terça-feira, 16 de maio de 2017



INSTRUMENTOS DE TRABALHO DO APRENDIZ

A RÉGUA



O tempo é uma das mais preciosas Joias para aquele que dele sabe fazer um bom uso. Porém, ao negligente e indolente não passa de mera nulidade – para pessoas assim, os preciosos momentos são como dias e os seus dias são como anos. O seu trabalho é problemático, a sua vida é um pesado fardo. Em suma, uma estátua que se mexe é uma pobre comparação àquela simplória alma que não consegue encontrar tempo para fazer o bem aos outros e nem ser benéfico para si próprio.

Aquele que desperdiça o seu tempo parece estar em um, ou próximo a um, estado de inexistência, pois, apesar de ele comer, beber, etc., provar que tem uma substância animal, onde estão as suas ações humanas? Onde estão aquelas emoções, grandiosas e nobres da alma? Onde está aquela grande Luz que deveria ser colocada sobre um pedestal e pela qual o mundo possa ver com plenitude tratar-se de um bom maçom e de um verdadeiro cristão? Certamente tudo isso foge ao indolente inativo e o incapacita de governar a si próprio ou de dar luz a outrem. Que tão insignificantes trastes sejam então banidos da face da terra, ou que o caráter dos “inúteis” esteja estampado em suas testas e, para sempre, privados do benefício de qualquer elo social.

Mas o bom maçom cuidará para que o seu tempo seja bem empregado, a pedra seja bem esquadrada e a construção prossiga com coragem e bravura.

Que as diversas partes de nosso trabalho sejam medidas e dosadas apenas pela Régua de um Dia, fazendo com que cada parte de nosso trabalho seja justa e com dimensões apropriadas de comprimento e largura, pois aquele que cuida de suas medidas tem mais condições de trazer perfeição ao seu trabalho. Mais do que aquele que o negligencia, não obstante possa ele assim tentar.

O nosso Grande Mestre Salomão nos diz que “sob o Céu, para cada coisa existe o seu tempo e um tempo para cada coisa”. “Existe um tempo para servir ao nosso Criador; um tempo para trabalhar atendendo as imposições de nossas necessidades; um tempo para fazer o bem ao nosso próximo e um tempo para o descanso”. A equilibrada e sensata dosagem do qual é útil e necessária. Pois aquele que aplica uma boa medida é o que mais certamente trabalhará em verdade e em regularidade, enquanto aquilo que é feito com indolência e sem medida será imperfeito e desgostoso. Quão prazeroso e proveitoso, então, deve ser repartir bem aquele curto Tempo que temos, empregando cada uma de suas partes e propósitos grandiosos e humanos.

O bom desempenho de nossas obrigações e deveres e cumprindo aquela grande e importante confiança a nós atribuída, certamente é a mais prazerosa satisfação que pode tomar conta do peito de um ser racional. Os enganosos atrativos da opulência, da soberba e do poder, mesmo aqueles ostentados por reinos e impérios, comparados a esta satisfação interior, são como o fugaz cintilar do vapor exposto ao Sol ou um átomo em relação ao Universo. O bom maçom, a salvo disso, não deve temer as censuras e reprovações dos outros, nem daquilo que é ainda pior, a implacável crueldade de uma consciência sem relento. Ao contrário, ele gozará dos frutos do seu trabalho com uma tranquilidade e uma serenidade mental, aqui e na eternidade – uma felicidade que jamais findará.

Mesmo quando os compiladores de 1816 determinaram quais seriam os Instrumentos do Trabalho de um aprendiz maçom, parece ter havido duas opiniões quanto ao seu exato significado moral. Na versão mais usada em geral, nos dias de hoje, a Régua de 24 polegadas é dividida em três partes: para a oração, para o trabalho e o descanso e para o serviço. Nas Lojas dos Antigos que é de onde este Instrumento vem, “uma parte é reservada aos trabalhos, parte ao serviço a Deus e assistência a um Irmão, e parte para o sono e descanso”. Em alguns documentos antigos, existe certa dúvida se o dia deveria ser dividido em três ou em quatro períodos. Embora alguns autores tenham esboçado essa divisão em três, conforme a prática de Santo Agostinho, é provável que a adoção de quatro períodos tenha surgido antes da época em que o número “três” tivesse adquirido a importância e significado que tem para o Primeiro Grau.

Willian Preston faz referência à divisão em três períodos:

Porque os três empregos aplicados àquelas três divisões são igualmente essenciais à felicidade do homem e o distinguem da criação animal, pois o homem precisa suportar a si próprio pelo produto de seu trabalho manual. Mas também ele quer o descanso e o conforto para que possa continuar o seu trabalho e, como um ser racional, também devendo empregar as suas faculdades mentais na contemplação da Natureza e dedicar a devida adoração ao seu, Onipotente Criador.

Os Antigos viam o Maço Comum como o monitor da consciência, enquanto o Malho citado anteriormente serve par apurar, eliminar todas as saliências e suavizar as superfícies. Isso combina o uso padrão de nossos dias, mas a explanação moral alternativa que surgiu no período de 1816 por meio da Stability Lodge of Instruction vale ser comparada graças aos seus distintos significados:

Com a Régua de 24 polegadas podemos aprender uma lição cotidiana de advertência e instrução, pois ao ser dividida em 24 partes ela nos lembra da divisão natural do dia em 24 horas e nos orienta a aplica-las a seus apropriados objetos, quais sejam: a prece, o trabalho, o descanso e o sono. Com o Maço comum aprendemos que o talento e a perícia sem a aplicação de quase nada valem; que o trabalho é a sorte do homem; que o coração pode imaginar e o coração pode planejar em vão se a mão não estiver pronta para executar o desígnio. Com o cinzel nós aprendemos que a perseverança é necessária para que se consiga a perfeição; que a matéria bruta pode receber seu fino polimento, mas isso só se dá por intermédio de repetidos esforços; que nada que não seja fruto de uma incansável aplicação pode levar ao hábito da Virtude, ao esclarecimento da mente e a uma pureza de espírito. Disso tudo extraímos esta moral, aquele conhecimento baseado na precisão, ajudado pelo trabalho, e promovido pela perseverança, haverá de, finalmente, sobrepujar todas as dificuldades, tirar a ignorância do desespero e estabelecer a felicidade nos caminhos da ciência.

O Dr. Oliver, ao recolher os pensamentos de outros autores junto aos seus, assim escreve:

A Régua de 24 polegadas, cujo aparente uso é o de apenas medir linhas e distâncias, entre os maçons se refere, mais especificamente, às 24 horas do dia e destaca a necessidade de uma distribuição uniforme do Tempo: uma parte devendo ser aplicada ao trabalho, outra parte reservada para o descanso e um a terceira parte para a prece e a meditação. Foi assim que o excelente monarca e Grão-Mestre dos maçons, Alfred – O Grande, fez uma equilibrada e justa apropriação de suas horas, depois de ter vencido todos os seus adversários, e em paz sentou-se no trono de seus domínios hereditários. É de fato primordial que se cuide do progresso do tempo. O tempo parece não se mover. Veja o mostrador de seu relógio. Ele está ali, fixo e imóvel. Você não consegue ver o processo pelo qual o tempo é dividido e, ainda assim, hora após hora, ele vai passando. O mostrador ainda continua ali, no mesmo lugar, mas está, na verdade, avançando como se o decorrer do tempo fosse visível ao seu olho. De forma semelhante, o sol no Firmamento mede os dias, as semanas, os meses e os anos e ainda assim, não importando o quão atentamente você observe, você não tem a menor percepção visual de seu curso. Ele surge no Oriente e você o vislumbra no púrpuro amanhecer. Ele chega ao seu meridiano ao sol de forma ainda imperceptível ao olho humano e você sabe que metade do dia já se foi. Majestosamente ele vai ao fim de sua trajetória diária e, ao se pôr no Ocidente, você percebe que está um dia mais próximo daquele que haverá de, por fim, encerrar todas as suas ligações com este mundo, e introduzi-lo a outro mundo em que esta divisão de tempo cessará e uma infindável eternidade se descortinará ante os seus olhos. Que este pensamento seja um estímulo e um incentivo às atividades virtuosas, que a sua admissão à Eternidade seja gloriosa, plena de paz e de indescritível alegria.


(EXTRAIDO DO LIVRO O SIMBOLISMO NA MAÇONARIA, POR COLIN DYER, EDITORA MADRAS)

segunda-feira, 15 de maio de 2017


O TEMPLO E A LOJA.



Autor: João Anatalino

Do alto dos andaimes de Notre Dame, Jean de Longwy contemplava Paris. O quanto essa cidade havia crescido nos últimos anos! De fato, Filipe, O Belo, com suas maquinações, com sua volúpia em transformar a França em um estado nacional, fora responsável também por uma grande transformação na paisagem urbana das cidades francesas, especialmente na sua capital. Quase todos os núcleos urbanos, de uma maneira geral, haviam encorpado. Ocorrera uma migração em massa dos campos para a cidade, em razão das novas leis que Filipe impusera ao país, tornando mais fácil e menos onerosa a libertação dos servos da gleba, antiga e detestável lei que vinculava as pessoas á terra, como se elas fizessem parte da propriedade e passíveis de serem transferidos com ela, como se fazia com os animais e demais utensílios que nela existia.

Esse era o sistema feudal. Ele atava as pessoas em um elo de suserania e vassalagem, onde os barões mais aquinhoados mantinham uma rede de nobres menos providos de fortuna, através de uma cadeia de vassalagem que começava no mais simples dos cavaleiros e terminava na pessoa do rei, o maior de todos os suseranos. 

E na base desse sistema, o povo. Não havia fazenda que não pertencesse a um nobre, nem cidade ou aldeia que não fizesse parte dos domínios de algum barão. O rei concedia os feudos aos seus escolhidos e os escolhidos faziam os seus próprios vassalos. E o povo, nas cidades, aldeias e fazendas de cada feudo eram os braços e pernas que sustentavam o sistema, trabalhando para produzir a riqueza que os mantinha. 

Por isso é que ocorria, ás vezes, de um vassalo se tornar mais rico e poderoso que seu próprio suserano. O poder sempre dependia do tamanho e da riqueza que as propriedades feudais garantiam para o seu senhor. Feudos como a Aquitânia, a Normandia, o Artois, eram territórios disputadíssimos, pois contavam entre os mais ricos no reino da França. Daí a constante disputa entre os reis de Inglaterra e França, pois a Normandia, e algumas possessões na Aquitânia pertenciam ao rei da Inglaterra, que por essa razão, era vassalo do rei da França. Essa estranha relação de suserania entre um rei e outro frequentemente era motivo para conflitos. Esses conflitos, de um modo geral, sempre eram resolvidos por casamentos entre as duas casas reais. Ora um príncipe francês casava-se com uma princesa inglesa, ora era o contrário, uma princesa francesa que se casava com um membro da família real inglesa.

Isso foi o ocorreu com os dois reis, de França e Inglaterra. A guerra que havia se iniciado entre os dois países em 1294 só terminou em 1303, pela assinatura do Tratado de Paris, quando Filipe, o Belo, deu sua filha Isabel, então com onze anos de idade, em casamento para Eduardo, herdeiro do trono inglês. Esse casamento iria, mais tarde, ser o estopim de uma nova guerra entre os dois países, quando o filho de Isabel de França e Eduardo II, da Inglaterra, viria a reivindicar o trono francês. Esse foi o motivo político da Guerra dos Cem Anos.

Sentado nos andaimes montados no frontispício da catedral de Notre Dame, Jean de Longwy olhava para a Ilha dos Judeus e pensava nos acontecimentos dos últimos anos. A extinção da Ordem do Templo, a cremação dos seus comandantes, as mortes, do rei, dos seus ministros, do papa... As dificuldades pelas quais a França passava no momento, com as péssimas colheitas, os invernos rigorosos, as revoltas populares, a política interna e externa instáveis, as guerras externas. Eram calamidades que pareciam não ter fim.

No entanto, as dificuldades da família real e as mudanças políticas ocorridas no seio do poder tinham sido benéficas para ele. O poder conquistado por Carlos de Valois junto aos filhos de Filipe, o Belo, que se tornaram reis, trouxe-lhe bons dividendos. Valois era partidário das antigas tradições feudais, e seu apoio á Liga dos Barões borgonheses fez com seu poder aumentasse dentro do reino. Ele era, agora, um dos principais barões de França. 

Longwy vinha constantemente á capital francesa, inspecionar serviços e atender a outros afazeres, próprios de um importante dignatário como ele era, e como mestre da poderosa confraria dos construtores civis, a Compagnionnage.

Sobrinho de Jacques de Molay, fora a ele que o velho grão-mestre do Templo, em um dos seus últimos encontros realizado na masmorra do Castelo de Paris, dias antes de ser levado á fogueira, delegara amplos poderes para reestruturar a Ordem em França, que havia sido formalmente dissolvida pela bula papal Vox in Excelso, em 22 de março de 1312. Jean de Longwy, naquela ocasião, apresentara á de Molay um balanço do que restara da Ordem do Templo.

– Todas as nossas 556 preceptorias em França foram ocupadas pela polícia do rei – disse Longwy.

– E o que houve com os nossos irmãos?– perguntou de Molay.

– Seiscentos e vinte foram presos e até agora temos notícia que cerca de cento e quarenta morreram, queimados em fogueiras, ou em consequência das torturas ou de doenças, nas masmorras – disse Longwy.

– Malditos! – vociferou o grão mestre. – Um dia haverão de pagar por isso. Deus não pode deixar impune essa infâmia!

– Se Deus não fizer, nós o faremos – disse Longwy, levantando-se e olhando cautelosamente pelo postigo da porta da cela, para ver se alguém os estava escutando. 

– Então tendes um plano em mente? Perguntou, esperançoso, Jacques de Molay.

– Enquanto estiverdes preso aqui em Paris, não podemos nutrir qualquer esperança de libertar-vos– disse Longwy. – Este castelo, como sabeis, é inexpugnável e está muito bem guardado pelas tropas do rei. – Mas nós sabemos que o papa não quer a vossa execução, nem dos altos dignatários do Templo. Então creio que logo sereis solto, ou condenado á clausura em uma cela em alguma Ordem, de onde podereis vos evadir, ou até continuar a nos comandar.

– Não tenho mais essa esperança, irmão. A Ordem do Templo nunca mais será o que foi. No entanto – ponderou o velho monge, cofiando a hirsuta e desgrenhada barba – dissestes que apenas seiscentos e vinte dos nossos irmãos foram presos, não é isso?

– Sim, meu irmão– respondeu Longwy.

– Então a maior parte dos nossos cavaleiros escapou, não é? Se não estou errado, nós tínhamos três mil e duzentos membros em França, entre cavaleiros, sargentos e monges. 

– Sim, irmão grão-mestre. E dos nossos trezentos e cinquenta monges cavaleiros, mais de cem escaparam para outros reinos ou se refugiaram nas montanhas de Lyon. Aliás – continuou Longwy – só nas montanhas de Lyon há mais de mil e quinhentos refugiados do Templo aguardando as nossas ordens para agir.

– Dizei a eles para esperar até que esse processo se finde e conforme for o resultado, vós os comandareis nas ações. Por enquanto não é conveniente nenhuma reação, pois como dizeis, se o papa está indeciso em relação ao que fazer conosco, então ainda existe uma esperança – disse de Molay. 
– De qualquer modo, nós cumprimos vossas instruções – informou Longwy. – O tesouro do Templo já foi destinado conforme estipulastes. Continuará servindo aos propósitos da Ordem. Ajudará os escoceses na sua luta pela liberdade e financiará nossos irmãos portugueses na sua luta contra os infiéis. Servirá também aos nossos propósitos de vingança. Com isso, aconteça o que acontecer, a Ordem continuará viva.
– Fico feliz em saber disso, meu irmão. Se eu tiver que morrer pela nossa causa, morrerei sabendo que nosso sacrifício não foi em vão – disse Jacques de Molay. – A propósito, nosso irmão Larmenius de Chartres, em Chipre, já tem suas instruções também, de como dar continuidade ao nosso ideal, mesmo que seja na clandestinidade. Prestai a ele toda a colaboração necessária e mantei sempre contato com os nossos irmãos de Ultramar.
– Sim, irmão grão-mestre. A nossa confraria de maçons tambémestá se preparando para dar continuidade aos nossos ideais de espírito. Quanto a isso podeis ficar sossegado. Estamos já procurando realizar uma fusão entre os ritos de iniciação e passagem, praticados pelos nossos iniciados e os ritos praticados pela Ordem. Com o tempo, o Templo e as Lojas dos maçons se tornarão uma única organização – disse Longwy.

– Posso então ficar tranquilo em relação aos nossos segredos iniciáticos – disse de Molay. – Espero que os tenhais bem de memória, pois como sabeis, tive que mandar queimar todos os livros, documentose rituais que a Ordem utilizava, para que eles não fossem descobertos e usados contra nós – completou.

– Fizestes bem. Esses padres ignorantes jamais iriam entender o verdadeiro significado deles. São tão rústicos que tomam por heresia toda e qualquer sabedoria que não conseguem entender –, disse Longwy. 

– Heresia. Heresia é tudo aquilo que ameaça o poder da Igreja, meu irmão – disse o grão- mestre.
– É verdade, meu irmão. Mas um dia todos os homens serão livres para escolher no que acreditar. Ninguém irá para a fogueira só por ousar ter ideias próprias a respeito de religião, ou por procurar saber como a natureza trabalha para produzir os seus fenômenos– disse Longwy, com um profundo suspiro.

– É um sonho, sem dúvida. Uma utopia pela qual lutamos e derramamos o nosso sangue. Uma pátria universal, onde todas as religiões possam conviver em paz e os homens se guiarem apenas pela consciência do bom e belo que cada uma ensina. Pois esse seria o nosso reino, se triunfássemos, – disse Jacques de Molay. 

─ Um reino onde a religião seria a moral que faz os homens justos e virtuosos e não uma superstição vendida nos púlpitos ─ suspirou Jean de Longwy.

─ A propósito, o que sabeis sobre o destino da nossa sagrada relíquia ─ perguntou de Molay, olhando para todos os lados, como se a confirmar que estavam sós na cela.
─ Sei que ela foi oculta em lugar onde ninguém jamais a encontrará. Podeis ficar tranquilo quanto á isso, irmão grão-mestre.

─ In Arcádia Ego ─ murmurou Jacques de Molay,

─ In Arcádia Ego ─ repetiu Longwy. ─ Oxalá Ele repouse finalmente em paz, e as pessoas aprendam a viver pelo que ele ensinou e não deturpem mais a sua doutrina como justificativa para suas próprias ambições.

─ Esse foi o nosso sonho, irmão. Um reino onde a verdadeira doutrina de Cristo fosse praticada ─, suspirou De Molay. 

─ Foi um belo sonho, meu irmão, e devemos nos orgulhar de tê-lo sonhado ─ disse Longwy.

─ Sim. O sonho de reconstruir o Templo de Salomão. Mas eis que esse Templo também acabou sendo destruído como os outros. Quando será que a humanidade aprenderá a construir um Templo de Jerusalém perene, que seja capaz de resistir ás investidas da cobiça, da inveja e da maldade humana ─ perguntou, desconsolado, Jacques de Molay. 

– Esse sonho não acabou, meu irmão. Um dia haveremos de realizá-lo. O Templo de Jerusalém é a própria humanidade e nela se hospeda tanto o mal quanto o bem. E também sempre haverá nele um Mestre, que como vós e nossos irmãos serão sacrificados para que ele possa existir. Nós, os Obreiros de Salomão, tivemos no nosso arquiteto Hiram Abiff, o sacrificado do primeiro Templo. Jesus foi o sacrificado do segundo. Vós sereis o sacrificado do terceiro. Mas nós continuaremos a erguer templos á virtude e cavar masmorras ao vício. Os Soldados de Cristo e os Obreiros de Salomão, ambos Filhos da Viúva, doravante trabalharão pelo mesmo ideal. A nossa tradição será conservada pelos séculos dos séculos através dos ritos e da arte de construir edifícios e nações. E um dia...

– Oxalá eu pudesse viver para ver esse sonho realizado, meu irmão– disse Jacques de Molay, abraçando fortemente o mestre da Compagnionnage.

Os três abraços cruzados, peito contra peito, cada um seguidopor três batidas nas costas, que os dois Templários se deram, não passaram despercebidos á messier Jean de Janville, que havia chegado silenciosamente, e estava parado, junto á porta da cela, com um pique na mão. 
Jean de Longwy percebeu a presença importuna.

─ Chove sobre o Templo, irmão ─ disse Longwy, ao ver o carcereiro, em pé, na porta da cela.
- Resguardemo-nos das goteiras, então- respondeu de Molay. Imediatamente, de Molay levou a mão direita, em forma de garra, ao lado esquerdo do peito, como se estivesse arrancando o próprio coração. Esse era um gesto que tinha por objetivo ocultar a cruz no peito, quando na presença de profanos. Longwy repetiu o gesto. Esse era um sinal distintivo entre os Templários que se fazia quando, entre eles, pessoas estranhas ao seu convívio eram introduzidas.

À Janville, a estranha troca de sinais não passou despercebida.“Pois é”, pensou o arguto carcereiro: “Bem que me disseram que esses Templários eram mesmo uma gente muito estranha.”

(EXCERTO DO CAPÍTULO XXVIII DO ROMANCE " OS MESTRES MALDITOS)



A ENTRADA NA CAVALARIA: A INVESTIDURA


A investidura de um cavaleiro desperta em nossa memória, no melhor dos casos, de iluminuras de manuscritos muitas vezes tardios (séculos XVI e mais ainda XV). No pior dos casos, talvez mais frequente, de filmes ditos “históricos” muito romanceados, mais preocupados em responder à expectativa emocional do público que em conformar-se a uma realidade julgada muitas vezes banal demais, colorida com significados demasiadamente diversos e ambíguos e ainda variam conforme os lugares e as épocas. Foi assim que se impôs, em uma grande parte do público, a imagem estereotipada de uma investidura ritualizada pela qual todo cavaleiro pode por sua vez “fazer cavaleiro” um postulante que seja digno. Em pé diante desse postulante, às vezes com um joelho do chão, ele o investe, batendo-lhe levemente aos ombros com a lâmina de sua espada e, com esse gesto, lhe “confere a cavalaria”, tal como Bayard fez cavaleiro seu rei na véspera de uma batalha. Ele acrescenta, às vezes, a seu gesto uma declaração ética que menciona os deveres que lhe competem doravante enquanto cavaleiro; ser em toda parte o defensor dos fracos e oprimidos, o protetor da mulher e do órfão, o sustentáculo das causas justas.

Essa representação de investidura não é radicalmente mentirosa, mas ela não deixa de ser totalmente inexata. Trata-se, de fato, de uma imagem compósita, que reúne traços que surgiram em épocas diversas e nunca coexistiram. A maioria deles é muito tardia, outros são primitivos e rapidamente desapareceram, outros ainda pertencem mais ao domínio do sonho e do mito que ao da realidade.

Existe uma outra imagem da investidura, menos difundida, mas também inexata porque é demasiadamente parcial e partidária. Nela é um bispo que oficia e a cena se passa em uma catedral. Depois de uma noite inteira passada em orações, o futuro cavaleiro é investido. Sua espada, previamente depositada sobre o altar, foi abençoada pelo oficiante, assim como a maior parte de suas armas. O bispo, ao lhe entrega-las, pronuncia orações e fórmulas de bênçãos carregadas de elementos éticos de caráter religioso. Por fim, ele “faz cavaleiro” o postulante ao cingi-lo com o gládio, símbolo de uma missão de defensor da Igreja, de combatente da fé, de protetor de todos aqueles que não portam armas; membros do clero, pobres, viúvas e órfãos.

Há uma terceira imagem, menos difundida, mas talvez menos errada, ao menos originalmente: em certa corte de castelo, um senhor fornece publicamente aos guerreiros que ele acaba de recrutar, assim como alguns jovens de sua casa que têm idade, as armas que farão deles cavaleiros a seu serviço ou a serviço de parentes ou aliados. Simples entrega de seus “instrumentos de trabalho” a guerreiros na maioria das vezes subalternos, essa formalidade quase não apresenta traços cerimoniais e marca somente a entrada de um rapaz na carreira militar.

Por fim, há uma quarta imagem: quando da sagração real, a exemplo de São Luís, o futuro soberano era armado e feito cavaleiro antes de ser coroado. 

Essas quatro imagens ilustram traços diferentes resultantes de horizontes e épocas diversas. Nenhuma reflete a realidade da entrada na cavalaria que não tem evidentemente as mesmas características, nem talvez o mesmo significado, conforme se trate da investidura de um guerreiro comum no início do século XI ou da promoção à honra cavalheiresca de um rei no começo do século XVI.

Como a cavalaria, a investidura reconheceu uma profunda evolução no decorrer de sua história. Essa história da investidura nunca foi feita. Só poderemos, portanto, fazer aqui um breve resumo apoiado essencialmente em obras pessoais e nas obras de alguns raros medievalistas que tentaram esclarecer essas áreas diversas de que os padrões muito rígidos do ensino universitário não favorecerem muito a utilização conjunta. O historiador, preparado para o estudo crítico severo e austero dos textos latinos, principalmente diplomáticos e jurídicos, desconfia muitas vezes – quando ele não as ignora totalmente – das fontes literárias que lhe parecem pouco seguras, pois são demasiadamente atingidas pelo imaginário. O medievalista literário interessa-se muitas vezes mais pela forma do texto e seu valor poético que por sua dimensão documental e seu gosto e leva geralmente pouco às investigações minuciosas e áridas da pesquisa histórica. Ambos são igualmente pouco atraídos pelos textos de natureza teológica ou litúrgica. Ora, acontece que a história da cavalaria em seu conjunto e da investidura em particular exige o recurso a essas três áreas. Sua exploração e a síntese resultante apenas são difíceis, mais vastas e mais lentas.

O SIMBOLISMO DAS ARMAS

Convém antes de tudo evitar uma armadilha: a generalização apressada. Uma mesma palavra como vimos no capítulo anterior não designa sempre e em toda parte um fenômeno único. Mais ainda, ela não abrange a mesma realidade ao longo do tempo que passa. Os termos ministro, gabinete, ou...cavaleiro dão uma clara demonstração disso. O mesmo acontece também com a entrega das armas cujo significado difere de acordo com os tempos e as circunstâncias. Nem todo recebimento de arma é necessariamente entrada na cavalaria, nem toda concessão da espada é uma investidura.

As mais antigas menções de entregas solenes da espada, de fato, não são ligadas à entrada na cavalaria: elas constituem um dos ritos fundamentais da coroação dos reis francos do Ocidente, muito antes que se pudesse realmente falar de cavalaria, a partir do século IX.

A razão disso é simples: na sociedade ocidental, merovíngia, depois carolíngia, resultante da impregnação da malha romana antiga pelas mentalidades novas dos conquistadores germânicos, a guerra constitui um valor fundamental; as armas têm um caráter sagrado e todo rei, todo governantes, todo “grande” só podia ser um guerreiro. Os primeiros reis germânicos, como sabemos, eram eleitos pela assembleia de seus companheiros guerreiros, elevados ao posto mais alto e revestidos com armas de pompa digna de sua posição. Ao se “romanizar” um pouco, as realezas bárbaras policiaram-se, a Igreja atenuou e institucionalizou seus usos e costumes, mas sem eliminar seus fundamentos guerreiros. Quando muito, ela “batizou”, cristianizou seus ritos que de “mágicos e pagãos” tornaram-se “mágico-cristão”. É particularmente o caso dos ritos ligados à espada, sinal, entre os germanos, do poder armado de direito divino, da autoridade, da violência guerreira de caráter sagrado. Esse valor eminente das armas entre todos os germanos já atingia César, para o qual a entrega das armas significava a entrada em uma profissão característica, o exército, e não a entrada em uma classe de idade. Eles escrevem de fato: “Negócios públicos ou negócios privados, eles não fazem nada sem estar com armas. Mas o costume diz que ninguém toma das armas antes que a cidade tenha reconhecido que ele é capaz de fazê-lo. Então, na própria assembleia, um dos chefes ou o pai, ou seus próximos, paramentam o rapaz com o escudo e a lança; essa é sua toga, aí estão as primeiras honras de sua juventude; mas, antes disso, eles devem pertencer a uma casa, em seguida ao Estado” (Tácito, A Germânia, Ed. J. Perret, Paris, 1983, p. 783). Oito séculos mais tarde, o historiador Paul Diacre relata que os filhos dos reis lombardos não são admitidos à mesa de seu pai enquanto não tivessem sido julgados dignos de receber as armas da mão de um outro rei, em uma outra corte. Apesar do caráter fragmentário desses testemunhos, muitos historiadores não hesitam em ver neles os traços contínuos do costume que, nos séculos X e XI, levava os senhores a enviar seus filhos à corte de um próximo (geralmente um tio materno) a fim de que eles fossem “alimentados”, isto é, educados como escudeiros, servindo “por armas” até sua investidura por esse mesmo senhor. É difícil afirmar, pois há aí uma “lacuna” documental de diversos séculos. Esses relatos testemunham em todo caso o valor sobre-eminente das armas nessas sociedades germânicas (testemunhado também pela arqueologia, em particular os túmulos) e o sentido “cívico” e social, próximo de um raio de passagem, da entrega das armas nos meios elevados.

A espada, em particular, assume na Idade Média novos significados. Entre os romanos, como vimos, ela era associada ao poder delegado dos magistrados que agiam em nome do Estado. O desaparecimento, ou, ao menos, a privatização da noção de Estado e de serviço público enriqueceram essa simbologia. O rei inicialmente, depois, a partir do século IX, os condes e outros príncipes são representados “em majestade”, portadores dos signos de sua função e em particular de espada, símbolo de sua autoridade sobre os homens, diríamos hoje de seu poder de justiça, de polícia e de direção das forças armadas. Essa espada dos príncipes tem tal valor simbólico que, em uma assembleia tumultuada, reunindo franceses, normandos e alemães que brigavam, bastou que o duque da Normandia, Guilherme Longa-Espada, a enviasse ao local por intermédio de um de seus barões para que os espíritos, ao vê-la, se acalmassem imediatamente e que a ordem fosse restabelecida.

Para “os grandes” (os únicos que, nos textos mais antigos, recebem a atenção dos redatores), a entrega da espada não marca, portanto, apenas, nem mesmo sobretudo, sua entrada em uma calaria que ainda viria a nascer. Ela tem um significado social e político mais que profissional ou militar.

A ENTREGA DAS ARMAS COMO SINAL DE PODER

As menções mais antigas de entrega de armas (e em particular da espada), nos anais e crônicas, referem-se de fato a imperadores, reis depois príncipes no momento em que eles atingem a idade das responsabilidades. Isso é evidente no caso da entrega da espada aos reis na sua coroação. Encontramos menção disso já no século VIII, mas as formas rituais são conhecidas somente a partir do século X, principalmente por meio dos rituais de benção do Pontífice Romano-Germânico que se impõe pouco a pouco no Ocidente dessa época e cujos textos nos são fornecidos por muitos manuscritos. Esses rituais merecem atenção, pois várias orações e bênçãos, ligadas à entrega do gládio ao soberano (ao lado da concessão do cetro, da coroa e outros símbolos do poder real) foram bem mais tarde reutilizados para investiduras de cavaleiro. A ética real que está expressa aí foi então transferida aos cavaleiros depois de um longo percurso que vamos descrever.

Além dessas entregas de armas, parte integrante dos ritos de coroação real, há outras que não estão diretamente ligados a eles, mas que não deixam de expressar, por lembrança ou por antecipação, um direito de governo. Quando um rei ou um príncipe já coroado se tornava (ou se tornava novamente) o mestre de um principado, ducado ou condado, ele não era coroado novamente, mas uma entrega solene das armas, geralmente a espada, traduzia simbolicamente sua autoridade sobre essa região. Conhecemos vários exemplos disso nos séculos IX e X. Por outro lado, quando o novo príncipe não tinha idade para ser coroado (e ainda menos, desconfiamos, para se tornar cavaleiro, o que não era praticamente possível antes dos 15 anos), ele recebia armas que não tinham evidentemente nenhum significado “profissional”, mas expressavam aos olhos da assistência o poder que era conferido ao príncipe tão jovem. Essa autoridade incluía, certamente, a função militar (como chefe dos exércitos), mas de forma alguma o exercício efetivo dessa função, como “cavaleiro” ou simplesmente guerreiro. Observamos isso claramente, por exemplo, em 781, quando Carlos Magno concede a seu filho Luís o governo da Aquitânia, ao qual são entregues, antes de sua partida, “armas adaptadas a sua idade”...ele tinha de fato 3 anos na época. Dez anos depois, ele foi “cingido com a espada” por seu pai em Ratisbonne. Não era ainda muito cedo para se tornar “cavaleiro”? É melhor vermos nisso novamente o sinal da divulgação de um direito de governar. É também nesse mesmo sentido que, no momento de sua deposição (por exemplo, a de Luís, o Piedoso, em 833), os imperadores, os reis ou os príncipes são privados de seu cingulum militae, que, aqui, não designa evidentemente o “boldrié da cavalaria”, mas sim, o “cinturão do serviço público”. Observamos isso no mais alto nível uma vez que se trata de soberanos. Podemos citar numerosos exemplos que vão nesse mesmo sentido.

A evolução da coroação para baixo e a entrega de armas, principalmente da espada (que os alemães chamam Schwertleite para distingui-la, exatamente, da investidura cavalheiresca, Ritterschlag) tem início já no século X e temos traços mais claros disso no decorrer dos séculos XI e XII. Nessas épocas, conhecemos fórmulas de coroação reservadas a duques e condes e também entregas de armas destinadas a príncipes de menor importância, e até a senhores ou castelões que exerciam, teoricamente em nome de seu rei, funções públicas da alçada real; direito de banimento ou autoridade militar, direito de justiça, direito de cunhar moedas, etc. Aqui também, na maiores dos casos, essas entregas de armas não são geralmente sinal de uma entrada na cavalaria, mas a manifestação pública (em uma época em que gestos e ritos visíveis são mais importantes que a escrita) da acessão de um jovem senhor a suas novas responsabilidades de governantes e chefe da guerra. É a razão pela qual essas entregas de armas são, na maioria das vezes, associadas a outras cerimônias que demonstram igualmente a autonomia e o poder adulto dos “grandes”; casamento, investidura, concessão de uma área, etc.

Até onde ocorresse essa evolução para baixo? É muito difícil dizer. Podemos afirmar isso em todo caso com relação aos mestres das grandes senhorias. É provável que também os castelões, aqueles que ao menos detêm uma parte importante do poder público privatizado, o termo militia, como vimos, também os designassem. Mas quanto mais descemos na hierar1quia dos poderes efetivos, mais esses poderes se reduzem até confundir-se apenas com o exercício do poder armado. É nesse nível que devemos situar os cavaleiros. Não conhecemos infelizmente, para eles, rituais de investiduras específicos antes do século XII. A Cavalaria, antes dessa data ainda está no limbo e os cavaleiros são apenas guerreiros, subalternos na maioria, que combatem por seus mestres e dos quais se exige somente força física, coragem, fidelidade e obediência. Essas são virtudes de base da futura cavalaria.

A IGREJA E A ENTREGA DAS ARMAS

Antes do início do século XI, a Igreja quase não se interessa pelos cavaleiros, que são apenas executores. A entrega de armas “principesca”, por outro lado, merece toda a sua atenção, pois se trata de personagens que detém o poder e dos quais ela tem tudo a esperar ou a temer. Os rituais da sagração real testemunham isso, já que são tão fortemente carregados de declarações éticas pedindo a Deus que ajude o rei nos diversos aspectos de sua missão: boa justiça, fidelidade à fé, proteção das igrejas, defesa de seus interesses, assistência aos pobres e aos fracos. Só podemos ficar surpresos com a estreita semelhança desses deveres expressos na liturgia sacra como nas obras didáticas que denominamos “espelhos dos príncipes” e com as quais a Igreja, por intermédio da planta de Alcuin, Jonas de Orléans ou Hincmar de Reims, ensina então aos reis como eles devem conhecer e conduzir sua missão nesta terra. Aqui está a título de exemplo, a tradução de uma dessas bênçãos reais: “Receba, com a benção de Deus, esse gládio que te é transmitido para punir os malfeitores e honrar as boas pessoas. Que por meio desse gláudio tu estejas apto, pelo poder do Espírito Santo, a resistir e a vencer todos os teus inimigos e todos os adversários da santa Igreja de Deus, preservar o reino que te é confiado e proteger a casa de Deus”. Vamos encontra-la mais tarde com utilizações menos elevadas.

A fraqueza do poder central, particularmente na França, conduziu como sabemos ao que temos o costume de chamar a “feudalidade”. Seria melhor falar de principados, depois de senhorias, pois o elemento feudo não é central. À unicidade do poder imperial de Carlos Magnos sucedem primeiramente os reinos francos resultantes da partilha de Verdun, logo depois a emancipação dos ducados e condados e a formação de entidades autônomas, principados territoriais, condados e até castelanias. Foi para os príncipes, muito provavelmente, que a Igreja compôs fórmulas litúrgicas muito próximas das da coroação real, utilizadas na entrega de sua espada, símbolo de seu poder e de sua função de proteção, ou quando das partidas em campanha dos exércitos reais ou principescos contra os pagãos, principais inimigos do Ocidente nessas épocas de invasões normandas, sarracenas e húngaras que só cessam definitivamente depois de 972. Algumas dessas fórmulas foram igualmente reutilizadas mais tarde, com algumas modificações necessárias, em diversos rituais de investidura.

O imperador é inicialmente, para a Igreja, o defensor designado. Mas a explosão política e a multiplicação dos conflitos internos que acompanham o declínio do poder central obrigam a Igreja – não apenas a de Roma, que na mesma época recruta milites sancti Petri e tenta cercar-se de vassalos e príncipes “fiéis de São Pedro” -, mas também todos os estabelecimentos eclesiásticos, e principalmente monásticos, a encontrar forças militares locais capazes de defender suas pessoas e seus bens cobiçados. Esse papel de “defensor da igreja” incumbia naturalmente ao advogado leigo do monastério, mas também aos vassalos que as igrejas possuíam em razão de suas grandes propriedades de terras, assim como aos soldados que elas recrutavam diretamente, como temos prova, para muitas igrejas como Reims, Toul, Rodez, Albi, Cambrai, etc.

E sem dúvida para sua investidura solene, que incluía por parte do senhor eclesiástico a entrega de objetos que simbolizavam sua função guerreira protetora (armas diversas, mas, sobretudo, bandeira e espada), que foram compostos os mais antigos rituais de benção de “milites”, considerados outrora como rituais de investidura. Eles são apenas seus ancestrais, destinados não a cavaleiros “comuns”, mas a guerreiros de um tipo particular, os “defensores ou vassalos-guerreiros das igrejas”, como o indica aliás o título do ordo de Cambrai contido em um manuscrito de Colônia do fim do século XI. A função específica desses guerreiros facilitava oportunamente a adoção de orações anteriormente reais ou principescas, muito ricas em elementos éticos que incluem, entre outros, a defesa e a proteção da Igreja no sentido amplo do termo. Portanto, não ficamos surpresos ao encontrar nesse ritual de Cambrai a oração já mencionada anteriormente e uma fórmula antiga (século IX) pronunciada sobre a espada de príncipes que iam lutar contra os pagãos. Eis aqui seu texto inicial: “Atenda nossas orações, Senhor, e nos conceda a benção com Tua direita majestosa dessa espada com a qual Teu servidor. Desejou ser cingido, para que ela possa ser defesa e proteção das igrejas, das viúvas, dos órfãos e de todos os servidores de Deus contra as violências dos pagãos e que a todos os outros promotores de tumultos ela inspire medo, terror e pavor. Mas, no ordo de Cambrai, para adaptá-lo à situação, a expressão “contra os pagãos” foi substituída por “contra seus adversários”. Juntam-se a ela outras fórmulas de benção (sobre a lança, a bandeira, a espada, o escudo, enfim sobre o miles todo armado), lembrando ela também a missão que cabe a esse guerreiro que é recrutado e abençoado para esse propósito. Uma dessas fórmulas foi utilizada, no decorrer do século XII, para a investidura de cavaleiros “comuns”, que são os únicos que vão nos interessar nas páginas que seguem.


A INVESTIDURA CAVALHEIRESCA

AS ORIGENS

Além das investiduras de príncipes ou vassalos de que acabamos de falar, não conhecemos rituais de investidura destinados a cavaleiros antes do século XII. É muito provável que sua entrada na carreira das armas dava lugar, antes disso, a uma cerimônia talvez bastante simples para os milites de base. Por meio dela, o senhor que os empregava anunciava assim publicamente seu recrutamento regular, sua função oficial como representantes da ordem, “mão armada do príncipe”, conforme a expressão de Jean de Salisbury; por meio dela, também, talvez, a exemplo dos soldados romanos em quem se inspiram os teóricos da Idade Média, eles se engajavam, como salientam muitos textos que retomam Fronti ou Gégèce, a combater fielmente por seu senhor sem temer a morte, a não fugir ao combate, mas a proteger as terras e os bens da pátria, entendamos com isso o “país”, o distrito que eles serviam. A investidura, para esses cavaleiros de base (podemos acreditar que eram mais numerosos que seus mestres), confundia-se sem dúvida com a simp0les entrega das armas como “instrumentos de trabalho”, se ousarmos dizer, a marca de entrada do exército de sua profissão. Parece-me, aliás, que o significado é conservado para todas as investiduras cavalheirescas, qualquer que seja seu nível. Mas, certamente, a entrada em função de um cavaleiro de base implica para ele deveres a título somente pessoal, enquanto “soldado”: deveres de obediência e de serviço para com seu empregador. Se for o caso, por outro lado, de um castelão ou de um grande senhor, sua entrada na carreira das armas se insere em um conjunto muito mais vasto de funções, obrigações, serviços e relações de poder. Todos implicam a ação guerreira, mas eles a ultrapassam singularmente, como já mencionamos.

Em outros termos, a entrega das armas “cavalheirescas”, a investidura, significa, no sentido forte da palavra, que esse guerreiro é admitido oficialmente a agir por meio do uso dessas armas no âmbito das funções que lhe cabem, levando-se em conta sua posição. Trata-se, portanto, de um ato declarativo público de ordem profissional e não de uma promoção social, da concessão honorífica de um título ou grau. A cavalaria não é, nos séculos XI e XII, uma confraria honorífica igualitária na qual se entra por meio de uma investidura promocional que seria a colação de um título ou de um grau honorífico. É a entrada em uma profissão, a corporação dos guerreiros de elite. Uma corporação desigual: o príncipe-cavaleiro comanda os cavaleiros que dependem dele; os guerreiros recrutados têm por função e missão obedecer a seu mestre e combater sob suas ordens. A investidura faz, de cada um deles, cavaleiros legítimos (e não bandidos ou usurpadores), que têm permissão para usar armas características da cavalaria. Mas cada um tem sua posição social, a mesma que antes da investidura.

A investidura pode, então, ser considerada promocional e honorífica? Sim, mas em um sentido muito limitado e por duas razões somente. Ela representa, para aqueles que comandam, a entrada na era das responsabilidades pessoais, na idade adulta. Ela expressa, para os guerreiros da base, sua admissão em uma profissão invejada: agentes auxiliares do poder (enquanto estiverem em condições de exercê-la), eles convivem com os poderosos e elevam-se, assim, acima da condição da massa anônima dos trabalhadores da terra, de onde muitos vieram. Os mais humildes passam desse modo, mesmo que apenas como servidores armados, do mundo submisso e explorado dos inermes ao mundo dirigente e temido daqueles que portam as armas, símbolos e fundamentos do poder medieval.

As expressões que, nos textos assinalam essa acessão ao uso pessoal das armas (miles factus em particular), têm, portanto, conotações sociais muito diferentes conforme se trate de um filho de rei, de um jovem senhor ou de um cavaleiro de base. A única significação comum é a da entrada na cavalaria, com a condição de que se entenda com essa palavra, ao menos até o século XII, um tipo de corporação antecipada, a dos guerreiros profissionais, que combatem com armas característica. Uma corporação desigual (todas o são ou serão), com seus patrões e mestres (os príncipes e senhores recrutadores), seus companheiros (os cavaleiros de base), seus aprendizes (os juvenes, bachelers, escudeiros, valetes, que servem “por armas” na companhia dos senhores); seus santos patronos protetores (os santos militares cujo favor não cessa de crescer no século XI: George¸Demétrius, Mercúrio, etc); seus instrumentos particulares (as armas cavalheirescas); seu ritual de entrada (a investidura, ao mesmo tempo rito iniciático e de passagem que faz do jovem um adulto e do “civil” um guerreiro).

Essa corporação permanece aberta até o fim do século XII. Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que exige, para a investidura de um jovem, a prova de que quatro de seus ancestrais ao menos haviam sido eles próprios nobres e cavaleiros. Ela perde então pouco a pouco seu caráter essencialmente profissional para salientar os aspectos honoríficos, decorativos, éticos, culturais. A nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em confraria guerreira dos nobres de elite. Há aí uma nuança importante à qual voltaremos mais tarde.

A INVESTIDURA NO SÉCULO XII

As mais antigas descrições de investidura cavalheiresca – e as mais completas – nos são fornecidas pelos textos literários, principalmente as epopeias. A maioria dos elementos conhecidos depois já figura aí e essas descrições, destinadas a agradar ao público aristocrático e guerreiro das cortes, têm a vantagem de salientar o que importava mais para esse público. Os aspectos religiosos revelados pela liturgia e que poderíamos julgar essenciais figuram pouco aí ou nem figuram. Certamente, as armas (e em particular a espada entregue ao cavaleiro) podiam ter sido previamente objeto de uma benção. Podemos ao menos supor isso em uma época em que a Igreja abençoava praticamente todos os elementos da vida, das ferramentas do trabalho dos camponeses ao leito dos jovens recém-casados. Sabemos, por meio de diversos textos do século XCII (Jean de Salisbury), Pierre de Blois, por exemplo), que sua espada, ao menos em certos casos, havia sido previamente depositada sobre o altar; esses autores eclesiásticos deduzem que, por isso mesmo, ao ter recebido sua espada “do altar”, os cavaleiros deviam sentir deveres para com a Igreja; eles não dizem mais nada e, evidentemente, esses aspectos religiosos e litúrgicos quase não mereceram a atenção do público das epopeias. Vemos isso, por exemplo, na descrição da investidura do jovem Girard, sobrinho do conde Guilherme, antes de ele partir para o combate no dia seguinte. Para retomar as forças, Girard comeu e bebeu o dia todo abundantemente, depois ele dormiu uma noite e um dia inteiro (estamos longe aqui, da vigília de armas que, diz um texto do fim do século XII, é, às vezes, praticada em certas regiões). À noite, Girard é investido: “Ele é revestido com uma broigne (espécie em cota) muito bela, depois um elmo verde é amarrado sobre sua cabeça; Guilherme lhe cinge a espada do lado esquerdo e Girard segura pelo cabo um grande escudo; ele recebe um cavalo, dos melhores do país; ele monta nele pelo estribo esquerdo; a Dama Guibourc lhe segura o estribo direito e o recomenda a Deus, o Pai todo-poderoso”. (Canção de Guilherme, e. 1075-1082).

O poeta repete a mesma cena com relação à investidura do jovem Gui, um outro sobrinho de Guilherme, investido antes dos 15 anos, mas que demonstrou coragem e valor guerreiro. Outras epopeias são mais prolixas e mencionam, às vezes, uma missa (a investidura dos grandes acontece, em geral, na época de uma festa: Pentecostes, Páscoa, Natal ou São João principalmente), mas sobretudo as festividades e os exercícios esportivos e guerreiros que acompanham a cerimônia. A narrativa da investidura de Geoffreoy de Anjou, no Pentecostes do ano 1128, confirma as epopeias: ao amanhecer “conforme o costume relativo àquelas que vão receber as armas”, é preparado um banho para ele e para seus companheiros que serão investidos. Ao sair do banho, Geoffroy é vestido com uma camisa de linho, com um manto ornado de ouro e uma cota púrpura. Seus companheiros são também vestidos de linho e púrpura. Enfim, acompanhados de seu séquito, eles aparecem em público. Geoffroy recebe um soberbo cavalo da Espanha: “depois ele é vestido com uma cota de malha incomparável, com duas malhas, que nenhuma lança ou flecha pode perfurara” e com calções de malhas da mesma qualidade; esporas douradas são presas a seus pés; é pendurado em seu pescoço um escudo decorado com dois filhotes de leão; sobre sua cabeça é colocado o elmo ornado de pedras preciosas, que nenhum gládio pode romper. Ele recebe uma lança de freixo armada com um ferro de Poitou e por fim uma espada maravilhosa, tirada do tesouro real. Assim armado, o novo recruta, “futura flor da cavalaria”, lança-se a cavalo. Em honra dos novos cavaleiros, de fato, o dia todo foi consagrado aos jogos e exercícios guerreiros (torneios, estaferma, etc). A festa durou a semana toda.

Ao aspecto profissional se junta aqui a dimensão festiva, por causa talvez da posição elevada do novo cavaleiro. Notemos aqui o caráter coletivo das investiduras: aqui uns 30, em outros lugares 40, 50, e até 100 cavaleiros assim investidos. Quanto aos traços litúrgicos, ou simplesmente religiosos, e ao caráter ético dessa entrada na cavalaria, nada faz referência a isso. Os romances de Chrétien de Troyes, nas oito menções de investidura que eles contêm, fazem referência quatro vezes à entrega da espada, três vezes às esporas, três vezes ao banho que precedia a investidura, uma vez ao tapa, tipo de golpe com valor mneumônico dado pelo investidor no pescoço ou na face do investido (Lambert d´Ardres, que o assinala também por volta de 1200, o denomina “a bofetada que não termos o direito de retribuir”). Os elementos religiosos faltam, os traços éticos ainda são rudimentares. Chrétin os evoca somente acerca de Perceval, que foi instruído nas armas ou por um bravo vassalo que depois o investiu, entregando-lhe a espada. Em toda parte, de fato, nos textos de toda natureza, tanto históricos quanto literários, é a entrega pública da espada que “faz o cavaleiro”. Ao fazer isso, lhe diz o homem de valor, ele o faz entrar na “ordem da cavalaria que deve ser vilania” (Perceval e. 1595-6). Ele precisa seguir o que consiste essa ética cavalheiresca: poupar o cavaleiro derrotado que pede misericórdia e socorrer as jovens mulheres solitárias que outros cavaleiros violentam. Os textos do século XII não dizem mais que isso (e até menos) sobre a investidura propriamente dita. Gislebert de Mons e Lambert d´Ardres, que o mencionam bastante, quase não fazem alusão a outra coisa, mas ficam em silêncio acerca de totó aspecto ético. É o caso, por exemplo, da investidura de Arnoul por seu pai, no Pentecostes de 1181, que Lambert d´Ardres descreve mencionando o tapa, a entrega das esporas e da espada, em uma cerimônia laica seguida de generosidades diversas, uma refeição e depois um torneio. A investidura, como podemos ver, permanece ainda essencialmente leiga e pouco carregada de elementos éticos. Ela permanece também aberta: as epopeias e os romances, assim como alguns raros textos históricos, assinalam a investidura de personagens que não são manifestamente “nobres” nem membros da sociedade aristocrática, mas que por sua coragem, sua força física, suas aptidões para o combate e sua fidelidade são assim “investidos”; nesse caso, a “cerimônia” é das mais sóbrias: as armas são entregues a ele e é só.

A IGREJA E A LITURGIA DA INVESTIDURA

A importância que assume a cavalaria na sociedade do século XII leva rapidamente a Igreja a interessar-se pela investidura. A espada que era entregue ao guerreiro recrutado era muito provavelmente benzida, como todo instrumento de trabalho. Foram encontradas lâminas de espadas dessa época que têm gravadas invocações que testemunham a crença dos cavaleiros na proteção divina no exercício de sua função guerreira. Porém, isso não quer dizer que os cavaleiros se sentiam, por isso mesmo, “a serviço da Igreja”, como lamentam, aliás, muitos textos eclesiásticos que deploram as depredações, ataques, violações e pilhagens às quais se entregam tantos cavaleiros contra os estabelecimentos eclesiásticos, às vezes em detrimento das próprias igrejas que os recrutaram para sua proteção. Para tentar inculcar em todos os cavaleiros uma ética que lhes seja própria e geral, a Igreja elaborou para sua investidura rituais que retomam em grande parte a ideologia que ela propunha desde sempre aos reis e que ela tenta ampliar agora para o conjunto da classe guerreira.

Essa evolução testemunha um triplo movimento. De um lado, a Igreja observa, com um certo atraso, a existência de forças armadas que escapam em grande medida à autoridade dos príncipes (no momento exato, aliás, em que a autoridade real começa, na França, a se reconstituir); por outro lado, ao dirigir-se a cada cavaleiro investido, a Igreja constata o surgimento de uma consciência individual que, ainda fortemente engajada nas estruturas de vassalagem e linhagem, começa, todavia, a se mostrar. O apelo de Urbano II à primeira cruzada, dirigido diretamente aos cavaleiros sem passar pelo intermédio dos reis ou príncipes, participa da mesma nova mentalidade. Enfim, com o apelo à cruzada, essa elaboração litúrgica expressa a tentativa da Igreja de assumir os destinos da sociedade ocidental e, principalmente, de controlar e dirigir as forças vivas dessa sociedade: a cavalaria. Essa tentativa, como sabemos, só teve um sucesso parcial.

O mais antigo ritual conhecido de investidura puramente cavalheiresca traduz bem essa tentativa de colocar a cavalaria a serviço da Igreja e lhe inculcar seus valores. Ele data do fim do século XII e foi composto na Itália do Sul, região governada por príncipes normandos, muitos dos quais eram vassalos diretos do papa. Não é impossível que essa origem geográfica explique o caráter muito religioso e até teológico desse ritual. Ele é composto essencialmente da oração já mencionada e, antes da entrega “um nome do Paí, do filho e do Espírito Santo”, da espada, da lança, do escudo e, enfim, das esporas, da fórmula seguinte, muito rica com elementos ideológicos: “Quanto a ti, agora que tu estás a ponto de ser feito cavaleiro, lembra desta palavra do Espírito Santo: “Valente guerreiro, cinge tua espada; essa espada é de fato a do Espírito Santo, que é a Palavra de Deus. De acordo com essa imagem, sustenta então a Verdade, defende a Igreja, os órfãos, as viúvas, aqueles que oram e aqueles que trabalham, ergue-te prontamente contra aqueles que atacam a Santa Igreja, a fim de q8ue possa surgir coroado, na presença do Cristo, armado com o gládio da Verdade e da Justiça. ” Notemos a alusão clara à missão da ordem dos milites, em seu conjunto, encarregada de proteger e defender as duas outras ordens, “aqueles que oram” e “aqueles que trabalham”, conforme a uma divisão tri-funcional bem conhecida, aliás. Não sabemos infelizmente em que proporção as investiduras praticadas na Europa ocidental nessa época utilizavam efetivamente tais fórmulas éticas, assim como ignoramos o real uso e a difusão do ritual de investidura do bispo de Mende Guilherme Durand que, no extremo fim do século XIV confronta a maior parte das fórmulas de bênçãos encontradas até aqui para fazer da investidura um tipo de sacramento litúrgico e do cavaleiro assim investido um verdadeiro servidor da Igreja, defensor dos sacerdotes, dos fracos, das viúvas e dos órfãos. Os cavaleiros da realidade, como veremos, nem sempre haviam adotado essa ideologia e haviam ao menos acrescentado a ela outros valores mais laicos, profanos e mundanos.


A EVOLUÇÃO DA INVESTIDURA NOS SÉCULO XIII E XIV

Discernimos, todavia, uma tendência maior rumo à clericalização da investidura a partir do primeiro terço do século XIII. Muitos autores de origem eclesiástica se esforçam, em obras didáticas ou poéticas, para apresentar uma interpretação alegórica, ética e espiritualizadora dos diversos aspectos dessa cerimônia. É o caso de um poema composto por volta de 1230-1250, a Ordem de cavalaria, que relata como o príncipe muçulmano Saladim exigiu de seu prisioneiro cristão Huc de Taharie que ele o fizesse cavaleiro e lhe explicasse o significado dos ritos de investidura. O banho é comparado ao batismo; o cavaleiro deve sair dele “sem vilania”; ele é deitado em um leito que significa que, por sua cavalaria, deve “conquistar um leito no paraíso”; o fino linho simboliza a pureza que deve manter e o púrpura, o sangue que deve derramar para defender Deus e a fé cristã; o cinto branco deve afastá-lo0 de toda luxúria; os calções negros evocam a terra para onde ele retornará, levando-o a evitar o orgulho; as esporas simbolizam a coragem e o ardor que deve ter por Deus; a espada, a integridade e a lealdade devem levar o cavaleiro a defender o pobre e o fraco, a fim de que o risco e o poderoso não possam lhe fazer mal. Quanto ao tapa, ele tem por única função trazer ao cavaleiro a lembrança daquele que o investiu. Outros textos interpretam essas fazes diferentemente, mas tendem todos a inculcar na cavalaria as regras de um comportamento que coloque o cavaleiro a serviço da Igreja e do bem. O filósofo e teólogo catalão Reymon Lulle, no fim do século XIII, inspira-se na Ordem para dar às armas do cavaleiro um significado ético e religioso da mesma ordem, tentando fazer da cavalaria em seu conjunto o que Bernard de Clairvaux, um século e meio antes, esperava dos Templários. Por volta de 1230, Lancelot do Lago, um dos romances mais difundidos na Idade Média, utiliza a mesma simbologia para mostrar que o cavaleiro deve ser ao mesmo tempo o senhor do povo e o servidor de Deus e da Igreja. Episódio bem isolado nesse romance em que Lancelot, o melhor cavaleiro do mundo, amante da rainha Guinevere, preocupa-se muito pouco em servir a Igreja, mas busca, antes de tudo, a glória e sua única motivação é o amor adúltero que o une à esposa de seu rei.

O aspecto social da investidura reforça-se no decorrer do século XIII. Como a nobreza era agora adquirida apenas pelo direito de nascença, todos os nobres não são mais obrigados, como outrora, a se fazer investir. A investidura torna-se então uma “decoração” suplementar que se une à nobreza, mas que esta reserva a alguns de seus filhos, proibindo o acesso a plebeus. Somente a dispensa real, verdadeira carta de enobrecimento, autoriza que um não-nobre seja “feito cavaleiro”. A maioria dos nobres e muitos plebeus praticam, entretanto, o ofício das armas e combatem como cavaleiros sem ter esse “título”. A investidura desliza, então, cada vez mais para a significação honorífica e promocional que, evocamos no início deste capítulo. Nos séculos XI e XII, quando “investia-se muitas vezes na véspera de uma batalha para se dispor de mais guerreiros a cavalo. Nos séculos XVI e XV, fazia-se isso mais frequentemente depois da batalha que antes dela, recompensando assim, com a outorga de um título honorífico, os nobres guerreiros a cavalo que combateram bem. Compreendemos, então, que a cerimônia fosse nesse caso abreviada, reduzida a seu rito principal, transformando o tapa em abraço.

O aspecto militar da investidura, entretanto, não desaparece ao longo dos séculos. A corporação apenas se transformou, se aristocratizou, transformada em casta elitista não somente no plano profissional, mas também social. O valor moral e religioso da investidura não se reforçou, todavia, e podemos até considerar a formação das ordens laicas de cavalaria, no decorrer do século XIV, como uma tentativa de devolver à cavalaria um lustro moral que aos olhos de muitos ela havia perdido. Da mesma forma, o hábito enaltecido por algumas dessas ordens, como a dos cavaleiros do Santo Sepulcro, de se fazer investir nos lugares santos traduz sem nenhuma dúvida a nostalgia de uma cavalaria ideal que teria estado outrora, como os cruzados e os Templários dos primeiros tempos, a serviço da Igreja e da fé cristã, impregnada por seus valores e sua ética.

Uma cavalaria mítica, idealizada, sempre foi, segundo a palavra de S. Painter, apenas um “doce sonho”.

(TEXTO EXTRAIDO DO LIVRO “A CAVALARIA” – Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média – por Jean Flori – Editora Madras)