terça-feira, 11 de abril de 2017




ESSÊNIOS 

A UTOPIA ESSÊNIA

Autor: João Anatalino

Livro Conhecendo a Arte Real – Editora Madras

Há utopias sonhadas e utopias tentadas. Umas assumem feições políticas, outras se mantêm no terreno da religião. Algumas são apenas sonhos de filósofos, que jamais saem do papel. A Maçonaria é uma utopia filosófica e uma tentativa de implantá-la na prática. Por isso tem tantos envolvimentos com a política, e não raras vezes é confundida com religião, justamente pelo fato de incorporar em seus catecismos diversos motivos temáticos e litúrgicos inspirados por seitas religiosas, algumas até, anteriores ao Cristianismo. Uma das seitas que muito influenciaram a Maçonaria, em sua face espiritualista, foi a seita dos essênios, cuja organização, estrutura, doutrina e prática de vida a coloca na categoria de uma utopia tentada.

Os essênios constituíam uma comunidade místico-religiosa formada por iniciados nos mistérios da religião hebraica. Julgavam-se detentores do verdadeiro conhecimento religioso, aquela sabedoria que Deus comunicara aos primeiros homens e que desaparecera da terra após o dilúvio. Muitos escritores de orientação esotérica os fazem herdeiros dos atlantes, atribuindo-lhes diversos conhecimentos iniciáticos, da mesma forma que aos egípcios. Nós nos contentamos em reconhecê-los como antecessores espirituais da Maçonaria, naquilo em que eles a influenciaram.

Duas das tradições legadas pelos essênios, e aproveitadas no simbolismo maçônico, são a ideia do Homem Universal e o mistério ligado ao verdadeiro significado do Nome de Deus. Tanto a mística do filho de Deus que se faz Filho do Homem para redimir a humanidade pecadora quanto o poder que se encerra no Inefável Nome de Deus são tradições amplamente cultivadas pela doutrina essênia e repassadas à tradição da Cabala[1]. Na Maçonaria, esse simbolismo é utilizado para desenvolver os ensinamentos das Lojas de Perfeição e Capitulares, bem como certos graus filosóficos das Lojas do Kadosh.

Entre os judeus, os essênios podem ser considerados uma espécie de sociedade secreta, de caráter religioso, cujos membros discordavam da orientação imprimida à sua religião. Formando uma verdadeira Fraternidade eles se afastaram do convívio social e desenvolveram uma espécie muito particular de comunidade que, na verdade, tinha um objetivo bem definido: preparar uma nova comunidade de eleitos de Deus, que seria a herdeira da Nova Aliança, quando o Messias visse ao mundo.

Nesse sentido, eles desenvolveram um complexo sistema religioso de cerimônias de iniciação, semelhante às das seitas iniciáticas antigas. Exigiam juramentos solenes de obrigações fraternas e um estrito silêncio sobre suas práticas, crenças e tradições, ao mesmo tempo em que inculcavam na cabeça de seus adeptos uma filosofia de vida que muito se aproximava das seitas ascéticas da Idade Média, particularmente os cátaros.

As pesquisas mais recentes sobre os documentos essênios encontrados em Qumran, localidade próxima ao Mar Morto, em 1948, revelaram que suas doutrinas tinham uma grande semelhança com aquelas pregadas por Jesus, o que levou muitos autores a considerá-los como antecessores dos cristãos.

Cavernas de Qumran

A ideia que se fazia dos essênios, a partir de informações extraídas de escritores gnósticos antigos, como Philo de Alexandria, por exemplo, que já no século I da Era Cristã confessava a influência que deles teria recebido, era a de que eles constituíam uma comunidade de magos, grandes conhecedores de segredos da natureza, detentores de uma sabedoria muitas vezes milenária, oriunda, talvez de uma civilização desaparecida.

Por força de tais informações os essênios sempre foram envolvidos por uma aura de misticismo e mistério. Porém, com a descoberta dos pergaminhos do Mar Morto, uma nova luz foi lançada sobre essa interessante Fraternidade, que sobreviveu por mais de dois séculos em condições políticas muito adversas, praticando uma espécie de irmandade que muito os aproxima dos Obreiros da Arte Real.

É evidente que qualquer comparação, qualquer analogia que se faça entre a comunidade essênia e a Maçonaria deve levar em conta as culturas em que eles se desenvolveram e suas respectivas épocas. Essa comparação deve ser feita no plano de objetivos e procedimentos, relevando-se as aproximações sem observar as diferenças, que são notórias. Talvez a melhor fórmula para se fazer essa aproximação seja a observação de que os essênios conservaram em sua doutrina e sua prática de vida a essência da tradição iniciática dos sacerdotes egípcios, dos hierofantes gregos e das comunidades místicas da Pérsia e da Mesopotâmia. Aproximando e adaptando a tradição hebraica a essas antigas formas de desenvolvimento espiritual, eles criaram uma nova cultura, salvaguardando e desenvolvendo a face mística, esotérica, contida naquelas antigas tradições, legando aos gnósticos cristãos, seus sucessores, o que de melhor havia na religião daqueles antigos povos.

SINTESE HISTÓRICA

A comunidade essênia foi fundada por um personagem misterioso, referido na sua literatura ora como Mestre Perfeito, ora como Mestre Verdadeiro. Não se sabe quem foi realmente esse personagem singular, mas acredita-se que tenha sido um sacerdote da tribo de Levi, que revoltado com a corrupção do clero israelita da época (início do século II a. C), retirou-se para a clandestinidade, arrastando com ele um vasto contingente de seguidores, insatisfeitos com os rumos que a religião vinha tomando em Israel.

Uma ligeira síntese histórica ajuda a fazer uma ideia daqueles tempos. No século II a. C. Israel fazia parte do chamado mundo helênico. Desde o século IV a. C. a Palestina tinha sido incorporada ao império persa que, por sua vez, fora conquistado por Alexandre Magno entre 326 e 323 a. C.

Após a morte de Alexandre, seu império foi dividido entre seus generais. A parte correspondente à Síria e Palestina ficou com Antíoco, que estabeleceu a sede de seu governo na Síria. Por volta do início do século II a. C. reinava na Síria um de seus descendentes, chamado Antíoco Epifanes (ou Epifânio).

Flavius Josephus[2] nos dá uma ideia do ambiente que reinava em Israel naquela época. Naquele tempo, diz o referido historiador, a casta sacerdotal responsável pela manutenção da pureza da religião de Israel, fundamentada na lei mosaica, estava profundamente corrompida. Só se preocupava em manter seus privilégios, submetendo-se às pressões e influências estrangeiras, esquecendo-se de que o maior dever do sacerdote era a manutenção da tradição e da pureza da relação entre o homem e Deus.

Os israelitas sempre foram muito ciosos a respeito de sua religião. Muitos preferiam morrer a adorar ídolos estrangeiros ou violar os preceitos da torá. Essa situação que existiu durante toda a época da dominação helênica e se prolongou durante a ocupação romana, não raramente ensejava motivos para a eclosão de sangrentas revoltas.

Durante a época de Jesus, essa situação não se modificara, como se pode perceber no seu magistério. Jesus fazia ferrenha oposição à classe sacerdotal da sua época, conforme se lê nos Evangelhos. Essa classe, composta pelos escrivas e fariseus, interpretava a lei em seu próprio benefício e lançava sobre os ombros do povo cargas insuportáveis “que nem com um dedo queriam levantar”.

Na verdade, os escribas e fariseus que “se sentavam” na cadeira de Moisés e lançavam “cargas insuportáveis” sobre os ombros do povo faziam parte de uma classe que, desde a conquista helênica, preferira aliar-se aos dominadores em vez de lutar pelas suas crenças. Com isso não concordavam os “puristas”, os ortodoxos, os cultores da ideia de uma religião isenta de qualquer influência pagã. Esses “puristas” julgavam ser o culto aos deuses estrangeiros a maior das ofensas que se podia fazer a Jeová.

Um desses homens “puros” foi, sem dúvida, o chamado Mestre Verdadeiro, que fundou a comunidade essênia. No início do século II a. C., o sacerdócio era exercido pela família de Matatias, um homem da tribo de Levi, famoso por suas posições de defesa intransigente da lei mosaica. O rei sírio Antíoco Epifanes, desejando quebrar a resistência israelita, quis implantar em Israel o culto a Zeus Olímpico. Com essa intenção, invadiu o santuário do Templo de Salomão em Jerusalém, colocando no altar do Santo dos Santos uma estátua daquele deus. Os israelitas não suportaram a violação do mais sagrado dos seus locais e, comandados por Judas, o filho mais velho do sacerdote Matatias, iniciaram a rebelião que ficou conhecida como Revolta dos Macabeus.

Foi durante a Revolta dos Macabeus que um grupo de israelitas ortodoxos fugiu de Israel e se instalou na chamada “Terra de Damasco”. Liderados pelo chamado Mestre Verdadeiro (talvez o próprio Matatias, ou ainda um dos filhos), sua intenção era praticar a verdadeira religião de Israel, a sua pureza primitiva.

O Mestre Verdadeiro, além de líder de invulgar talento, revelou-se profeta, legislador e poeta de excelente qualidade, a se julgar pelos hinos que compôs.

Durante todo o período de dominação helênica, o núcleo de reação judaica se concentrou em dois grupos: os essênios e os zelotes. Quanto aos zelotes, o interesse para esse estudo é secundário, tendo em vista que eles permaneceram principalmente no terreno militar. Foram eles, inclusive, que forneceram os combatentes que, nos anos 67-70 d. C., sustentaram uma guerra sem qualquer contra as tropas romanas.

Já os essênios, conforme se percebe, na literatura recuperada por meio dos pergaminhos do Mar Morto, pregavam uma resistência ora política, ora espiritual. Essa resistência estava sempre conexa com a ideia de um herói, um Messias, que libertaria Israel do domínio estrangeiro e renovaria a Aliança daquele povo com Deus.

Chamando-se a si mesmos de “convertidos, penitentes, pobres, justos, santos, eleitos, etc”, os essênios consideravam ser seu grupo a verdadeira Israel, aquela nação cujo modelo Deus teria transmitido a Abraão e realizado por intermédio de Moisés[3]. Acreditavam que, por ocasião da fuga do Egito, Deus teria transmitido a Moisés a verdadeira sabedoria, que estaria oculta no significado do seu Verdadeiro Nome, segredos esses que Moisés não revelou no Pentateuco, mas transmitiu oralmente aos sacerdotes mais antigos da tribo de Levi. Era desse segredo que os essênios se julgavam depositários. Acreditando-se que a maioria dos ensinamentos bíblicos havia sido escrita em código, eles desenvolveram uma interessante forma de interpretação do Livro Sagrado, que certamente deve ter servido de inspiração para os rabinos que desenvolveram a grande tradição da Cabala.

O OBJETIVO DOS ESSÊNIOS

A seita dos essênios era uma verdadeira Fraternidade, com características de sociedade secreta. Para tornar-se membro dela era preciso que o neófito fosse portador de três atributos básicos: ser israelita, inteligente e disciplinado. Exigia-se do candidato um juramento para com a Irmandade para consigo mesmo, no qual ele se comprometia a submeter-se à disciplina da Ordem e a perseguir os objetivos pelos quais se tornara membro dela. Em princípio, o iniciado deveria viver na comunidade durante um ano antes de tornar-se membro efetivo. Após esse período, ele se tornava um “numeroso ou sectário pleno”, ocasião em que deveria juntar seus bens aos da comunidade.

O objetivo da comunidade era não só preservar a pureza dos fundamentos da religião israelita, mas principalmente preparar um Messias, um líder que fosse capaz de libertar o povo de Israel da influência estrangeira e reconstituir, depois, o reino de Deus sobre a Terra. Toda a sua organização e o conjunto da sua doutrina eram dirigidos para esse objetivo.

Não só o Messias deveria ser preparado, porém, quando o seu reino fosse instalado, ele iria necessitar de “quadros” para governar. Assim, toda a rígida disciplina da Fraternidade era orientada também para a produção de “juízes”, guerreiros e administradores”, enfim, todo o staff necessário para a administração da nova sociedade que seria fundada com a sua vinda.

Na infância, e até os 20 anos, o iniciado era instruído no Livro da Meditação e nos Preceitos da Aliança; a partir dos 20 anos, passava a viver na Comunidade dos Irmãos e podia casar-se. A partir dos 25 anos, poderia ocupar cargo na Congregação; com 30, ser juiz e liderar grupos. Todo esse processo era realizado mediante uma análise de mérito, na qual se avaliava a “inteligência e perfeição de conduta” do iniciado, pois, como previam as Regras, todos os homens eram treinados para formar a elite que governaria o reino que seria instalado pelo Messias.

Em função desse objetivo, os essênios desenvolveram uma organização eclesiástica, uma organização militar e uma organização judiciária. Os juízes seriam dez, eleitos periodicamente entre os irmãos com idade entre 25 e 60 anos, após os 60, deixariam a função; um sacerdote, com idade mínima de 30 anos e máxima de 60, “detentor de todos os segredos dos homens e conhecedor de todas as línguas faladas na Terra”, seria o juiz supremo da congregação judiciária.

Quanto a ordem militar, entre 25 e 30 anos, o irmão poderia ocupar funções de intendente; 3ntre 30 e 45, podia-se ser cavaleiro; entre 45 e 50, oficial de campo, e entre 50 e 60, comandante do campo. Havia também um Conselheiro Superior da Comunidade, do qual participavam “os homens de renome”.

Esses homens eram escolhidos por suas virtudes, seu desempenho nas funções administrativas ou militares, ou dotes sacerdotais. Esse conselho era uma espécie de Parlamento, que por sua vez era controlado por um Colégio comporto de 12 irmãos e três sacerdotes, “perfeitos em tudo o que é revelado em toda a lei, para praticar a justiça, a verdade, o direito, a caridade afetuosa e a modéstia de conduta, uns em relação aos outros, guardar a fé sobre a Terra, com uma disposição firme e um espírito constrito, para expiar a iniquidade entre aqueles que praticam o direito e sofrem a angústia da provação e para se conduzir com todos na medida da verdade e da norma no tempo”[4].

A DOUTRINA DOS ESSÊNIOS

Os essênios eram ascetas que desprezavam os prazeres dos sentidos e a acumulação de bens. O tesouro comum só devia ser utilizado para prover as necessidades mais estritas. Um essênio, ao entrar para a comunidade, devia votar “ódio eterno aos homens da fossa por seu espírito de entesouramento. Ele deixará para eles seus bens e a renda do trabalho de suas mãos, tal como um escravo em relação ao seu amo, e tal como um pobre diante do que lhe tem domínio. Mas ele será um homem pleno de zelo para com o preceito e cujo tempo é destinado ao dia da vingança”[5].

Dessa forma, todo membro, ao ingressar na Ordem, tinha que lhe entregar todos os seus bens. Esse regime de comunhão foi observado também pelos primeiros cristãos, como se observa nos Atos dos Apóstolos, e o desprezo pelos bens materiais constituiria um dos pontos mais altos da doutrina ensinada por Jesus.[6]

Acima de tudo, porém, os membros da seita deviam observar e estudar a lei mosaica. A lei devia ser cultuada, pois a comunidade era, mais que tudo, “a casa da lei”. Isso explica também o fato de que Jesus, não obstante ser considerado pelos judeus como um reformador da lei mosaica, sempre concitou seus discípulos a segui-la. E no conceito de observação à lei, estava o respeito aos rituais e celebrações estabelecidas pela religião, bem como os cuidados com a higiene corporal.

Para os essênios, a Gnose divina que Jeová revelara a Moisés não fora exposta nos cincos livros do Pentateuco. Era uma sabedoria secreta que consistia no conhecimento do Nome Verdadeiro de Deus, na prática do direito justo e no aprendizado dos comportamentos necessários para se atingir a perfeição.

Os essênios acreditavam que no espírito do homem coexistiam dois princípios: um presidia o bem e o outro presidia o mal. O presidente do bem era o Príncipe da Luz e o do mal, o Príncipe das Trevas, chamado Belial ou Satã. Nesse sentido, o mundo seria um campo de batalha entre esses dois princípios. Para eles, o mal não podia ser vendido simplesmente pela ação humana. Era necessária a intervenção Divina, o que ocorreria quando o Messias começasse seu ministério. Escolher entre o bem e o mal não era uma opção humana. Deus elegia seus escolhidos, mas mesmo os escolhidos podiam ser desviados para o mal. Para os não escolhidos não havia possibilidade de opção para o bem. Os escolhidos eram aqueles que Deus reuniu na “congregação”, ou “Casa da Verdade”. Esses eram os Filhos da Luz.

Por outro lado, todos aqueles que aderiram à cultura estrangeira, desprezando a Aliança, eram “filhos das trevas”.

A ideia de um combate entre trevas e luz, na verdade, não é originária dos essênios. Foi tomada por empréstimo aos antigos egípcios, que já viam no psicodrama de Osiris e Seth uma luta entre esses dois princípios. Mais tarde os persas desenvolveram essa mesma ideia, identificando o Deus Marduc como o deus da Luz e Arimã como o deus das trevas.

Sempre se acreditou que tudo que existe no Universo é produto da reação interativa entre dois princípios contrários, que podem ser espírito e matéria, o bem e o mal, a verdade e a mentira, a luz e as trevas, etc. Na história da humanidade, uns assumem o papel de Marduc, outros, de Arimã. Segundo essa concepção, tudo, na sociedade humana, é produzido pela reação à ação que um dos lados provoca no outro. O próprio materialismo dialético desenvolvido por Karl Marx trabalha com essa tese, fundamentando na interação de dois princípios contrários, que podem ser entendidos como a forma de ganhar a vida e a forma de pensar, o motor da história[7]

No caso dos essênios, eles assumiram o papel dos filhos da luz e retiraram-se para as terras de Damasco para não serem corrompidos pelos filhos das trevas, e ali, separados do mal, preparar uma reação contra a ação deles. Os Filhos da Luz, quando ocorresse o triunfo, seriam vingados de todos os males que os Filhos das Trevas lhes haviam infligido. E mesmos aqueles que estivessem mortos ressuscitariam para participar do conflito final entre os defensores dos dois princípios, ocasião em que o mal, por fim, seria vencido.[8]

O MESSIANISMO

Uma das mais interessantes concepções essênias foi a alegoria do Homem do Céu e o Homem da Terra. Dela derivou outra figura que ficou conectada à pessoa de Jesus Cristo, com o enigmático título de Filho do Homem.

A figura do Homem do Céu, como bem lembra Schonfield, também é de inspiração persa. Ele representa a figura do deus Mitra, que por sua vez é uma projeção de Azura-Mazda, o princípio da luz, que se torna carne e habita entre os homens. É interessante verificar que os persas tinham em Mitra uma espécie de mediador ou salvador da humanidade.

O Mitraísmo, tal como as religiões egípcia e mesopotâmica, era uma religião solar. O Sol era sempre representado como aquele que dá vida. Mitra era o representante solar, cujo nascimento se comemorava no dia 25 de dezembro. Nesse dia pagava-se tributo ao sol, pelo sacrifício de um cordeiro, cujo sangue redimia aqueles que nele se lavavam.

As analogias existentes entre o Mitraismo e o Cristianismo são notórias. Os próprios padres católicos ficaram estarrecidos com tais semelhanças, que pensavam se tratar de inspirações demoníacas. Tanto que proibiram qualquer referência ao Mitraísmo nos trabalhos desenvolvidos pelos escritores cristãos. São Justino, no século II, acusa os praticantes dos mistérios de Mitra de “imitar propositadamente os ritos cristãos” por inspiração do demônio, e Tertúlio, o patriarca da Igreja, na mesma época, denuncia os praticantes desse culto, dizendo que “o demônio, pelo mistério de seus ídolos, imita até a parte principal dos mistérios divinos. Mitra marca com seu sinal a fronte de seus soldados; ele celebra a oblação do pão; oferece uma imagem da ressurreição, apresentando ao mesmo tempo a coroa e a espada”.[9]

A religião solar dos persas exerceu profunda influência ao espírito místico dos judeus. Na tradição judaica, o mundo também havia sido criado a partir do surgimento da luz.[10] O Sol era o símbolo da vida, o evento a partir do qual Deus criara os seres viventes. Flavius Josephus diz que os essênios “não faziam nada, nem pronunciavam qualquer palavra antes do nascimento do Sol. A ele ofereciam determinadas orações que somente os iniciados sabiam e que se presumiam ser muito antigas. Essas orações imploravam pelo nascimento do Sol “.[11]

Daí o desenvolvimento da ideia, presente em alguns escritos essênios, de que o Messias era um “Ser de Luz”, vindo do Sol para libertar o mundo do mal, representado pelas trevas. Esse “libertador” era o Homem do Céu, identificado como Adão-Luz dos gnósticos mandeanos, o Metátron das lendas rabínicas.

Quando se sabe que um dos mais importantes graus do Rito Escocês (o 28º) faz claras evocações ao Mitraismo, não podemos nos furtar a essa digressão por esse assunto. As analogias são por demais claras para justificar as associações feitas. Esse é mais um vínculo entre as tradições maçônicas e os essênios que conservaram e desenvolveram essas ideias, por si sós, denotativas de um profundo conteúdo espiritualista.

De acordo com os essênios, o mal só poderia ser vencido pela intervenção divina, por intermédio de um enviado de Deus à Terra.[12] Esse mensageiro era o Messias. Entre os judeus sempre houve polêmica sobre o que seria esse personagem. Para alguns ele seria um sacerdote que estabelecia dogmas definitivos a respeito da religião. Para outros, ele seria um rei que libertaria o povo de Israel de todas as opressões, estabelecendo um reino eterno de liberdade, harmonia e ordem.

Na sua visão, esse personagem se dividia em três atributos, e não foi possível até o momento definir se pensavam em três personagens diferentes ou apenas um, que integrasse todas essas facetas. O Escrito de Damasco fala de um Messias rei (Messias leigo), um Messias Profetas e um Messias Sacerdote. Para os fariseus, seita à qual pertencia a maioria das autoridades israelenses, o Messias seria um rei que viria precedido por um Messias Sacerdote.

Para os essênios, entretanto, apenas o Messias Sacerdote seria o verdadeiro enviado de Deus, pois assim lhes teria ensinado o profeta Malaquias. A fórmula repetia a história de Moisés, que teria sido o sacerdote, e Josué, que teria sido o guerreiro. Mais tarde essa fórmula foi apropriada pelos doutrinadores cristãos, que viram em Jesus, o Messias que continha em si ambos os atributos, de guerreiro e sacerdote, enquanto João, o Batista seria o profeta.

Não é sem razão, portanto, que muitos historiadores, e uma expressiva maioria de escritores de orientação esotérica, acreditam que tanto Jesus Cristo quanto João, o Batista eram essênios. A própria crônica da vida de ambos parece confirmar essa tese. João, o batista era um asceta que vivia rigorosamente de acordo com as regras daquela Irmandade, sua pregação ocorreu na mesma região geográfica em que a comunidade de Qumran se desenvolveu e suas visões se assemelham sobremaneira às visões essênias.

Quanto a Jesus, é certo que pregava uma doutrina que muito se aproximada daquela veiculada por eles. Acresça-se a isso a fama de “milagreiro” que sempre acompanhou a sua saga. Essa fama também era associada aos essênios, cujos conhecimentos de medicina eram considerados fantásticos.

Há muitas outras aproximações que podem ser feitas acerca dos fenômenos Jesus e a seita dos essênios. Laperroussaz cita, entre outras, o fato de Jesus ser levado pelo demônio a um deserto para ali ser tentado. Esse deserto tem sido identificado como a solidão que os essênios impuseram a si mesmos.

Da mesma forma, o deserto para onde Jesus teria sido levado é situado no local onde os pergaminhos do Mar Morto foram encontrados.

Também o fato de Jesus ter recrutado seus primeiros discípulos na região próxima a Qumran provoca muita especulação. Jean Danielou, citado por Laperroussaz, releva ainda o fato de Jesus celebrar a ceia na véspera da Páscoa, o que mostra que ele seguia o calendário essênio e não o calendário judeu tradicional.

Para muitos autores, os pergaminhos do Mar Morto demonstram, de maneira insofismável que os fundadores do Cristianismo eram, de fato, oriundos da seita dos essênios. Isso explicaria a presença de algumas lacunas do Novo testamento, bem como certas questões enigmáticas a respeito da vida, da doutrina e do magistério de Jesus, nunca explicadas a contento pelos exegetas dos evangelhos canônicos.

Explicaria também a origem do Gnosticismo. “Levando-nos a conhecer o meio imediato em que surgiu o Cristianismo”, escreve aquele autor, “as descobertas de Qumran resolvem um número considerável de problemas que a exegese não chegava a solucionar: a origem de João, o Batista, a data da Páscoa, a origem da hierarquia, o vocabulário de João, a origem do Gnosticismo. É provável que a utilização do conjunto de documentos, as comparações que geram, aumentem ainda de forma expressiva o número dos enigmas resolvidos”. Por conseguinte, pode-se dizer que essa descoberta é a mais sensacional já feita”.[13]

A INFLUÊNCIA DOS ESSÊNIOS

Diversos centros comunitários dos essênios se desenvolveram a partir do século II a. C. Algumas tradições se referem à aldeia de Nazaré, onde Jesus foi criado, como sendo um centro dessa comunidade. Sabe-se que entre eles se desenvolveu também a prática mística, bastante antiga, aliás, de usar roupas brancas e não cortar os cabelos. Acreditava-se, com base em antigas tradições, que nos cabelos estava a essência do elo que liga Deus aos homens. Esses homens consagrados a Deus eram chamados de “nazarenos”. Sansão é descrito na Bíblia como um desses homens, e Jesus teria sido criado em uma aldeia de “nazarenos”.

Os essênios eram também conhecidos pelos seus conhecimentos de medicina. No Egito, sua comunidade era conhecida como “Os Terapeutas”. Acreditava-se que possuíam conhecimentos que se assemelhavam a poderes mágicos. Tais conhecimentos provinham de fontes muito antigas, provenientes, talvez, de uma civilização extinta. Eram também mestres na escrita criptográfica e no uso do simbolismo para transmitir seus conhecimentos. O uso de pseudônimos aparece e frequentemente em sua literatura. Títulos como “Mestre Verdadeiro”. “Mestre da Justiça”, “Sacerdote da Iniquidade”, “Leão da Ira”, “Tempo da Promessa”, etc. eram expressões que marcavam pessoas e fatos, para evitar a repressão das autoridades seculares. Escreviam palavras invertendo a ordem das letras, misturavam alfabetos de diferentes línguas, inventavam eles mesmos alfabetos.

Não somente os primeiros cristãos devem grande parte de sua doutrina aos essênios. Também muitas das seitas gnósticas se inspiraram em suas ideias, as quais, em maior ou menor parcela, tiveram influência no desenvolvimento da Maçonaria especulativa, principalmente nos chamados graus Rosa-Cruzes, onde se desenvolveu a lenda de Ormuz.

É fácil perceber a relação que a doutrina professada por aqueles místicos judeus tem com a Maçonaria, em sua face espiritualista. Os Obreiros da Arte real também acreditam na construção de uma sociedade justa e equânime, fundamentada no mérito e no trabalho árduo, aliado à disciplina e ao respeito às tradições. Essa sociedade um dia já existiu e pode ser recuperada. Os essênios acreditavam nisso e, por isso, julgavam-se guardiões dessa sabedoria perdida, que só poderia ser repassada aos seus iniciados.

A analogia é evidente. A própria organização do conteúdo maçônico guarda uma certa identificação com o sistema adotado por aqueles ascetas. Por intermédio de um sistema de ensinamentos morais, o catecismo da Maçonaria forma, simbolicamente, guerreiros, juízes, sacerdotes e outros próceres, destinados a edificar, defender e conservar o que de melhor existe na cultura da humanidade. É a mesma ideia de uma utopia tentada, guardadas as diferenças de época, cultura e lugar.

Os essênios acreditavam que eram detentores de segredos iniciáticos de grande relevância. Não é que a Maçonaria, enquanto sociedade formalmente instituída, seja guardiã de segredos dessa ordem. Aliás, nem acreditamos que tais segredos existam no repertorio da cultura humana existente, seja do presente, seja do passado. O que há são leis naturais que a razão humana ainda não logrou entender e por isso as cataloga no conceito de sobrenatural. Entender o processo pelo qual essas leis são formadas e como atuam constitui a verdadeira sabedoria.

A fórmula desse conhecimento de nível superior, que permite ao homem entender esse processo, só pode ser deduzida por meio de um método que seja capaz de integrar uma iniciação, uma ritualística e uma prática de vida. Essa foi a formidável intuição dos essênios e a sua grande realização. Não é suficiente pensar uma filosofia. É preciso vive-la para que ela não se torne apenas uma distração mental. As mesmas verdades que eles intuíram já haviam passado antes pela sensibilidade dos sacerdotes de Heliópolis, que as desenvolveram no conceito, ao mesmo tempo religioso e sociológico da Maat, e pelos iniciados nos mistérios antigos, persas e greco-romanos que os utilizavam como forma de educação superior de suas elites.

É originária dos essênios, como já nos referimos, a ideia de que é preciso a formação de um Homem Universal, reflexo terrestre do Homem do céu, perfeito em conhecimento e obras, pleno de virtude e em harmonia com Deus, pois que ele é o herdeiro da Nova Aliança. Não é por acaso, portanto que nos graus superiores da Maçonaria, correspondentes às Lojas de Perfeição e Lojas Capitulares, se insistirá tanto na alegoria da Arca da aliança, na prática da verdadeira justiça, no exercício das virtudes que fazem um homem justo e perfeito em todos os sentidos.

Outra tradição cultivada na Maçonaria, que tem nos essênios a sua fonte, é aquela que se relaciona com a Procura da Palavra Perdida. Essa Palavra Perdida não é outra coisa senão o Verdadeiro Nome de Deus e o seu significado, que os essênios reverenciavam como o “Segredo dos Segredos”[14]. O reencontro com essa sabedoria perdida teria o condão de conferir ao seu possuidor a totalidade de conhecimento do Universo e faria dele um ser superior. Essa crença animou a especulação dos cabalistas durante séculos, e os maçons a adotaram como alegoria para simbolizar a aquisição da Gnose, que é a meta última e definitiva dos praticantes da verdadeira Arte Real. Por isso é que a influência desses antigos irmãos, Filhos da Luz, não pode ser desprezada em nenhum estudo que se faça sobre a cultura maçônica.


[1] Sugerimos a leitura do livro A Kabbalah Revelada – Filosofia Oculta e Ciência, de Knorr Von Rosenroth, Editora Madras. 
[2] Sugerimos a leitura de Seleções de Flavius Josephus – História dos Hebreus, da Editora Madras. 
[3] Sugerimos a leitura de Moisés: O Príncipe e o Profeta, de Rabino Leir Meter, e Moisés e Akhenaton – a História Secreta do Egito no templo do Êxodo, de Ahmed Osman, ambos da Madras Editora. 
[4] E.M. Laperroussaz, Os Pergaminhos do Mar Morto, Regras XXII. 
[5] Idem, Regra XXIV 
[6] Flavius Josephus, escrevendo acerca dos essênios, diz que eles desprezavam as riquezas, e que a comunidade de bens que observavam era realmente admirável. “Os essênios”, diz aquele autor, “mantêm entre eles uma lei, segundo a qual, todos os novos membros admitidos à seita fazem, por si mesmos, confisco de seus haveres em favor da Ordem; resultando daí que, em parte alguma, se verá ali, seja a miséria abjeta, seja a desordenada abastança. As posses do indivíduo se juntam ao existente cabedal comum e eles todos, como verdadeiros irmãos, beneficiam-se, por igual, de patrimônio coletivo”, Flavius Josephus – Antiguidade dos Judeus, p. 267 
[7] Karl Marx acreditava que era a forma pela qual os homens ganhavam a vida que determinava o seu modo de pensar. Assim, as transformações na ordem material determinavam as transformações de ordem ideológica. Como as transformações materiais dependiam da forma como as sociedades se organizavam para produzir, a cultura da humanidade dependia das técnicas de produção. Ainda nesse estudo falaremos um pouco mais das teses marxistas, já que elas exercem um papel importante no ensinamento de um dos graus superiores do Kadosch, particularmente o grau 26. Por ora, é importante salientar que toda a sociologia marxista é baseada na interação entre esses princípios, que, na essência, não difere da dialética essência acerca da produção dos fenômenos universais. 
[8] Essa crença foi magistralmente desenvolvida pelo autor do Apocalipse. Nesse estranho e enigmático livro, escrito à maneira essênia, o autor desenvolve a alegoria da luta entre os filhos da Luz conta os filhos das Trevas, identificando os primeiros com os cristãos fiéis e os segundos com os seus perseguidores. Veja que a Maçonaria do Rito Escocês muito se vale do simbolismo do Apocalipse para desenvolver alguns dos seus mais importantes graus filosóficos. A tradição maçônica muito se utiliza do simbolismo contido na luta entre a luz e as trevas. O próprio maçom, muitas vezes, é chamado de Filho da Luz. 
[9] Hugh Schonfield. A Odisséia dos Essênios, p. 178. 
[10] “Disse Deus: faça-se a luz; e fez-se a luz. E viu Deus que a luz era boa; e dividiu a luz das trevas. E chamou à luz dia, e às trevas noite; e da tarde e da manhã, fez-se o dia primeiro. ” Genesis 1:3 
[11] Flavius Josephus, op cit., p. 243 
[12] A tradição messiânica em Israel, no entanto, é fundamentalmente uma ideia dos fariseus. É bom não esquecer que os fariseus formavam uma casta sacerdotal, puritana e fundamentalista, que denominavam a si mesmos perushins, que quer dizer “distinguidos”. Formavam uma espécie de Confraria religiosa, semelhante a uma sociedade de amigos que socorriam uns aos outros, praticando ainda a filantropia, promovendo a educação religiosa do povo, senão ainda os maiores defensores dos direitos humanos. Os fariseus assemelhavam-se, em muito, à moderna Maçonaria. E da mesma forma, sendo uma sociedade de homens, não conseguiu evitar que a corrupção se instalasse em seu meio. 
[13] E. M. Laperroussaz, op.p 176=180 
[14] Note-se que Jesus jamais pronunciou o nome de Deus, e proibiu, também, seus discípulos de fazê-lo. Designava-O por “Pai”. Entre os essênios, o Inefável Nome de Deus era uma tradição do mais alto valor iniciático.