sábado, 24 de dezembro de 2016



Godofredo de Bouillón, Duque de Lorena


Senhor das Ardenas, Defensor do Santo Sepulcro.

Por: Eduardo R. Callaey
Tradução: José Roberto Cardoso (Pedreiro de Cantaria)

Aproximando o herói da Cavalaria Cristã. O papel de Cluny[1] na estratégia da reconquista de Jerusalém.

1. A história que supera o mito.

Quando no final do século XI o papa Urbano II convocou os barões cristão para que liberarem os lugares Santos, o mundo europeu ingressou em um novo ciclo histórico marcado pelas “Cruzadas”. A primeira peregrinação armada a Jerusalém, no período medieval constituiu um dos fatos mais importantes daquela época, visto que, segundo indica uma série de indícios que analisaremos, a ideia de recuperar a Terra Santa estava na cabeça dos Cluniacenses muito tempo antes. Só havia que esperar que as condições amadurecessem.

A decisão de convocar a Cruzada foi elaborada por um grupo de prelados e senhores durante o ano de 1095. Entre os atores daqueles acontecimentos se destacam claramente três pessoas: o abade Hugo de Cluny, o papa Urbano II e um seleto grupo de nobres entre os que ressalta a figura de Godofredo de Bouillón, comandante do exército lorenês e um dos chefes da expedição.

Os quatro exércitos principais da cruzada partiram entre 1096 e 1087. Godofredo abandonou seu castelo de Bouillón em 15 de agosto de 1096. Bhermundo de Tarento e os normandos da Sicília partiram do porto de Brindisi em outubro. Raimundo de Saint Gilles, a mando dos provençais partiu com o maior dos quatro exércitos sobre os quais coincidem as informações dos historiadores. O quarto exército, comandado pelo duque Roberto da Normandia, Estevam de Blois e Roberto de Flandes embarcou em Brindisi em abril de 1097.

Em Júlio de 1099, depois de enormes esforços e sofrimentos, Jerusalém foi conquistada. Godofredo foi eleito, então, em circunstâncias pouco claras, governador do Reino Cristão de Jerusalém.

Chama a atenção que foi o único dos grandes barões que empenhou tudo aquilo que tinha para armar sua expedição. Não deixou nada sem vender, ou alienar. Com seus exércitos moveu grandes contingentes de monges cluniacenses e, com eles, um verdadeiro exército paralelo de construtores. De outra maneira não se pode explicar a imediata reconstrução simultânea dos santuários mais importantes da Terra Santa e a edificação de numerosas igrejas e fortificações. Este desenvolvimento logístico que soube prever é por demais interessante e faz pensar que tinha uma ideia mais clara que os demais sobre sua missão e seu destino. Mas, não é essa a única questão sobre sua vida enigmática, contraditória e emocionante.

Godofredo foi o protótipo do cavaleiro cruzado. Descendia dos imperadores carolíngeos por linha materna e paterna e alguns historiadores afirma que por suas veias também corria o sangue dos reis merovíngios. A raiz destas teorias se atribui a fundação de uma Ordem sobre o Monte Sião, uma suposta organização que tinha como objetivo a restauração da dinastia merovíngia. Alguns estudiosos afirmam que Godofredo era legítimo descendente dos últimos reis daquela dinastia. Segundo estas suposições, para poder cumprir com esse objetivo, os conspiradores haviam criado a Ordem dos Cavaleiros Templários que tinha um duplo propósito: recuperar um tesouro oculto nos túneis subterrâneos sob o Templo de Salomão e constituir-se em exército da dinastia restaurada.

Sua figura tem estado no centro destas especulações vinculadas com supostas Ordens e Confrarias. Aparecidas nas últimas décadas, carecem por agora de rigor histórico e só contribuem para agregar confusão sobre um tema por si só confuso. Tal é o caso do “Priorado de Sião”, cujos membros asseguram a existência de uma linhagem de Jesus de Nazareth estendida pela Europa e da história complementar das famílias “Rex Deus”, supostos descendentes de judeus emigrados na Europa no tempo de Jesus.

Muito antes que se publicassem estas revelações modernas, Godofredo foi resgatado pelo maçom escocês Michel de Ramsay ao remontar aos cruzados a origem da francomaçonaria cristã, teoria na qual se sustenta grande parte da origem histórica de importantes ritos maçônicos, entre eles o Escocês Antigo e Aceito. Quando Ramsay pronunciou seu “discurso” em 1737, ante a elite da francomaçonaria francesa, fixou suas origens em “nossos ancestrais, os Cruzados”. Esse seria o modelo sobre o qual se construiu a restauração templária do século XVIII.

Desde aquele famoso discurso até esta data, esta relação tem sido defendida e rechaçada com igual afinco dentro e fora da maçonaria e permanece no campo das questões não resolvidas.

Todavia, como se sucedeu, os fatos que envolveram a Godofredo de Bouillón resultaram mais assombrosos que as fantasia mais elaboradas. Sua vida durou apenas quarenta danos, mas foram anos frenéticos. Muitos dos fatos ocorridos em tão breve lapso de tempo indicam o momento crucial que vivia o dividido império franco: a cristandade se dividiu em dois mundos: Roma e Bizâncio. A Igreja Romana empreendeu sua primeira reforma e seus príncipes se declararam infalíveis e absolutos. Guilherme da Normandia conquistou a Inglaterra. Seus descendentes normandos navegaram o Mediterrâneo a partir de Tarento até a Antióquia. O império, por sua vez, se pretendeu soberano pela graça divina e repudiou os pontífices. Foram construídas milhares de magníficas igrejas e os infiéis foram expulsos do Santo Sepulcro.

Godofredo foi um ativo protagonista de muitos destes fatos, mas apenas conhecemos o papel que desempenhou como ator da história e muito pouco de sua vida por trás das cenas.

Teve uma importante participação na Guerra das Investiduras, combatendo o papado como chefe dos exércitos do imperador Enrique IV. Anos mais tarde não hesitou em responder ao chamado do papa Urbano II e marchou à Palestina sob o comando do poderoso exército lorenês. Junto ao conde Raimundo de Tolosa sitiou Jerusalém no ano de 1.099 e a conquistou, convertendo-se em seu primeiro chefe político com o título de “Defensor do Santo Sepulcro”. Seu irmão Balduino I, o sucedeu no trono de Jerusalém e seu sobrinho Balduino do Burgo, que reinou como Balduíno II, foi um entusiasta impulsionador da Ordem dos Cavaleiros Templários. Godofredo foi um notório protetor da ordem cluniacense, o qual explica o número de beneditinos que o acompanhara na cruzada.

Há em sua história alguns sinais, muito poucos, que deixa aberta a porta a um profundo mistério; um mistério que está na base do mito da Europa e que ainda preocupa Roma: a suspeita de outra Igreja, de outro cristianismo, ou melhor dizendo, de outra espiritualidade. Por afinidade, diríamos por “vibração”, se nos permite o excesso, sua figura assimilou a estranha sequência que envolve os monges de Cluny, do Cister e do Templo com seus irmãos laicos, os maçons. Todas estas instituições formaram a coluna vertebral de um cristianismo paralelo, cujo poder cresceu até o ponto de condicionar as políticas dos papas.

2. O SENHOR DAS ARDENHAS

A figura de Godofredo brilhou entre as antigas dinastias herdeiras de Carlos Magno. Eram os tempos sulcados pelas guerras entre “senhores duques” que pugnavam pelo mais precioso bem a que podia aspirar um homem de berço: as terras.

O ano de 1.069 trouxe consigo uma grande desgraça para a Lotaríngia, antigo nome com que se designava a Lorena. Seu senhor, o duque Gothelón – ao qual chamavam de “duque do castelo de Bouillon” porque era senhor daqueles alódios[2] [1], declarou guerra à Oto de Champanha e reunindo um grande exército marchou para pôr fim às velhas disputas com o barão franco. Ambos príncipes representavam a mais pura nobreza carolíngia. Gothelón, senhor de um vasto território entre a França e o Reno – que abarcava os domínios de Brabante, Hainaut, Limbourg, Namurois, Luxemburgo e uma parte de Flandes – descendia de Carlos o Grande e era irmão do Papa Estevam II. Por sua parte Oteon, seu adversário, era um fiel expoente da poderosa nobreza franca.

Dispostos em ordem de batalha chocaram suas armas com grande violência. Oton – a quem sua juventude outorgava considerável vantagem sobre o duque – matou naquele dia o duque lotaríngio, assumindo o ducado com profunda pena.

Gothelón – que passaria a história como “Godofredo o Barbudo” – tinha um único filho varão do mesmo nome, a quem apelidavam de “o corcunda”. O jovem herdou os bens de seu pai: o ducado da baixa Lorena, numerosos feudos estendidos em Verdun e outros senhorios como Stenay e Mosay, mas nada tão impressionante como o mítico castelo de Bouillón, encravado no sopé das Ardenhas, sobre uma altura que domina sobre o curso do Semois e que por então se erguia sobre numerosos povos e aldeias cujos habitantes davam graças a Deus por aquela fortaleza temida aos olhos das ambições vizinhas.

Godofredo, o corcunda, tinha duas irmãs: Regelinda, condessa de Namur por estar casada com o conde Alberto e Ida, casada com Eustáquio II, conde de Bolonha. Ao morrer seu irmão, em 1076, Ida reclamou os privilégios do ducado da Baixa Lorena para seu segundo filho, também chamado Godofredo.

Ida de Lorena e Eustáquio de Bolonha tinham outros dois filhos; Eustáquio, herdeiro do grande condado de seu pai e Balduino, que foi tonsurado[3] desde a tenra idade como ocorria com aqueles barões que não herdariam terras. Pois então nada fazia prever que aqueles três irmãos marchariam um dia até Jerusalém e que dois deles se converteriam em reis da Cidade Santa.

Godofredo, que havia nascido em Baysy no ano de 1.060, tinha 17 anos quando herdou os domínios de seu tio. Sem dúvida, de imediato compreendeu as graves dificuldades que lhe implicaria mantê-los. O imperador Alemão Enrique IV não estava disposto a ceder ao sobrinho do “corcunda” o feudo imperial da Baixa Lorena e o confiscou de imediato anexando-o aos domínios da coroa, ao mesmo tempo em que confirmava a Godofredo o condado de Amberes ao norte e o senhorio de Bouillón, nas Ardenhas.

Porém, os problemas do novo conde de Bouillón não se esgotavam com o imperador. A princesa Matilde, viúva de Godofredo, o corcunda, não estava disposta a resignar seus direitos sobre Mosay, Stenay e Verdun. Dois bispos complicavam ainda mais o panorama: Teodoro, o bispo de Verdun reclamava uma dezena de castelos em sua diocese, embora Enrique, o bispo de Leija = que havia sido seu tutor – era contra, apoiando o abade de Saint Huber, a que acusava Godofredo de ter tomado por assalto o castelo de Bouillón a mando de um grupo de cavaleiros, propiciando-lhe um brutal castigo aos seus castelões. Por esta ação precoce e impiedosa, mas reivindicatório de seus direitos, seria conhecido no futuro como o “conde de Bouillón”, mais que por seus títulos sobre o ducado da baixa Lorena.

Estas convulsões nos senhorios do jovem Godofredo não eram mais que uma gota em meio da imensa tormenta que se abatia sobre o império alemão.

A reforma cluniacense, com a qual a Igreja tratava de afastar-se de uma decadência lacerante, ganhava defensores na Alemanha e os próprios papas entendiam que deviam colocar-se no comando do movimento reformista. Leão IX havia dado um passo importante estabelecendo a instituição do Colégio Cardinalício como autoridade eclesiástica universal, com o qual tentava evitar a contínua intervenção dos imperadores do Sacro Império na eleição dos papas. Era só o começo de um duro conflito que, poucos anos mais tarde, estouraria sob o papado de Gregório VII disposto a estabelecer sua autoridade absoluta e acabar com o problema das investiduras de feudos eclesiásticos que o imperador concedia aos laicos. O problema fundamental se suscitava pelo direito dos soberanos a nomear os bispos em seus respectivos territórios. Isto acarretava uma grave corrupção política, incentivada a simonía[4] e impedia a Roma um verdadeiro controle sobre as dioceses.

Em março de 1.075, Gregório promulgou a “Dictatus Papae” na qual reafirmava seu poder absoluto sobre a cristandade. Entre muitas outras disposições estabelecia: “que só o pontífice romano pode ser chamado em justiça universal; que só ele pode depor os bispos ou reconduzi-los; que só ele pode utilizar as insígnias imperiais; que todos os príncipes devem beijar apenas os pés dos papas; que só seu nome deveria ser pronunciado nas igrejas; que é o único nome no mundo; que a ele é lícito depor imperadores; que a ele é lícito, de sede a sede, por conta da necessidade, trocar os bispos; que qualquer igreja onde ele queira, pode ordenar clérigos; que nenhum sínodo pode chamar-se geral sem seu mandato; que nenhum capítulo ou libro podem ser tidos como canônicos sem sua autoridade; que suas sentenças não podem ser retratadas por nada, e só ele pode retratá-las; que o mesmo por nada pode ser julgado; que a Igreja Romana nunca erra e no futuro não errará...” [2]

O imperador Enrique IV havia reagido com dureza contra esta decisão enfrentando a Gregório, embora este estivesse disposto a impedir que o imperador continuasse com sua política de disposição de investiduras eclesiásticas. Na realidade, Henrique reclamava a ampliação do mesmo direito de seus antecessores; em todo caso, o que se tinha modificado era a vontade do pontífice romano quanto a elevar seu poder a termos absolutos.

Aquele ano de 1.076, embora o neto do legendário Gothelón recuperasse o castelo inexpugnável de seu avô, o papa Gregório VII fulminava o imperador alemão com estas palavras:

“...em nome de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, por seu poder e autoridade, privo ao rei Enrique, filho do imperador Enrique, que se tem revelado contra tua Igreja com audácia, nunca ouvida, do governo de todo o reino da Alemanha e Itália, e livro a todos os cristãos do juramento de fidelidade que tenham dado ou podem lhe dar e proíbo a todos que lhe sirvam como rei. [3]

No entanto, o imperador respondeu:

..Tu pois, que tens sido golpeado pelo anátema e condenado pelo juízo de todos nossos bispos e por nós próprios, desça e abandona a Sede Apostólica que tens usurpado; que algum outro ocupe a cadeira de Pedro, outro que não oculte a violência com o véu da religião, mas que proponha a santa doutrina do apóstolo. Eu, Enrique, rei pela graça de Deus, te digo com todos os meus bispos: desça, desça, homem, condenado pelos séculos [4].

A antiga aliança entre o trono e o altar já se havia rompido definitivamente. A partir de então os reis faria valer seu direito divino mais além da unção dos pontífices. Naquele primeiro enfrentamento que desatou “a querela das investiduras” Godofredo de Bouillón tomou partido do imperador e participou ativamente em suas campanhas. Primeiro contra os príncipes alemães alinhados com Roma e logo contra a própria cidade dos papas. Estes acontecimentos, que tiveram consequências históricas muito profundas, colocaram ao Senhor de Bouillón no centro do tabuleiro político da Europa. Cesare Cantú, em sua história das cruzadas, o coloca a frente dos exércitos imperiais e lhe atribui a morte de Rodolfo de Suabia.

Rodolfo encabeçava a oposição a Enrique IV e contava, para ele, com o apoio dos cluniacences que havia introduzido sua regra na Alemanha através dos monastérios alinhados à celebre Abadia de Hirschau, a primeira em regulamentar – segundo a tradição cluniacense – as Lojas de Maçons, “irmãos convertidos” – no solo alemão.

Se sabe que em 1077, Rodolfo de Suabia tratou de coordenar com o abade Wilhelm de Hirschau uma frente opositora a Enrique IV. O encontro teve lugar na mesma abadia que trocava um conjunto de importantes centros monásticos disseminados em território alemão, nas regiões de Richenbach, Turungia, Bavaria, Suavia e outras localidades.

Morto Rodolvo pelo exército liderado por Godofredo, os alemães avançaram sobre Roma. Gregório VII se viu obrigado a buscar refúgio e para isto solicitou a ajuda dos normandos da Sicília que foram em seu auxílio. Sem dúvida, os homens do duque normando Roberto Guiscardo fizeram tal confusão com o que restava de Roma que seus habitantes, presos de ira, obrigaram o papa a abandonar a cidade e exilar-se em terras normandas da Sicília, onde morreria pouco depois. Curiosamente, Bohemundo de Tarento, filho de Roberto, formaria anos mais tarde um dos exércitos cristãos que marchou à Palestina na primeira cruzada, junto aos Lorenenses de Godofredo.

Em que pese a morte de Rodolfo e a derrota do partido papal, os esforços cluniacenses contra o imperador continuaram. Até 1.081, o já citado abade Wilhelm trabalhou junto ao bispo Altmann de Passau na falida eleição de um novo rei que fosse aliado da Sede Apostólica.

As ações de Godofredo mereceram a reconsideração do imperado em torno da Questão do ducado da Baixa Lorena que, finalmente, lhe foi restituído, mas só com uma condição, sem direito a sucessão, posto que reservava o cargo para seu filho corado. Em que pese esta legitimação pela metade, Godofredo seguiu sendo chamado pelo resto de sua vida como “conde de Bouillón”, mais que duque de Lorena.

O verdadeiro enigma na vida de Godofredo foi a mudança radical que se produziu em sua posição logo na campanha da Itália e a queda de Gregório VII. Em poucos anos, aquele homem que havia dado morte ao duque Rodolfo de Suabia na Batalha de Hohenmolsen e que logo abateria a Itália com seus exércitos assediando Roma, se distanciou da postura do imperador, acercando-se paulatinamente ao monaticismo cluniacense, fortemente estabelecido em seu território.

Paradoxalmente, foi o primeiro a responder a Urbano II, um papa – sem se quer e tal como veremos, herdeiro do pensamento de Gretório VII - quando este o chamou para organizar uma expedição armada para libertar os Santos Lugares.

O que aconteceu em tão poucos anos para que se produzisse uma mudança tão profunda em Godofredo? Em 1.091, apenas quatro anos depois de ser investido como duque da Baixa Lorena, se opôs tenazmente a decisão do imperador que, em um ato de força, havia imposto como bispo de Lieja, a Gotberto, um eclesiástico adito à corte. Repudiado e combatido pelos grandes abades da região, Gotberto encontrou em Godofredo um inimigo implacável.

Paulatinamente, o conde de Bouillón se alinhou com a reforma gregoriana que antes havia combatido, opondo-se às investiduras imperiais. Steven Runciman – entre outros – acredita que esta mudança foi a consequência da forte influência de Cluny ocorrida em sua mente, em um momento em que o monasticismo se encontrava na cabeça da profunda reforma espiritual iniciada por Gregório Magno, que havia logrado arrancar a Igreja do descrédito. O ascendente de Cluny sobre as ideias de Godofredo parece verossímil se se tem em conta – como temos visto – a profunda influência cluniacense em Lorena e Alemanha e a ativa participação da ordem no apoio e organização da primeira cruzada.

3. OS BENEDITINOS E A RECONQUISTA DA TERRA SANTA

Afirma Runciman que no final do século VIII parece ter existido uma intenção de organizar as cada vez mais frequentes peregrinações à Terra Santa, cujo principal promotor era o próprio Carlos Magno. Dado o papel preponderante que teve a Ordem Beneditina na estrutura do império carolíngio, não resulta estranho o fato de que o imperador havia sustentado um esforço penoso para estabelecer monastério e hospícios latinos nos Lugares Santos e que esta tarefa havia sido encomendada aos Monges Beneditinos.

A importância destes estabelecimentos foi descrita pelos cronistas e viajantes da época. Entre eles, o mais significativo parece ter sido o monastério de “São João de Jerusalém”, construído junto com um importante hospital nas proximidades do Santo Sepulcro, cuja principal atividade era a de receber e dar albergue aos peregrinos latinos que chegavam a Cidade Santa. Sua construção, assim como sua atenção, ficou a cargo dos beneditinos. Ali encontraram hospitalidade, conforme o peregrino Bernardo, o sábio, no ano de 870, escreveu em seu “itinerário”; “... Fu recebido no hospício do glorioso imperador Carlos, no qual encontraram acolhida quantos visitassem com devoção esta terra e falavam a língua romana. A ele está unida uma igreja dedicada a Santa Maria, a qual possui uma rica biblioteca, devida a munificência do imperador, com mais doze habitações, campos vinhedos e um horto no vale de Josaphat. Diante do hospício está o mercado...”[5]

Acredita-se que a fundação destes estabelecimentos latinos em Jerusalém foi possível pela boa relação que Carlos Magno havia estabelecido com o Califa de Bagdad Harun al Raschid, embora o seu verdadeiro alcance forme parte dos mistérios ainda não resolvidos sobre a vida de Carlos Magno. O certo é que no princípio do século IX, o patriarca de Jerusalém teve que recorrer ao imperador para solicitar-lhe ajuda, pois os peregrinos cristãos sofriam permanente assédio e vexames por parte dos piratas beduínos. Na mensagem do patriarca se fez referência a que...”o Monte de Sión e o Monte das Oliveiras estão alegres com as doações do muito generoso monarca...”.

Carlos Magno se sentiu profundamente ofendido pela situação que atravessavam os cristãos na Terra Santa e decidiu enviar uma embaixada a Al Raschid a fim de colocar fim a esta questão. Ocorre então um fato que divide a opinião dos historiadores, mas que constitui um antecedente valioso sobre as pretensões e os direitos latinos sobre os lugares Santos. Al Raschid responde outorgando proteção sobre as igrejas e peregrinos e faz doações do Santo Sepulcro ao imperador na pessoa de seu representante e embaixador. Há quem sustenta que tal coisa era absolutamente impossível, pois – e tal como o assinala Harold Lamb – “ resulta inconcebível que um califa do Islam, guardião dos santuários de sua religião, cedesse a um cristão desconhecido a autoridade sobre parte alguma de Jerusalém”[6].

Sem dúvida, as crônicas associam a esta embaixada com a cessão a Carlos Magno – embora sob forma temporária – da autoridade sobre uma parte de Jerusalém. As fontes relatam que o patriarca de Jerusalém transferiu ao imperador as chaves do Santo Sepulcro e do Calvário junto ao estandarte (vexillum) e as chaves da cidade Santa e do Monte Sião. Um clérigo de nome “Zechariah” trouxe o estandarte e as chaves a Roma só dois dias antes da coroação de Carlos Magno como Imperador. Ao menos nominalmente, Carlos Magno esteve na posse do Santo Sepulcro [7].

Einhardo – um monge do monastério de Saint Gall – deixou testemunho escrito desta circunstância: “... O Califa, informado dos desejos de Carlos Magno, não só lhe concedeu o que pedia, mas que colocou em seu poder a própria tumba sagrada do Salvador e o lugar de sua ressurreição...” Al Raschid, admirado pelos presentes que enviava ao imperador cristão, disse: “como poderíamos responder de maneira adequada a honra que tem feito? Se lhe damos a terra que foi prometida a Abraão, está tão longe do teu reino que não poderá defende-la, por nobre e elevado que seja seu espírito. Se dúvida lhe demonstraremos nossa gratidão entregando a sua majestade dita terra, que governaremos na qualidade de Vice-Rei...”[8].

Mas além do alcance real destas crônicas, os fatos demonstram que, já nos tempos carolíngios o cristianismo ocidental considerava a Terra Santa – e em particular a Jerusalém – como o lugar mais venerado, ponto de contato com o outro mundo, simbolizado na imagem da Jerusalém Celeste e que esta consciência se desenvolve até sentir como um imperativo a ocupação efetiva dessa terra.

Já temos dito que os cluniacenses se haviam convertido nos principais organizadores dos movimentos de peregrinação à Terra Santa. Desde a fundação de Cluny, em 910, se assumiram como os guardiães da consciência da cristandande ocidental e como tais, se impuseram uma missão concreta com respeito a Palestina. Disse Runciman:

“...A doutrina dos cluniacenses aprovou a peregrinação. Desejavam dar-lhe assistência prática. No princípio do século seguinte (XI), as peregrinações aos grandes santuários de espanhóis estavam quase totalmente controladas por eles. Pela mesma época eles começaram a preparar e organizar viagens a Jerusalém... Sua influência confirma o grande incremento dos peregrinos procedentes de Lorena e França, de zonas que estavam próximas a Cluny e suas casas filiais. Embora houvesse muitos alemães entre os peregrinos do século XI... os peregrinos franceses e loreneses eram muito mais numerosos... [9].

Surpreendente o êxito desta política. A regra beneditina era a mais praticada entre os clérigos latinos que viviam na Palestina, incluídos os membros da pequena ordem fundada em 1075 por italianos de Amalfi e consagrada a São João o Compassivo, que haviam reconstruído o “hospital” findado pelos monges enviados por Carlos Magno para atender as necessidades dos peregrinos cristãos, destruído em 1010 pelos sarracenos. Esta ordem se converteria logo na dos Cavaleiros Hospitalários, cujo prestígio rivalizou com a dos próprios Templários e se converteu, posteriormente, na Ordem Militar de Malta.

Basta ler a imensa quantidade de nomes notáveis que empreenderam tão arriscada empresa para compreender a magnitude do movimento dos peregrinos e da influência que Cluny imprimiu na construção de uma consciência viva da transcendência dos Santos Lugares. Godofredo de Boullón, duque da Baixa Lorena naqueles anos, de modo algum pode permanecer ausente a um fenômeno que, como acabamos de ver, afetava diretamente a seus domínios.

Outra questão verdadeiramente significativa é que, embora haja sido Urbano II quem passou para a história como o grande convocador da primeira cruzada, o chamado a libertar os Santos Lugares tem um antecedente direto em Gregório VII, autor de um documento do ano de 1.076 cujo texto pode ser encontrado nos anexos documentais [10]

Gregório VII era um produto surgido de Cluny. Ali havia professado seus votos e sua eleição como papa modificou sensivelmente a marcha da Igreja. Seu poder estava diretamente relacionado com o apoio que recebia do movimento cluniacense, que atuava como seu verdadeiro braço político contra o imperador Enrique IV.

Tendo em conta este antecedente, resulta natural pensar que a ideia de uma recuperação de Jerusalém estivesse nos planos dos beneditinos de Cluny muito antes do chamado de Urbano II, cujo verdadeiro nome era Odón de Lagery, filho da nobre família de Chatillón. Como Gregório, havia professado seus votos na abadia de Cluny ante o mesmíssimo São Hugo em 1970. O Venerável havia detectado sua capacidade e sua inteligência e não tardou em convertê-lo em prior para enviá-lo logo a Roma. Em 1.078 foi nomeado cardeal e Bispo de Ostia por Gregório e mais tarde núncio na França e Alemanha.

Quando o Papa Gregório morreu – com o antipapa Guilberto reinando em Roma – os cardeais elegeram como seu sucessor a Victor III, eleição a qual resistiu o bispo de Óstia. Sem dúvida, com a morte de Victor III, Odón de Lagery foi finalmente coroado papa, cumprindo-se o que, para muitos, havia sido o desejo de Gregório. Logo no conclave de Terracina, onde Odón tomou o nome de Urbano II, o novo papa avocou a difícil tarefa de recompor o poder de Roma que havia ficado reduzido aos territórios normandos. A situação mudou até 1093, época em que o imperador Enrique VI viu seu reinado dramaticamente debilitado por conta das disputas com seu filho Conrado.

Porém Cluny não só havia criado a panificação das peregrinações a Jerusalém, nem se contentaria em colocar a frente da Igreja dois papas dispostos a recuperar o Santo Sepulcro. Cluny foi a ideóloga, a estrategista, o agente de propaganda e a condutora logística da futura expedição. A convocatória ao Concílio de Clermont é uma manobra executada com precisão pelos cluniacences, tão óbvia que não se podia ser ignorada pela história. Com efeito, Urbano II realiza uma extensa viagem pela França antes de chegar a Clermont, uma viagem que o levou pelos mais importantes monastérios cluniacenses e catedrais da região. Na última etapa chega a Cluny onde é recebido com pompa e honras. Se trata do primeiro monge cluniacence que volta a sua abadia mãe vestindo a tiara papa. No dia 25 de outubro de 1.095 benzeu o novo altar maior da abadia

Ali se analisa e se traça a estratégia da expedição. Disse Runciman: “Em Cluny conversara com pessoas ocupadas no movimento dos peregrinos, tanto a Compostela como a Jerusalém. Lhe contariam das insuperáveis dificuldades porque teriam que passar agora os peregrinos a Palestina por conta da desintegração da autoridade turca naquelas zonas. Se informou que não eram só as rotas através da Ásia Menor as que estavam fechadas, mas que a Terra Santa resultava virtualmente inacessível para os peregrinos”. [11]

De sua estadia em Clumny, dizem Pierre Barret e Jean-Noel Gurgand: “o projeto de expedição armada fazia o Oriente pertencer a mais profunda lógica da política cluniacense; seguramente o abade Hugo, o papa e seus conselheiros refletiram largamente durante estas jornadas nos argumentos que empregariam, nos homens aos quais deveriam convencer e nos meios com os quais constituiriam os tesouros de guerra...! [12]

Quando chegou a Clermont, no dia 18 de novembro, a seu lado estava São Hugo o Venerável. A maquinaria cluniacense havia preparado o terreno; o cenário foi uma pradaria vizinha a igreja, cuja capacidade havia sido rebaixada pela grande quantidade de concorrentes.

“Desgraçado de mim – clamou Urbano – se nasci para ver a aflição de meu povo e a prosternação da Cidade Santa, e ficar em paz, que ela seja entregue nas mãos de seus inimigos”! Vós outros pois, meus irmãos queridos, armem-se do zelo de Deus; que cada um de vós cinjam suas cinturas com uma poderosa espada. Amem-se, e sede filhos do Todo Poderoso. Vale mais morrer na guerra, que ver as desgraças de nossa raça e dos lugares santos. Se algum tem o zelo da Lei de Deus, que se uma a nós; vamos a socorrer nossos irmãos. “Rompamos suas ataduras e rechacemos longe de nós seu jugo! Avancem e o Senhor estará com vós. Voltai-vos contra os inimigos da fé e de Cristo essas armas que injustamente haveis ensanguentado com a morte de vossos irmãos [13]

No dia seguinte do chamado à cruzada, em 27 de novembro, Urbano, príncipe dos bispos, se sentou a delinear com o ancião venerável como se levaria a cabo o velho sonho; Jerusalém voltaria a ser cristã. Meses depois a expedição já estava em marcha.

Fim da Primeira Parte – Continue lendo a Segunda Parte: “Godofredo de Bouillón e o Cenáculo do Monte de Sião.”


[1] Gislebert de Mons; “Cronicon Hanoniense” (Madrid, Ediciones Siruela S.A., 1987) Traducción de Blanca Garí de Aguilera, p. 9

[2]Gregorii VII Registrum, Ed. Ph. Jaffé, in Monumenta Gregoriana, II, en: Gallego Blanco, E., “Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad Media”, (Biblioteca de Política y Sociología de Occidente, 1973, Madrid), pp. 174-176.

[3] Gallego Blanco, ob. cit pp. 147.

[4] “Monumenta Germaniae Historica, Constitutiones et Acta, I”, en: Calmette, J., “Textes et Documents d'Histoire, 2, Moyen Age”, (P.U.F., 1953 Paris), pp. 120 y s. Trad. del francés por José Marín R. 

[5] Gebhardt, Victor D. “La Tierra Santa” (Espasa y Cía Editores, Barcelona)

[6] Lamb, Harold, “Carlomagno” (Edhasa, Barcelona, 2002) p. 411

[7] Zuckerman, Arthur J. “A Jewish Princedom in Feudal France” (Comunbia University Press, New York, 1972) pp. 188-189 y ss.

[8] Lamb, loc. cit

[9] Runciman, ob. cit. Vol. I. p. 57

[10] Jacques Heers, “La Primera Cruzada” Editorial Andrés Bello; Barcelona, 1997 p. 78-79

[11] Runciman ob. cit. V.I. p. 112

[12] Barret, Pierre y Gurgand, Jean-Noël ;“Si te olvidara, Jerusalén” La prodigiosa aventura de la Primera Cruzada; (Ediciones Juan Granica S.A., Barcelona; 1984) p. 24, 25 y ss.

[13] Guillermo de Tiro, Histoire des Croisades, I, Éd. Guizot, 1824, Paris, vol. I, pp. 38-45. Trad. del francés por José Marín R.

Extraído do Blog de Eduardo R Callaey

[1] A Ordem de Cluny é uma ordem religiosa monástica católica. É considerada como a sucessora da Ordem de São Bento no chamado movimento monacal. Era também o nome de uma Abadia, situada no distrito administratido da Borgonha, França, que deu o nome a Ordem. 

[2] Bens ou propriedades que tinham isenção de direitos. 

[3] A tonsura é uma cerimônia religiosa em que o bispo dá um corte no cabelo do ordinando ao conferir-lhe o primeiro grau de Ordem no clero, chamado também de "prima tonsura". 

[4] Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e sacramentos) ou temporais ligadas às espirituais (como os benefícios eclesiásticos).

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016




A Cabala e a Lenda de Hiram 

Autor: João Anatalino

Entre as seitas que mais influenciaram nas tradições maçônicas encontramos os judeus denominados cainitas, tidos por muitos autores maçons como os verdadeiros criadores da Lenda de Hiram. Os cainitas constituíram diversas seitas místicas, preenchidas principalmente por judeus cabalistas, que procuravam compatibilizar antigas tradições judaicas com ensinamentos cristãos, especialmente aqueles veiculados pelos chamados cristãos gnósticos. A denominação “cainita” vem do fato de eles considerarem-se descendentes diretos de Adão, através de Cain, de cuja geração saiu Tubalcain, mestre artesão, hábil trabalhador de martelo e fundidor de obras de bronze, segundo a Bíblia.[1]

Os cainitas desenvolveram uma tradição, segundo a qual Cain era filho adulterino de Eva com um anjo rebelde de nome Samael. Essa tradição, que faz parte do Sepher-ha-Zhoar, o livro base da Cabala judaica, atribui á estirpe de Cain uma família de demônios, entre os quais figuram as irmãs de Tubalcain, Noema e Lilith, famosas demônios fêmeas da tradição cabalística.

O personagem que os maçons conhecem por Hiram é de difícil caracterização. Nas crônicas bíblicas ele é citado duas vezes: Em Reis- 13, ele é referido como sendo um israelita da tribo de Naftali, perito fundidor de obras de bronze; mas já nas Crônicas (Paralipômenos), ele é referido como sendo filho de uma mulher da tribo de Dan, perito, não só em fundição de metais, como também na confecção de obras de madeira, tecelagem , escultura etc.

Dessa forma, Hiram aparece na Bíblia como profissional ligado á tradição dos fundidores, dos metalúrgicos, dos “sopradores”, (como eram conhecidos, na Idade Média, os trabalhadores de forja), informação essa que o remete a Tubalcain, e por via direta á Cain, o filho amaldiçoado de Adão.

Robert Ambelain se refere ainda á tradição que faz de Séfora, a esposa de Moisés, uma cainita, pois que ela era filha de Jetro de Madian, líder de um importante centro de fundição de metais, localizado no oásis que leva aquele nome. Dessa fonte cainita Moisés teria recebido os ensinamentos secretos (iniciáticos) que não se encontram expostos na Torá, mas que foram repassados por tradição oral aos sacerdotes levitas e conservados pelos essênios, que por sua vez os legaram aos cainitas cristãos. E estes, em conseqüência, os desenvolveram no corpo doutrinário que se convencionou chamar de Cabala, cujo conteúdo está exposto no Zhoar.

A esse respeito, diz o texto de Ambelain: “Hiram, por seu pai Ur, descende de Tubalcain, e por ele, em linha direta, de Cain e Samael. Este, na tradição judaica, é o Anjo Rebelde, o Tentador, o Anjo da Morte e por morte ritual a Maçonaria sacraliza o profano) (...) Dessa estranha tradição nasceu um costume, o de denominar “vale” o lugar onde se reunissem certos altos graus da Maçonaria (....) No século XVIII um grupo (de maçons) tomou o nome de “ Filhos do Vale”. Num dos altos graus maçônicos, onde os membros se reúnem num “vale”, o presidente da Loja leva o nome de “ sapientíssimo Athersatha”, (....) Esse nome, traduzido do hebraico, significa “Prodigioso fundidor do deus forte” [2]

Portanto, a lenda de Hiram, que teria, segundo Ambelain, sido introduzida na Maçonaria através dos“ maçons aceitos”, entre os quais haviam inúmeros judeus, é de clara inspiração gnóstica-cabalística. Da mesma forma que ela é uma adaptação do drama osírico, as analogias que mais tarde se fizeram entre ela e Paixão de Cristo são frutos da licenciosidade interpretativa que as alegorias desse tipo permitem aos espíritos de imaginação fértil. E esse talvez tenha sido o objetivo de seus formuladores, já que, no fundo dessa lenda, o que remanesce mesmo é o culto ao sol, conexo ao mito do sacrificado. [3]

É importante, entretanto, ter em mente que tais concepções só são aceitáveis do ponto de vista filosófico, do praticante do livre-pensamento, que se acredita ser o maçom. Na verdade, o misticismo é uma forma alternativa de se explicar o mundo. Se suas concepções são avessas as doutrinas oficiais, não há que se ver aí qualquer motivo de escândalo. As concepções extraídas pelos cainitas sobre os textos bíblicos são apenas o ponto de vista que um grupo de pensadores heterodoxos desenvolveu sobre alguns temas polêmicos que aparecem nos textos sagrados, e que, até hoje, não encontraram consenso entre os estudiosos. Do ponto de vista meramente acadêmico merecem ser analisadas com o mesmo respeito, (e cuidado), que aquelas veiculadas pelos doutrinadores ortodoxos .[4]

Em nosso livro “Conhecendo a Arte Real” discorreremos com mais profundidade sobre o conteúdo da Lenda de Hiram e a sua influência gnóstica, bem como sua origem cabalística.[5]. Por ora é suficiente lembrar que a maioria das tradições dos antigos povos associa o despertar da consciência humana, a aquisição do conhecimento e os primeiros rudimentos de ciência a uma “rebelião” que afastou o homem dos deuses. Na Bíblia essa “rebelião” está, de certa forma, conectada com a família de Cain. Dela, por descendência direta, sairiam os personagens Jubal, Jabel e Tubalcain, que na tradição maçônica estão conectados com o Drama de Hiram. As associações que se podem fazer entre esses personagens e o simbolismo da Loja de Companheiros correm por conta do conhecimento e da intuição dos irmãos, mas a partir dessas informações já é possível pressentir uma explicação para a estranha trama que envolve o arquiteto do Templo do Rei Salomão. No momento oportuno voltaremos a esse assunto.

A lenda cainita que liga a família de Hiram, fundidor, á Tubalcain, nome bastante conhecido dos maçons nas Lojas Simbólicas, em síntese, diz o seguinte:

“ Salomão, ao receber de Deus a incumbência para construir o Templo, entrou em acordo com o rei de Tiro, que se comprometeu a lhe enviar todo o material necessário, bem como os técnicos requeridos para a construção, pois em Israel não havia profissionais capazes de realizar tal trabalho. Entre os profissionais enviados por Hiram, rei de Tiro, estava Hiram, o construtor, também perito em fundição. Na ocasião em que fundia as colunas do Templo, três israelitas invejosos, descontentes pelo fato do Templo do Senhor estar sendo construído por um estrangeiro, (embora Hiram fosse de origem israelita), sabotaram o molde que iria servir para a fundição. Hiram, descobrindo a sabotagem, denunciou-a ao rei Salomão, que, no entanto, não tomou nenhuma providência. No dia da fundição, o mar de bronze escorreu pela multidão que a assistia, matando uma grande parte dela. Hiram foi acusado de negligência e abandonou o canteiro de obras. Refugiando-se no deserto, foi tomado por uma visão. Um gigantesco homem barbado surgiu á sua frente: disse ser o espírito de todos os que trabalham e sofrem nas mãos dos poderosos. Convidou-o a segui-lo. Hiram acompanhou o misterioso personagem, que o conduziu ás entranhas da terra, até o lugar onde habitava Enoque, pai de todos os homens de ciência, que no Egito se chamava Hermes.

Foi então que Hiram descobriu os segredos com os quais foi construída a cultura da humanidade. Enoque, ou Hermes, ensinou-lhe todos os segredos da arte de construir; apresentou-lhe também Maviel, o carpinteiro, que ensinou a humanidade a trabalhar a madeira, Matusael que criou a arte da escrita, Jabel que criou a arte da tecelagem, Jubal que inventou a música e os instrumentos musicais e Tubalcain, aquele que ensinou aos homens a arte de curtir peles, a tecer a lã, a arte de fundir e transformar os metais, e foi pai daqueles que trabalham a forja e controlam o fogo. E depois Enoque, ou Hermes, disse a Hiram como o mundo foi feito: “Dois deuses criaram o universo”, disse Enoque: “ Adonai, senhor da matéria e Iblis, senhor do espírito”. Adonai criou o homem a partir do barro da terra e Iblis insuflou-lhe no peito o espírito. O homem, que era belo e inteligente como um deus, despertou em Lilith, deusa irmã de Iblis, uma intensa paixão. Esta, em conseqüência, tornou-se amante do homem Adão. Os deuses haviam feito uma companheira para Adão, tirada da sua costela, chamada Eva. Por vingança, pelo fato de Adão ter se amasiado com sua irmã Lilith, Ibles seduziu Eva e gerou-lhe um filho, que foi Cain[6]. Ao saber que Cain era filho ilegítimo de Eva com Iblis, Adão o expulsou. Cain separou-se de sua família celeste e deu inicio á família terrestre. Abel, o outro filho de Adão com Eva manteve-se fiel ás origens, razão pela qual o conflito instalou-se na terra. 

Foi assim que ocorreu a separação entre as estruturas do céu e da terra, evocadas pela tradição egípcia, e a expulsão do homem do paraíso terrestre, referida na Bíblia. Hiram foi então apresentado a Cain, que fez amargas queixas contra os deuses, especialmente Adonai. Reivindicou para si a origem da ciência e do conhecimento e disse ser essa a razão pela qual Adonai recusou seus sacrifícios, aceitando, no entanto, os de Abel. “Adonai”, diz Cain, “detesta a ciência e o conhecimento, porque eles tornam o homem insubmisso ao seu poder”. Como os homens cresceram e multiplicaram-se sobre a terra, Adonai, ciumento e temeroso que os homens escapassem do seu controle, resolveu destruí-los mandando que as águas cobrissem a terra e afogasse todos seus habitantes. Mas Noé, instruído por Maviel, o carpinteiro, frustrou os planos de Adonai construindo uma arca na qual ele salvou-se a si a sua família, dando continuidade á família terrestre. [7]

O Mestre Hiram nas “Velhas Regras”

Por conta dessa origem luciferina da arte metalúrgica, a Bíblia diz que Deus “proibira a utilização de ferramentas de ferro no interior do canteiro de obras do templo”. O “tabu do ferro” sempre acompanhou a cultura hebraica na forma de uma grande aversão pela metalurgia. Uma explicação histórica para essa aversão talvez esteja no fato de que, durante os anos de ocupação da Palestina pelos filisteus, os israelitas foram proibidos de praticar qualquer oficio ligado á fundição de metais. Era uma proibição que objetivava impedir que os filhos de Israel se armassem e promovessem uma revolução. Só no tempo de Davi essa proibição foi levantada e os israelitas puderam fundir e fabricar espadas.

A tradição cabalista vai mais longe nessa lenda. De acordo com algumas interpretações rabínicas, constantes do Zohar, a arte da metalurgia está conectada com o lado mau e rebelde da família humana, ligada ao nome de Tubalcain. É, portanto, uma arte luciferina, de inspiração malévola. Um povo consagrado ao Senhor não poderia praticá-la.[8]

Só assim é possível entender o temor das técnicas de metalurgia que acompanha a antiga cultura hebraica. Veja-se, inclusive, que todas as experiências daquele povo com essa arte estão conectadas com alguma tragédia: Aarão com seu bezerro de ouro, Moisés com a serpente de bronze, Hiram com o mar de bronze etc. Dessa forma também é possível explicar a utilização do nome de Tubalcain como senha na transposição do companheiro para o mestre.[9]

A Lenda de Hiram acabou sendo um denominador comum entre todas as práticas maçônicas. Hiram arquiteto é o detentor dos grandes segredos iniciáticos. Ele é o construtor do Templo de Salomão, cuja estrutura reflete o próprio universo. Sua morte representa a transição do profano para o sagrado, do técnico para o científico, do reino grosseiro da matéria para o reino sutil do espírito. Pelo fenômeno da simbiose, o companheiro rebelde, que vivia no domínio inferior da consciência, se reconcilia com o substrato superior do espírito, e adquire, agora da forma correta (e não pela violência), a sua passagem de grau. 

Esse foi o conteúdo da lenda desenvolvida para o catecismo maçônico das “Velhas Regras” (Old Charges). Nas Old Charges o nome de Hiram é citado como sendo filho do rei de Tiro, cujo nome também é Hiram.Tanto no Manuscrito Cooke quanto no Downland, essa informação é referida. Horne acredita que isso é resultado de uma interpretação equivocada da palavra Hiram Abi, que significa “Hiram, meu pai”. As referências a Hiram, entretanto, aparecem em várias outras Old Charges, e em algumas delas, ele é citado como sendo “príncipe maçom”.[10]

As referências a Hiram nas “Velhas Regras”, entretanto, são muito contraditórias. Em alguns desses antigos manuscritos, o mestre arquiteto do templo de Salomão chega a ser confundido com o rei Nenrode, construtor da Torre de Babel. Por isso é que as informações mais confiáveis sobre a identidade do Mestre Hiram ainda são aquelas veiculadas pela Bíblia e por historiadores como Flávio Josefo, por exemplo.

Com exceção do fato de que nos textos sagrados ele não aparece como arquiteto, mas como fundidor de bronze, todo o conteúdo da lenda pode ser encontrado nas crônicas bíblicas: Em Reis, 13:7 lemos que Salomão “Escolheu obreiros em todo Israel, e ordenou que fossem trinta mil homens. E ele os mandava ao Líbano, dez mil a cada mês, de sorte que ficavam dois meses em suas casas e Adoniram era o encarregado do cumprimento dessa ordem. E teve Salomão setenta mil que acarretavam as cargas, e oitenta mil cabouqueiros nos montes; fora os aparelhadores de cada obra, em número de três mil e trezentos, que davam as ordens aos que trabalhavam. E o rei mandou que tirassem pedras grandes, pedras de preço para os alicerces do Templo, e que as facejassem. E lavraram-nas os canteiros de Salomão e os canteiros de Hirão; e os de Gíblios ,porém, aparelhavam as madeiras e as pedras para edificar a casa”.[11]

Os giblitas, no entanto, eram considerados estrangeiros. Como estrangeiros não poderiam compartilhar dos segredos dos mestres até que recebessem a devida elevação. Era uma elevação que não se alcançava meramente cumprindo um interstício de tempo como companheiro, ou simplesmente aprendendo o segredo dos planos de construção, que eram arte especulativa. Nisso estava envolvida principalmente uma questão religiosa, e essa questão era a proibição de que um segredo de natureza sagrada fosse revelado a pessoas que ainda não tinham obtido o devido merecimento. Era preciso encontrar uma fórmula que superasse esse impasse, permitindo que o companheiro pedreiro, estrangeiro para as tradições hebraicas, pudesse romper essa barreira para ser admitido no seleto circulo dos mestres.

Não sendo assim a chamada Escola de Arquitetura de Salomão, que a imaginação de Anderson colocou nos canteiros de obras do Templo do Rei Salomão acabaria se transformando numa alegoria sem sentido. A solução foi o sacrifício ritualístico do Mestre Hiram, que como já dissemos, é a porta de entrada nos Mistérios Maçônicos. Com essa alegoria Anderson introduziu na tradição maçônica dois arquétipos de grande significado histórico, psicológico e religioso, que são o mito solar, que está na origem do mito do herói sacrificado e o sacrifício da completação. A finalidade desse sacrifício é francamente escatológica, como veremos.

O mito do herói sacrificado 


Todo maçom que tenha sido elevado ao mestrado na Arte Real já fez a sua marcha ritual em volta do esquife do Mestre Hiram Abiff, o arquiteto do Templo do Rei Salomão, assassinado pelos três companheiros ambiciosos que queriam abreviar o prazo de seu aprendizado e obter os graus mais elevados sem o devido mérito. A alegoria da morte de Hiram é uma clara alusão ao mito do sacrificado. Ele está conectado, de um lado ao simbolismo da ressurreição e de outro lado ao mito solar. Pois nas antigas religiões solares, como vimos, o sol, princípio da vida, morria todos os dias para ressuscitar no dia seguinte, após passar uma noite em meio ás trevas.

Assim como toda a teatralização dos Antigos Mistérios, fosse na Grécia ou no Egito, ou em qualquer outra civilização que praticasse esses festivais, mais do que uma simples homenagem aos deuses protetores da natureza, esses rituais simbolizavam a jornada do espírito humano em busca da Luz que lhe daria a ressurreição. É nesse sentido que a marcha dos Irmãos em volta do esquife de Hiram, sempre no sentido do Ocidente para o Oriente, nada mais é que uma imitação desse antigo ritual, que espelha a ansiedade do nosso inconsciente em encontrar o seu “herói” sacrificado (ou seja, o sol), para nele realizar a sua ressurreição. Pois o sol, em todas essas religiões, era o doador da vida. Ele fertilizava a terra e fazia renascer a semente morta. Destarte, toda a mística desses antigos rituais tinha essa finalidade: o encontro com a luz que lhe proporcionaria a capacidade de ressurreição.[12]

O sacrifício da completação


Conectado com esse simbolismo, os antigos povos, em suas tradições iniciáticas relacionadas com grandes obras arquitetônicas, desenvolveram o chamado “sacrifício da completação”. Esse sacrifício consistia em oferecer ao deus a quem era dedicado o edifício um sacrifício de sangue, que podia ser o holocausto dos inimigos aprisionados em guerra ou pessoas escolhidas entre próprio povo. Muitas vezes essa escolha recaia sobre mulheres virgens (as vestais) ou jovens guerreiros, realizadores de grandes feitos na guerra. Acreditava-se que assim os deuses patronos dos poderes da terra se agradariam daquele povo, prodigalizando-lhes fartura de colheitas e proteção contra os inimigos.[13]

Esse tema remonta á antigas lendas, cultivadas pelos povos do Levante, segundo o qual nenhuma grande empreitada poderia obter bom resultado se não fosse abençoada pelos deuses. E essa benção era sempre obtida através de um sacrifício de sangue. Esse costume era praticado até pelos israelitas, como prova o texto bíblico ao informar que Salomão, ao terminar a construção do Templo “sacrificou rebanho e gado, que de tão numeroso, nem se podia contar nem numerar.”[14]
Dessa forma, na Maçonaria, o Drama de Hiram tem uma dupla finalidade iniciática: de uma lado presta sua referência ao culto solar, sendo Hiram, nessa mística, o próprio sol que é homenageado; de outro lado, cultua o herói sacrificado, pois é nele que se consuma a obra maçônica.
E dessa forma, a principal alegoria do ensinamento maçônico assume o seu verdadeiro e real significado.

[1] Gênesis, 4:22..
[2] Robert. Amberlain op citado pg. 84-85
[3] O mito do sacrificado é uma tradição cultivada por todos os povos antigos que desenvolveram religiões solares. O “sacrificado”, no caso, é o próprio sol, que “morre” todos os dias e renasce no dia seguinte. E graças ao seu calor e sua luz, a vida na terra também têm os seus ciclos regenerativos. Em função dessa crença, acreditava-se que todo período de tempo deveria ser agradecido aos deuses através de um sacrifício de sangue, para que a terra prodigalizasse ao povo o benefício de grandes colheitas. Essa era a crença que estava na raiz dos chamados Mistérios Antigos. De outra forma, todos os grandes empreendimentos também tinham que ter um “sacrificado” para que essa obra fosse levada á bom termo. Na imagem, reconstituição do Templo de Salomão. Fonte: Alex Horne: O Templo de Salomão e a Tradição Maçônica.
[4] É também originária dos cabalistas cainitas a exclamação Huzz, Huzz, Huzz , que no Rito Escocês costuma ser utilizada na abertura e no encerramento dos trabalhos em Loja. Essa exclamação (aportuguesada para Huzé, Huzé, Huzé) também era utilizada pelos Cavaleiros Templários, na recepção de seus grãos-mestres. A palavra é derivada do hebraico hoschea, que significa libertador.
[5] Publicado pela Editora Madras, 2006. Atualmente está esgotado. Estamos preparando uma segunda edição para 2017.
[6] A Bíblia também se refere á essa tradição quando fala nas belas filhas dos homens, por quem os deuses se apaixonaram e geraram filhos, os audazes “nefilins”. Na imagem, o “Mar de Bronze” fundido pelo Mestre Hiram.
[7] A Franco-Maçonaria, op citado pg. 81 a 86.
[8] Veja-se que na mitologia grega, o deus que cumpre esse papel, é Vulcano, tido pelos gregos como o deus da forja, controlador do fogo. O arquétipo do deus Vulcano, que habita o interior da terra, está conectado com tradições luciferinas.
[9] Pois o companheiro, na tradição da Maçonaria, é aquele que assassina o Mestre Hiram para obter o segredo do grau de mestre.
[10] No Manuscrito Melrose nº 2 de 1674 e no Manuscrito Harris de 1789.
[11] Reis, 13-17. Os giblios, ou giblitas, eram os trabalhadores das pedreiras de Biblos, cidade fenícia que ficava cerca de 120 quilômetros ao norte de Tiro. Essa cidade é conhecida hoje como Gebal. Nos Primeiros Catecismos Maçônicos, os giblitas eram considerados como sendo os verdadeiros pedreiros, razão pela qual o Manuscrito Wilkinson, uma Old Charge utilizada por algumas Lojas inglesas do inicio do século XVIII, continha o seguinte trolhamento para o iniciando: “P. Qual é o nome do pedreiro?” “R. Giblita”. Segundo Horne, essa palavra ainda hoje é utilizada em cerimônias de iniciação em Lojas inglesas e americanas
[12] Na imagem, o herói sacrificado. Gravura extraída do livro de James Frazer, o Ramo de Ouro.
[13] Veja-se o relato bíblico em Juízes: 11;30,31, na qual o juiz Jefté sacrifica a própria filha em razão de um voto feito á Jeová.
[14] Reis I- 8:5- Na imagem 2, gravura mostrando os maçons em volta do esquife do Mestre Hiram. Fonte: “Morals and Dogma”, de Albert Pike - Kessinger Publishing Co. 1992.
João Anatalino

terça-feira, 20 de dezembro de 2016



Viajando com os Painéis




Autor: Dr. Jorge Norberto Cornejo


Complemento, tradução e pesquisa: Pedreiro de Cantaria (JRCardoso)

Todos nós sabemos que desde a antiguidade dos operativos que os ensinamentos eram transmitidos de forma oral e os trabalhos de construção desenhados em pedras e isto aparece de forma clara no Filme “Os Pilares da Terra”.

Cristopher Wrem, em uma de suas manifestações, nos diz sobre a arte da palavra e da importância que ela tinha, pois antes da imprensa propriamente dita, ou se escrevia pergaminhos, ou em pedras, ou se transmitia o conhecimento através da palavra.

Mais próximo da época dos maçons especulativos começaram a aparecer desenhos no chão das oficinas, marcados com giz, onde se formava uma espécie de painel, que eram apagados depois das reuniões.

A partir do século XVIII começam a surgir os painéis tais como os conhecemos hoje.

Os painéis a seguir, com alguns poucos comentários são frutos da pesquisa do Ir.´. Dr. Jorge Norberto Cornejo e são de grande beleza, pelo menos no meu ponto de vista.

Neste painel de F. Harris, do século XX, podemos notar que a escada se apoia sobre o círculo com as linhas paralelas. Podemos ver o livro da Lei, o Esquadro e o Compasso, e em seus degraus encontramos a cruz (Fé), a chave, a âncora (Esperança) e o símbolo pouco discernível da caridade. Este nos parece uma aplicação religiosa, fora de lugar na maçonaria.

De todas as formas, símbolos como a escada do Ser (a escada evolutiva, ou Escada de Jacó), a chave e a cruz (fora de seu contexto religioso) são esotericamente muito valiosos. Notar que na base da escada as linhas paralelas representam a dualidade, e em seu cimo está o diamante, símbolo da Unidade.

Os painéis têm sido sempre característicos das Lojas Inglesas ou Norte Americanas, mas também podemos encontrar Painéis de Lojas Francesas ou de outros países.

Em inglês, cada Painel se denomina “Tracing-Board” ou, também, “Trestle-Board”, correspondente à Tábua de Traçar.

Algumas tradições afirmam que todos os Aprendizes, nas Lojas Operativas, devem traçar no solo, com giz, os símbolos do seu grau.

Notemos, ademais, que o Painel apresenta uma grande analogía com o Templo, pois ambos consistem em uma integração harmônica dos símbolos do grau.

Uma imagem, possivelmente do século XVIII, na qual os membros recebem a “iluminação” como resultado de seu trabalho sobre o Painel

Aquí o Painel aparece montado sobre um marco de tábuas.

Em uma divulgação publicada em Londres, em 1762, chamada de “Jachim e Boaz”, se diz que o candidato a iniciação aprende como avançar até o mestre (dando a marcha ou o “o passo”) através do desenho no chão.

Se afirma que tal Desenho é semelhante a “Grande Construção” (o Templo de Salomão), “chamada palácio de mosaicos e que deve descrever-se com a maior exatidão possível”.

Aqui o termo “palácio” talvez seja um erro de tradução (por pavimento), ou talvez se disse tal nome se referindo ao Templo de Salomão.

O instante da iniciação em que se ensina ao Candidato a forma de marchar sobre o Quadro da Loja ou Painel.

A obra acima menciona que, entre as figuras que aparecem no Painel, se encontram a Corda de Laços e o Trono cravejado de Estrelas.

O costume era desenhar tais símbolos com giz e apagá-los ao final da reunião.

Voltando a mesma obra, se diz que, em algumas Lojas, “o membro recentemente admitido”, é obrigado a apanhar um esfregão e um balde de água e limpar o desenho feito no chão, o que o lhe causa grande confusão, mas provoca uma grande alegría nos demais irmãos.



Posteriormente, na Inglaterra, os desenhos foram copiados em carpetes ou tapetes e, progressivamente, o costume de desenhar e apagar os Quadros ou Painéis,em cada Oficina foi desaparecendo.

Estas práticas foram copiadas no continente Europeu, na França, Alemanha e Áustria, na forma de carpetes, lonas ou tapetes de Loja. Todavia, mais tarde, as telas foram apoiadas em uma tábua com cavaletes e dai vem o costume de executar o desenho sobre uma tábua rígida.

Na imagem acima, um antigo Painel francês.


Segundo Ferry Haunch (Transações da Loja Quatour Coronati n 2076), existe certa evidencia de que o termo: “Tábua de Cavalete”, expressado em inglês com vocábulos tais como “trestle”, “trassle” e “training board”, ficou finalmente na forma corrupta de “trainsing” para finalmente consolidar-se como “traicing”.

Nos Estados Unidos a expressão “trestle board” se emprega com o mesmo significado.

Na imagem acima, Painel de 1.800.

Muito poucos Painéis anteriores a 1.800 sobreviveram.

A partir desta data surge um conjunto de desenhistas ingleses de alto nível, entre eles John Cole, cujas gravuras apareceram em 1.801 e John Browne, que por volta de 1.800 desenhou um conjunto de Painéis coloridos.

Com as obras de Josiah Bowring e John Harris os Painéis ganharam ainda mais em qualidade artística, incluindo um conjunto simbólico mais detalhado e empregando a perspectiva com finalidade estética.

Na imagem acima, Painel de John Harris (1.801). toda a simbología, do Aprendiz. O Esquadro e o compasso aparecem na posição de Companheiro Maçom.

Painel anónimo (1.802) Painel de J. Bowring (1.819). 


 Painel de 1845. Observar as “tesouras”  que sustentam os pés.l Painel contemporâneo. 

Painel contemporâneo. Note-se o erro de se colocar janelas de se colocar as janelas no norte. (Quadro de 1.873)

Painel do Rito Francês (2008) Sem referência





Segundo Dom Falconer os Painéis Maçônicos devem ser construídos seguiindo a proporção áurea, isto é, , . Esta deveria ser a relação entre “latitude e longitude de um painel, para ser harmonioso.

“Só pela contemplação regular dos símbolos maçônicos é possível compreender seu verdadeiro e esotérico significado. A chave do conhecimento maçônico está presente nos emblemas mostrados nos painéis de cada grau, porém só através de seu estudo frequente se pode retirar o véu da alegoría e revelar sua verdade oculta (Mackey).”


OS SIMBOLOS



De acordo com a tradição o painel da Loja de Aprendiz deveria conter, no mínimo nove símbolos:

1 - Um pórtico elevado sobre três degraus, adornado com duas colunas de bronzes sobre cujos capitéis descansam três granadas entreabertas, que deixam aparecer suas sementes.
2 - uma pedra bruta.
3 - uma pedra talhada de forma cúbida.
4 - Um esquadro, um compasso, um nível e um prumo.
5 - Um maço e um cinzel.
6 - Uma tábua polida, denominada prancha de trançar.
7 - Três janelas abertas na Loja (as luzes fixas ou luzes da Ordem).
8 - Ao oriente (leste) da Loja, o sol e a lua.
9 - A Loja está ornada com uma orla dentada que decora o friso interior da abóbada.



 



O que significa pórtico.

R – Significa o ponto do Oriente donde o Sol se eleva sobre o Hemisfério. É também a figura da iniciação, a porta que separa o mundo profano do mundo maçônico. “se introduz o candidato no Templo para que conheça o Universo”.

O que significam as duas colunas de bronze?
R – Significam os dois pontos solsticiais, mas no grau de Companheiro se procura ter um conhecimento mais profundo.

O que significam as granadas entreabertas sobre os capiteis das colunas?
R – A vida Universal.

O que quer dizer a pedra bruta?
R – Toda obra em seu começo e, em particular, o homem antes de ser iniciado, o homem bruto e ignorante.
                     


O que indica a pedra polida e cúbica?
R – Representa o iniciado, o homem que tem trabalho sobre si mesmo.

O que representam o esquadro, o compasso, o nível e o prumo?
R – Como esses instrumentos são indispensáveis para fazer construções sólidas e duráveis, nos recordam as faculdades que o ser humano pode utilizar em sua vida. O Esquadro, a razão; o Compasso, a análise, a medida; o nível, a humanidade; o prumo, o esforço por se aperfeiçoar perante o mundo e perante Deus.

Que quer dizer o maço e o cinzel?
R – São os símbolos da força dirigida ou controlada, possivelmente porque assim foram utilizados pelos trabalhadores da pedra.


                          


O que representa a prancha de desenhar?
R – A ardósia onde o Mestre ou Arquiteto traça os plano da Obra; aquilo donde se grava o pensamento.

O que representam as três janelas?
R – O Oriente, o Sul e o Ocidente; o amanhecer, o meio-dia e o ocaso. Trata-se, por suposição, de janelas simbólicas, por que o Templo realmente não tem janelas. É através desses pontos que se localizam, respectivamente, o Mestre e os Vigilantes, por onde entra a Luz no Templo.

Por quê o Sol e a Lua estão representados na Loja?
R – Porque são arquetipos profundamente gravados na psiquê humana.

O que quer dizer a orla denteada?
R. A cadeia, a unidade, a fraternidade.

Alguns tem buscado correspondencias entre os símbolos do painel (tabuleiro ou prancha de desenho) e os astros que podem divisar-se no céu a olho nú, tal como apreciamos na imagen da direita.

Os quadros maçons tem adquirido todas as formas, cores e variedades possíveis, incluindo a Arte Moderna.

Especialmente, destacam-se os do artista Ferenc Sebok, entre o estilo Arte Deco e o Surrealismo.

Em todos eles a letra hebráica yod geralmente substituem a letra G, o que implica recuperar um símbolo tradicional.

OBRAS DE FERENC SEBOK

             
 


 

O Quadro à direita é da Loja "Eperon dos de Namur". Parece ser do Grau de Companheiro.



Um painel muito original, de data desconhecida, baseadona arquitetura clásica. No século XVIII, O painel (ou quadro) era diretamente denominado “Loja”. 



Um Painel bem simples “minimalista”, mas que não carece dos símbolos fundamentais.


Um Painel incompleto? Falta a inicial da Coluna B (talvez isto tenha sido de propósito, mas desconhecemos os motivos)

O Painel ou Quadro de Desenhar é conhecido em inglês como “drawing the Lodge”, literalmente “desenhando (ou descrevendo) a Loja”.

                   





Um painel de corte “metafísico”, no que se apresenta ao Logos o Filho (o Mestre), como o equilíbrio entre o céu (Pai) e a Lua (Mãe), representados pelos Vigilantes



Um Painel, possivelmente do século XVIII, no qual aparecem símbolos do Aprendiz e do Companheiro. Os quatro pontos cardeais, símbolos da regularidade e perfeição são conhecidos como “Pontos Geométricos”.

Antigamente, as três janelas que se vêm no Quadro, ou Painel, se chamavam as “luzes imóveis” e se dizia que sua função era “iluminar aos homens no ir e vir de seus trabalhos.



Este Painel, muito parecido com o anterior, foi utilizado pela Ordem dos Arquitetos Africanos.



Painel do “Aprendiz de Maçom”, no qual se superpõe símbolos do Painel propriamente dito com outros da “Câmara de Reflexões”.



Outro Painel no qual se combinam símbolos do Aprendiz e do Companheiro.


Um Painel iluminado a mão, feito possivelmente para uso de um membro individual, isolado.


Painel do Grau de Aprendiz (Rito Escocês), por Jean Beauchar. Note-se a presença da rosa e que as mãos unidas estão na posição do toque de Aprendiz.


Painel do Grau de Aprendiz do Rito Memphis. Note-se que nos quatro vértices do Painel há borlas, que é muito habitual em todos os Ritos. Estas quatro Borlas (no vértice) se fazem corresponder aos quatro sinais: gutural, peitoral (que se dá no Grau de companheiro), manual (o toque) e pedal ou pedestre. E por meio dos sinais Se associam as quatro virtudes cardeais: temperança, fortaleza, prudência e justiça.


Um painel com características dos três graus simbólicos, mas com alguns símbolos não tão habituais na Loja Azul, como a Chave e a Cruz de Malta.

Painel de Aprendiz do Ritual do Supremo Conselho da Itália, tomado, por sua vez, de “Simbologia Maçônica”, de J. Boucher.



Painel do Grau de Aprendiz do Rito de Schoreder (1960)
Quantos ángulos tem a Loja de São João?
R – Quatro, com Painéis adjacentes.






“Traçavam com giz o piso da Loja, com o que sacralizavam o lugar” (Grande Oriente da França).

Este é um trabalho de pesquisa no qual se procurou sintetizar a história dos painéis. Espero que tenham gostado. TFA

José Roberto Cardoso (Pedreiro de Cantaria)