sábado, 27 de junho de 2020



A DIVINA COMÉDIA DE DANTE ALIGHIERI


Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura


O poema épico escrito pelo autor Dante Alighieri (1265-1321) é um clássico da literatura mundial escrito durante o Renascimento.

A extensa obra, toda composta em versos, é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma delas possui exatamente 33 cantos.

A Divina Comédia foi escrita em florentino, no início do século XIV, e pretendeu fazer uma síntese enciclopédica do conhecimento científico e filosófico da Idade Média.
Resumo

O protagonista do livro A Divina Comédia é o próprio poeta Dante Alighieri que percorre uma viagem entre três instâncias completamente distintas: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso.

Ao longo do caminho, Dante vai cruzando com amigos e conhecidos, figuras públicas ou do universo pessoal do autor, e debatem sobre os mais variados temas.

A odisseia é extremamente descritiva e contempla imensos detalhes visuais. Enquanto se encontra no inferno, Dante recebe a ajuda do poeta romano Virgílio, que serve como uma espécie de guia.

Virgílio (70 a 19 a.C.), autor dos tempos de Júlio César, foi dos maiores poetas da Antiguidade, tendo escrito o clássico Eneida. Dante era um admirador profundo da poética de Virgílio, por isso é a ele que pede ajuda para percorrer o doloroso caminho.

Quando está no céu, por sua vez, quem realiza o trabalho de acompanhamento é Beatriz, uma musa inspiradora que foi a paixão platônica de Dante durante a adolescência. Beatriz é símbolo do amor divino e é responsável por guiar o poeta para fora da selva.

O poema possui três personagens principais:
Dante, o protagonista que personifica o homem;
Beatriz, que representa a fé;
Virgílio, que pode ser considerado o símbolo da razão.
Análise

A Divina Comédia é basicamente a história da conversão de um pecador ao caminho de Deus. Os versos sublinham a necessidade de se seguir o caminho do bem e da ética.

O protagonista é o símbolo do ser humano vulgar e representa o cidadão comum, que tem dúvidas, hesita, é tentado pelo mal.

Ao mesmo tempo, Dante não se vê exatamente como uma criatura humilde e, no Canto IV (do Inferno), se coloca lado a lado com grandes escritores:


Olha o que vem à frente qual decano
dos outros três, segurando uma espada;
ele é Homero, poeta soberano;
o satírico Horácio junto vem,
terceiro é Ovídio e último Lucano.
Desde que cada um deles detém
os mesmos dotes co’os quais fui saudado,
recebo sua honraria como convém.
Assim o belo grupo vi formado
da escola do senhor do excelso canto
cujo vôo, como d’águia, é incontestado.
Longo foi seu colóquio, e entretanto
acenavam a mim, e eu vi o prazer
no sorriso do Mestre meu, porquanto
o privilégio iriam me conceder
da acolhida na sua comunidade.
E assim fui sexto entre tanto saber


Assistimos ao longo do poema como o protagonista é alvo de tentações e como contorna os obstáculos que, aos poucos, vão se apresentando pelo percurso. Nesse sentido considera-se A Divina Comédia como uma obra moralizante, isto é, uma obra que reafirma os valores cristãos (embora apresente alguns elementos pagãos).

O próprio papa Bento XV, em declaração oficial, sublinhou a importância da composição de Dante:


"Embora não seja escasso o número dos grandes poetas católicos que unem o útil ao agradável, em Dante é singular o fato de que, fascinando o leitor com a variedade das imagens, com a vivacidade das cores, com a grandiosidade das expressões e dos pensamentos, ele o arrasta ao amor da sabedoria cristã. (...) A sua Comédia, que merecidamente recebeu o título de divina, mesmo nas várias ficções simbólicas e nas recordações da vida dos mortais sobre a terra, não visa a outro fim senão a glorificar a justiça e a providência de Deus"

Apesar de ser uma criação de forte elogio à Igreja, A Divina Comédia também pode ser lida como uma crítica à instituição em determinados momentos específicos.

Embora alguns críticos apontem a publicação como sendo uma epopeia, não se pode considera-la efetivamente como uma porque não se trata de uma história ficcional de um herói que batalha pelo seu povo ou pela sua região.

O correto seria classificá-la como um texto didático alegórico (didático porque tem como fim o ensinamento e alegórico porque é construída a partir de símbolos).
História da publicação

O livro, redigido em italiano, foi publicado em três partes. A primeira delas foi divulgada em 1317, a segunda em 1319 e a terceira após a morte do autor. Estima-se que Dante tenha dedicado catorze anos da sua vida a composição do livro (iniciou em 1307 e concluiu o trabalho pouco antes de sua morte, em 1321).

Trata-se de um poema épico narrativo rigorosamente simétrico, cada parte possuindo 33 cantos, com aproximadamente 40 a 50 tercetos. O número três é essencial para a construção do poema. Os versos são escritos a partir de uma técnica original conhecida como terza rima, onde as estrofes de dez sílabas, com três linhas cada rimam de uma determinada maneira específica.

Originalmente o livro chamava-se apenas Comédia, tendo ganhado o título composto apenas posteriormente, em 1555, na edição veneziana composta por Ludovico Dolce.

Quem primeiro observou que o nome deveria ser A Divina Comédia, pelos assuntos que o livro abordava e pela qualidade com que o trabalho foi feito, foi o poeta Giovanni Boccaccio (1313-1375).

Em Trattatello in laude di Dante, composto em 1357, Boccaccio explicita que a obra de Dante, que considerava brilhante, merecia título mais adequado. Somente em 1555, na impressão preparada por Ludovico Dolce, o título A Divina Comédia ficou eternizado para sempre.
Sobre o autor Dante Alighieri

Escritor fundamental da literatura medieval, Dante Alighieri nasceu em Florença, na Itália, no ano de 1265 (estima-se que tenha sido no dia 25 de maio), filho de dona Bella e de Aldighiero Alighieri.

Dante ficou órfão muito jovem. A mãe faleceu quando o menino era ainda criança e o pai quando o jovem tinha apenas dezoito anos.

Apesar de ter sido casado e tido filhos (pelo menos três), Dante nutria um amor platônico por Beatrice de Folco Portinari, uma amiga de quando tinha 9 anos que veio a reencontrar em 1283. Beatrice casou-se em 1287 com o banqueiro Simone dei Bardi e Dante casou-se com Gemma Donati dois anos antes, em 1285. Beatrice morreu subitamente em 1290, para desespero do escritor italiano.

Dante foi bastante consagrado em vida, tendo sido celebrado como o maior poeta da região da Toscana. De acordo com R. W. B. Lewis, autor de Dante:

"Já em 1321, as duas primeiras partes da Comédia encontravam-se transcritas e à disposição de leitores havia alguns anos, e Dante era aclamado em quase toda a Toscana como o maior poeta da região."

Sua obra-prima, A Divina Comédia, foi profundamente celebrada. Harold Bloom, um dos mais duros e importantes críticos literários, escreveu em O cânone ocidental que:


“o poema de Dante possui uma qualidade inominável, talvez tão grande quanto os melhores versos de Hamlet ou Rei Lear."

Além de escritor, Dante Alighieri atuou como político, tendo pertencido ao partido moderado. Ele estudou na universidade de Bologna nos anos em torno de 1285. Foi exilado de Florença por suspeita de corrupção, improbidade administrativa e oposição ao papa quando ocupou cargos públicos. Durante o exílio viveu em Forlì, Verona, Arezzo, Veneza, Lucca, Pádua, Paris, Bologna, Verona e Ravenna.

O autor morreu aos 56 anos, no dia 14 de setembro de 1321, em Ravenna, na Itália.

Representação de Sante Alighieri


PRINCIPAIS OBRAS DE DANTE ALIGHIERI


A Divina Comédia foi a obra-prima de Dante e o trabalho que mais lhe ocupou tempo e dedicação, no entanto o escritor italiano também redigiu alguns outros livros, confira abaixo:

La Vita Nuova

Coletânea de poesias publicado em 1292 em homenagem ao seu amor platônico, Beatrice.
Convivio

Incompleta, a obra reúne quatro tratados que pretendiam reunir todo o conhecimento da época.
De Vulgari Eloquentia

Obra mais sucinta onde Dante defende veementemente a língua italiana.
De Monarchia

Escrito em 1310, é um tratado sobre política onde Dante defende a total separação entre a Igreja e o Estado.
Algumas obras de arte inspiradas em A Divina Comédia

O clássico da literatura italiana serviu de inspiração para uma série de artistas plásticos. Conheça abaixo as principais obras inspiradas em A divina comédia:

Dante e seus Poemas, tela pintada por Domenico di Michelino em 1460.


Porta do Inferno, escultura de Rodin.

Tela de William Blake.
Salvador Dalí, Purgatório, “Arachne”.

I
lustração de Sandro Botticelli para o Inferno.

Leia A Divina Comédia na íntegra

O livro A Divina Comédia está disponível para download em português (tradução feita pelo brasileiro José Pedro Xavier Pinheiro) em formato PDF.

FILOSOFIA HERMÉTICA E MAÇONARIA


Tradução J. Filardo

Ir∴ John Tolbert


Você já se perguntou por que todas as palavras e senhas que usamos em nossos graus estão em hebraico e que todas as orações que usamos em nossos graus são do Antigo Testamento?

Você já reparou que uma sala de Loja Maçônica está cheia de objetos e símbolos diametralmente opostos que representam conceitos ou ideias polares? Exemplos desses opostos são:


Esquadro e Compasso
Pedra Bruta e Pedra Polida
Jakin e Boaz / Sabedoria e Força
Globos terrestres e celestes
Escuridão à Luz
Pavimento Mosaico / Pavimento Preto e Branco
Leste e Oeste… Norte e Sul
Morte e Renascimento
Sol e Lua
Pisando nos pés direito e esquerdo
Profanos e Bisbilhoteiros Ascendente e Descendente

Não é interessante que os Maçons sejam encorajados desde o início a controlar suas paixões e seguir uma vida virtuosa e pura? É interessante, porque os gregos exigiram a mesma coisa de seus candidatos antes de serem admitidos nas Escolas de Mistérios Antigos, e a Escola de Pitágoras.

Depois de ler milhares de páginas escritas por estudiosos maçônicos, estou convencido de que a Maçonaria não foi “inventada” pelos ingleses (nem pelos escoceses) nos séculos XVII ou XVIII. Sim, no início do século XVIII, a Maçonaria tornou-se uma instituição regulamentada e rituais foram desenvolvidos a partir dos ritos iniciáticos existentes nas Lojas Operativas, mas algo mais estava acontecendo sob a superfície e os intelectuais da época podiam sentir que havia mais.

Na edição mais recente de Heredom, a publicação anual da Sociedade de Pesquisa do Rito Escocês, na página 61 (um artigo sobre a Bula Papal anti-maçônica de 1738 por Marsha Keith Schuchard), pode-se ler:

“Em janeiro de 1721, quando o antiquário William Stukeley (amigo íntimo de Newton e Desaguliers) determinado a se juntar à fraternidade, “suspeitando que ela seja o remanescente dos mistérios dos antigos …”

Isso ilustra que, mesmo desde os primeiros anos da Maçonaria organizada, os homens instruídos estavam reconhecendo algo sobre a Maçonaria que os levava a acreditar que ela estava enraizada na filosofia e em conceitos antigos.


O homônimo desta Loja, Jewel P. Lightfoot, fala abertamente ao Texas Mason sobre os aspectos místicos e espirituais da Arte. Por favor, ouça atentamente a seguinte citação da INTRODUÇÃO em nosso monitor atual, escrito por Lightfoot há muitas décadas.

“A presença no sistema maçônico moderno, de muitos dos emblemas, símbolos e alegorias dos antigos templos de iniciação, bem como de certos ritos neles realizados, convenceu os mais instruídos entre os estudiosos maçônicos a concluir que a Maçonaria é de origem muito antiga e é, em alguns aspectos, a sucessora moderna e a herdeira dos sublimes mistérios do templo de Salomão e dos templos da Índia, Caldeia, Egito, Grécia e Roma [tenho certeza de que ele estava se referindo ao culto de Mitra], bem como a doutrina básica dos essênios, gnósticos e outras ordens místicas “

Com esta única citação, o irmão Lightfoot afirma claramente que a Maçonaria contém restos dos símbolos e ritos dos Mistérios Antigos e a Maçonaria também contém as doutrinas básicas de grupos esotéricos conhecidos, que ele chama de Ordens Místicas.

Foi exatamente isso que o antiquário William Stukeley notou em 1721; havia aspectos da Maçonaria que pareciam ter semelhanças com ritos e cultos conhecidos do mundo antigo.

Esta apresentação foi escrita especificamente para explorar um conhecido fluxo de pensamento do mundo antigo amplamente chamado Filosofia Hermética e sua potencial influência sobre os primeiros progenitores de nosso ofício. Lembre-se de que Stukeley era um amigo íntimo de Newton e Desaguliers. John Theophilus Desaguliers é geralmente creditado com o desenvolvimento inicial de nosso sistema de três graus, ele foi o secretário / assistente de pesquisa de Newton por vinte anos e também foi o terceiro Grão-Mestre das lojas inglesas.


NOTA – Vale a pena pesquisar a associação de Desaguliers com Isaac Newton; Newton era um alquimista praticante, obcecado pelo templo do rei Salomão, e ocultou suas opiniões religiosas heréticas em escritos cifrados que deveriam ser queimados após sua morte, mas que foram retidos e traduzidos no século XX.

A filosofia hermética concentra-se em uma entidade chamada Hermes; essa entidade também era denominada Thoth (egípcios), Mercúrio (romanos) e Hermes Trismegistus ou Hermes Três Vezes Grande.


Thoth, Hermes, Hermes Trismegistus podem ou não ter sido apenas uma única pessoa, mas o nome e a lenda poderiam ter sido inspirados por seres humanos incrivelmente inteligentes (como Platão, Pitágoras ou Hipátia) que tinham tal capacidade de conhecimento que seus escritos evoluíram em mitos e lendas, e algumas vezes converteram-se em formas de Deus. Platão é um exemplo perfeito de como uma pessoa muito inteligente pode ter profunda influência em civilizações inteiras, e os efeitos podem durar séculos.

A maioria dos maçons de espírito esotérico já está ciente do grande intelecto de “Hermes” e de suas contribuições para a ciência e o conhecimento da humanidade, mas vamos examinar como a filosofia hermética era evidente na literatura, arte e conexões maçônicas diretas dos séculos XV-XVIII. É importante lembrar nesta altura que o cidadão europeu típico passara séculos de inquietação civil, revoluções violentas, guerras constantes, epidemias de doenças, opressão cruel de monarcas e autoridades religiosas, espetáculos públicos de tortura e a incerteza pura e simples da própria vida. À luz desses estresses sociais de longo prazo, não é de admirar que uma espiritualidade nova, misteriosa e aparentemente antiga captasse as fascinações de intelectuais e se transformasse em obsessões em procurar um mundo melhor, uma experiência religiosa pura e sem corrupção e um relacionamento mais próximo com Deus. Esses são os atrativos da chamada Filosofia Hermética.



O termo hermetismo não tem realmente uma definição dogmática ou bem definida, mas, em geral, inclui o estudo da alquimia, espiritualidade gnóstica, cabala, teurgia, astrologia e outras abordagens místicas para relacionar a realidade física ao domínio espiritual. Quase toda ciência oculta poderia ser incluída sob o guarda-chuva Hermético.

A seguir, é apresentada uma lista curta e certamente incompleta de referências conhecidas ao interesse pelo Hermetismo na Europa dos séculos XV – XVIII.


A tradução de Marsilio Ficino do que agora é chamado Corpus Hermeticum trouxe Hermes e os escritos misteriosos para o foco de filósofos e autoridades eclesiásticas. Os escritos herméticos foram interpretados como tendo predito a vinda de Cristo e, portanto, aceitáveis; um belo painel de mármore na Catedral de Siena (1480), na Itália, retrata Hermes Trismegistus como contemporâneo de Moisés.
Hermes era uma personagem central nas Constituições do manuscrito de Sloane (1646). Hermes descobre os dois pilares, um de tijolo e outro de mármore, que contêm a sabedoria e o conhecimento preservados dos mestres antigos.

Alquimia, estando dentro do escopo da Filosofia Hermética está presente em toda a Europa durante esse período. Os Medici financiaram traduções de pergaminhos antigos resgatados de Bizâncio, revelando à mente ocidental os conceitos de alquimia. Os manifestos rosacruzes do início dos anos 1600, provavelmente escritos por Johanne Valentine Andreae e seus associados, desencadeiam o que é chamado de furor de interesse pela alquimia.
Giordano Bruno está viajando pela Europa (final dos anos 1500) promovendo teorias matemáticas e astronômicas controversas; ele também está promovendo a Arte Hermética da Memória, que não é apenas uma estratégia mnemônica de memorização, mas uma técnica mística. Bruno foi queimado na fogueira no início dos anos 1600 por suas opiniões científicas e espirituais heréticas.

William Shaw, o Mestre de Obras de James VI, declara no Segundo Estatuto de Shaw (1599) que todos os companheiros e aprendizes de ofício deverão “Tak tryall of the art of memory” (Passar por exames da arte da memória). William Fowler, um colega de Shaw, havia se encontrado com Bruno em Londres na década de 1580 e é possível que tenha sido assim que Shaw foi exposto à Arte Hermética da Memória.
Robert Cooper, o Grande Arquivista da Grande Loja da Escócia, faz muitas referências ao Hermetismo em seu livro Quebrando o Código dos Maçons. O irmão Cooper afirma que o Hermetismo é um componente da Maçonaria Escocesa entre 1500 e 1600.


O interesse pela alquimia, astrologia, magia e Cabala é muito evidente nos círculos dos membros da Royal Society e conhecidos Maçons . Elias Ashmole, Isaac Newton, Thomas Vaughn e outros eram conhecidos alquimistas e estudavam assuntos ocultos; suas bibliotecas pessoais são evidências desses interesses. John Byrom mantinha um grupo de irmãos intelectualmente inclinados que se reuniam ocasionalmente, chamado Cabala Club, e Lojas em Londres têm atas mostrando que trabalhos eram apresentados em Lojas sobre John Dee, Rosacruzes e Jacob Boehme. Os escritos espirituais visionários de Boehme, bem como os livros de John Dee sobre magia e alquimia de anjos, eram de extremo interesse para muitos intelectuais e livre pensadores durante esse período.

O professor de Kabbalah, Rabino Leone Yahudahdi Modena, em 1680, fez uma palestra em Londres sobre o Templo de Salomão; Lawrence Dermott, o Grande Secretário dos Antigos refere-se ao Rabino, como Arquiteto, Hebraista e Irmão.

The Acception – Nos anos 1600, existia uma organização de elite, que estava intimamente associada à London Mason’s Company, a organização operativa de canteiros. Este grupo de elite secreto era chamado The Acception e apenas “aceitou” muito poucos membros (um deles foi Elias Ashmole); o custo da associação era muito alto e era preciso ser altamente educado e bem respeitado. O estudioso e escritor maçônico dos primeiros anos do século XX, Reverendo Castells afirma que o nome “The Acception” é sinônimo de Kabbalah, que em hebraico significa “receber”. O reverendo Castells estava convencido de que “The Acception” era uma organização maçônica puramente especulativa.
Os Cabalistas medievais tinham grande veneração por Hermes, o que não é de admirar, já que ele é considerado (em algumas lendas) como tendo dado a Cabala a Moisés. O Zohar contém frases que se assemelham ao lema hermético bem conhecido, “Acima, como abaixo.” “Venha e veja: o mundo acima e o mundo abaixo estão perfeitamente equilibrados.” (Zohar 2: 176b) A Cabala e o Hermetismo compartilham toda a compreensão mística importante das inter-relações equilibradas do céu e da terra.







O MYTHO E O LOGOS

Por Sérgio Biagi Gregório


A tese da evolução linear do mito à razão não só é historicamente inexata como também não consegue explicar certos fenômenos culturais complexos. No caso extremo, o mito é rebaixado a uma fábula sem valor. É preciso ponderar sobre a dialética mytho/logos, pois já se afirmou que o homem é um ser mítico. Quer dizer, trazemos jungidos ao nosso psiquismo os condicionamentos das diversas narrativas fantasiosas e dos feitos das divindades do politeísmo.

Platão, na Antiguidade, parte da narrativa mítica para fundamentar o seu logos filosófico. Criava uma situação utópica, principalmente nas suas teses políticas, a fim de explicar uma realidade efetiva. Aristóteles, por outro lado, exclui a narração mitológica, enfatizando que a razão do filósofo, o logos, manifesta-se através das suas próprias estruturas discursivas: a argumentação, o raciocínio, a ordem lógica da demonstração.

A fronteira entre o mytho e o logos não é percebida com facilidade. Nesse sentido, a astrologia e as demais pseudociências do universo acabaram caindo no mito que combatiam. Vindas para desmoronar o sacrifício das religiões oficiais, terminam criando o cosmo como um grande Anthropos, um homem cuja inteligência reside no movimento eterno e harmônico das esferas celestes, cujos olhos correspondem ao Sol e à Lua e a cujos pés jaz a matéria, num jogo sutil de correspondências regido por um único tema que varia até o infinito.

O mytho/logos do cristianismo primitivo apresenta uma novidade: o logos se divinizou e ao mesmo tempo se personalizou a ponto de coincidir com a própria pessoa do fundador. Observe que o mito da Trindade provindo das grandes religiões da Antigüidade - como vemos na trindade egípcia formada por Osíris, Ísis e Horus - deu à Igreja a possibilidade de incluir o Cristo na Mitologia Cristã como a segunda pessoa de Deus, de maneira que a Igreja, fundada pelo Cristo segundo a interpretação católica-romana, podia se apresentar como instituição divina do próprio Deus em pessoa.

A ciência e o mito se degladiam, mas nem sempre com muita razão. A ciência pelo seu próprio objeto, que é baseado nos fatos e nas comprovações estatísticas, acaba desmitificando o mito. Acontece que a ciência elabora apenas com o sensível. Ignora que a narração, o mito, é um instrumento de expressão certamente diferente da argumentação lógica do logos, mas no fim o mito não é menos lógico, não é menos racional, nem está menos ligado a uma exigência e a um projeto de conhecimento.

A ambígua conexão do mito com uma dimensão temporal não pode nos tirar o ensejo de penetrar-lhe na sua profundidade. Vejamo-lo sem preconceitos e poderemos lançar-nos no campo mais vasto de nossa compreensão espiritual.


Fonte: GIL, F. (Editor). Enciclopedia Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional, 1985-1991.

São Paulo, 30/4/1998


Complemento (julho de 2009): Mythologein

No livro, A República, a articulação entre o mythos e o logos é tamanha, que Platão usa o verbo mythologein para expressar essa junção. Há, assim, o mito propriamente dito, como é o caso do mito do anel de Giges, e formulações míticas completamente misturadas com o discurso argumentativo, como é o caso do mito da caverna. Mythologein é verbo intraduzível. Todas as figuras emanadas deste verbo servem para um aprofundamento do pensamento, pois tudo o que aí é dito dirige-se à inteligência no seu nível mais elevado.

O livro I, de A República, desdobra-se na intenção de responder à questão: “o que é justo?”. Tem como objetivo, no meio de toda a mistura do mythos/lógos obter a unidade. Céfalo, o anfitrião da conversa filosófica, sabe perfeitamente o que é justo. Achava-se leve e preparado para a morte. Mas esse sentimento de leveza diante da morte é como se fosse um mito: diante da morte não importa parecer justo, mas sê-lo. Eis o um: ser e não parece ser. Mas o que é o um? O que é o ser? O que é o parecer ser? Depois da confusão, este questionamento requer um esclarecimento, que Platão dará em forma de uma demonstração do bem.


Platão parte de uma analogia entre o bem e o Sol. É a descrição do mito da caverna. Não o faz para facilitar o tema, mas para aprofundá-lo. Há dificuldade de se entender os homens presos no fundo da caverna. Sua compreensão requer uma reconstrução da visão do ser humano: é o próprio ser humano que tem que se ver como homem livre ou como escravo. Contudo, o ser humano deverá fazer um esforço de se deslocar do lugar que está para um nível de mais compreensão, para o Sol.


Para Platão, a transformação da criança em adulto não é tarefa fácil. Por isso, em cada etapa do caminho há a confusão entre o ser e o parecer ser. É por isso que tomamos os sonhos pela realidade. Vemos como crianças, quando deveríamos ver como homens maduros. Mas, para vermos como homens maduros devemos aprender, pois para os gregos o logismós, o discernimento, é o primeiro estado do aprender e é quando e onde começa a vir a ser homem. Suportar a clareza do Sol é que mostra a diferença entre o ser e o parecer ser.
Os gregos tinham a convicção de que só quem aprende é que pode ensinar. Por isso, eles acreditavam que somente os filósofos, que percorreram o rude caminho da aprendizagem até o Sol, eram os seres capacitados a ensinar.


BOCAYUVA, Izabela. Para uma Nova Interpretação do Relacionamento entre Mito e Logos na Origem da Filosofia. In: MEES, Leonardo, PIZZOLANTE, Romulo (Orgs.). O Presente do Filósofo: Homenagem a Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.



A SIMBIOSE MITO-LOGOS

Por Sérgio Biagi Gregório




A palavra mito tem um sentido próprio e um sentido vulgar. Vulgarmente, a sua noção está associada à idéia de alucinação, delírio, fantasia difícil de se realizar. Propriamente falando, a dimensão mítica do ser humano está vinculada à construção de sentido, sentido este que procura uma explicação para as suas necessidades vitais. Uma dessas necessidades refere-se à criação do mundo e dos seres humanos. O mito do Adão e Eva é um exemplo. Pergunta-se: o ser humano age sempre pela razão? Não será ele movido muito mais pela emoção? É possível separar uma coisa da outra?

Na antiguidade, o nascimento da filosofia – que dava ênfase ao logos – tinha por objetivo desconstruir a visão mítica – fantasiosa – do mundo. O dualismo se fez presente. Assim sendo, o mito é atraso, a filosofia traz o progresso; o mito é treva, a filosofia é luz; o mito é obscuro, a filosofia é clara; o mito é a ignorância, a filosofia o saber; o mito é imobilismo, a filosofia representa o progresso histórico; o mito é simbologia, a filosofia constrói argumentos.

A verdade, porém, é que há uma (co) implicação mito-logos. O ser humano é um misto de fé e de razão, de imaginário e de racional. Se dermos muita atenção ao sentimento, prejudicaremos a razão; se dermos muita atenção à razão, poderemos cair na mesma armadilha em que caiu Descartes, ao afirmar que é pela razão que conhecemos a Deus. O pensamento correto seria: somente depois de sentirmos Deus dentro de nós é que teremos condições de analisá-Lo à luz da razão, e não o contrário. Antes de ser racional, o ser humano é afetivo.

Transformemos a simbologia do mito em uma explicação racional. Vejamos o mito da criação bíblica, em que Deus, do pó da terra, fez o primeiro homem, Adão. Depois de moldá-lo, soprou-lhes a narina e deu-lhe vida. Explicação: o húmus da terra recebeu o sopro divino e se tornou homo. Em outros termos, a matéria (húmus) necessita do sopro (Espírito) para ter vida. A Doutrina Espírita acrescenta o Perispírito, elemento semimaterial próprio para a união entre Espírito e Matéria.

A percepção é um atributo do Espírito. À medida que avançamos na espiritualidade vamos, também, descortinando novos horizontes. O que ontem era prazer hoje é tempo perdido que precisa ser mais bem aproveitado. Conforme alçamos os vôos do Espírito, vamos também nos sentindo mais isolados, mais distantes. Isso não pode nos entristecer. O importante é sabermos colocar cada coisa no seu devido lugar. Uma delas é perscrutar essa relação íntima entre o mito e o logos, entre a razão e a emoção, entre o aqui e o agora e o futuro que nos espera.

As palavras não valem por si mesmas; elas dependem de uma interpretação axiológica e contextual. Saibamos, assim, aproximar a nossa hermenêutica à hermenêutica própria de cada termo.


O MITO

por Sérgio Biagi Gregório



O mito é uma palavra polissêmica. Admite tantas definições quanto a palavra cultura. Para Fernando pessoa, "o mito é o nada que é tudo". O mito pode, assim, ser visto como uma alegoria, um símbolo ou uma tautegoria. Tanto no sentido alegórico como no sentido simbólico, o relato mítico subentende outra coisa, e não precisamente o que está sendo dito. No sentido tautegorista, o mito é penas mito, só mito, nada mais do que mito. Quer dizer, o mito relata e expressa o que em verdade é; o mito não representa as coisas ou os eventos originados.



Os mitos podem ser divididos em "mitos com Criação" e "mitos sem Criação". Nos "mitos com Criação", admite-se o surgimento do Universo num tempo zero. Nesse caso, o Universo pode ter sido criado por Deus, emergido do Vazio absoluto, ou surgido da tensão entre a Ordem e o Caos. Exemplo: a criação bíblica, descrita em Gênesis, 1, 1 a 5. Nos "mitos sem Criação", não se admite um tempo zero. Nesse caso, o Universo existe e existirá para toda a eternidade ou o Universo será continuamente criado e destruído, em um ciclo que se repete para sempre. Exemplo: o Universo pulsante do hinduísmo, no qual a Criação surge e ressurge ciclicamente através da dança do deus Xiva.



O mito relaciona-se com a história, a sociedade, a ciência, a religião, a psicologia etc. Escolhamos a psicologia freudiana. Freud deu nova orientação à interpretação do mito e às explicações sobre a sua origem e função. O complexo de Édipo é um exemplo clássico: para Freud, o mito do rei que mata o pai e casa com a própria mãe simboliza e manifesta a atração de caráter sexual que o filho, na primeira infância, sente pela mãe e o desejo de suplantar o pai.



O mito adquiriu ao longo do tempo e, mais precisamente na vida hodierna, um sentido figurado, ou seja, evoca a narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Equivale a engano, falsidade. Essa interpretação corresponde a uma mentalidade racionalista, para qual somente a razão é capaz de expressar a verdade. Alguns exemplos: o mito do progresso ininterrupto, o mito marxista da vitória dos oprimidos, o mito do socialismo da cidade ideal, o mito do super-homem com a sua vitória sobre o espaço e o tempo, o mito da raça pura etc.



Os mitos estão de tal forma arraigados em nosso subconsciente que, qualquer esforço para expulsá-los, acaba incorrendo em novas formas míticas. Atraímos para nós o que combatemos. Façamos uma analogia com o professor de português, que comete os mesmos erros que combate nos outros. Embora haja enormes dificuldades para suplantar o mito, o trabalho – passar do mito à razão – iniciado pelos gregos, há 2.500 anos, deve ser enfatizado. Estejamos sempre atentos neste empreendimento.


O mito deve ser captado pela sensibilidade e não pela racionalidade. Quando a razão discursiva tenta interpretá-lo, acaba criando a alegoria, que é a tentativa de explicar o inexaurível, o inexplicável. Analisemo-lo sob a forma tautegorista, em que mito deve ser o mito somente o mito e nada mais do que o mito.


Complemento em 18/05/2009

Walter E. Otto, em "Teofania: O Espírito da Religião dos Gregos Antigos", editado pela Odysseus, em 2006, ao tratar dos preconceitos que temos com relação ao mito, chama-nos a atenção sobre os pressupostos da psicologia profunda.


Ele diz: "Afirma a psicologia profunda que ao analisar os sonhos e os estados oníricos similares de pessoas psiquicamente perturbadas ou enfermas tem-se deparado com autênticas imagens míticas, capazes, portanto, de aportar indicações a respeito da essência do mito". Acredita-se que essas imagens primordiais tenham ficado registradas no inconsciente, e podem ser ressuscitadas tão logo a alma necessite delas.


Complemento em 17/07/2014

Os mitos são como criações do inconsciente coletivo. Equivalem-se à filosofia, à poesia profunda, à significação sagrada da vida. Graças aos mitos, os homens conseguiram, sem a ajuda das ciências naturais ou antropológicas, situarem-se no cosmos e descobrir o sentido de sua existência. Nesse sentido, Bultmann insistiu no fato de que, por detrás da narração mitológica de caráter cosmológico, é preciso buscar seu autêntico significado existencial. 


A palavra "mito" possui diversas acepções. Entre nós, é frequentemente utilizada com o sentido pejorativo: uma narração fabulosa e fictícia, contrária à verdade. Muitos dos conhecimentos mais profundos misteriosos são do tipo inconsciente e simbólico. O espaço tempo são superados pelos poderes mágicos dos protagonistas. Os mitos respondem às dimensões básicas do homem: origem da vida, relação com o mundo, forças naturais, sexualidade, guerra, morte e destino.

O MITO E MÍSTICA

por Sérgio Biagi Gregório



Em sentido próprio, o mito significa uma fábula arquitetada pela fantasia humana para personificar entidades do espírito ou da natureza; a mística, a união do homem com Deus. Em sentido figurado, o mito é a atribuição de um valor absoluto a uma entidade relativa; a mística, representa uma dedicação passional a essa entidade.

Hodiernamente, os mitos e a mística são tomados no sentido figurado. Para bem entender a sutileza desta significação, devemos situar os mitos entre a realidade objetiva e a fantasia. A realidade objetiva mostra o que a coisa é independentemente da observação do sujeito; a fantasia, sendo uma criação mental, distancia-se da realidade. Em outras palavras, os mitos atribuem um valor à realidade: eles não são como a verdade, que descobre valores.

Os mitos e a mística podem ser encontrados em todos os setores da atividade humana: na Política, na Sociologia, na Educação, na Economia, na Religião etc. Isso acontece porque a maioria de nós prefere uma situação cômoda diante da vida, ou seja, não nos propomos a problematizar o que se nos aparece diante de nossos olhos. Esta segurança aparente reflete-se na rotina e na fabulação. Pela rotina, praticamos atos mecânicos; pela fabulação, criamos imagens mentais destituídas de realidade objetiva.

Em termos filosóficos e políticos, há que se considerar o existencialismo, o marxismo e o liberalismo. O existencialismo, por exemplo, atribui um valor absoluto à existência atual, negligenciando as vidas passadas; o marxismo convida-nos a conquistar a justiça e a igualdade através da luta de classes; esquecem-se de que somos desiguais e por isso precisamos de níveis diferentes de renda; o liberalismo apoiando-se na espontaneidade deixa que cada um aja de acordo com a subjetividade de sua consciência; esquecem-se de que devemos agir de acordo com a consciência bem formada.

Em termos práticos, temos o enriquecimento, a tecnologia, o sexo, cultura e a religião. Somos impelidos a enriquecer e ter posição de destaque; caso não consigamos, somos desprezados pelos que o conseguiram. A tecnologia possibilitou ao homem o domínio da natureza; trouxe, porém o inconveniente de colocar a técnica acima de Deus. O sexualismo foi uma reação contra o puritanismo; descambou, contudo, para o sexo descontrolado. A cultura desenvolveu a inteligência humana; deslocou, entretanto, os atributos da inteligência e da potência divina, para a criação humana. A religião desenvolveu a crença em Deus; criou, contudo, uma idolatria que deturpou os sentimentos mais nobres da verdadeira mística.

Contra toda espécie de mitologia só há um remédio: dar à realidade, não os valores que nos agradam, mas o que por direito lhe são devidos. Ou seja, adquiramos o hábito de ver a realidade como ela é e não como gostaríamos que fosse.

Fonte de Consulta

LIMA, A. A. O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo. 2. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1956 (Obras Completas XVIII)

São Paulo, 20/11/2000


O RITO

Por Sérgio dBiagi Gregório



As ciências sociais, para bem compreender os fenômenos que estudam, devem sair ou ultrapassar o nível de experiência ingênua: o irracional ou o que se apresenta como irracional deve ser transformado em racional.

Para os etnógrafos – que observam e registram as características morfológicas de um grupo étnico ou de uma sociedade viva –, uma sociedade desprovida de qualquer ritual seria uma anomalia. Acham que há sempre uma explicação para aquele gesto ou aquele modo de ser, embora o homem moderno nada veja.

Então, se o homem moderno, seja qual for a sua posição filosófica, julga extravagantes os ritos de seus semelhantes menos evoluídos, os etnógrafos e os antropólogos tentam perceber o que há de lógico no que parece ilógico. Nesse sentido, o rito é um terreno muito mais privilegiado do que o próprio mito, porque os gestos, o vestuário e outros tipos de manifestações podem ser observados in loco, enquanto o mito fica apenas no campo da teoria.

Mas o que é o rito? O rito é um conjunto de atividades organizadas e institucionalizadas, no qual as pessoas se expressam por meio de gestos, símbolos, linguagem e comportamento, transmitindo um sentido coerente ao ritual. É um ato que pode ser individual ou coletivo, mas que sempre, mesmo quando é bastante flexível para comportar uma margem de improvisação, permanece fiel a certas regras que constituem precisamente o que há nele de ritual.

A palavra latina ritus designava, aliás, não só as cerimônias ligadas às crenças relativas ao sobrenatural, como os simples hábitos sociais, os usos e os costumes (ritus moresque), isto é, à maneira de agir reproduzida como certa invariabilidade. O fim dos verdadeiros ritos é tanto o de afastar as impurezas como o de manejar a força mágica ou ainda de pôr o homem em contato com um princípio que o transcende.

Há grande diferença entre rito e ritual. O rito é associado ao mito, enquanto ritual diz respeito a quase tudo que fazemos. Nesse caso, o médico procede a um ritual para fazer a sua operação. O uso deste ou daquele vestuário, deste ou daquele gesto não pode ser considerado ritual. Pode ser apenas um costume, uma maneira de ser e de agir. Para enquadrar-se como rito, deve pertencer a um contexto específico, principalmente o religioso.

O mito, o rito e os rituais parecem-nos irracionais. Não importa. Procuremos estudá-los, meditando em sua pureza original. Quem sabe não podemos descobrir, por nós mesmos, a simbologia que eles representam?

ACESSO AO CONHECIMENTO DO MITO AO LOGOS

por Sérgio Biagi Gregógio

Desde tempos remotos, o ser humano quis ter acesso ao conhecimento da realidade. Inicialmente, através do mito; depois, pela razão, pela explicação racional das coisas. Os primeiros filósofos da Grécia antiga começaram a questionar sobre o “mundo”, como ele foi formado, qual a substância primeira (physis), não de forma mítica, imaginária, mas pela razão, pela experiência, onde as coisas pudessem falar por si mesmas.


O mito é uma história, uma narrativa, geralmente acerca da criação. Há, assim, diversas cosmogonias, elaboradas pelos diversos povos da antiguidade. A mitologia grega – Homero e Hesíodo – é muito difundida. Homero tenta representar o Universo governado por deuses, alternando forças luminosas e obscuras. Hesíodo, por outro lado, narra a origem do mundo nos seguintes termos: “No começo era o Caos”. O caos é pura extensão, sem consistência orgânica; um vazio sobre o qual se assenta a Gaia, a Terra, “base segura de tudo que é”.


O nascimento do pensamento racional está ligado ao aparecimento da pólis. Na polis grega, os pensadores dispensaram a influência de agentes e forças sobrenaturais, ficando apenas com a razão e a experiência. Em seus debates sobre a ordem necessária, as formas de governo e o modo de agir deram também origem à filosofia, que é antes de tudo o amor ao saber, e mais precisamente conhecer a verdade, não pela fantasia, pela narrativa, mas pelo uso da razão, no sentido de o ser humano construir o seu próprio destino.


O logos filosófico não deve imaginar como o mundo deveria ser, mas limitar-se a explicá-lo. a tarefa da filosofia é meramente interpretativa: o problema é entender aquilo que é, fazer emergir da realidade o conteúdo racional. No mito, o ser humano fica perturbado diante do desconhecido, gerando ansiedade. Ele quer transformar esta ansiedade em harmonia, por isso inventa uma história, principalmente acerca da origem do Universo e do Homem.


Devemos ter em mente que a consciência racional é uma extensão da consciência mítica. A filosofia surgiu como um despertar do logos, mas não deixou imediatamente o mito. Procurou dar ao mito uma explicação racional. Daí, a consciência racional. No mito, há um conhecimento sagrado; no logos, o sagrado pode ser explicado pela razão humana.

sexta-feira, 26 de junho de 2020


ASCENSÃO E QUEDA DO DEUS MITRA

pelo Ven. Irmão WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO





“Se o cristianismo tivesse sido detido em seu crescimento
por alguma doença mortal, o mundo teria sido mitraísta.”
Ernest Renan, Marc Aurèle


Este estudo buscará enfocar o tema Mitra em cinco partes: a) as origens antigas do Deus; b) o culto e a liturgia do mitraísmo; c) a derrota frente ao cristianismo; d) resquícios mitraícos e sua influência sobre a maçonaria e e) como seria um mundo moderno mitraíco à guisa de conclusão. Utilizamos, para este trabalho, enciclopédias e diversos textos da Internet, principalmente o texto de Jean-Louis dB no “La parole circule”.


I – As Origens Antigas do Deus Mitra.

Existe muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia védica, Mitra significava ‘amigo’, no persa avéstico era traduzido como ‘contrato’. Esta última definição é a que prevalece nos nossos dias, sendo pois Mitra a personificação do contrato. Segundo os etimologistas, Mit(h)tra é composto de um sufixo instrumental – “tra” – que significa instrumento de trabalho e de um prefixo “mi” que é encontrado em todas as línguas indo-européias sob diferentes raízes. “Mei” pode significar ainda “lugar, encontro”. Em sânscrito “mitram” significa “amigo”. Mitra significando, pois, ‘contrato’ e ‘amigo’ não se opõem realmente, visto que não existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se fala em ‘pacto de amizade’? Mitra se encontra sob diferentes ortografias: Mihr, Meher, Meitros, etc.

Os trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os de Georges Dumézil sobre a Índia védica demonstram uma estrutura fundamental da sociedade e da ideologia das diferentes sociedades indo-européias. A sociedade é dividida em três classes: sacerdotes, guerreiros e agricultores que correspondem a uma ideologia religiosa trifuncional: a função da soberania mágica, da sacrificadora e da jurídica (Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin); a função dos deuses da força guerreira (Indra, o etrusco Lucumão-Marte e Thor) e, finalmente, a das divindades da fecundidade e da prosperidade econômica (os gêmeos Nâsatya ou os Asvins, Tatius [e os sabinos]-Quirino e Freyr).

Encontra-se o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia desde 1380 a. C. Este Proto-Mitra estaria associado a Varuna e forma uma dualidade antitética e complementar. Mitra seria a face jurídico-sacerdotal, conciliadora, luminosa, próxima da terra e dos homens enquanto Varuna seria o aspecto mágico violento, terrível e tenebroso. Mitra torna-se, pois, a garantia do compromisso, a força deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom direito pela força atuante. A antítese Mitra-Varuna encontra-se também em Roma com a oposição dos dois primeiros reis: Rómulo (Varuna-Júpiter), semi-deus violento e Tatius (ou Numa-Mitra), ponderado e sábio, instituidor das questões sagradas e das leis, ligado igualmente aos deuses da fertilidade e do solo. Mitra é o Deus soberano sob seu aspecto racional, claro, regrado, calmo, benevolente, sacerdotal. Seu papel é secundário quando esta isolado de Varuna, mas compartilha com este todos os atributos da soberania. O Sol é seu olho, nada lhe escapa. A conclusão de um acordo se fará através de um sacrifício ao Deus Mitra, mas um sacrifício incruento, pelo menos no início, pois, mais tarde, terminará por aceitar sacrifícios sangrentos. Esta evolução é metaforizada pelo papel de Mitra na história dos Deuses, pois terminará por ser associado à morte do Deus Soma. Na origem, Mitra recusa-se a participar da morte ritual, sendo amigo de todos, pois prestará sua ajuda para, no final, ser um ator ativo na morte ritual.

O Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra mais conhecido e divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano. A influência da antiga religião iraniana para a formação religiosa do Ocidente é bastante significativa: o tempo linear, a articulação dos diversos sistemas dualistas – sejam cósmicos, éticos ou religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração de uma escatologia ‘otimista’ que proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a salvação universal; a doutrina da ressurreição dos corpos; certos mitos gnósticos; a mitologia dos Magos etc.

Na religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o Bem) e os daêvas (o Mal) sempre foi presente, já que na Índia védica aconteceu o contrário: no conflito entre os devas e os asura, aqueles foram vencedores, pois tornaram-se os verdadeiros deuses, ao triunfarem sobre as divindades mais arcaicas – os asura – que nos textos védicos são considerados figuras ‘demoníacas’. Processo similar, ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã: os antigos deuses, os daêvas, foram demonizados (ai, dos perdedores!). Eliade argumenta que “pode-se determinar em que sentido se efetuou essa transformação: foram sobretudo os deuses de função guerreira – Indra, Saurva, Vayu – que se tornaram daêvas. Nenhum dos deuses asura foi ‘demonizado’. Aquele que, no Irã, correspondia ao grande asura proto-indiano, Varuna, torna-se Aúra-Masda”.

Aqui, a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra sendo que a função continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da aurora, guardião que socorre as criaturas, onisciente e vitorioso. Aúra, tornando-se progressivamente Aúra-Masda, transforma, também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o paulatinamente num deus guerreiro. Mitra continua deus do contrato e do acordo e assegura uma ligação entre os diferentes níveis da sociedade da qual é garantidor da ordem, representada pelo gado e a fecundidade. Interessante notar que aquela trilogia de Dumézil – sacerdote, guerreiro e agricultor – começa a ser baralhada. Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará os sacrifícios, notadamente os do Touro. Seu papel de deus guerreiro, contudo, crescerá à medida que Aúra-Masda fortifica e torna dominante o seu lugar no Panteão dos Deuses. Tal ‘evolução’ é lógica, pois como deus garantidor da ordem, sempre estará ao serviço do respeito da lei e do contrato para aqueles que o reverenciam. Com o tempo metamorfoseia-se num deus violento e cruel. É um deus solar com mil olhos e orelhas e, como vimos, um deus da fertilidade dos campos e dos rebanhos. Atua, como Hermes, no papel de psicopompo, ou seja, condutor das almas dos mortos, pois como senhor dos Céus conduz as almas até o Paraíso.

Mitra foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o reverenciava; sob Dario houve um breve eclipse, pois este, segundo alguns especialistas, era partidário de Zoroastro; e reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza persa, o dia de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica.

Mitra retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos e dos contratos, sob a influência dos Magos. Estes foram uma classe de sacerdotes dos antigos medas com um papel sacrificial importante e que entre os gregos antigos gozavam de uma reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No Panteão dos Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou Anahita, a gênia feminina do fogo, uma espécie de Virgem Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura feminina associada a Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida, exigindo de seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a resistência a toda forma de sensualidade. Vale salientar que o maior Mithraeum (templo) construído em Kangavar na Pérsia Ocidental era dedicado a esta deusa. Segundo reza o Mihr Yasht, o extenso hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a história de Mitra é a seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos Grandes Deuses, Aúra-Masda mandou construir-lhe uma mansão no cimo do Monte Hara, ou seja, no mundo espiritual, além da abóbada celeste. Postou-se aí como o protetor de todas as criaturas e não era adorado como todos os outros deuses menores com preces rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote de Mitra que o adorava e lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria e prescreve o rito próprio ao culto de Mitra no paraíso. Mitra, assim, retorna à terra para o combate contra os daêvas sem, contudo, conseguir vencê-los. Somente quando Mitra se une a Aúra Masda o destino dos daêvas será selado. Mitra será, a partir daí, adorado como a luz que ilumina todo o mundo.

No tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu Panteão e, em troca, introduzirão, na religião persa, seu culto solar, tendo a astrologia como um dos seus pontos mais fortes. Convém salientar que a cultura judaica sofrerá uma influência marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro em 597 a.C. No judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único criador do Mundo e do Universo, ou seja a totalidade absoluta do real, contendo inclusive o mal. O dualismo Iavé – HaShatan advém de uma crise espiritual que se seguiu ao cativeiro babilônico, personificando aspectos negativos da vida, sob a forma de Satã, que se tornará progressivamente também eterno. Satã seria, então, o fruto de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com as doutrinas dualistas iranianas. Esta tradição impactará fortemente o cristianismo nascente.

O Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de Alexandre e a queda do império persa durante o ano de 330 a. C., pois Alexandre e 10.000 de seus soldados macedônios se casam com mulheres persas e mais, dentro do ritual persa. Sabe-se que alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados pelas mães persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É deveras conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do inimigo persa, nunca obteve uma grande popularidade na Grécia, apesar de continuar a manter a influência junto à aristocracia meda e iraniana. Tanto assim que o nome Mitrídate (dado a Mitra) é encontrado em diversos reis partos, do Bósforo e do Ponto Euxino. A arqueologia tem descoberto diversos templos – Mitreas – na Armênia. Apesar da pouca influência junto ao povo grego, a religião iraniana entrou num vasto movimento sincrético junto à cultura helênica. Mitra era adorado em todo o império de Alexandre e os Magos continuavam a ser os sacerdotes sacrificadores. O culto repousava sobre uma cronologia escatológica de 7.000 anos, cada milênio sendo governado por um planeta. Daí advém a série dos 7 planetas, dos 7 metais, das 7 cores etc. Durante os 6 primeiros milênios, Deus e o Espírito do Mal combatem pela supremacia e, quando o Mal parecia vitorioso, Deus enviou o Deus solar Mitra (Apolo, Hélio) que domina o sétimo milênio. No fim deste período setenal, a potência dos planetas cessa e um incêndio universal recobre o mundo.

Curioso nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei do Ponto, anterior ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi anunciado por um cometa, um raio caiu sobre o recém-nascido, deixando-lhe uma cicatriz. A educação deste rei é uma longa série de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação como uma encarnação de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal cristão. Ele será o último rei de uma longa lista de grandes reis Mitridates. Conquistou quase toda a Ásia Menor por volta de 88 a. C., mas foi derrotado pelos romanos em 66. Provavelmente aliou-se aos piratas Cilicianos dos quais falaremos a seguir. Foi, também, o primeiro monarca a praticar a imunização contra os venenos, a qual, segundo o Aurélio, se adquire por meio da repetida absorção de pequenas doses deles, gradualmente aumentadas, daí o nome mitridatismo.

A grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma refinada e final do paganismo pré-cristão foi discutida pelo historiador grego Heródoto, pelo biógrafo, também grego, Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio, pelo herético gnóstico Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.

O contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a partir de Comageno na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros testemunhos sobre Mitra, como um Deus dos Mistérios no primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos piratas Cilicianos em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de resistência e luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz que celebravam em segredo ‘os mistérios de Mitra’. Sua capital era Tarso, onde nasceu S. Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O símbolo da cidade era o combate do Leão com o Touro. Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram na Ásia Menor e na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no mundo helênico, principalmente, como vimos, na aristocracia. Cita-se que o rei Tiridate quando veio a Roma para ser coroado rei da Armênia por Nero, dirigiu-se ao imperador chamando-o por Mitra (Deus Sol).

O Mitra romano faz sua ‘rentrée’ no Império através dos Mistérios. O termo “mistério” possui um sentido muito preciso. Os mistérios gregos, e depois romanos, foram numerosos: Dionísio, Elêusis, Cibele, Átis e Deméter. Podem ser ainda citados os de Ísis, Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno etc. Uma certa bruma enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios, mas o comum entre eles, era o aspecto ‘solar’, apesar de todos esconderem sua identidade essencial. Desnecessário dizer que, por serem os mistérios, secretos e ocultos, poucos documentos escritos chegaram até nossos dias. O pouco que se sabe sobre eles advém da patrística cristã que, na ânsia de combater o mitraísmo, terminou por nos legar uma série de descrições sobre o mesmo. Alguns autores gauleses chegam a afirmar que assim como a maçonaria foi a religião clandestina da IIIª República Francesa, o mitraísmo sustentava subterraneamente a ideologia da Roma Imperial.

A inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo Plutarco (Vita Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67 a. C., de 20.000 prisioneiros Cilicianos (uma província na costa sul oriental da Ásia Menor) que praticavam os “ritos secretos” de Mitra. Daí, a epidemia mitraíca se alastrou por todo o mundo romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos das tropas de ocupação romana com as outras culturas mitraícas, tendo atingido o seu zênite no século III, quando começou a travar uma luta de vida e morte com o cristianismo. Tanto assim que do século II ao IV da nossa era, os Mithrae (ou Mithraeum no singular) – templos dedicados ao culto do deus – chegaram a ser mais de 40 em Roma. Um dos maiores templos construídos podem ser encontrados hoje nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu. Esta adoração não se restringia somente à capital do Império, mas principalmente às cidades portuárias da atual Itália: Óstia, Antium, no mar Tirreno; Aquiléia, no Adriático, Siracusa, Catânia, Palermo etc. Paralelamente, a propagação se dá na Áustria, na Germânia, nas províncias danubianas, na Polônia, na Hungria e Ucrânia e num movimento de volta, nas províncias da Trácia e da Dalmácia, num retorno à Grécia e a Macedônia. No terceiro século, encontram-se traços mitraícos na Criméia, no Eufrates, no Egito e sobretudo no Maghreb. Curioso é que a Espanha e Portugal sofreram pouquíssima influência. A Gália oriental, renana e belga, pagou o seu tributo, assim como também a Aquitânia. Encontram-se vestígios na região parisiense, como também em Boulogne sur Mer. Na Inglaterra, a concentração se dá em Londres e na região norte, ao longo do muro de Adriano, até Canterbury. Locais de adoração mitraíca foram encontrados também, na Bretanha, na Romênia, na Alemanha, na Bulgária, na Turquia, na Pérsia, na Armênia, na Síria, em Israel etc. No final do século III, Mitra era adorado da Escócia à Índia, chegando até a oeste da China, onde era conhecido como Amigo, nome que indica uma filiação védica.

Mitra passa a ser representado como um general militar. É o Amigo do homem durante a sua vida e seu protetor contra o mal após a sua morte. Mitra não é só propagado pelos militares romanos como também pelos funcionários, comerciantes, artistas, meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos do conhecimento. Ao contrário da Grécia, penetra nos meios mais modestos e populares. Por mais de trezentos anos, os romanos adorarão Mitra.

Em meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar. Os neófitos começaram a congregar-se sob os Flávios, espalhando-se o culto na época dos Antoninos e Severos. Os próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios, havendo suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo (185-192) que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto, seguido por Sétimo Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto do Deus solar sob a forma de Sol invictus. O culto foi reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial virá, entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas emanações, não parece que Mitra tenha recebido uma preponderância imperial na corte dos Césares pagãos. Deve-se notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo, sua influência não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem que isto se deveu à exclusão das mulheres nas funções litúrgicas.

II – Representações Litúrgicas e Ritualísticas do Deus Mitra

Mitra é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de um jovem montado num touro e, com uma das mãos, empunha uma adaga para o degolar. Alguns afrescos, encontrados na parte mais central do Mithraeum (templo subterrâneo de adoração), representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou para o lado, significando desgosto com o que está fazendo. Sincreticamente, encontram-se ainda imagens de Teseu matando o Minotauro ou Perseu chacinando a Górgona ou, ainda, Hércules esfolando o Touro. Mitra está vestido em trajes orientais e muitas vezes circundado por dois meninos ou pastores que podem simbolizar o levante e o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés – montante e vazante – e ainda, a vida e a morte. A cena possivelmente se passa numa gruta. Um corvo, mensageiro do sol, está quase sempre na borda do rochedo. Vê-se ainda um cão se aproximando para beber o sangue da vítima, uma serpente enroscada dentro de uma pequena cratera e ao redor de um recipiente, um leão ameaçador, espigas de trigo sobre o rabo do touro e um escorpião que pica os testículos do animal morto.

A figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela sua força e vigor. Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um monstro metade-homem metade-touro que vivia no Labirinto nos subterrâneos da ilha de Creta e que exigia um sacrifício anual de seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido morto por Teseu. Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo de Salomão em Jerusalém, era adornado com chifres de touros que acreditavam ser portadores de poderes mágicos. O touro era também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos símbolos animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste poderoso animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da Espanha e do México, no rodeio dos ‘cowboys’ dos EEUU e agora, também, no Brasil.

Os estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram ser os mistérios mitraícos derivados das antigas religiões iranianas explica parcialmente como a cena da morte do Touro – conhecida como tauroctonia – inexiste na mitologia iraniana com a figura de Mitra. Cumont responde que teria encontrado textos que apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força cósmica do mal na religião iraniana.

Somente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Mitraícos (1971) levantaram-se novas hipóteses para explicar esta incongruência. A iconografia tauroctônica seria, na verdade, um mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo os estudos de David Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na tauroctonia padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo de uma faixa contínua no céu: o boi tem um paralelo com a constelação do Touro, o cachorro com o Cão Menor, a serpente com a Hidra, o corvo com o Corvus e o escorpião com Scorpio; ii) a iconografia mitraíca, em geral, é permeada por imagens astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e as estrelas são permanentemente encontrados na arte mitraíca.

A pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a astronomia greco-romana, focaliza o seu caráter “geocêntrico” no tempo dos mistérios mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no centro do universo e tudo girava à sua volta. Nesta cosmologia, o universo era imaginado como estando contido numa grande esfera no qual as estrelas eram fixadas em várias constelações. Hoje sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o seu eixo cada dia, mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por dia a grande esfera das estrelas fazia a sua rotação sobre a terra, oscilando num eixo que corria da abóboda do polo norte para o do sul. No seu giro, a esfera cósmica carregava o sol, explicando assim a oscilação do mesmo sobre a terra.

Além deste movimento, os antigos atribuíam um segundo movimento mais vagaroso. Enquanto hoje sabemos que a terra gira ao redor do sol durante o ano, na antigüidade acreditava-se que, durante o ano, o sol – que estava bem mais próximo do que as outras estrelas – viajava sobre a terra, traçando um grande círculo no céu tendo como fundo as outras constelações. Este círculo, traçado pelo sol durante o ano, era conhecido como o zodíaco, uma palavra significando ‘figuras vivas’, pois o sol passeava, durante o ano, sobre doze diferentes constelações que representavam diversas figuras de animais e formas humanas. Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande esfera de estrelas, suas várias partes – tais como os eixos e os pólos – jogavam um papel crucial na cosmologia de seu tempo. Particularmente, um importante atributo da esfera das estrelas era muito mais bem conhecido do que hoje: o equador, denominado na época de equador celeste. Assim como o equador terrestre é definido como um círculo ao redor da terra eqüidistante dos pólos, também o equador celeste era entendido como um círculo ao redor da esfera das estrelas eqüidistante dos pólos desta mesma esfera. O círculo do equador celeste era visto como tendo uma importância especial por causa dos dois pontos em que ele cruzava com o círculo do zodíaco: estes dois pontos eram os equinócios, ou seja, o local onde o sol, no seu movimento através do zodíaco, cortava-o no primeiro dia da primavera e no primeiro dia do outono. Assim, o equador celeste era responsável pela definição das estações e, por esta razão, tinha uma significação concretíssima ao lado seu significado astronômico mais abstrato.

Um outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não estava fixo, possuía um movimento lento alcunhado de “precessão dos equinócios”. Este movimento, sabemos hoje, é causado por uma oscilação na rotação da terra sobre seu eixo. Como resultante desta leve oscilação, o equador celeste parece mudar sua posição no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido como a precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais facilmente é uma mudança na posição dos equinócios ou seja, os locais onde, como vimos acima, o equador celeste cruza o zodíaco. Desta maneira, esta precessão resulta num movimento vagaroso para trás ao longo do zodíaco, passando sobre uma constelação do zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo todo o zodíaco a cada 25.920 anos. Hoje, por exemplo, o equinócio da primavera está no final da constelação de Peixes, mas, em algumas dezenas de anos, estará entrando em Aquário – já se fala muito, atualmente, na Era de Aquário. A grosso modo, o equinócio da primavera estava em Touro entre 4.000 a 2.000 a.C. mais ou menos; em Áries de 2000 a.C. até o nascimento de Cristo, ou seja nos tempos greco-romanos; a Era de Peixes – o cristianismo –, da gênese do mesmo até a nossa mudança de milênio e de 2000 e poucos em diante, a tão decantada Era de Aquário.

Ulansey descobriu que, neste fenômeno da precessão dos equinócios, estaria a chave para desvendar o segredo do simbolismo astronômico da tauroctonia mitraíca. Para as constelações desenhadas nas tauroctonias mais comuns havia uma coisa constante: todos eles estavam posicionados no equador celeste como na época imediatamente precedente à Era de Áries dos tempos greco-romanos. Durante esta idade anterior, que podemos chamar de Era de Touro (como vimos durou mais ou menos de 4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época estavam Taurus (Touro, o equinócio da primavera), Canis Minor (o Cão), Hydra (a serpente), Corvus (o Corvo) e Scorpio (o Escorpião que estava no extremo oposto do Touro, ou seja, o equinócio do Outono). A coincidência é impressionante, todos estas constelações estão representadas nas tauroctonias.

Em muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada de estrelas. Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o fim da Era de Touro e o começo da Era de Aries no equinócio da primavera e Mitra, o deus Todo-Poderoso, que poderia reger e mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos do filósofo neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna, onde se posiciona o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua parte mais recôndita, seria, na verdade, uma ‘imagem do cosmos’.

Como curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica sobre a interpretação psicanalítica do morte do touro, sendo um dos pontos básicos de divergência e conflito entre ambos, resultando, posteriormente, em separação definitiva.

Mitra, Deus solar, também é representado com a cabeça de um Leão quando é saudado com o título de Sol invictus. São os afrescos, encontrados em Mênfis, com as coxas peludas, patas de caprino e a cabeça radiada. Mitra Leoncéfalo, portando as chaves, é outra imagem lapidar, pois fora das cenas tauroctônicas, ele é representado em momentos de refeição ou de iniciação.

No tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do Mithraeum e na presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e orações; manducação de pão e sumpção de água e vinho, acompanhadas de fórmulas sagradas; danças de luzes e fórmulas de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao ocaso. As festas realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se festejava uma semana inteira, sendo cada dia destinado a um planeta. Comemorava-se, de modo especial, o dia natalício do deus (Natalis Invicti), a 25 de dezembro. Os ofícios dos templos faziam-se à luz de velas, com toques de sinos e com hinos, cujo teor não se conhece, porque se perderam.


O Mithreum típico era uma pequena câmara retangular subterrânea (25x10m) com um teto arqueado. Um corredor dividia o templo ao meio, com bancos de pedra dos dois lados de 80 cm de altura no qual os membros do culto podiam descansar durante suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30 pessoas. No fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma representação – normalmente um relevo entalhado e algumas vezes uma escultura ou pintura – do ícone central do mitraísmo: a tauroctonia ou a cena da morte do touro, conforme descrito acima. Outras partes do templo eram decoradas com várias cenas e figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso d’água ou, na falta destes, de um poço. Havia centenas, talvez milhares, de templos mitraícos no Império Romano.

Os adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo contemplativo. O seu culto encorajava a ação e um grande rigor moral. Para os soldados, a resistência ao mal e às ações imorais representavam uma vitória tão importante quanto as militares.

Reuniam-se, em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual iniciático. Partilhavam o banquete sacramental com os deuses e finalizavam com uma aliança entre o sol e Mitra. O repasto, sobre os despojos de um touro, era seguido de um sacrifício, muitas vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro: cabras, javalis e/ou galináceos.

Consagrava-se o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o sangue do touro e comia-se a carne. O processo da iniciação mitraíca requeria a subida simbólica de uma escada cerimonial com sete degraus, cada um feito de um metal diferente para simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente galgando esta escada cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito podia atravessar os sete níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram: Corax (Corvo), Nymphus ( Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão), Peres (Persa), Heliodromus (Corrida do Sol) e Pater (Pai); cada grau era protegido por um planeta (na cosmologia da época): Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o Sol e Saturno. Cada dignitário apresentava a vestimenta e a máscara correspondente ao seu grau. Como todo rito mitraíco a estrutura hierárquica era setenária. Os adeptos tinham a sua divisão de papéis: o chefe (pater), o papel de Mitra, o heliodromo (sol), o corvo apresentavam as carnes e as bebidas aos convivas dentro de uma ordem hierárquica. A carne era assada sobre os altares dentro da concepção do sacrifício do mundo greco-romano.

Os rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por “inductio”. Antes de serem admitidos, os candidatos eram interrogados, sondados, informados num local distinto do templo. Em seguida, eram submetidos a uma série de provas, nus e com os olhos vendados, marchavam às apalpadelas diante de um mistagogo para finalizar se ajoelhando diante de um personagem que portava uma tocha diante de seus olhos. A seguir, com as mãos atadas às costas, colocavam um joelho no chão ao mesmo tempo que um sacerdote cingia-lhes a cabeça com uma coroa. No final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz parte da tipologia iniciática das sociedades secretas em geral: olhos vendados, resistência física, morte simbólica, etc.

Reprova-se, nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios humanos. Tal suposição advém de se ter encontrado, nos diversos Mithrae, restos de esqueletos humanos.

Apesar de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a “teodicéia” mitraíca. Sabe-se, contudo, que os “mistérios” da Antigüidade revelam um mito ou uma história santa que legitima a liturgia. É uma certa explicação do Mundo e da passagem do homem sobre o mesmo que dá toda a força aos “mistérios”, sejam eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos. A religião de Mitra se independentizou de suas origens orientais, agindo como um imã que atraiu diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos etc. Finalizou como um Deus adaptado ao Império Romano, explicando assim o seu sucesso. Uma das grandes ironias da história é o fato de que os romanos terminaram por adorar um deus de um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O historiador romano Quintius Rufus assinala no seu livro História de Alexandre que antes de ir batalhar contra os “países anti-mitraícos” de Roma, os soldados persas oravam a Mitra pela vitória. Sem embargo, tendo as duas civilizações inimigas estado em contato de conflito aberto ou latente por mais de mil anos, os adoradores de Mitra migraram dos persas, através do frígios da Turquia, até os romanos.

Numa análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história do Mundo. Saturno (ou Cronos, representando o Tempo) reinava soberano sobre o Mundo, quando entregou a Júpiter o raio, uma arma letal que serviu para derrotar os gigantes e gênios do mal. Alguns autores hipotetizam que este gênio do mal poderia ser o Oceano que cobria a Terra.

Mitra, Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge miraculosamente de uma rocha com um barrete asiático, tendo em uma das mãos uma tocha luminosa e na outra, a adaga. Pastores assistem e ajudam este nascimento. Mitra, em seguida, é encontrado junto de uma árvore ceifando o trigo. Depois é visto atirando com um arco sobre uma parede rochosa onde jorra uma fonte que sacia os pastores. Alguns autores concluem que as forças do mal (Oceano?) tentaram aniquilar os humanos pela fome e pela sede e que Mitra, salvador dos homens e Deus protetor, interveio para os alimentar e saciar sua sede, não só dos homens como dos rebanhos. Nota-se, também, que o papel “justiceiro” das tradições asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em socorro do Mundo para fazer respeitar a Lei Divina.

Começa, agora, a perseguição ao Touro. O touro está em conjunção com a lua, seus dois chifres formam o crescente. O touro contem os elementos vivos (o esperma do touro purificado pelo raio da lua produzirá os espécimens animais). Mitra tem a missão de subtrair estas forças vivas das tentações maléficas. O touro se refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo ao local. Mitra alcança o animal, agarra os seus cornos e consegue cavalgá-lo. Depois, prende as patas traseiras do animal, arrasta-o até a gruta onde um corvo, mensageiro do Sol, impõe-lhe a tarefa de matar o animal insubmisso. A morte do touro atrai uma serpente e um cachorro que se apressam em sugar o sangue que jorra da ferida enquanto um escorpião (algumas vezes um caranguejo ou um ‘câncer’) fisga os testículos da vítima para aspirar sua força vivificante.

Cumont afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente com o sangue que escorre da calda do touro. Do corpo da vítima moribunda nascem as ervas e as plantas salutares… De sua medula espinal germina o trigo que dá o pão, de seu sangue, a vinha que produz a beberagem sagrada dos mistérios.

É após a morte do touro que um conflito se abate entre Hélio e Mitra. O Sol, ajoelhado diante da tauroctonia, perde sua prerrogativa de astro soberano. Mitra torna-se o verdadeiro Sol Invictus que vem salvar a criação. O Sol reconhece a preeminência de Mitra pois se faz iniciar no grau de Soldado (Miles).


III – O Cristianismo Triunfante

O fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e vem acompanhado da entronização do cristianismo como religião do Império Romano. Como vimos, o mitraísmo sofria o passivo de praticar uma liturgia elitista em pequenas sociedades secretas na qual as mulheres eram excluídas. Não se propunha ser uma reli-gião de massa, aberto a todos, como o cristianismo. Era uma religião otimista e Mitra teve o grande defeito de não ter morrido para salvar o mundo.

Como os persas eram inimigos hereditários do Império Romano, os cristãos fizeram de tudo para ligar o mitraísmo a uma religião “inimiga”, persa por excelência, pois os romanos não deveriam adorar um deus importado do adversário. Apesar de tudo parece que Constantino manifestou uma certa simpatia pelo mitraísmo, principalmente na sua versão de “Sol invictus”. Quando este primeiro imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na clandestinidade, poupou os mitraístas pois estes possuíam muita influência junto aos militares que eram o cimento do Império. O ‘punctus saliens’ no qual os cristãos atacavam os mitraístas era a sua propensão aos sacrifício animais. Quando estes sacrifícios foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos vitais do culto mitraíco.

O combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser lido nos escritos de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta religião utilizava indevidamente o batismo e a consagração do pão e do vinho. Dizia, ainda, que o mitraísmo era inspirado pelo diabo que desejava zombar sobre os sacramentos cristãos com o intuito de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo sobreviveu até o século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos Anauni e conseguiu sobreviver no Oriente Próximo até os dias de hoje.

No curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino, Gibbon afirma que se assistiu a um retorno temporário ao mitraísmo, tendo este Imperador se reconhecido até mesmo como adepto e chegando a construir um Mithraeum nos calabouços de seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período de tolerância quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o cristianismo tornou-se religião de Estado e o paganismo foi definitivamente interditado. O mitraísmo sobreviveu em Roma até 394 sendo que a Basílica de São Pedro foi construída sobre o local do último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí, o cristianismo construiu, boa parte de seus templos, acima de cavernas que continham Mithrae, seja em Roma seja nas províncias do Império. A catedral de Canterbury e a de São Paulo em Londres, o mosteiro do Monte Saint-Michel e algumas catedrais em Paris estão construídas sobre antigos Mithrae em ruínas.

Os pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são inúmeros. O nascimento de Cristo é anunciado por uma estrela assim como o de Mitridate Eupator. Ambos são nascidos de uma Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de Deus. A caverna, a gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de Mitra. A presença de pastores e de seu rebanho também estão presentes em ambos os nascimentos. A gruta de Belém é prenhe de luz e Mitra é um deus solar. Além do mais, o ouro, símbolo do Sol, tem uma importância crucial na liturgia cristã. Deus é Amor mas também Luz. O nascimento dos dois deuses foi a 25 de dezembro, solstício de Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo não teria nascido no dia 25 e que, somente com o fim do mitraísmo, a Igreja Cristã, “cristianizou” o dia como a festa do Natal. Tanto Cristo como Mitra eram castos e celibatários. Todas as duas religiões são fundadas sobre um sacrifício salvador do Mundo, mas com a morte de Cristo, o cristianismo tira a sua vantagem e sua superioridade. A morte do Touro encontra um símile na luta de São Jorge com o dragão. A vontade de neutralizar as potências do mal, a guerra entre as duas potências e a vitória do Bem. A consagração do pão e do vinho estão presentes entre os cristãos e os iniciados de Mitra. No grau de Soldado (Miles), o iniciado é marcado com uma cruz de ferro em brasa sobre a fronte. A imortalidade da alma e a ressurreição final. As igrejas antigas possuem criptas subterrâneas que evocam os templos mitraícos. A fraternidade e o espírito democrático das primeiras comunidades cristãs se assemelham muito ao mitraísmo. A fonte jorrando da rocha, a utilização de sinos, os livros e as velas, a água santa e a comunhão, a santificação do Domingo (fora da tradição judaica do Sábado), a insistência numa conduta moral, o sacrifício ritual, a angeologia, a teologia da luz, dualidade deus-diabo, o fim do mundo e o apocalipse são também comuns em ambas as religiões.

Outro símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel. Vestimentas vermelhas e barrete frígio são comuns a ambos como também as velas incrustadas em árvores (de Natal) nas cerimônias natalinas.


IV – Sobrevivência Mitraíca e sua Influência na Maçonaria

Encontram-se traços mitraícos nas diversas gnoses e principalmente nas heresias dualistas cristãs. O esoterismo do gnosticismo cristão foi muito influenciado pelas religiões egípcias e iranianas. Os segredos, revelados aos “Perfeitos”, referiam-se aos mistérios da ascensão e descida de Cristo através dos Sete Céus habitados pelos anjos. Autores modernos chegam a afirmar que o gnosticismo é um fenômeno pré-cristão de origem iraniana que poluiu o cristianismo nascente. A influência dos cultos iranianos e especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani são insofismáveis. Desde o século III d. C., o segredo mitraíco força as portas da barca de São Pedro. A pressão deste dualismo maniqueísta percorre toda a Idade Média. O bogomilismo da Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X colocando Satã no lugar de Deus, infligindo um poder considerável sobre as heresias Cátaras e Albigenses no alvorecer do século XII na Europa Ocidental. Estas heresias gnósticas cristãs professavam a asserção de que Deus não teria criado o Mundo, estando este sob o domínio de Satã – assimilado ao demiurgo Yahvista. O verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se dão estes embates entre o Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado Cristo para salvar os homens ao mostrar-lhes o método da libertação.

Outra difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os Cavaleiros do Templo, pois estes sofreram a influência dos maniqueus. No culto a Baphomet, também conhecido como o filho de Mitra, havia um ícone representado por um Touro ornado com uma chama entre seus cornos…

O culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas semelhanças com a maçonaria propriamente dita. A fraternidade entre os membros, a exigência de uma conduta moral, a vontade de defender, de maneira ativa e não contemplativa, o bem e a virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e mitraícos. A defesa da ordem política e social, o culto exclusivamente masculino são também pontos comuns. Ritualisticamente encontram-se os seguintes traços: a mania pelo número 7, a existência de graus iniciáticos, as velas, os altares, a Luz, as palavras de passe, etc. O templo maçônico pode ser visto como uma gruta mitraíca ou se não se quiser ir muito longe o símile poderá ser feito com a câmara de reflexões; o teto estrelado do templo tem profunda semelhança com os mitraícos. Os templários, a tradição judaica e cristã foram os grandes transmissores de símbolos mitraícos. Os dois São Joães – de Inverno e de Verão – tem profunda vinculação com os dois pastores da tauroctonia. O sacrifício ritual fundador de Hiram está muito próximo do sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento militar, encontrado nos altos graus do escocesismo, é uma prova cabal da influência mitraíca.

Outro símile estaria no mais baixo grau de iniciação – o grau de Corvo (Corax) – simbolizava a morte do novo membro, o qual deveria renascer como um novo homem. Isto representava a fim de sua vida como um não-crente (ou descrente) e cancelava pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis. Curioso salientar que o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume zoroástrico de expor os mortos em elevações funerárias para ser comido pelas aves de rapina. Este costume continua, até os dias de hoje, sendo praticado pelos Parsis da Índia, descendentes dos persas seguidores de Zaratustra.

O simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos, poder ter um paralelo com o touro, pois este era uma óbvia representação da masculinidade pela natureza de seu tamanho, de sua força e de seu vigor sexual. Ao mesmo tempo, o touro simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos e as forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no solo. O sacrifício do touro simboliza a penetração do princípio feminino pelo masculino, a vitória da natureza espiritual sobre a animalidade, tendo um paralelo com as imagens simbólicas de Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh aniquilando Huwawa (grafia de Eliade), São Miguel dominando Satã, São Jorge vencendo o dragão, o Centurião lancetando Cristo e, por que não nos referirmos a um ícone moderno: Sigourney Weaver lutando contra o Alien?

Finalmente, o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos mistérios e uma sociedade secreta. Tal como os ritos de Deméter, Orfeu e Dionísio, os rituais mitraícos admitiam candidatos em cerimônias secretas cujo significado era do conhecimento somente do iniciando. Como todos os outros ritos de iniciação institucionalizados do passado e do presente, este culto dos mistérios permitia aos iniciados ser controlado e posto sob o comando de seus líderes. Ao ser iniciado, o neófito tinha que provar sua coragem e devoção nadando através de rio caudaloso, escalando um rochedo íngreme ou pulando através das chamas com suas mãos atadas e os olhos vendados. Ao iniciado era também ensinado o segredo das palavras de passe mitraícas que eram usadas para identificação mútua como também era auto-repetida freqüentemente como um mantra pessoal.
V – Como seria um Mundo Mitraíco à Guisa de Conclusão

O legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje em dia, tal como o apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca. Os adoradores de Mitra foram os primeiros no Ocidente a pregar a doutrina do direito divino dos reis. Foi a adoração do sol, combinada com o dualismo teológico de Zaratrusta, que disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV (1638-1715) na França e outros soberanos deificados na Europa mantiveram o seu absolutismo monárquico.

Alguns estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C., nunca a Europa esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana quando Diocleciano, oficialmente, reconheceu Mitra como o protetor do Império Romano, nem mesmo durante as invasões muçulmanas.

Especulações teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de estado, dado pelos centuriões adoradores de Mitra, tivesse impedido Constantino de estabelecer o cristianismo como a religião oficial do Império, o mitraísmo poderia possivelmente sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo “ipso facto” que os ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira, sido simultaneamente anulados e, talvez, com um número crescente de crucificações. Esta ausência do cristianismo, devido à continuação do mitraísmo no Ocidente, teria obstado o crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas necessariamente não teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã não teria, assim, conquistado religiosamente a Pérsia, a adoração de Mitra poderia ter continuado no panteão de Zaratrusta. Como conseqüência, o mitraísmo poderia ter penetrado com mais força nos panteões da Índia e da China e, possivelmente, teria aportado nos países do Extremo-Oriente.

Continuando com a especulação saxã que resultou na “lenda negra” da dominação espanhola no Novo Mundo, Colombo realizou os seus descobrimentos em pleno período da Inquisição, fenômeno este representativo da culminância de mais de mil anos de uma das maiores religiões monoteístas semítica – o cristianismo. Se o mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o ano de 1492, os povos indígenas das Américas poderiam ter sido expostos à adoração de Mitra no lugar dos missionários católicos. Imaginaríamos, assim, o Taurobolium – ritual de regeneração ou sacrifício do touro, no qual o sangue do animal era derramado sobre o iniciado – sendo sido transposto e sincretizado com o ritual da caça do búfalo dos índios das planícies do Oeste americano e a cerimônia do sacrifício dos maias, incas e astecas, e provavelmente, estes impérios não teriam sido aniquilados pelos brutais conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.

Se non è véro, è bene trovato…


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