceptoria aplicava a seu modo esse ritual e então voltei a fazer nossas recepções de acordo com os Estatutos da Ordem. 

– Porque resolvestes agir assim?

– Porque percebi que a forma como fui recepcionado era uma profanação ímpia e contrária á fé católica. 

Isso é o que queriam ouvir Guilherme de Paris, Guilherme de Nogaret, Filipe o Belo, Guilherme de Plaisians e todos aqueles que buscavam a perdição dos Templários: uma confissão feita por um alto dignatário da Ordem. Não importava que ela tivesse sido extraída á custa de tortura e promessas mentirosas. Pois, nos dois dias que antecederam esse interrogatório, Geoffrey de Charney, Geoffrey de Gonneville e o Jacques de Molay, os três mais importantes dignatários da Ordem em território francês, haviam sido cruelmente submetidos á engenharia da dor. Passaram pelo suplício da roda, foram postos no cavalete, onde seus membros foram esticados até o limite do rompimento; tinham sido pendurados em ganchos, para que seus membros e ossos fossem deslocados. Tiveram os pés untados com gordura de porco e suas pernas presas em uma espécie de prensa, com os pés próximos a um archote, para que a gordura, ao esquentar, lhes queimasse a sola do pé. E em todos esses suplícios, era o próprio Guilherme de Paris que os assistia e comandava, sempre ordenando:

– Confessai, para que esse suplício possa acabar. Salvai vossas almas e poupai dessas dores o vosso corpo. Se confessardes, nós vos daremos as penitências devidas e vós sereis perdoados e podereis voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Vossas vidas e vossa honra serão preservadas. 

Foi dessa forma, triturados, alquebrados, com os braços e pernas deslocados, os pés em carne viva, com a moral destruída e a vontade minada pela falsa esperança que o Inquisidor-Mor plantara em seus corações, que esses bravos e altivos cavaleiros se apresentaram, pela segunda vez, perante o temível Guilherme de Paris e sua comissão. E desta vez disseram o que seus algozes queriam ouvir. 

– Há quarenta e dois anos – disse o próprio Jacques de Molay – fui recepcionado na Ordem pelo Irmão Humberto de Peyráuld, na preceptoria de Beaunne. Estavam presentes o Irmão Amaury de La Roche e muitos outros, dos quais já não me lembro dos nomes. Fiz os juramentos de praxe e depois recebi o manto. O Irmão Humberto mandou trazer em seguida uma cruz de estanho, com a imagem do Cristo crucificado. Ordenou-me que o renegasse três vezes e que cuspisse nela. De mal grado pronunciei a renegação, porém não cuspi sobre a cruz, mas no chão. 

– Recepcionastes muitos noviços dessa maneira?

– Presidi a poucas recepções, mas o cerimonial nunca foi muito diferente desse que relatei. Depois do beijo protocolar, que era ás vezes no umbigo, ás vezes nos lábios, os recipiendários eram encaminhados aos seus respectivos instrutores, os quais continuavam as práticas que deviam fazer. Eu nunca participei delas por completo. 

– E quanto á acusação de sodomia. Alguma vez, vos unistes aos vosos Irmãos em conjunção carnal?

– Não, nunca o fiz ─ respondeu com firmeza o Grão-Mestre.

Então o inquisidor fez a pergunta protocolar, feita a todos os inquiridos, para salvaguarda do devido processo legal:

– Proferistes qualquer falsidade, ou declarastes inverdades em seu depoimento, em razão de tortura, ou por outro meio coercitivo?

– Não – respondeu de Molay, com um fio de voz.

Guilherme de Paris insistiu.

– Fostes torturado, ou por qualquer meio coagido, para dizer o que dissestes?

– Não – foi de novo a resposta, evasiva e quase inaudível..

– Tudo que dissestes é, pois, a verdade, dita de forma espontânea, em nome de Deus?

– Tudo que disse é a verdade, para a salvação da minha alma! 

Guilherme de Nogaret sorriu. Agora sim, a coisa tinha sido bem conduzida e estava do jeito que ele queria. Os patifes tinham sido amolecidos pela engenharia da dor e pela falsa promessa de uma absolvição. Eles haviam sido iludidos com promessa de que suas confissões não acarretariam penalidades maiores do que as penitências devidas. A confissão espontânea, dissera Guilherme de Paris, era o caminho para a redenção e para a liberdade. A insistência em negar fatos sobejamente conhecidos só traria mais sofrimento e dor. Se confessassem espontaneamente e se mostrassem sinceramente arrependidos, a Igreja não poderia negar-lhes o perdão. Essa era a praxe e no caso deles não havia motivo para se fazer diferente. Assim, os altos dignatários do Templo concordaram em confessar a culpa pelos crimes que lhes eram atribuídos. 

Para de Molay e os demais dignatários do Templo a confissão dessas práticas não constituía perjúrio. Elas, de fato, aconteciam, tanto nas cerimônias de iniciações da Ordem, quanto nos rituais praticados nos Capítulos. Tinham as suas justificativas, mas estas não podiam ser publicadas. Constituiam doutrina interna da Ordem, que deviam ser mantidas em estrito segredo. Mas ao que parecia, esses segredos haviam sido violados e agora não adiantava negá-los. Era melhor, dissera Guilheme de Paris, reconhecer logo a culpa para evitar que a tortura se prolongasse e, ao final, eles não fossem considerados impenitentes, por conta de segredos que já eram de conhecimento de todos. Assim, o caso logo seria resolvido e eles poderiam voltar ás suas vidas normais.

Nos dois dias seguintes, Hugues de Peyráuld, Inspetor-Visitador da Ordem daria igual depoimento, declarando alto e em bom tom ter praticado todos aqueles comportamentos dos quais a Ordem era acusada. Detalhou rituais e procedimentos utilizados pelos Templários em suas cerimônias de iniciação e nas reuniões dos Capítulos. Disse que o Regulamento dado ao Templo por Bernardo de Clairvaux havia sido modificado logo depois da perda de Jerusalém e da expulsão dos cruzados da Terra Santa. Que tal mudança teria sido feita no “Castelo dos Peregrinos”, em uma reunião na qual se reconheceu que a causa dos cruzados na Terra Santa não tinha nada de sagrado, e que Jesus, na verdade, não possuia divindade nenhuma, pois não fora nem capaz de socorrê-los quando precisaram. Que essas mudanças nos Estatutos da Ordem começaram a ser introduzidas pelo Grão-Mestre Robert de Craon depois da descoberta de certa relíquia dos tempos de Jesus, que provava a sua condição de homem mortal e a mentira da sua ressurreição. Que relíquia era essa não sabia precisar, pois somente a tinha visto na intimidade dos Capítulos, sob a luz mortiça dos candelabros e não olhara diretamente para ela. Tratava-se, porém, de uma cabeça, disso tinha certeza. Só lhe foi dito que “aquele era o Senhor a quem os Irmãos do Templo deviam adorar”. 

Os prelados que acompanharam seu depoimento não puderam deixar de observar que ele se encontrava em excelente estado físico e que parecia não ter sofrido nenhuma tortura ou constrangimento moral. Seu testemunho foi claro e incisivo, bem diferente dos testemunhos de Geoffrey de Charney e Jacques de Molay, que depuseram antes dele e de Geoffrey de Gonneville, que depôs no dia seguinte. Os três haviam sido barbaramente torturados, mas o Inspetor-Visitador não. A razão desse privilégio, só Guilherme de Nogaret sabia. 

No entanto, fosse ou não manipulação de Nogaret e Guilherme de Paris, a confissão dos altos dignatários do Templo provocou verdadeira comoção entre os prelados que assistiram ao inquérito. Essas confissões logo foram divulgadas, causando um grande impacto na opinião pública. Especialmente uma carta, supostamente ditada por Jacques de Molay, que circulou por todas as proisões onde os Templários estavam confinados, confirmando as imputações e conclamando a todos os Irmãos da Ordem a confessar também, 

Tudo isso chegou aos ouvidos do papa. Agora ele não podia mais procrastinar a sua decisão de se envolver no caso. Era exatamente o que o rei Filipe e Nogartet precisavam. Dai para frente, acontecesse o que acontecesse, a sorte do Templo estava selada. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário