quinta-feira, 12 de outubro de 2017

OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XIX

O TEMPLO DESTRUÍDO

João Anatalino Rodrigues

Filipe, o Belo, havia obtido o que queria. O Templo, em meados de 1308, já estava virtualmente destruído. Com todos os bens móveis e imóveis, direitos, créditos, haveres e praticamente tudo que tivesse valor, sob sua guarda, o rei podia deixar agora, a cargo da Igreja, a condução do inquérito. Nada que fosse feito dali para diante ─ não importava mais o que fosse apurado ─ mudaria o destino da Ordem, nem alteraria o que tinha sido feito.

Clemente V tinha aplacado sua consciência com o depoimento dos setenta e um Templários, que com poucas defecções, haviam admitido a prática de algum comportamento pecaminoso no interior da Ordem, especialmente por ocasião da recepção dos noviços. Não era suficiente para condenar toda a Ordem por heresia, sodomia, idolatria e outros crimes capitais, como Filipe, o Belo, pretendia, mas justificava a abertura do processo contra ela. Por enquanto isso seria suficiente. Aplacaria a ira do rei e salvaguardaria a sua posição no caso, que ainda era recalcitrante.

Podia, agora, posar como juiz imparcial e ordenar a condução de um inquérito verdadeiro, de acordo com o devido processo legal. Assim, os interrogatórios e os atos processuais continuariam, a intervalos, até o dia 18 de março de 1313, quando os altos dignatários do Templo receberiam a sentença final. 

Todavia, entre 17 de agosto de 1308 e 18 de março de 1313, muita água ainda rolaria sobre essa ponte e muitas idas e vindas ocorreriam nesse processo. O papa havia instruído seus cardeais a tentar convencer os altos dignatários do Templo que uma confissão espontânea seria mais conveniente para eles, pois teriam suas vidas poupadas e suas almas salvas por meio do sacramento e da expiação. Mandou ressaltar que de nada adiantaria negar coisas que já estavam sobejamente provadas, já que havia muitas provas para dar aos julgadores suficientes elementos de convicção. Em outras palavras, o caso já estava praticamente julgado e o que restava agora, para os acusados, era a alternativa de que eles se tornassem convictos e apelassem para a única defesa que lhes restava, ou seja, o reconhecimento das faltas, o arrependimento e o pedido de clemência. 

Filipe havia escrito a todos os reis cristãos para que seguissem seus passos e suprimissem a Ordem em seus respectivos reinos. Não fora totalmente atendido, mas o papa havia feito o mesmo em sua bula de 22 de novembro de 1307 e agora os monarcas teriam que atender. Assim, em toda a cristandade, os Templários estavam, agora, na ilegalidade. 

Na maioria desses reinos, entretanto, o destino desses famosos cavaleiros, que durante mais de dois séculos despertaram inveja, amor, ódio, cobiça e os mais intrigantes mistérios e especulações, não foi o mesmo que Filipe esperava. Em Chipre, onde havia uma concentração importante de cavaleiros templários, que para lá se deslocaram depois da perda de suas possessões na Terra Santa, houve uma pequena resistência da guarnição, mas que foi prontamente abafada pelas forças do rei daquela ilha. Oitenta e três cavaleiros e cinco sargentos foram presos e colocados sobre prisão domiciliar. Não há registro de que tivessem sido torturados ou submetidos a qualquer constrangimento físico ou moral. Todos negaram as acusações. O relatório dos inquisidores, com respeito aos Templários de Chipre não deve ter agradado ao papa, pois ele ordenou a abertura de um novo inquérito, desta vez conduzido por prelados da sua confiança e com o apoio de todos os recursos disponíveis, o que significava o uso da tortura. Isso mostrava o quanto Clemente V mudara de ideia em relação ao destino da Ordem e á sorte de seus membros. 

Em outros reinos, o processo correu de acordo com as disposições políticas das autoridades envolvidas. Em Nápoles, onde a presença templária era importante, o rei Carlos II, primo de Filipe, o Belo, seguiu a risca as orientações de seu parente. Torturou os acusados e obteve confissões importantes para o objetivo desejado pelo rei francês. Nos estados controlados pela Igreja, a tortura também foi usada indiscriminadamente pelos inquisidores. 

Além da França, foram nos feudos pontifícios que se obtiveram as confissões mais completas dos pecados supostamente cometidos pelos membros da Ordem do Templo. Mas em muitos outros estados, onde a Ordem era importante, houve luta e até alguns príncipes, bispos e outras autoridades se pronunciando em defesa da Irmandade, mostrando que o caso dos Templários estava longe de ser resolvido da maneira que o rei francês, e agora também o papa, desejavam. 

Em Aragão, onde a Ordem constituía uma força militar importante na luta contra os mouros, o rei Jaime II não se propôs a agir enquanto não recebeu do próprio papa a ordem de prisão. Afinal, o Templo tinha sido um dos seus melhores aliados na luta contra os mouros. O mesmo ocorreu em Castela e Portugal, com cujos reis Jaime II combinou uma estratégia de ação. Mas em dezembro de 1307, o rei aragonês mudiou de opinião e mandou prender os Templários e confiscar todos os seus bens. A opinião de rei deve ter mudado em face das informações de que os Templários haviam mobilizado uma poderosa força armada e pretendiam resistir á destruição da sua Ordem. Afinal, eles não tinham respondido á sua intimação para comparecer á presença da corte para responder ás imputações que lhe eram feitas. Ao invés disso, responderam com arrogância, na opinião do rei, destacando os relevantes prestados pela Ordem na Terra Santa e no próprio reino de Aragão, na luta contra os sarracenos. Como poderiam, tantos nobres de sangue e homens de valor permanescer em uma Ordem que praticava tão horrendos crimes? ─ fora a resposta deles. 

Em vista disso o rei de Aragão resolveu apelar para as armas e sitiou Maravet, o maior castelo da Ordem em terras aragonesas. Os Templários resistiram. O conflito durou até fins de 1308, quando Miravet foi finalmente tomada. As hostilidades, no reino de Aragão, terminaram em julho de 1309, quando a última fortaleza templária foi tomada. Todavia, como no reino de Aragão a tortura era proibida, nenhuma confissão importante foi obtida pelos inquisidores. Ao final eles foram proclamados inocentes. No resto dos reinos ibéricos o resultado foi semelhante e mesmo com o uso da tortura a Inquisição não conseguiu encontrar nenhuma prova de heresia. 

Na Inglaterra Eduardo II estava no trono há quatro meses quando Filipe mandou prender os Templários na França. A Inglaterra não vivia um bom momento político e sua economia estava capengando, em face das seguidas guerras mantidas por Eduardo I, principalmente contra a França e a Escócia. Depois, a rainha Isabel, esposa de Eduardo II, embora sendo filha de Filipe, o Belo, era também afilhada de batismo de Jacques de Molay. Seu coração estava dividido entre os motivos de seu pai e o respeito e a consideração que tinha pelo velho padrinho. Quando Filipe escreveu ao genro, concitando-o a seguir seu exemplo, prendendo os Templários ingleses e confiscando os seus bens, ele também se viu frente a um dilema. Embora os bens do Templo, na Inglaterra, não fossem tão extensos e valiosos como em França, o seu confisco poderia trazer um bom alívio para suas dificuldades financeiras. Por outro lado, o Templo tinha um grande envolvimento nos negócios do reino inglês. Eles foram os principais financiadores das aventuras guerreiras de Ricardo I, o Coração de Leão, na Terra Santa, e continuaram a ser para todos os reis que se seguiram a ele. A Ordem desempenhava um papel bastante ativo na economia e na sociedade inglesa. Atuava no comércio, na indústria, nas finanças, na prestação de serviços públicos; exercia jurisdição fiscal, policial e jurídica em diversas províncias e condados. Eram os maiores capitalistas da ilha, e graças ao sistema inglês de governo, implantado após a assinatura da Magna Carta, pelo rei João I, eles eram mais livres para exercer suas atividades do que na França. Assim, uma ação contra o Templo, como a que Filipe, o Belo, desendecadeara, não seria tão fácil e talvez não fosse producente. 

Não obstante, em suas possessões na França, o rei inglês pediu aos seus senescais que investigassem o caso, para ter informações mais precisas. As informações recebidas não devem ter sido favoráveis á causa de Filipe, pois em princípios de dezembro de 1307, enquanto os Templários estavam sendo perseguidos, encarcerados e mortos na França, Eduardo II escrevia aos reis de Aragão, Castela, Portugal e Nápoles, condenando a atitude de seu sogro, dizendo que ele agira por mera cobiça. Ao papa ele também escreveu uma carta, fazendo uma apaixonada defesa da Ordem. 

Mas suas ideias mudaram quando recebeu a ordem papal contida na bula Pastoralis Praeminentiae, mandando prender os membros da Irmandade e confiscar os seus bens em nome da Igreja. Á essa ordem ele não quis, ou não ousou desobedecer. Contudo, os Templários detidos não foram submetidos, em princípio, aos constrangimentos físicos e morais que seus confrades, na França, estavam sofrendo. A maioria ficou em prisão domiciliar e até tiveram suas necessidades providas por pensões concedidas pela coroa, provenientes das rendas obtidas pelas terras pertencentes á Ordem.

Pouca coisa foi feita, na Inglaterra, durante o ano de 1308, para dar seguimento ao processo. Somente na segunda metade do ano de 1309, dois inquisidores chegaram á ilha para comandar as investigações, que até então, não tinham apresentado nenhum resultado. Todos os Templários presos foram reunidos em Londres, York e Linconl. Na Irlanda eles foram levados para Dublin e na Escócia para Edimburgo. 

Na Inglaterra, problemas com heresia eram raros. Por consequência, nunca acontecera inquisições na ilha. A lei inglesa protegia os Templários e assim, em principio, eles puderam negar as acusações. A recepção dos noviços, segundo a maior parte dos testemunhos, “transcorriam de forma normal, dentro do prescrito pelos Estatutos da Ordem.” Não se aplicavam rituais estranhos, nem se cometiam os atos de homossexualismo que estavam sendo imputados aos Irmãos franceses. O pretenso “mistério” envolvendo as iniciações e as reuniões de seus Capítulos era uma “bobagem” inventada por alguns confrades, para dar certo “charme” á Irmandade.

Entretanto, após uma forte pressão do papa, Eduardo II consentiu que a tortura fosse aplicada para obter confissões. O próprio William de La More, Grão-Mestre inglês se propôs a descrever uma cerimônia de recepção de noviços no Templo, desrespeitando o juramento de segredo que pesava sobre os membros da Ordem. Mas de suas confissões, nada se apurou que fosse suficiente para incriminar a Ordem.

Foi somente após a liberação indiscriminada da tortura que começaram a aparecer, na Inglaterra, alguns depoimentos semelhantes aos que foram colhidos na França e nos estados pontifícios. Alguns cavaleiros ingleses confessaram ter cuspido na cruz e negado Cristo em suas cerimônias de recepção, bem como a prática de beijos obscenos e atos de homossexualismo. 

Na Escócia e na Irlanda, porém, o processo não teve o resultado que Filipe e Clemente V esperavam. Nenhum testemunho que servisse á causa do rei francês foi levantado. Mesmo na Inglaterra, onde foram obtidas diversas confissões, os prelados ingleses não ficaram suficientemente convencidos da heresia templária. Como não se encontrasse nada que os incriminasse de forma cabal e definitiva, foi realizado um Concílio na cidade inglesa de York, no qual se propôs a todo Irmão que quisesse dar fim ao processo, que fizesse uma declaração pública dizendo que conhecia as acusações, e não podendo provar se era inocente ou culpado, submetia-se, de bom grado, á Graça Divina e ás decisões do Concílio. Para aqueles que aceitassem a fórmula, considerava-se que estavam reconciliados com a Igreja e podiam ser enviados para viver em instituições monásticas de sua escolha. Em consequência, a maioria dos Templários ingleses, escoceses e irlandeses foram inocentados e muitos se tornaram monges em outras Ordens. As únicas defecções de nota ficaram por conta do Grão-Mestre inglês, que se recusou a admitir qualquer culpa e por isso foi encarcerado na Torre de Londres, onde veio a morrer dois anos depois. O mesmo foi aplicado a Imbert Blank, o Preceptor de Auverne, cuja pena foi ser “encarcerado na mais soturna prisão, postos em ferros duplos, até posterior deliberação.” 

De qualquer forma a Ordem do Templo, embora ainda não oficialmente extinta naquele momento, era já uma organização praticamente morta. O inquérito prosseguiria, entretanto, com a oitiva de testemunhas, em todas as dioceses da França e dos demais reinos onde havia preceptorias templárias e no Ultramar.

Foi declarado, por todo o mundo cristão, que todo aquele que tivesse alguma informação que pudesse ser útil na defesa da Irmandade que a apresentasse. Dos quatro grandes dignatários da Ordem em França, somente Jacques de Molay se mostrou disposto a fazê-lo. Em 26 de novembro de 1308 ele compareceu perante a Comissão de Inquisição, onde declarou: 

─ Eminências ─ disse o idoso e agora alquebrado Grão-Mestre geral ─ é inconcebível que uma Ordem como a nossa esteja em semelhante situação e que a Igreja queira destruí-la depois de ela ter prestado tantos serviços á causa da Igreja e da cristandade. Eu seria um ser vil e miserável se não o fizesse e por todos assim considerado, depois de ter sido tão distinguido e honrado por ela.

─ Entretanto ─ completou o venerando ancião ─ devo confessar-vos a minha incompetência nessas matérias, pois como todos vós sabeis, não tenho letras suficientes para dizer á Vossas Iminências o que me passa no coração. Reconheço que a nossa Ordem pecou em não contratar jurisconsultos e advogados, como fez o Hospital, para aconselhar-nos nos assuntos legais e canônicos. Se o tivéssemos feito certamente não estaríamos nesta situação, respondendo por crimes, que aos nossos olhos, parecem uma vilania.

Era, como deve ter parecido aos prelados que ouviram essas declarações, uma tardia declaração de reconhecimento da obsolescência da Ordem e da incompetência intelectual de seus dirigentes. Em nada ajudava na defesa da organização aquela confissão. Ao contrário só reforçava a ideia de que ela se tornara obsoleta e inútil para os propósitos para os quais fora fundada. Na verdade, reconhecia uma situação que caia bem aos objetivos e propósitos de Filipe, o Belo, e seus ministros, e eles não perderam a oportunidade. 

Ao terminar o ano de 1308, a sorte dos Templários estava selada. O novo Templo de Salomão, que os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do rei Salomão haviam simbolicamente reconstruído, estava mais uma vez derrubado. O reino da consciência, guardado pela Cavalaria de Deus, que o famoso templo representava, fora mais uma vez destruído. 

Mas, para a história, era preciso salvaguardar as aparências. Assim, o processo se arrastaria por mais quatro anos até que Clemente V desse uma decisão final sobre o destino da Ordem. E depois, cerca de mais dois anos de sofrimento para os seus comandantes, até que, para eles, tudo se consumasse.

Nenhum comentário:

Postar um comentário