ENTRE A CRUZ E A LOJA – A SAGA DO VIGÁRIO BARTOLOMEU
“Há instantes em que os homens são senhores de seu destino.” W. Shakespeare.
Este tema refere-se a um interessante capítulo da história de nossa Sublime Ordem. A primeira vista pode parecer apenas mais um caso de insurreição contra o poder eclesiástico, perdido em meio ao sertão nordestino, protagonizado por um honrado Irmão que também era padre católico. Mas, analisando amiúde os detalhes e o contexto sócio-político no qual se insere, percebemos que estamos diante de um dos eventos que melhor ilustram e que pode nos levar a entender melhor a complexa relação entre Poder, Igreja, Estado e Maçonaria.
O devotado padre católico chamado Bartolomeu da Rocha Fagundes, nosso querido e inesquecível Irmão, sacrificou sua carreira eclesiástica por ser rigorosamente fiel ao juramento sagrado prestado durante a Iniciação. Sua lealdade e retidão estavam acima de qualquer interesse profano, mesmo quando sua vocação de sacerdote ficou sob risco de extinção, por determinação de seus superiores. Todo este drama, que se iniciou formalmente em meados do século XVIII, converteu-se em um assunto polêmico, intrincado e, infelizmente, muito mal compreendido, até os dias atuais.
O episódio vivenciado pelo Vigário Bartolomeu, ocorrido durante a chamada “Questão Religiosa” (1.872 a 1.875) – uma das poderosas circunstâncias que abalaram as colunas do Império – nos mostra um legítimo exemplo de grande Maçom. Fazendo honrar sua palavra mesmo nas piores adversidades, sua postura, na opinião de muitos, comprova indubitavelmente que existe total compatibilidade entre o papel oficial de religioso e de maçom regular, considerando o aspecto ético e filosófico da situação. Para outros, trata-se de um insubordinado que abandonou a fé e o Vaticano.
Por estas razões sabemos que estamos diante de um assunto extremamente interessante e complexo, que deve ser analisado à luz da racionalidade, sem exacerbação das paixões nem as certezas dos dogmas que tanto prejudicam nossa capacidade de interpretação. E para estarmos em condições adequadas de serenidade ao lidar com tal tipo de situação, é preciso conhecer todos os fatores envolvidos. Deste modo, faremos algumas breves reflexões preliminares, antes de tratarmos diretamente do evento principal que motivou este trabalho. Na primeira parte vamos realizar um estudo sobre o conceito de religião. Depois, passaremos a enfocar especificamente a Igreja Católica, um dos grandes protagonistas de nossa história e que tanta influência exerce sobre toda civilização ocidental. Finalmente, passaremos à “Questão Religiosa” e ao caso do Vigário Bartolomeu propriamente dito.
A lembrança de sua vida e a bravura de suas atitudes nos auxiliará, como um maravilhoso legado histórico, a entender e desmistificar um dos grandes tabus que assola as almas de muitos fiéis: é possível um religioso integrar o quadro de obreiros regulares de nossa Fraternidade?
Após realizarmos as análises propostas, que certamente estimularão alguns momentos de real meditação em todos os leitores, será possível entendermos o verdadeiro significado deste fenômeno histórico, e assim chegaremos a uma conclusão adequada sobre a questão acima formulada. Nosso querido Irmão ficaria deveras feliz em saber que, mesmo tendo passado ao Oriente Eterno há mais de 130 anos, seu poder e glória ainda têm força para ajudar a esclarecer um enigma desta magnitude.
Uma certeza, porém, desde já se destaca: por se tratar de uma rara demonstração de inequívoco amor à Maçonaria, e do mais profundo respeito aos nossos sagrados princípios, tal saga jamais poderá ser relegada ao esquecimento.
1 – O CONCEITO DE RELIGIÃO
Religião é um termo derivado do latim religio, que significa na tradição antiga algo como manifestar um comportamento rígido, formal e pautado pela precisão. Assim era o seu sentido no mundo pré-cristão, notadamente na Grécia e em Roma.
Em 45 d.C., na obra De Natura Deorum, Cícero considerava o termo religião uma alusão ao ato de reler ou estudar de novo alguma coisa. Explicava, então, que os religiosos eram aqueles que pretendiam uma releitura das escrituras e dos ensinamentos primordiais que trariam luz sobre os fenômenos inexplicáveis. Agostinho de Hipona, que viveu no século IV d.C. dizia que a religião seria a vontade de todos de reeleger a Divindade como centro do universo, uma vez que a humanidade se desligou de Deus. No livro A Cidade de Deus considera a palavra religere como sendo a raiz etimológica de religião. Nos anos 400 d.C. Macróbio afirmava que religio seria uma forma de se cultuar as relíquias do passado, ou relinquere.
No Hinduísmo não se utiliza o termo religião. Seus sacerdotes, na Antigüidade, usavam a palavra rita. Depois passaram a expressar a idéia de lei divina e perene como Dharma, denominação também comum no Budismo, criado em 500 a.C..
Acredita-se, atualmente, que o vocábulo deriva de duas origens distintas. Relegere se refere à idéia de reler ou revisar os conceitos, tradições, ritos, e princípios antigos adaptando-os às novas eras e necessidades. E Religare seria a vontade de religar algo ou alguém a outros, ou de reunir as pessoas à Divindade.
A partir da hegemonia tradição Judaico-Cristã no ocidente, religião passou a ser considerada como o conjunto de crenças, rituais, princípios e práticas diversas que buscam exatamente o contato da humanidade com Jeovah-Deus, que habitaria o mundo sobrenatural ou intangível. Esta interação seria possível através da chamada revelação ou transcendência, que todos os adeptos consideram como realidades concretas.
Adentrando a esfera dos estudos da psique humana, chegamos a uma ponderação interessante. Religião seria uma das maneiras de se tentar explicar todos os mistérios que cercam nossa existência, ou seja, tudo aquilo que a nós é incompreensível. Esta bagagem, que foge à razão esclarecida ou à compreensão lógica da mente humana, pertence ao campo do Sublime – como o funcionamento do universo, a origem e sentido da vida, o que ocorre depois da morte, e tantos outros fenômenos que angustiam nossa alma desde o princípio dos tempos. Para explicar esta zona de incertezas, criaram-se os sistemas religiosos primordiais, que utilizam uma variada gama de conceitos dogmáticos baseados apenas na fé. Tais mecanismos impõem uma normatização destas possibilidades, regrando todos os fenômenos de acordo com as ditas “verdades reveladas”. Estabelecem, assim, a dominação espiritual nesta área inacessível e satisfazem parte de nossa mais profunda angústia: a eterna busca pelo desconhecido, pelo além, pela palavra ou objeto perdido, que nunca serão acessados.
Tais sistemas, para alcançar seus objetivos, necessitam de ferramentas poderosas, que forneçam a chave que conecta o profano ao sagrado. Criam-se, então, os ritos, os mitos, as lendas, a liturgia e toda forma de explicação transcendental, geralmente formuladas pelos grandes “profetas”. Assim, solucionam os enigmas e os mais angustiantes mistérios e satisfazem a ânsia pelo entendimento deste campo imponderável, apesar de não possuírem qualquer fundamentação minimamente racional ou científica.
O fenômeno religioso, portanto, se origina de um tronco único, de uma única característica humana – a necessidade elementar de elaborar as mais terríveis angústias que assolam nossas almas. Concluímos que, por extensão, todas as religiões também possuem a mesma origem. Todas são subdivisões da mesma filosofia, apesar das aparentes disparidades que percebemos ao analisá-las superficialmente, notadamente em relação à liturgia e ritualística. O pensamento místico original ditou os princípios fundamentais que nortearam a conduta humana na alvorada da civilização, muito antes do surgimento das cidades, dos reinos e dos códigos escritos.
Os conceitos de religião e igreja, logicamente, não são sinônimos, apesar de muitos confundirem seus sentidos, propositalmente ou não. Igreja é a materialização do conjunto ideológico ou bagagem cultural que estrutura uma corrente religiosa. A palavra igreja vem do grego ekklesia, que significa assembléia, reunião, congresso ou associação de pessoas. Representa os objetos materiais, como prédios, mobiliários, códigos de leis e normas, a hierarquia e os paramentos, e os próprios sacerdotes. Religião, em termos filosóficos, é uma abstração, uma idéia que habita o campo do intangível, comum a todos em todas as eras. Portanto, pode existir um fervoroso devoto de determinada vertente, fiel aos seus dogmas e preceitos, mas que não aceita a estrutura administrativa e burocrática, ou ekklesia, que se criou em torno desta fé, de acordo com as necessidades e conveniências.
As chamadas grandes religiões, estruturadas através das igrejas, foram se expandindo ao longo dos séculos de maneira gradual e consistente. No início a dificuldade de expansão era significativa. Poucos tinham a oportunidade de conhecer formas alternativas de religião. Heródoto, historiador grego, foi uma exceção. Descreveu em seu livro Viagens as práticas religiosas dos diversos povos que encontrou em suas peregrinações pelo mundo. Buscava relacionar os deuses que encontrava com os existentes no panteão grego. Xenofonte dizia que cada povo criava sua tradição religiosa de acordo com sua cultura, e que seria impossível o ecumenismo.
A partir do início do século XX a expansão foi exponencial. A facilidade de comunicação e transporte entre todas as comunidades do globo favoreceu o contato de cada ser temente a Deus a diversas correntes de pensamento. Isto representa uma vantagem em termos de expansão, mas significa também um risco permanente de evasões dos fiéis, que podem migrar de uma para outra religião com extrema simplicidade. Cada instituição, para sobreviver nesta nova realidade, precisava de instrumentos eficientes de controle e manutenção de seus “rebanhos”. Desta preocupação surgiram diversas técnicas de controle e regramento dos fiéis, obedientes a “leis escritas” que estabeleciam o que era proibido aos integrantes de uma determinada vertente.
Atualmente observamos a existência de uma imensa diversidade filosófica e de crenças por todo mundo, gerando uma permanente concorrência e interação entre todas as instituições religiosas. Podemos dividir a distribuição das religiões de acordo com critérios geopolíticos. Assim, temos as do Oriente Médio (Judaísmo, Cristianismo, Islã, Zoroastrismo e Bahal), do Extremo Oriente (Confucionismo, Taoísmo, Budismo, Mahayama e Xintoísmo), da Índia (Hinduísmo, Jainismo, Budismo e Sick), da África, da Oceania, da América pré-colombiana e da Antigüidade clássica Greco-Romana. As três grandes religiões monoteístas somadas possuem mais de um terço da humanidade sob seus domínios (dois bilhões de cristãos, 1,3 bilhões de islâmicos e 15 milhões de judeus). Interessante observar que cerca de 1 bilhão de pessoas se declaram sem religião. Neste grupo se incluem os ateus.
Após as considerações contidas neste primeiro capítulo, fica claro que religião é um conceito universal e perene, surgido no princípio dos tempos. Refere-se a um estado de espírito, que requer o mais profundo respeito a tudo que existe e se manifesta pelo desejo inato de todos em se religar a um Princípio Criador. Igreja seria a estrutura arquitetada pelos fiéis a partir destas manifestações e necessidades primordiais. Uma se refere à espiritualidade e a outra à materialidade, e ambas catalisam a jornada mística dos homens em busca das verdades misteriosas que assolam visceralmente suas almas. Contrariar as normas de uma determinada Igreja não significa, necessariamente, contrariar os reais princípios e os conceitos éticos que definem sua base religiosa.
2 – A IGREJA CATÓLICA
O surgimento e expansão da Igreja Católica se mescla com a própria saga do Cristianismo. O estudo deste fascinante capítulo da história da Humanidade nos mostra como se formou o arcabouço psicológico das ideologias surgidas posteriormente, todas marcadamente influenciadas pelas idéias de Platão e Paulo – os verdadeiros arquitetos da construção psico-social do ocidente.
Analisando o início da história da Igreja – o período relativamente esquecido e considerado de pouco valor por parte de muitos estudiosos – podemos entender como esta pequena seita, que começou de maneira inexpressiva, obteve tamanho crescimento nos últimos 2.000 anos. As estratégias desenvolvidas pelos primeiros cristãos neste período de grandes embates foram um sucesso e continuam em vigência na atualidade. Antes usadas para estabelecer com convicção as Colunas de Pedro, agora se voltam à sua manutenção e ao incremento do número de fiéis. A primeira fase é conhecida como Apostólica, pois conta com a atuação direta dos apóstolos. Em seguida temos a chamada Patrística, marcada pelo estabelecimento das bases ideológicas e pelas políticas visando garantir o crescimento da nova fé.
A atual Igreja Católica Apostólica Romana surgiu no Século I d.C. por obra de Saulo de Tarso, considerado historicamente o seu fundador. Este judeu fariseu, fortemente influenciado pelas idéias de Platão, conhecia alguns conceitos de antigas religiões, como o Mitraísmo, o Zoroastrismo, o Hinduísmo, o Budismo, as tradições egípcias e tantas outras. Tinha cidadania romana, e usava esta prerrogativa quando era ameaçado pelos centuriões. Escreveu grande parte do Novo Testamento (Epístolas, Evangelho de Lucas e Atos). Foi o primeiro a afirmar que a salvação dependeria unicamente da fé. Em três viagens difundiu sua doutrina principalmente pela Ásia Menor e península itálica.
No ano 48 d.C. o cristão-novo Paulo venceu um debate visceral com Tiago, na chamada “Assembléia de Jerusalém”. A partir deste evento, considerado o primeiro conclave do Cristianismo, ficou determinado que sua corrente fosse hegemônica dentre as diversas que existiam, todas baseadas nas idéias de Jesus Cristo. Para começar a expansão, Paulo achava interessante abrandar as obrigações que os judeus deviam seguir. Isto atrairia muitos simpatizantes. Assim, os gentios, os antigos judeus e os pagãos convertidos à Cruz não precisariam mais sofrer, por exemplo, a circuncisão nem sacrificar animais aos ídolos. Tiago era a favor da ortodoxia, e se tivesse vencido o primeiro confronto certamente o Cristianismo não teria o mesmo sucesso, tendendo a permanecer como uma seita a mais, esquecida pelos rincões do Oriente. Este momento marca a primeira grande cisão ideológica, desta vez com a antiga tradição dos hebreus.
Em 66, com a eclosão da Revolta Judaica na Palestina, os cristãos emergentes decidem abandonar os judeus rebeldes, fato que acentuou a separação entre os grupos. Quatro anos mais tarde, em 70, com o esmagamento da insurreição, o movimento de Paulo tinha um terreno fértil à frente.
Com a morte de João – na tradição cristã, o último dos apóstolos – na cidade de Éfeso, no final deste mesmo século, findava a fase Apostólica e começava a Patrística, que seria marcada pelo surgimento dos primeiros dogmas de fé, por volta do ano 135.
Os considerados “Pais da Igreja” trabalhavam com afinco. Do século II ao IV teceram os primórdios do pensamento eclesiástico e da teologia católica, que depois seria chamada de Filosofia Cristã por Santo Agostinho. Nesta fase destacam-se Clemente de Roma, Marcião, Policarpo, Santo Ambrósio, Irineu de Lião, Tertuliano, Orígenes, e Santo Ignácio de Antioquia – o primeiro a chamar de católica a nova igreja que emergia, utilizando um termo derivado do grego que significa “universal”.
Na ordem do dia do século II estava o combate aos conhecimentos Gnósticos e a busca estratégica por justificativas para a submissão plena e irrestrita da Igreja ao poder de Roma, pois Trajano iniciara as perseguições em massa aos cristãos, no ano 112. Depois dele, Marco Aurélio, Décio, Valeriano e Diocleciano foram os imperadores que mais se dedicaram a esta política. Vários cristãos foram condenados à morte, como São Justino, executado no ano 165. Além dos ataques externos, havia o patrulhamento ideológico intra corporis, policiando as ações daqueles que não seguiam piamente a “cartilha” que os Pais estavam escrevendo. Neste momento observou-se o surgimento de duas correntes de pensamento: uma baseava as explicações dos mistérios unicamente através dos dogmas de fé, com centro em Roma, e outra mais filosófica tentava desvendar os enigmas do Sublime por meios lógicos e intuitivos, operante na Grécia. Muitos se dedicavam efetivamente ao feroz combate à tendência “rival”, como Taciano, Atenágoras e Teófilo de Antioquia, que se destacavam pelas teses contra a Gnose.
No século III os debates prosseguiam. Uma estratégia eficaz de expansão era atingir “moralmente” os adversários ideológicos. Clemente de Alexandria atacava a Filosofia, em sua obra “Stromata”, por achar que esta ciência só seria válida se emanada de Deus. Orígenes dava coerência lógica a algumas teses, formatando e assim fortalecendo a argumentação dogmática de ataque. As seitas pagãs eram pesadamente combatidas, e os judeus também sofriam por manter suas tradições intactas.
O século IV traz a atenuação das perseguições aos cristãos pelo poder de Roma, devido à legalização da religião feita por Constantino I (édito de Tolerância ou de Milão, de 313), e a elevação do Cristianismo a religião oficial do Império, por Teodósio I, em 391. Tal monarca proibiu a existência das outras crenças, gerando a exacerbação dos ataques, principalmente, às religiões pagãs. A destruição sistemática dos locais de culto – com construção de igrejas exatamente nestes sítios – e a conversão maciça dos bárbaros à religião paulina era a rotina nestes dias de glória e sangue.
Com a queda do Império romano em 476, após a última investida do bárbaro germânico Odoecer, a expansão da Igreja se intensificou. Os espaços surgidos com a desintegração final de Roma podiam e foram ocupados. Seu poder atuava em todo o território do antigo império, sobrepondo-se ao descentralizado e claudicante poder secular, e assim permaneceria do século V ao X.
O grande Cisma, em 1.054, dividiu a Igreja ao meio. A metade romana permaneceu sob jurisdição do Bispo de Roma, o Papa (iniciais de Petri Apostoli Potestantem Accipiens, ou ‘aquele que recebe o poder do apóstolo Pedro’) e ficou conhecida como Igreja Católica Apostólica Romana, e a outra foi denominada Igreja Ortodoxa, chefiada pelo Patriarca de Constantinopla.
Nos séculos XII e XIII a doutrina cristã teve sua época áurea, com reunião de diversos concílios, fundação de universidades (de Paris, Oxford, Bologna e Salamanca) e das ordens religiosas (Franciscanos, Dominicanos, Mercedários e Cistercienses). Surge a Escolástica. A figura de São Tomás de Aquino se destaca. Os decretos de Gregório IX e ermitões de Santo Agostinho criam grande impacto. É o tempo das Cruzadas e dos Cavaleiros Hospitalários, além do surgimento dos Templários (1.118). Com o fim das Cruzadas se iniciam as Missões. A arte sacra medieval promove a construção das catedrais, e as peregrinações ao Santo Sepulcro e aos túmulos sagrados de Pedro e Paulo se efetivam. A Inquisição se estabelece, após a Cruzada contra os Cátaros, e as táticas de conversão se exacerbam. Tudo convergia para Roma, que dominava a vida e a morte de todos no auge da Idade Média.
A partir do século XV vários eventos iriam influenciar o rumo das políticas eclesiásticas. O advento da Imprensa por Johan Gutemberg em 1.455 e a conseqüente distribuição de Bíblias aos fiéis, além da queda de Constantinopla em 29 de Maio de 1.453 favoreceram a eclosão da Reforma Protestante, deflagradas por Martinho Lutero (1.520) e Calvino (1.534). A Igreja exigia, para a salvação dos fiéis, a obediência a diversos rituais, penitências, orações aos santos e eventualmente o pagamento de indulgências. A alteração destas normas estava na pauta dos reformistas. As teses de Lutero defendiam que todos poderiam ser salvos apenas pela fé, independentemente das ações mundanas. O próprio indivíduo seria capaz de se comunicar diretamente com Deus, sem a necessidade de mediação por santos ou sacerdotes eruditos. Henrique VIII, proclamando a separação da Igreja Anglicana (Ato de Supremacia, em 1.534), a ascensão do Iluminismo (na segunda metade do século XVIII) com destaque para as figuras de John Locke, David Hume, e Adam Smith, e o surgimento da razão esclarecida – que libertava o homem das explicações dogmáticas dos fenômenos naturais, agora em parte explicados pela ciência – incrementaram as preocupações da Igreja com o risco de uma dispersão em massa do “rebanho”. Neste mesmo século desponta em Londres o surgimento da Grande Loja Unida da Inglaterra, fortemente influenciada pela Sociedade Real criada em meados do século XVII.
Todos estes eventos, desde o Século I, explicam em parte o porquê de a Igreja estabelecer restrições às “boas novas”, às variações na forma de encarar certos fenômenos e à própria evolução das idéias. Os fiéis devem buscar conforto espiritual, de acordo com suas regras, apenas entre os sacerdotes católicos. Esta restrição não é exclusividade desta religião. Praticamente todas não estimulam o livre acesso às fontes diversas de ensinamentos que possam, eventualmente, fomentar a dúvida em relação aos seus dogmas e gerar fragilizações ou até mesmo a perda completa da fé.
Uma das razões para esta preocupação está no grande número de possibilidades religiosas que se oferecem. Atualmente existem mais de 33.000 vertentes ou igrejas consideradas cristãs. A Cristandade, que nos primórdios era apenas um bloco monolítico derivado do Judaísmo, hoje se pulveriza em sistemas eclesiásticos que guardam apenas a fé em Jesus como ponto em comum. A grande classificação, divulgada em 2.001, considera três vertentes principais: Catolicismo Romano, Catolicismo Ortodoxo e Protestantismo. Este último se subdivide nas Igrejas Históricas, Pentecostais, Neopentecostais, Para-Protestantes e Cristãs Primitivas.
Quando pensamos em Igreja Católica geralmente nos referimos à Igreja Católica Apostólica Romana. Esta denominação se constitui em uma agremiação de diversas instituições que possuem em comum a perfeita comunhão com o Papa, se submetendo às suas normas e regulamentações. A maior parte realiza o Rito Latino ou Romano nas celebrações. Dentre estas temos a Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Católica Maronita, a Igreja Católica Melquita, a Igreja Católica Siríaca, a Igreja Católica Antiga, a Igreja Católica Liberal, a Associação Patriótica Católica da China, e muitas outras. A Igreja Ortodoxa, chefiada pelo Patriarca, também apresenta subdivisões, destacando-se a Igreja Copta, a Grega e a Russa.
Existem muitas igrejas católicas que não aceitam a comunhão com Roma. No Brasil temos mais de 80 denominações independentes, como a conhecida Igreja Católica Apostólica Brasileira. O fiel que se intitula católico apostólico romano está afirmando à sociedade duas grandes verdades sobre sua personalidade religiosa: no sentido espiritual, está declarando que pactua com toda conteúdo e tradição ideológica, filosófica, cultural e dogmática que esta religião apregoa, e no campo da materialidade declara que respeita e cumpre os códigos de conduta e da prática litúrgica, sendo submisso de forma plena e irrestrita à jurisdição do Papa.
3 – IGREJA x MAÇONARIA
A história das relações entre a Igreja Católica e a Maçonaria, de acordo com a versão que considera nossa origem nas guildas medievais de construtores, apresenta uma fase inicial de grande harmonia entre os grupos. Tais corporações de ofício eram fortemente ligadas à cúria romana e às dioceses regionais. Esta possível simbiose serena e produtiva é um dos fatores que desqualifica, na opinião de muitos historiadores, a própria idéia de gênese da Sublime Ordem nos canteiros dos pedreiros medievais. De qualquer modo, a partir de 24 de Junho de 1.717, quando as Colunas de Hiram se sobressaíram e ganharam notoriedade pública, nossa relação formal com a cátedra de São Pedro se inicia.
Poucos temas, nestes dois mil anos de existência da Santa Sé, estimularam a elaboração de tantas peças formais por parte da alta cúpula como a famigerada “seita” maçônica. Até 1.980 existem registrados mais de 380 documentos tratando explicitamente deste assunto. Este número não engloba as inúmeras declarações das Conferências Episcopais e dos Bispos espalhados por todo o mundo, e outras manifestações de menor abrangência.
No ano de 1.738, apenas 21 anos após o surgimento da Grande Loja da Inglaterra, a pena papal já começava a atuar com vigor. Em 28 de Abril o Papa Clemente XII, eleito em 1.730 e completamente cego a partir de 1.732, emite um decreto para ser obedecido em todo universo católico. A bula matter da Igreja contra a Maçonaria, “In Eminenti Apostolatus Specula”, condenava de forma visceral nossa Ordem e já instituía a pena de excomunhão aos rebeldes. Fundamentando seu veredicto, Clemente afirmava que “não podia aceitar o recurso ao segredo e ao juramento existente nas Lojas Maçônicas, pois podiam sustentar doutrinas heréticas e planos contrários à paz pública e ao bem da Igreja, nem o relativismo filosófico-religioso, que parecia resultar do fato se reunir homens de diversas religiões”. E ainda havia “outros justos e razoáveis motivos por nós conhecidos”. Quais seriam estes motivos? Isso ele não respondeu, por estar muito doente desde o início do pontificado, apresentando estado terminal desde 1.737. Faleceu em 1.740, sem explicar melhor esta bula.
Coube ao senhor Próspero Lorenzo Lambertini, ou Bento XIV, que assumiu o trono em agosto de 1.740, esclarecer os pontos obscuros da bula de seu antecessor. As seis razões que incompatibilizavam os católicos com a doutrina maçônica foram por ele registradas na bula “Providas Romanorum Pontificum”, de 18 de Maio de 1.751: pessoas de diferentes credos podem participar da Fraternidade – o que pode corromper a “pureza” dos fiéis; a obrigação de manter segredo sobre tudo que se vivencia; o juramento realizado; o desrespeito às sanções civis e canônicas; o fato de tal “seita”ter sido proibida em muitos países, e a afirmação que os homens de bem devem se afastar destas sociedades. Na França, Hungria e Áustria a publicação da bula foi proibida. Na Suécia, em Malta e na Holanda os maçons passaram a correr risco de pena de morte, e na Polônia as lojas foram fechadas. Em Genebra a Maçonaria foi reprimida, e na Espanha um édito do Inquisidor-Geral proibiu seu funcionamento.
Em 13 de setembro de 1.821 mais uma menção formal à Maçonaria se concretizava. O Papa Pio VII editou a bula “Eclesian a Jesus Christo“ condenando a Carbonária, surgida em 1.797, que apresentava forte atuação política na Itália. Aproveitando a oportunidade, estendia seu veredicto a todas sociedades iniciáticas.
O Papa Leão XII afirmava na bula “Quo Graviola”, de 13 de Março de 1.825, que as entidades consideradas secretas conspiravam contra a Santa Igreja e também pela instabilidade social, indo contra os poderes seculares. Estas conjecturas foram ratificadas por Pio VIII em 24 de Maio de 1.829, na bula “Traditi Humilitatis”, por Gregório XVI, na encíclica “Mirari Vos”, de 15 de Agosto de 1.832, e também por Pio IX em 9 de Novembro de 1.846, na bula “Qui Pluribus”.
Em 1.864 Pio IX lançou a encíclica “Quanta Cura”. Em seu apêndice “Syllabus Errors” se determinava que todos os maçons fossem excluídos da Igreja Católica. Esta norma se insere no contexto da unificação italiana, francesa e alemã, que trariam pesados prejuízos à Santa Sé. Na Itália, por exemplo, a maior parte das terras papais foi confiscada pela coroa. O rei Carlos Alberto, de Piemonte-Sardenha, apoiou a idéia de Mazini e Garibaldi em relação à unificação de toda península, derrotada pela Áustria em 1.848. O rei seria Victor Emanuel II, seu filho, que apoiava a Maçonaria Carbonária. Tais fatos desembocariam na chamada “Questão Romana”, quando o imenso confisco agrário se efetivou, esvaziando os cofres do Vaticano.
No ano de 1.884, a mais terrível e específica peça contra nossa Ordem foi publicada. O Papa Leão XIII, na bula “Humanus Genus”, de 20 de Abril, afirma que Maçonaria e Igreja seriam como “dois reinos em guerra”. Diz que a finalidade daquela seria destruir todo sistema religioso e político do mundo substituindo-a por uma “nova ordem”. Critica o que chama de naturalismo, que considera o conhecimento da natureza e a prática da razão esclarecida como os elementos essenciais que guiam o mundo. Lembremos que desde Kant a ética baseada na divindade estava em cheque, e o Racionalismo cada vez mais questionava o papel da religiosidade nas questões morais e sociais. Era preciso uma resposta rápida a estas novas idéias, que ameaçavam a hegemonia dos céus sobre a Terra.
Bento XV, eleito Papa em 1.914, promulgou o ‘Codex Juris Canonici’ em 27 de Maio de 1.917. O chamado primeiro Código Canônico – a compilação de toda legislação específica da Igreja Católica Romana existente até então – tornou todas as outras publicações ‘jus vetus’. Até então o corpo de leis do Vaticano era diversificado, oriundo de várias fontes, e de difícil consulta. Organizar todo este material era urgente e necessário frente aos novos tempos. A pressão por esta sistematização vinha desde o Concílio Vaticano I (1.869 a 1.870). Neste documento foram enumerados 2.414 cânones. Vários se referem à Maçonaria e aos maçons. No cânone 684 é dito que os fiéis devem fugir das associações secretas, sejam quais forem, pois estas escapam à legítima e sagrada vigilância da Santa Igreja. No cânone 693 os maçons são proibidos de participar de qualquer irmandade religiosa, e no 1.065 se desaconselham às jovens fiéis que pensem em se casar com membros desta entidade. Nos cânones 2.331, 2.333, 2.334 e 2.335 o Papa ordena que todos que entram nas “seitas maçônicas” sejam sumariamente excomungados. O fato de se filiarem já seria razão inquestionável para o apartamento ou separação do homem de sua Igreja Mãe. Neste status, devem ser afastados dos sacramentos (confissão, comunhão, matrimônio, unção dos enfermos, etc.), não podendo assistir às santas missas, às procissões e cerimônias de bênçãos, nem aos atos eclesiásticos em geral.
Com o passar do tempo, e com a iniciação em massa de muitos católicos – incluindo membros da hierarquia da Igreja – surgiram dúvidas quanto à aplicabilidade da pena de excomunhão prevista no Código Canônico. Muitos bispos encaminharam pedidos de orientação à Cúria, sobre como tratar esta questão. Um comunicado formal da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, emitido em 20 de Abril de 1.949, esclarecia a situação. Motivado por um questionamento enviado pelo bispo de Trento, o a posição oficial em relação à Maçonaria se confirmava: persista a intolerância plena e irrestrita aos que a ela se filiarem.
No início dos anos 1.970 as dúvidas ressurgiram. O Vaticano resolveu consultar as Conferências Episcopais perguntando sobre suas relações com as comunidades maçônicas. Em decorrência disso, surgiu a primeira declaração que, aparentemente, possibilitava uma conciliação. O cardeal Franjo Seper, então Prefeito da Sagrada Congregação para Doutrina da Fé, em 19 de Julho de 1.974 afirmava que apenas as sociedades que realmente “maquinavam” contra o Clero estariam banidas da Igreja. A dificuldade seria classificar as Lojas nas categorias propostas.
Mais tarde, em 12 de Maio de 1.980 , uma declaração dos bispos da Alemanha defende a total incompatibilidade entre Igreja e Ordem. Afirmava que ‘a Maçonaria admite um conhecimento objetivo de Deus (o chamado teísmo) e o conceito de Grande Arquiteto é algo indefinido, neutro e susceptível de interpretações diversas’. A Sagrada Congregação , em 17 de Fevereiro de 1.981 , sacramentou esta declaração com a confirmação de que o vigor das sanções permanece o mesmo.
Com a promulgação do novo Código Canônico em 25 de Janeiro de 1.983, por Sua Santidade o Papa João Paulo II, tudo parecia diferente. A denominação expressa do nome da Ordem que surgia no cânone 2.335 do antigo texto de 1.917 havia sido suprimida na nova versão. O cânone 1.374, que entrou em vigor em 27 de Novembro de 1.983, se refere às ‘associações que maquinam contra a Igreja’, não trazendo o vocábulo ‘Maçonaria’, anteriormente existente. Parecia o fim da terrível condenação existente há 250 anos. Como a interpretação deste cânone trazia dúvidas, havia a necessidade de melhorar o entendimento da norma.
Uma declaração de autoria do Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Alois Ratzinger, com anuência plena do Papa, foi publicada no órgão oficial de divulgação, o L’Observatore Romano. Com título ‘Declaração sobre as Associações Maçônicas’. Reafirma que permanece inalterado o parecer negativo da Igreja em relação às associações maçônicas. Os fiéis ainda estão proibidos de se filiarem à Ordem. Aqueles que insistirem nesta situação se encontram em estado de pecado grave, sem autorização para se aproximar da sagrada comunhão.
A posição da Santa Sé não variou desde a fundamental bula de 1.738. Como o Papa atual, eleito em 19 de Abril de 2.005, foi o autor do último comunicado oficial sobre o assunto, o status quo tende a ser mantido, a curto e médio prazo.
Em relação aos documentos formais emanados pela Maçonaria, podemos citar as inúmeras declarações da Grande Loja Unida da Inglaterra, emitidas desde o chamado retrocesso religioso de 1.815, até as manifestações de Setembro de 1.962, de Dezembro de 1.981 e de Junho de 1.985. Em todas se afirma que a Sublime Ordem “favorece as religiões”, dentre outras considerações, sempre visando aproximar as duas instituições.
4 – A “QUESTÃO RELIGIOSA”
Na Constituição de 1.824 o imperador se proclamava líder absoluto da Igreja no Brasil. O poder do Bispo de Roma estava subjugado à vontade real. Os atos papais, como bulas, encíclicas, cartas, etc., só tinham validade “jurídica” em nosso território se aprovados pelo Estado, de acordo com o instituto expresso na carta magna chamado Beneplácito. E através do Padroado apenas o imperador podia nomear os sacerdotes e criar igrejas. Esta situação desfavorável à Santa Sé levaria o clero a lutar pelo fim do regime, apoiando os ideais republicanos que se fortaleciam rapidamente .
Por questões pragmáticas as relações entre a coroa brasileira e a Cúria Romana se mantiveram em níveis de tolerabilidade e convivência pacífica, por aproximadamente 40 anos. A ninguém interessava a criação de conflitos. Toda normatização advinda de Roma era protocolarmente aceita por estas terras.
O primeiro movimento pela retomada do poder eclesiástico ocorreu em 1.848. Pio IX assumiu a cátedra de Pedro e criticou ferozmente as chamadas liberalidades modernas, rogando pela supremacia dos “céus” sobre o poder secular.
No ano de 1.864 as investidas foram mais agudas. Como vimos anteriormente, o Papa Pio IX lança a encíclica “Quanta Cura” com seu famoso apêndice, o “Syllabus Errors”, que seria conhecida apenas por “Bula Syllabus” . Suas oitenta proposições condenaram explicitamente, entre outras coisas, o Protestantismo, a Maçonaria, a liberdade de consciência, a liberdade de culto, a separação entre a igreja e o estado, a educação leiga e, em geral, o progresso e a civilização moderna. Determinava também a intervenção em ordens leigas, se não seguissem expressamente as orientações papais, e proibia a realização de atos litúrgicos da Igreja em celebrações maçônicas. Os clérigos estavam impedidos de participar da Maçonaria. Este fato, no Brasil, era freqüente. Como tal norma não recebeu o placet de aprovação por Dom Pedro II, não possuía validade “jurídica” no país.
Apesar disso, tudo corria na mais harmônica normalidade nas terras de Cabral. Mas, em 3 de Março de 1.872, o primeiro sinal de crise entre Igreja e Maçonaria eclodiu. Nesta data o Padre Almeida Marins saudou a proposta da Lei do Ventre Livre feita pelo Grão Mestre do Grande Oriente do Brasil e Presidente do Conselho de Ministros, Visconde do Rio Branco. O discurso foi na Loja Grande Oriente, e o Padre usou linguagem maçônica em seu pronunciamento. O Bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria Lacerda, ao saber do fato, resolveu aplicar ipsis litteris o que determinava a Bula Syllabus. Ordenou que o Padre Marins abandonasse a Maçonaria e o suspendeu de todo serviço eclesiástico. O que seria um mero exercício canônico da autoridade administrativa eclesiástica tornar-se-ia uma grave questão nacional. Os maçons iniciaram uma violenta campanha contra os bispos, e a coroa ficou incomodada com a arrogância do cardeal em aplicar uma sanção sem respaldo do beneplácito.
Em meio a toda essa tensão, o Bispo de Olinda, Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, um jovem e rigoroso capucchino, também em obediência à bula Syllabus, mandou fechar todas as Irmandades e Ordens Terceiras que não quiseram excluir seus associados maçons. Tal atitude foi seguida pelo bispo de Belém do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa. Aproveitaram para emanar suas opiniões sobre o poder estatal sobre a Santa Sé. Dom Vital, grande expoente da intelectualidade religiosa da época, declarou que o beneplácito imperial não passava de uma aberração, pois o recurso contra as decisões dos bispos configurava-se absurdo e herético. E Dom Macedo Costa foi mais rigoroso, dizendo que reconhecer no poder civil autoridade para dirigir as funções religiosas equivalia a uma apostasia.
Nesta mesma época Dom Vital impediu um padre, Monsenhor Pinto Campos, de realizar um casamento cujo noivo era maçom. No Pará dois outros padres também foram interditados. Entre os padres, alguns relutavam em seguir as ordens de seus superiores, como o popular padre Joaquim Francisco de Faria, de Olinda, cuja suspensão gerou cenas de vandalismo praticado nas igrejas por seus partidários. As entidades punidas, que estavam acostumadas à autonomia, desobedeceram abertamente às determinações de exclusão dos maçons. E após Dom Vital ter lançado o interdito canônico sobre elas, tais instituições apelaram ao Imperador, alegando abuso de poder por parte do bispo. O Imperador acolheu o recurso das irmandades.
Surgiu, então, a reação radical do governo, direcionada a estes dois Bispos. Neste momento a crise chegava ao seu ápice. Em 1874, o primeiro ministro Visconde do rio Branco pediu suas prisões imediatas e posterior condenações a quatro anos de reclusão com trabalhos forçados. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça expediu mandado de prisão contra os dois bispos, dando-os como incursos no artigo 96 do Código Criminal. D. Vital e, pouco depois, D. Macedo receberam aviso oficial do ministro do Império, João Alfredo, como infratores das leis, pois o apelo das irmandades fundamentava-se no Decreto nº 1.911, de 28 de março de 1857. Dom Vital foi preso em janeiro e Dom Macedo em abril de 1874. Depois as penas foram amenizadas, para prisão simples. Em 1875, o duque de Caxias, que então era o primeiro ministro, concedeu ampla anistia, através do Decreto 5.993, de 17 de setembro, encerrando assim o conflito que se iniciara em 1872.
O Império se enfraqueceu. A prisão de dois baluartes da Igreja, independentemente do mérito jurídico, gerou um significativo afastamento entre o clero e o poder imperial. Na população comum a indignação foi geral, pois a maioria era muito devota e fiel. A separação definitiva entre Igreja e Estado estava iminente.
5 – O VIGÁRIO BARTOLOMEU
Dentre as personalidades que protagonizaram este interessante capítulo de nossa história, que ao lado da “Questão Militar” e da “Questão Social ou Abolicionista” foram as grandes causas da derrocada do governo imperial, destaca-se a figura do Vigário Bartolomeu da Rocha Fagundes.
Nascido em 8 de setembro de 1.815 em Vila-Flor, vilarejo do município de Canguaretama no Rio Grande do Norte, foi criado em Natal, pois sua família mudou-se muito cedo para a capital, devido aos negócios do pai. Este senhor, também chamado Bartolomeu, era Maçom regular. Membro da Loja “Sigilo Natalense”, tinha o nome simbólico de Talleyrand, e incentivava o filho a ler tudo que estava ao seu alcance. Sua mãe, Florência Gomes de Jesus Fagundes, o educava com grande rigor e disciplina. Estes fatores explicam o caráter íntegro, guerreiro e de bons costumes que viria a manifestar no futuro.
Após terminar o curso primário, matriculou-se no Seminário de Olinda, que era o grande centro de formação cultural e intelectual da época, naquela região. A ênfase nos ensinamentos com base humanística, ministrados nesta instituição, iriam influenciar suas idéias de maneira marcante ao longo de toda sua vida. Aos 24 anos de idade, em 1.839, recebeu o sacramento da Ordenação, pelas mãos do Bispo de Olinda, Dom João da Purificação Marques Perdigão. A Diocese de Olinda englobava a província do Rio Grande do Norte neste período. Sagrou-se Vigário da Paróquia de Vila-Flor, chamada Nossa Senhora do Desterro , que depois passou a ser denominada Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Sua primeira missa foi celebrada em 06 de Janeiro, dia de Reis.
Era extremamente bem conceituado na comunidade, pelo seu espírito incansável de defesa dos menos favorecidos, além de sua capacidade ímpar de liderança na condução de inúmeras iniciativas filantrópicas. Ficou conhecido como um legítimo pastor de almas, na acepção mais sagrada e virtuosa do termo. Tinha marcante influência social e freqüentava todos os lares da cidade, orientando os fiéis nas questões mundanas e espirituais. Também atuava como professor e mestre, alfabetizando os mais humildes e trazendo cultura e informações em suas preleções. Como era um grande orador, agregava multidões. Suas falas se tornaram famosas e uma referência na sociedade local. Exercia atividade político-partidária, tendo ingressado no Partido Liberal, onde foi líder destacado.
Como conseqüência natural deste perfil, acabou se iniciando nos mistérios da Arte Real na Loja Simbólica “Conciliação”, da cidade de Recife. Em seguida se transferiu para a Loja Simbólica “Sigilo Natalense”, a mesma de seu pai, no oriente de Natal. Adotou o significativo apelido de Guilherme Tell. Rapidamente galgou os degraus da escada de Jacó, sendo nomeado 1º Vigilante em pouco tempo.
Em 1.867, com a fundação da Loja Simbólica “21 de Março”, foi eleito seu primeiro Venerável-Mestre. Foi seguidamente reconduzido ao cargo, por dez anos. Infelizmente passou ao Oriente Eterno em 2 de Novembro de 1.877, com apenas 62 anos de idade, em meio a uma profícua e reta carreira entre Colunas.
Os caminhos do obreiro e do religioso estavam em total harmonia, até se cruzarem com a bruta realidade das relações entre Estado e Igreja, no auge da “Questão Religiosa”. O Vigário Bartolomeu foi convocado à Olinda, com urgência. Viajando 300 km a cavalo, foi recebido pelo Bispo Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira que, educadamente, determinou que ele abandonasse imediatamente a Maçonaria. A sanção prevista na encíclica do Papa Pio IX, Quanta Pura, Syllabus Errors, seria aplicada de forma impiedosa no caso de desobediência. Como citado anteriormente, esta bula determinava, dentre outras medidas, que era proibida a filiação dos membros da hierarquia do clero à Sublime Ordem. Nosso Irmão, em presença de seu superior, que detinha imenso poder e prestígio, manifestou de forma inequívoca seu descontentamento com tal medida, e já adianta que dificilmente poderia cumprir este mandamento, uma vez que se baseava exclusivamente na materialidade das leis canônicas. Defendeu a compatibilidade entre as condutas cristã e maçônica, apesar das normas existentes. Em seguida, foi-se embora da mesma forma que tinha chegado.
Regressando à Natal, foi recebido como verdadeiro herói pelos Irmãos de sua Loja. Imediatamente presidiu uma memorável Sessão, fato que chegou ao conhecimento de Dom Vital, que ficou enfurecido. Interpretando esta atitude como uma terrível afronta às suas ordens, o Bispo ameaçava caçar os direitos eclesiásticos do “rebelde”, remetendo um ofício no qual manifestava o ultimato final. Neste documento exigia que, além de abandonar as Colunas de Salomão formalmente, deveria o obreiro divulgar este fato em toda imprensa local, através de nota oficial nos jornais.
A resposta do Vigário Bartolomeu, com grande veemência e firmeza de opinião, veio na forma da carta abaixo transcrita, encaminhada ao seu superior:
“Exmo e Reverendíssimo Sr, Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira.
Assunto: respondendo ao ofício que me dirigiu, determinando que eu declarasse aos jornais que não pertenço mais à Maçonaria.
Permita V Exa Revera que, como todo respeito que devo ao meu Prelado, lhe fale que a dignidade que todo homem de bem deve a todo transe procurar manter e o juramento que espontaneamente prestei quando fiu admitido àquela associação, me impedem de fazer a declaração ordenada por V Exa Reva. Uma semelhante declaração importa numa abjuração ou perjúrio, e não há que ser no último quartel de minha vida que eu hei de cometer um perjúrio, muito principalmente contra uma associação cujos fins humanitários são de sobejo conhecimento.Quando conferencei com V Exa Reva, que tenho 34 anos de vida pública, a qual considerava sem manchas, graças à Divina Misericórdia, não poderia, sem quebra de minha dignidade pessoal e sem lançar uma nódoa em minha reputação de homem de bem, abjurar da Maçonaria. Portanto , pretendo continuar em meu propósito, sem querer desobedecer às ordens de meu Prelado, a quem atribuo todo respeito e acatamento.
In Christus Jesus, Pe Bartolomeu Fagundes”
Nexte texto singelo se resume todo amor e respeito que um legítimo obreiro pode manifestar por nossa Arte Real. Não deixa dúvidas: jamais nosso poderoso Irmão iria virar as costas à Loja. Estava disposto a pagar o preço por sua honrada postura. Dom Vital, então, cumpriu as ameaças. O Vigário Bartolomeu teve suas ordens e obrigações suspensas, apenas por ser ao mesmo tempo Padre e Maçom, uma vez que se recusou terminantemente a abandonar as Colunas de Hiram.
Mesmo afastado das funções eclesiásticas, nosso Irmão manteve sua atuação social e filantrópica na comunidade. As pessoas continuavam respeitando e dignificando sua conduta reta e iluminada, mesmo sabendo que não se alinhava, administrativamente, à Santa Sé. Jamais foi considerado um pecador ou herege, como poderia se esperar em um caso desta natureza. Sua voz e sua alma continuaram brilhando no árido agreste.
6 – CONCLUSÃO
Em termos essenciais, todo ser livre de pensamento, abençoado pela luz justa e perfeita da sabedoria, defende os mesmos princípios. Estes advém das culturas primordiais, dos tempos ancestrais, e da religião verdadeiramente universal, sendo independentes da vontade manifestada de um ou outro soberano – seja do poder secular ou religioso.
A origem conceitual de todas religiões e das organizações fraternas com base iniciática é rigorosamente a mesma. Todas são entidades que elaboram, aperfeiçoam, difundem e defendem as idéias criadas pelos verdadeiros pais da filosofia e religiosidade, que atuaram em um passado remoto, em eras perdidas no tempo. Estes sábios-profetas traçaram, com esquadro e compasso, a retidão de conduta, as normas não-escritas e a obrigatoriedade de respeito mútuo que todos devem manifestar. Isto ocorreu há muitos milênios – talvez milhões de anos – atrás. A partir destes conceitos seminais as estruturas ordenadas e gerenciais que administram a fé foram se cristalizando.Quando pensamos nos atos praticados a partir do século I, ou nos anos de 1.717 e 1.738, estamos nos referindo à época de surgimento das ordens , das estruturas burocráticas e das institucionalizações dos protagonistas de nossa história.
A partir deste raciocínio entendemos que para saber se estamos contrariando uma regra formal de uma entidade, basta consultar os regulamentos escritos que estejam em vigência. Mas, se pretendemos saber se contrariamos uma norma essencial, temos que buscar o sentido dos verdadeiros conceitos intangíveis para chegar a uma conclusão. O Padre Bartolomeu descumpriu uma determinação da Igreja porque tinha certeza que agia de acordo com a verdadeira filosofia católica, emanada a partir dos fundadores da religião, não pelos desejos dos eventuais “gerentes”da fé.
Fica claro, analisando a história de vida de nosso padre-Irmão, que é perfeitamente possível a conciliação entre os papéis de religioso, seja qual for a vertente, e de obreiro da Arte Real. O fato de existir restrições “legais”, em determinados casos, não deve preocupar aqueles que tem a alma serena. Estas imposições, como vimos, se referem exclusivamente ao campo da materialidade dos regulamentos. Tais prerrogativas nada gerenciam em relação aos ideais advindos do conhecimento essencial, da linguagem do sagrado que se contrapõe ao profano, da luz que esfacela a ignorância.
Para honrar sua promessa formal de nunca trair a Maçonaria, respeitando piamente os princípios éticos e morais mais justos, nosso bravo pastor de almas sacrificou sua carreira e até mesmo uma vida inteira em nome de uma rara dignidade que só os verdadeiros iluminados podem demonstrar.
A saga do Vigário Bartolomeu deve ser respeitada, relembrada, e detalhamente estudada por todos Irmãos que realmente desejam conhecer a história de nossa Fraternidade. Com o passar do tempo, infelizmente, a poeira e o limo das sucessivas gerações insistem em relegar esta e outras maravilhosas histórias de nossa Sagrada Ordem ao nivel mais fundo do poço da indiferença e esquecimento. Esta tendência deve ser revertida, se desejamos preservar nossos princípios mais justos até o final dos tempos, em prol do aperfeiçoamento da sociedade.
Lutemos para que o sacrifício de nosso respeitável Irmão não tenha sido em vão, e que seu exemplo possa ser conhecido por todas as futuras gerações.
Carlos Alberto Carvalho Pires, M:.M :.
A:.R:.L:.S:. Acácia de Jaú – 308 Or:. de Jaú – SP, Brasil
REFERÊNCIAS:
1- Baigent, M & Leigh, R , “O Templo e a Loja”, Editora Madras, 2.006;
2- Benigno, I. “O Vigário Bartolomeu”, em Cadernos de Pesquisas Maçônicas 10, Editora Maçônica “A Trolha”, 1ª Edição, 1.995.
3- Benimelli, J. A. F., Caprille, G. “Maçonaria e Igreja Católica: Ontem, Hoje e Amanhã”, Editora Paulus , 4ª Edição, 1.981;
4- Campbell, J. “Máscaras de Deus – Mitologias Primitivas”, 7ª Edição, Editora Palas Athena, 2005;
5- Campbell, J. “O Poder do Mito”, 1ª Edição, Editora Palas Athena, 1990;
6- Código de Direito Canônico, Editora Loyola, 1ª Edição, 1.997;
7- Kloppenburg, D. B. “Igreja e Maçonaria: Conciliação Possível?”, editora Vozes, 5ª Edição , 2.000;
8- MacNulty W. K, “Maçonaria: uma Jornada por Meio do Ritual e Simbolismo”, Madras Editora, São Paulo, 2.006;
9- Robinson J.J., “Os Segredos Perdidos da Maçonaria”, Madras Editora, São Paulo , 2.005 ;