sexta-feira, 27 de maio de 2016





Tradução José Filardo


 
Coll. Biblio. GODF

Para o desenvolvimento contínuo dos graus propostos do 1º ao 30, todo Maçom é colocado em uma posição de descobrir a riqueza dos múltiplos significados dos símbolos maçônicos. Eles abrem um mundo alegórico estruturado, significativo, oferecendo a possibilidade de numerosos desenvolvimentos filosóficos entendidos no sentido amplo, que demonstra que a Maçonaria oferece um sistema abrangente e coerente, permitindo a qualquer iniciado completar sua iniciação de outra forma que não a virtual.


Maçonaria apresenta uma abordagem original visando despertar ou reativar a interioridade do ser para promover a abertura de sua consciência, cuja constante simbólica principal será uma viagem na escuridão em direção à Luz. Isso vai se desdobrar gradualmente grau após grau, para transcender e unificar com clareza qualquer forma de dualidade. Os graus do 15 ao 30 são enriquecidos pela influência de várias tradições, incluindo a bíblica, cavalheiresca, hermética, rosacruz e gnóstica, bem como um fundo lendário que sugere uma pluralidade de sentidos. Estes graus podem ser considerados graus filosóficos tanto por sua origem quanto por seu simbolismo. Esta versatilidade lhes confere uma natureza universal.

O foco é colocado sobre a aquisição de virtudes e da Virtude no grau de aprendiz. Quando de sua admissão, todo candidato é reconhecido como livre e de bons costumes, uma condição sine qua non para ser admitido à iniciação.

A Virtude aparece aqui como um estilo de vida que nasce da força em si mesma. Ela é um suporte contínuo da ação e supõe uma intenção de realizar o bem em si mesmo de uma forma cada vez mais eficaz e refletida. Sua busca corresponde a uma tomada de consciência da fragilidade como a fraqueza da condição humana. É uma conquista de lucidez que atravessa do abandono voluntário dos vícios e paixões, designados sob o nome de metais, para acessar a força da libertação interior que é a verdadeira liberdade. A Virtude é sinônimo de força e grandeza da alma.

O iniciado busca a luz, porque ela é para ele um símbolo do Princípio e do Absoluto. A jornada da alma, do berço à passagem ao Oriente eterno, é a busca deliberada de um caminho de vida que exige libertar-se de todas as suas zonas de sombras para elevar-se espiritualmente em direção desta Luz inefável.

Ser reconhecido Livre e de bons costumes 

A qualidade da liberdade reivindicada na admissão à Maçonaria consiste em uma disposição pessoal interior. Ela exige ter a vontade de se libertar de tudo o que não é essencial para a sua realização espiritual. Isso requer empregar o tempo que for necessário para avançar para este objetivo. Os bons costumes exigem uma vontade de superar os vícios e paixões que mantêm o ser em um estado de dependência.

O espírito de fraternidade

Uma prática que se torna um dever é o espírito de fraternidade que estabelece e favorece as relações e as trocas entre indivíduos de meios sociais-culturais, religiosas e políticos diferentes. A fraternidade é uma ética de vida onde se não se encontra nem o espírito competitivo nem o da concorrência, e que vai, obviamente, completamente contra o estado de espirito dominante na sociedade atual. Tratar como irmão o seu próximo exite amá-lo como a si mesmo; o que exige que cada maçom a prática da fraternidade iniciática ligada a um despertar da consciência que se origina em uma Sabedoria especialmente iluminada.

Dever e Liberdade

O dever não é definido como um constrangimento, mas como uma obrigação moral livre que é sempre possível ignorar. O fato de se ser capaz de fugir do constrangimento, de desobedecer e transgredir as proibições tem sua origem na boa ou má gestão do livre arbítrio de cada um e na mesma liberdade individual. Na verdade, se as restrições são uma alienação da liberdade, por outro lado, os deveres permitem lançar os alicerces de um edifício, proporcionando uma regra a seguir. A expressão da liberdade do maçom, bem entendido, é o próprio Dever.


Silêncio e segredo

O silêncio e o segredo estão intimamente ligados ao longo do processo inicático. O silêncio revela a arte de ouvir e respeitar um ao outro. Saber segurar a palavra quando é imprudente se exprimir, saber manter o silêncio diante de uma pessoa que não é capaz de entender é o primeiro passo em direção ao autocontrole. Guardar o segredo e permanecer fiél ao seu compromisso são os dois eixos principais a seguir. Querem impor, se discernimento, uma verdade ou conceito a alguém que não está pronto para recebê-lo é claramente um erro, porque sem a compreensão a pessoa só poderá ter uma atitude hostil e preconceituosa devido à preocupação ou perturbação ressentida.

Toda sociedade iniciática, toda confraria que realiza uma seleção para a admissão dos seus membros, se mune, ipso facto, de um aspecto secreto ou oculto, fechado a todo público considerado profano. As noções e conceitos de segredo fazem parte da maçonaria e remontam a uma juramento feito pelo iniciado a desde o seu início, e atestado por sua presença nos manuscritos maçônicos mais antigos conhecidos, desde 1696. Toda organização iniciática não pode revelar seu segredo ou segredos porque eles são incomunicáveis e ligados ao grau de entendimento, de realização e de despertar da consciência de cada iniciado. O segredo disso é pessoal, individual e, finalmente, inefável; ele não se revela a não na experiência íntima do sujeito.

Espírito de tolerância

A tolerância é um estado de espírito construtivo sem preconceitos que exige saber escutar, observar e sempre conhecer melhor seu próximo, sem o julgar. A aceitação da diferença do outro é um passo no caminho para a abstenção de juízo. É um reconhecimento do direito à diferença. A tolerância é uma atitude de espírito pela qual é proibido fazer um juízo de valor definitivo, que aprisionará a pessoa em questão em uma grade de leitura restritiva e limitada a apenas algumas aparências específicas. A tolerância não deve, contudo, levar a aceitar tudo. É preciso estar ciente do que é compromisso impossível e que não podemos conciliar tudo. Não julgar, é estar imbuído desse espírito de tolerância que permite acessar uma forma de sabedoria, de entendimento, de escuta e aplicação efetiva dos princípios iniciáticos, esclarecidos pelos valores mais elevados.

Pesquisa do Conhecimento, da Verdade e da Luz

É necessário distinguir o Saber do Conhecimento. O saber pode ser definido como sendo de natureza secular e externa ao ser. Ele responde aos critérios de racionalidade objetiva. Pode-se considera como uma acumulação de dados enquanto que o Conhecimento é de ordem metafísica. Ela toca a interioridade e a essência sutil das coisas, porque ele propõe uma visão coerente e abrangente do universo.

A busca da verdade é complexa porque existe um conjunto de verdades relativas que se aproximam da Verdade Absoluta, sem, contudo, atingir a Verdade transcendente. Livros sagrados, contos, lendas e sistemas filosóficos expressam, todos, uma parcela de verdade. Mas ninguém, em termos absolutos, pode pretender deter toda a verdade. Em essência, esta Verdade é adogmática. Querer aprisioná-la na estrutura rígida de um sistema é destruir todas as condições necessárias para a sua apreensão.

Todo ser, homem ou mulher, não pode ser verdadeiro e buscar a Verdade, se não é decididamente “um ser livre e de bons costumes”. Toda busca pela verdade exige lutar contra todas as formas de preconceito, erros e abusos de todos os tipos, permanecendo firmemente apegado à vontade de não se desviar dela e servir a nobre causa da justiça.

A via iniciática permite subir em direção à Luz, sob a condição de ter sabido descer anteriormente ao mais profundo de sua própria escuridão. A importância da descida é proporcional à capacidade da elevação.

Esta Luz, símbolo essencial da busca iniciática se desdobra gradualmente grau após grau, permitindo liberar gradualmente as suas zonas de sombras e encontrar uma unidade em si mesmo.

Filosofia da média justa e do equilíbrio

Um autocontrole autêntico conduz a uma liberação do pensamento por uma elevação do espírito em direção à Luz e a Verdade, que contribui para o aperfeiçoamento do comportamento do maçom. É o amor ao Bem, ao Belo, ao Verdadeiro e ao Justo que permite progredir em direção a esta Luz inefável, a de seu mestre interior, que cada um deve ser capas de encontrar em si mesmo. Estes graus propõem desenvolvimentos da lenda de Hiram. Eles lembram a importância do aprofundamento do dever e a necessidade de reunir o que está espalhado nessa busca árdua, mas essencial da Palavra Perdida.

No grau de Mestre, o iniciado cruza um limite e se encontra no coração de uma dramaturgia composta de episódios cuja continuação só é perceptível através do acesso aos graus além do grau de Mestre cujos elementos filosóficos e simbólicos estão imbricados uns com os outros. Ao fazer isso, eles trazem uma sucessão de esclarecimentos adicionais sobre o grau de Mestre. Estes graus, chamados de “graus de perfeição” são aqueles que vão do grau 4 ao 14. Eles traçam o Caminho de uma progressão que permite aprofundar o sentido da Virtude em seu ideal mais alto. A conclusão dada a lenda de Hiram coloca em evidência os conceitos fundamentais que são a vingança e a justiça.

Vingança ou Justiça

Isso levanta a questão de se exercitar a vingança ou a justiça sobre os assassinos do Arquiteto. Os graus de Eleitos convidam a seguir, em todas as circunstâncias e imperativamente, o único caminho exigente da sua consciência.

Esta sucessão de rituais se propõe a dar uma conclusão moral ao assassinato do Mestre desaparecido e fechar o ciclo de lenda hirâmica.

A busca do Caminho do Meio exige saber colocar em adequação suas ações com os seus princípios. O Mestre deve realizar um esforço sutil para harmonizar os antagonismos. A este respeito, convém notar que o essencial do ensinamento iniciático é oferecido nos rituais dos três primeiros graus. No entanto, seu estudo necessita, para não dizer exige, um aprofundamento proposto pelo progresso contínuo do conjunto dos graus, do Mestre Secreto ao Cavaleiro Kadosh, sugerindo uma busca e um compromisso permanentes.

Três graus, designados sob o nome de graus de Eleitos resumem o percurso iniciático dos três primeiro graus, aprendiz, companheiro e mestre, mas vividos em um novo ciclo. O primeiro, ou Eleito dos Nove, evoca a transgressão da lei e destaca os perigos e malefícios dos impulsos vingativos. O segundo, ou Eleito dos Quinze, faz passa da vingança à justiça coletiva, para que todas as paixões sejam esgotadas. O terceiro, enfim, é uma forma de consagração do iniciado que é reconhecido como Emerek, ou verdadeiro Homem em todas as circunstâncias, isto é, um autêntico Mestre Maçom. Ele marca a conclusão do ciclo do assassinato do arquiteto do templo e a morte de seus assassinos, o que convida à reflexão sobre os problemas da justiça e da vingança. Pode-se definir a vingança como justiça individual expedita, sob o impulso da paixão e da cegueira, enquanto que o senso de justiça é uma abordagem que se origina de um consenso de reparação, de acordo com a lei da ação e reação, com a vontade de punir os criminosos por um ato equivalente em troca. Renunciar à vingança pessoal para passar à justiça coletiva é próprio de verdadeira mestria que converte a sombra em luz, e ajuda a estender a equidade ao plano social.

A vingança é uma forma de justiça que segundo a lei de talião é necessário ao justiceiro encontrar uma compensação e um alívio. Portanto, a questão se coloca, um indivíduo isolado pode arrogar-se o direito de julgar e fazer justiça de acordo com seus sentimentos e não com o direito? Podemos considerar a justiça como o estabelecimento de uma relação de equilíbrio entre os homens.

Alquimia e Maçonaria

A Alquimia, assim como a Maçonaria, propõe uma meditação simbólica profunda. A alquimia é baseada em um amplo sistema cosmogônico que se refere à Unidade primordial manifestada em três reinos: mineral, vegetal, animal. O Rito Escocês Antigo e Aceito, no conjunto de seus graus, empresta muita coisa da alquimia. Isto é tanto mais compreensível vez que a Maçonaria e alquimia têm em comum a regeneração do ser e a realização espiritual. Há uma clara semelhança entre os temas alegóricos usados no método simbólico e iniciático, tanto em alquimia quanto na Maçonaria. Na alquimia, o vil chumbo deve ser transformado, durante purificações e transmutações para se tornar ouro. Na Maçonaria, a pedra bruta lavrada a que é identificado o aprendiz será cortada e polida para se tornar perfeita a ter lugar no edifício sagrado.

Em um processo alquímico muito específico, o maçom é convidado a visitar o interior da terra e se corrigir, ou seja, purificar-se, para encontrar a pedra oculta dos sábios, ou a pedra filosofal. Exige-se dele que aceite os métodos de aprendizagem para aprender profundamente a corrigir em si mesmo o que precisa ser corrigido, portanto, saber mudar seu chumbo em ouro. Esta transmutação implica um ideal de perfeição que tende à sabedoria. Todas estas mutações levam o mestre de encontrar o seu verdadeiro lugar, a sua função na terra e atingir seu pleno potencial de acordo com suas habilidades, dando sentido à sua vida.

O espírito da cavalaria

O termo cavaleiro é o título genérico trazido ao Rito Escocês Antigo e Aceito pelos detentores dos graus 15 ao 30, inclusive; ou seja, do Cavaleiro do Oriente e da Espada até o Cavaleiro Kadosh.

Podemos considerar que o conjunto desta sucessão de títulos de Cavaleiros empresta ao Mestre Maçom uma forma de nobreza pela qual é reconhecida sua capacidade de adquirir e praticar virtudes cavalheirescas. O acesso a um certo grau de iniciação, a partir dos graus capitulares corresponde a um enobrecimento natural do ser. Isto recorda a origem da instituição da nobreza que inicialmente não era herdada.

A função cavalheiresca envolve a luta contra o mal, o autocontrole, uma ética moral através da prática de sentimentos nobres e elevados, em que a generosidade e grandeza de alma é colocada a serviço dos pobres e dos oprimidos.

Encontramos esse espírito na divisa do grau, Vencer ou Morrer. Embora a Cavalaria tenha desaparecido enquanto instituição social, a Maçonaria propõe conservá-la através do ensino das virtudes que a caracterizaram, especialmente neste grau que premia os Eleitos por sua virtude.

O dever mais importante da Maçonaria é consagrar-se à prática efetiva da Virtude. O Mestre Maçom não deve somente se opor a todas as formas de opressão, tirania e intolerância, mas também deve se comprometer a trabalhar positivamente colocando-se ao serviço dos outros. A ignorância, a intolerância, o fanatismo, o orgulho e a ambição devem ser combatidos implacavelmente. Trata-se aí, e este é um dos sentidos de dever dos Eleitos, realizar a inevitável morte de seu ego, para erradicar qualquer inclinação a se comportar como mau companheiro. A partir do grau 15, o Mestre Maçom veste o hábito de Cavaleiro, que é também o de Príncipe, de Peregrino e de Pastor, o que corresponde à definição de “viajante nobre” que empreendeu uma busca iniciática. Herdeiro do espírito da cavalaria, o maçom defende contra todas as formas de injustiça em uma ação controlada animada por uma ética de amor e equidade.


Publicado Originalmente em Revista Franc-Maçonnerie No. 46

Mas quem é o Grande Arquiteto do Universo?



Tradução José Filardo




The Ancient Days – William Blake


A moderna maçonaria “especulativa” nascida na Grã-Bretanha não inventou o Grande Arquiteto, mas ela o institucionalizou como o menor denominador comum da crença em um Deus revelado para permitir que seus membros acabassem, em loja, com os conflitos religiosos que rasgavam a sociedade Inglesa no final do século XVII e início do XVIII. O projeto em geral teria fracassado diante da exigência crescente de liberdade de consciência? Hoje, o GADU divide o universo discreto da Ordem como um bisturi, revelando profundas divisões dogmáticas enquanto ele ambicionava apenas “reunir o que está esparso”! No entanto, assistimos a um momento decisivo: de uma e outra parte o diálogo parece se renovar e pontes são novamente estabelecidas.

O Grande Arquiteto que nos vem de longe… 

O conceito de Grande Arquiteto é muito anterior à maçonaria especulativa que só o pediu emprestado. A ideia geral que encontramos em muitos escritores, de Cícero a Rousseau, de Descartes a Voltaire, é a de uma ordem mundial de tal complexidade que não pode ser concebida sem um pensamento externo e criativo estruturado, o de um “arquiteto” ou “relojoeiro” que ajusta finamente o funcionamento do universo e lhe dá o impulso necessário para seu movimento eterno e infinito. É a visão dos defensores da Religião Natural. Esta ideia pode parecer estranha ao pensamento científico contemporâneo formado por que o acaso faria perfeitamente funcionar desde que lhe seja dado o tempo: 14 bilhões de anos, quase uma eternidade, e uma realidade desconhecida no século XVIII (a Bíblia é, então, a única medida do universo e o tempo da criação não excede 6000 anos). Graças ao longo tempo, ela acontece plano: ela não tem nenhum plano, nenhum arquiteto e nenhuma necessidade de transcendência. Assim, o ateísmo é representado no Século do Iluminismo por um punhado de filósofos “radicais”, tais como Meslier (um… abade!), La Mettrie, Maupertuis, Helvétius, D’Holbach, Sade … e nem sequer aparece no espírito da Enciclopédia onde o artigo ateísmo, muito focado, é elaborado pelo abade Yvon (1).

Estamos no final do século XVII. A sociedade inglesa onde vai nascer a Maçonaria especulativa está profundamente dividida no plano político e religioso (partidários dos Stuarts, cuja dinastia termina com a Revolução Gloriosa de 1688, se opõem aos da família de Orange; os Anglicanos – católicos sem o Vaticano – e os protestantes tratar com desprezo os católicos, os “papistas”). No entanto, além da violência das oposições entre facções religiosas, o consenso é unânime sobre a necessidade de um deus. O ateísmo, e mesmo o agnosticismo permanecem uma atitude marginal sem afetar a doxa ambiental (2). Para os fundadores da Maçonaria, trata-se, assim, de restaurar a unidade política e religiosa da Inglaterra, construindo uma ponte entre essas comunidades opostas. Para fazer isso, um local: a loja, onde não se fala sobre política nem religião.

Em relação à política, o bom maçom é aquele que respeita as leis e o monarca de seu país. O Artigo II das Constituições de 1723 estipulam: “O Maçom em um súdito pacífica em relação às autoridades civis […] e ele nunca vai se misturar com complôs e conspirações […].”

Sobre Deus, todos concordam com o fato de que ele é o criador e organizador de mundos, dos quais ele vela pelo funcionamento harmonioso graças às leis que ele instaurou : a figura reconciliadora do Grande Arquiteto se impões, portanto, naturalmente na redação das Constituições da jovem maçonaria especulativa, publicadas em 1723 sob a pena de um polivalente “redator profissional”, o pastor Anderson. A inspiração vem provavelmente do pastor Desaguliers que se tornou Grão-Mestre em 1719, dando assim os retoques finais à captura de legado operativo, antes de entregar ao Duque de Montagu, também membro da Royal Society …, que ancora a instituição no coração da alta sociedade inglesa.

Neste contexto, o GADLU não pode significar algo diferente da imagem arquetípica de um deus criador e organizador de todas as coisas. Ele também pretende ser o garante da tolerância ao qual estão ligados os fundadores, ciosos em acabar com os conflitos na sociedade inglesa.

A partir de meados do século, no entanto, explode a discussão entre Antigos e Modernos: os “Antigos” se constituem como Grande Loja rival da dos “Modernos”, em 1751. Seu fundador, Laurence Dermott, um simples artesão pintor de edifícios, católico de origem irlandesa, respondia ao ostracismo de seus compatriotas e correligionários por uma maçonaria inglesa protestante e anglicana, mais aristocrática e burguesa.

No Ahiman Rezon, obra que ele fez editar em resposta às Constituições andersonianas, o Artigo primeiro soa de forma bem diferente: “Um maçom é obrigado pelo seu Estado, a acreditar firmemente e adorar fielmente o Deus eterno, bem como os ensinamentos sagrados que os dignitários e Padres da Igreja escreveram e publicaram para o uso do homem sábio […] “. E, mais adiante ele fustiga em termos próprios, o “deísmo” que ele coloca no mesmo plano que o ateísmo. Finalmente, a sexta obrigação afirma inequivocamente que “como maçons, somos a mais antiga religião católica até agora ensinada” … Um recuo substancial! É esta tendência que prevalece em 1813, quando da unificação das duas correntes que verá o nascimento da Grande Loja Unida da Inglaterra.

O GADU, figura da transcendência, é compatível com um mundo sem deus? 

No século XVIII e parte do XIX, deus ainda é visto como uma evidência inevitável, mesmo se o progresso da tolerância religiosa fez admitir que ele pudesse haver representações humanas diversificadas. Tanto em lojas quanto na sociedade, essas correntes coexistem: ao lado das religiões dominantes originárias do Cristianismo, encontram-se agora judeus e muçulmanos. Além disso – e o que se segue diz respeito sobretudo à França – a leitura marxista da sociedade fará com que a religião apareça como um fator poderoso de conservação de uma ordem social desequilibrada: a religião “ópio do povo” perde gradualmente sua aura e sua necessidade entre os intelectuais, artistas, classe média educada e, é claro, a classe operária explorada. Assim, as lutas sociais contribuirão a partir de meados do século XIX para substituir a busca de salvação religiosa através de um ideal humanista de igualdade e fraternidade. O apoio do clero aos poderes conservadores ( “espada e aspersor”) desacredita ainda mais as religiões estabelecidas: agora, há menos preocupação com a bem-aventurança eterna do que com a justiça aqui na terra. Em que se torna o nosso GADLU neste contexto? Apelar para a transcendência é admitir que há algo fora do mundo da matéria, algo que lhe é infinitamente superior. No sentido religioso do termo, a transcendência refere-se à presença de um “mundo oculto” por um véu que esconde um “outro lugar”, um “além”. O GADU, criador do plano inicial e causa primeira está, por natureza, fora do edifício. Ele não pode, portanto, ser concebido, a não ser como transcendente. Ainda assim, alguns chegam até mesmo a retomar as palavras do livro do prêmio Nobel de biologia, Jacques Monod, O Acaso e A Necessidade, publicado em 1970, para afirmar que ele pode traduzir uma concepção puramente imanente do GADU: as leis da matéria e mesmo a física quântica são regularmente convocadas para serem aplicacos a uma algaravia New Age sobre a figura do arquiteto… Este plano também envolve uma orientação da Evolução. O padre Teilhard de Chardin, em particular, tenta conciliar paleontologia e o dogma cristão … o plano de deus implica uma complexidade progressiva (seres vivos matéria, consciência …) em direção a ponto Omega: o homem se fundirá então com seu criador na plenitude reencontrada.

Não podemos deixar de mencionar a avidez com que o Vaticano se apossou da ideia, no princípio puramente científica do Abade Lemaître (a expansão do universo, descoberta por Hubble, leva, quando se volta no tempo pelo pensamento, em um “momento de origem”, onde o universo é condensado em um ponto). Para a Igreja, esse tempo inicial, o “Big Bang” ressoa em perfeita harmonia com o “Fiat Lux” do Gênesis.

Os Criacionistas tiram proveito dessas metáforas e espalham hoje a ideia do “design inteligente”. Eles tiram daí uma evidência indireta da existência de Deus, porque um plnao não pode ser concebido sem um planejador, colocando assim os proponentes de um GADU imanente em muito má companhia, ao lado de seitas religiosas ultra-reacionárias e diante de uma posição filosófica contraditória.

O GADU na paisagem contemporânea 

E hoje? Longe de apaziguar as tensões religiosas dentro das lojas, o GADU tornou-se um desafio de uma nova divisão por mais de um século, a da “Regularidade” que separa as religiões reconhecidas pela esfera inglesa daquelas pessoas reivindicando liberdade de consciência religiosa e, portanto, rejeitando a obrigação de acreditar em um deus criador transcendente.

No entanto, sem que as barreiras do direito de visita entre potências pareçam jamais poder cair entre as potências “Regulares” e as outras, estes últimos anos mostraram um compromisso claro de abertura fraterna: assim, os primeiros Encontros Lafayette permitiram em 28 Maio de 2015, uma reunião oficial entre o Grande Oriente de França, campeão da liberdade absoluta de consciência confome proclama o Artigo I de sua Constituição, e a Grande Loja Nacional Francesa, a única reconhecida por Londres na França e impondo tanto o GADU quanto a crença em Deus aos seus membros.

Para complicar ainda mais um pouco uma situação já complicada, muitas potências “liberais” aplicando escrupulosamente a liberdade de consciência opõem, no entanto, a necessidade de colocar o trabalho sob os auspícios do Grande Arquiteto. Outras deixam às suas lojas a liberdade de escolher entre o GADU e o humanismo: é o caso do Grande Oriente de França (3). Esse é também o caso do Droit Humain: número de lojas da Federação Internacional trabalham hoje pelo progresso da humanidade.

Difícil de associar em um só pensamento a absoluta liberdade de consciência e o uso da figura transcendente do Grande Arquiteto … Uma das soluções reside – pelo menos transitoriamente – na delegação às lojas da preocupacão em decidir por si mesmas sobre o destino do GADU.
Em todo caso, o que é notável é a amizade fraterna verdadeira e profunda que nos une a todos os irmãos e irmãs de maçonaria, independentemente das suas opções filosóficas e religiosas: o coração ardente da mensagem da alvenaria pode se referir ao Artigo Primeiro das Constituições: “Ela foi criada para ser o Centro de União”. Essa união exige que nos sintamos acima de tudo irmãos e irmãs, além das nossas divergências ideológicas ou filosóficas … seria talves sábio nomeá-las agora “diversidade”: a diversidade é sempre uma riqueza …

Box – O Artigo primeiro das Constituições de 1723 

” Um Maçom é obrigado, por dever de ofício, a obedecer a Lei Moral; e se ele compreende corretamente a Arte, nunca será um estúpido ateu nem um libertino irreligioso. Muito embora em tempos antigos os Maçons fossem obrigados em cada país a adotar a religião daquele país ou nação, qualquer que ela fosse, hoje pensa-se mais acertado somente obrigá-los a adotar aquela religião com a qual todos os homens concordam, guardando suas opiniões particulares para si próprio, isto é, serem homens bons e leais, ou homens de honra e honestidade, qualquer que seja a denominação ou convicção que os possam distinguir; por isso a Maçonaria se torna um centro da união e um meio de conciliar uma verdadeira amizade entre pessoas que de outra forma permaneceriam em perpétua distância”.

O objetivo dos fundadores é fazer da maçonaria um” centro de união” para aproximar os homens que seriam ignorados ou combativos devido às suas divergências religiosas. O que conta é apenas a lei moral. Com isso, todos podem se considerar irmãos e irmãs, e cadaum deve reservar para si as suas ideias religiosas particulares para permitir o desenvolvimento da amizade fraternal doce entre os maçons.

Deus cria e controla o movimento dos mundos. Esse deus é necessariamente o mesmo para todos. Portanto, as modalidades particulares de sua apreensão e de sua descrição pelas diferentes religiões são irrelevantes.

O GADU é mencionado nas primeiras linhas das Constituições de Anderson de 1723 na primeira seção dedicada à “história […] dos maçons aceitos”: “Adão, nosso primeiro antepassado, criado à imagem de Deus, o Grande Arquiteto do Universo, deve ter tido as ciências liberais, especialmente a Geometria, escritas em seu Coração …”. Nós o encontramos citado no Artigo Primeiro das Obrigações “Quanto a Deus e a Religião” “[…] uoje, pareceu mais interessante apenas forçá-los à Religião com a qual todos os homens concordam […]. “.

Publicado 25 de novembro de 2015 na REVISTA FRANC-MAÇONNERIE

domingo, 22 de maio de 2016


O HOMEM E A ÁRVORE DA VIDA


Autor: JOÃO ANATALINO

Árvore da Vida e Árvore do conhecimento


Cabe aqui fazer uma distinção que na tradição cabalística é muito importante para efeitos de compreensão. Trata-se da diferença entre Árvore da Vida e Árvore do Conhecimento. Esses dois termos aparecem na Bíblia, como símbolos, um (a Árvore da Vida) da própria Criação; o outro (a Árvore do Conhecimento) como símbolo da ciência do bem e do mal. 

É o que se lê em Gênesis, 2:9: “E o eterno Deus fez brotar da terra toda árvore agradável á vista e boa para comer; e a árvore da vida estava no meio do jardim , assim como a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Eram, portanto, duas árvores: uma delas daria ao indivíduo que provasse o seu fruto o conhecimento do bem e do mal e a outra, cujos frutos lhe dariam a vida eterna. 

A visão bíblica dessa simbologia parece sugerir que Deus pretendia manter o homem em uma feliz inocência da sua própria condição, pois ao advertir o casal humano sobre os perigos dos frutos do paraíso, Ele foi enfático quanto ao problema de comer do fruto do conhecimento, pois se o fizesse, morreria. “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, morrerás” disse o Eterno. [1] E sua preocupação foi maior ainda com referência aos frutos da Árvore da Vida, pois ao ver que o casal humano havia provado da Árvore do Conhecimento, o Senhor disse: “Agora, talvez ele (o ser humano) estenda a mão e tome também da árvore da vida, coma e viva para sempre.” [2]

O cronista bíblico não registra se o homem comeu da Árvore da Vida, mas é evidente que não o fez, pois se ele antes era mortal, nessa condição continou depois de expulso do Éden. Uma coisa, porém, fica claro nessa curiosa metáfora do livro sagrado: o homem, ao comer do fruto da Árvore do Conhecimento tornou-se semelhante aos seres angélicos, pois é o próprio Elohim Criador que assim se manifesta ao saber da travessura cometida pelo casal humano: “Eis que o homem se tornou como um de Nós, para conhecer o bem e o mal.” [3]

Na doutrina cabalística a alegoria da Árvore da Vida integra os dois conceitos bíblicos. Nesse desenho mágico-filosófico do universo estão compreendidos, tanto a Árvore da Vida (aqui entendida como sendo o processo energético que gera e mantém toda a realidade universal) quanto a Árvore do Conhecimento (o processo energético que permite a evolução das espécies vivas, tendo como resultando a espécie humana e sua capacidade de refletir). 

A Cabala entende o processo de Criação do universo físico como se fosse um plano meticulosamente arquitetado pelo Criador. A cosmogonia cabalistica mostra como atua, em termos físico-químicos, a energia que sai do Criador para criar toda a realidade existente. E dentro dessa realidade, a própria vida que surgiu como um resultado natural da evolução da matéria universal. Esse processo é o que se descreve na Árvore da Vida, nos quatro mundos de formação, conhecidos como Atziloth, Briah, Yetzirah e Assiah.. 

Nessa visão unificada da estrutura do universo, a Cabala mostra que há um processo que se desenvolve no interior dele e que se refere á vida orgânica. Pois esta, como se vê, embora se desenvolva por meio de leis semelhantes ás que dão estrutura ao mundo físico, não obstante dele se diferencia em termos de qualidade e finalidade. Pois como diz o filósofo Teilhard de Chardin, o universo só ganhou identidade a partir do fenômeno humano.

De um grão de energia á um grão de sal; deste á uma semente e desta á uma formiga, até a fórmula que resultou no homem, quantas sínteses a natureza não precisou processar? Quantas fórmulas o Grande Arquiteto do Universo não precisou desenvolver para chegar a tal resultado? Por isso os pitagóricos intuiam que o universo se compunha através do número e a partir deste ganhava forma (a geometria). Essa era a matemática celeste que o Grande Arquiteto desenvolvia para desenhar os planos do edifício cósmico. 

Assim, se a Bíblia distingue uma Árvore da outra a Cabala integra esses dois conceitos como complementares. Para os cabalistas o conhecimento é uma consequência natural do processo de desenvolvimento do fenômeno da vida. Deus fez todas as espécies, mas uma delas, em especial, atingiu um nível de complexidade orgânica diferenciada, de forma tal que elevou-se a um nível superior, destacando-se na Árvore da Vida como um ramo autônomo, do qual a própria Árvore hoje depende para continuar existindo. 

Comendo o fruto do conhecimento

De que outra forma se poderia entender a curiosa metáfora imaginada pelo cronista bíblico para figurar o nascimento da consciência no ser humano, senão pensando que o Eterno planejou a sua Criação de forma que ela pudesse evoluir, em diversos ramos distintos, como se ela fosse, de fato, uma Árvore? Constrói-se, dessa forma, uma biogênese, na qual é possivel seguir os filamentos que ela manifesta, verificando os graus de complexidade que cada espécie assume em cada momento específico de sua vida.

Teilhard de Chardin, cujo pensamento nos socorre em praticamente todos os enigmas em que os exegetas da Bíblia não o conseguem, nos dá uma boa compreensão desse tema. Ao se referir á Arvore da Vida, que na sua visão é o próprio fenômeno da Criação ─ nele compreendido todas as manifestações de existência orgânica, desde a primeira e indivisível célula até o organismo mais complexo que a Natureza engendrou, que é o ser humano ─ ele releva esse momento especial em que os “olhos do homem se abriram e ele se equiparou aos deuses, conhecendo o bem e o mal”. Em páginas de infinita beleza poética esse magistral filósofo nos mostra como esse “pecado”, ou seja, a aquisição do conhecimento ocorreu. “Do ponto de vista experimental, que é o nosso” escreve Teilhard, “a Reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor; não mais apenas conhecer ─ mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que sabe. Por essa individualização de si mesmo, no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização.”[4]

Nesse texto esse grande filósofo está a nos dizer que uma organização celular ocorrida no interior do organismo humano, mais propriamente uma concentração energética sobre um órgão do nosso corpo, o cérebro, nos fez diferenciar do ramo dos primatas, ao qual pertencemos como espécie. A vida interior, refletida sobre si mesma, nos proporcionou esse salto evolutivo que a Bíblia chama de “comer o fruto do conhecimento do bem e do mal”. O nascimento do Adão terrestre, como ser inteligente e “imagem” do seu Criador, deu-se, portanto, no momento em que ele capturou uma consciência, e o “pecado”, que na dicção bíblica se traduz por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, foi o momento limite em que ele praticou a sua primeira reflexão, tomando conhecimento de que tinha um ego, um “self”, que o identificava e lhe dava a capacidade de classificar e entender os próprios pensamentos. 

Modernas concepções científicas também chegaram ao mesmo patamar de entendimento. Eis como um discurso científico descreve esse momento singular, em que o homem dá o salto qualitativo que o distingue das demais espécies animais: “Há cerca de cem milhão de anos, o cérebro dos mamíferos deu um grande salto em termos de crescimento. Por cima do tênue córtex de duas camadas ─ às regiões que planejam, compreendem o que é sentido e coordenam o movimento ─, acrescentaram-se novas camadas de células cerebrais, formando o néocortex. Comparado com o antigo córtex de duas camadas, o neocórtex oferecia uma extraordinária vantagem intelectual. 

O neocortéx do homo sapiens, muito maior do que o de qualquer outra espécie, acrescentou tudo que é distintamente humano (...).” [5]

A expulsão do Paraíso

Até esse momento, os hominídios, como diz Teilhard de Chardin, acompanhavam a filogênese da criação, apenas como mais um ramo da Árvore da Vida, em seu desenvolvimento normal. Mas a partir do momento em que adquiriu a capacidade de refletir, ele diferenciou-se entre todas as espécies criadas, passando, como diz a Bíblia, a ser “uma imagem de Deus”, aquele que Ele escolheu para subjugá-la e dominá-la. Quer dizer, o que faz o homem ser uma imagem do seu Criador não é o seu aspecto fisico, mas o seu carácter intelectual, pois é deste que transcende a sua parte espiritual.

Sim, porque a partir desse momento o homem adquiriu o livre arbitrio e a capacidade de fazer as próprias escolhas, dando um sentido á evolução. Isso, para uma sensibilidade inocente, que até então não tinha a consciência de um ego, deve mesmo ter significado a própria morte da inocência, a expulsão de um paraíso, onde, por não existir o exercício da escolha, também não existia ansiedade, culpa, estresse, cansaço e náusea da própria existência, por não saber a que ela se destina, nem qual é o seu propósito, como dizia um personagem de Sartre.[6] Por isso, o sentimento de culpa do homem ao se ver nú e a sua vergonha por ter desobedecido á ordem do Senhor.[7]

Como salienta o cronista bíblico, o homem pagou caro por essa ação. Foi expulso do paraíso. Mas isso foi para que ele “não comesse também da Árvore da Vida”, pois esse fruto lhe daria a imortalidade. Quer dizer que se os homens tivessem, concomitantemente á aquisição do conhecimento, obtido o dom de viver para sempre, prejudicado estaria todo o projeto do Criador, que planejou a construção do universo de combinação em combinação, através de um plano de evolução, onde a energia que o formata sai do ínfimo (o núcleo atômico) e caminha para o imenso, no plano material, externo, e do simples (a célula) vai para o complexo (no plano espiritual, interno), como intui Teilhard de Chardin quando desenvolve a sua noção hiperfísica do universo. 

Criacionismo versus Evolucionismo

A visão teilhardiana da Árvore da Vida contrasta com as visões literais dos criacionistas, que veem a espécie humana como nascida a partir de um casal feito á imagem e semelhança de Deus, ou seja, na sua forma orgânica e espiritual já perfeita e acabada. Ao revés ─ e isso significou para esse originalíssimo pensador jesuíta uma feroz repressão da sua própria Igreja ─, ela está muito mais para as teses defendidas pelos adeptos da seleção natural, embora destes Teilhard se afaste quando introduz nessa evolução um componente de espiritualidade, negado pelos evolucionistas. Pois aqui o homem é resultado de um longo processo de evolução, maturado no seio da matéria universal, mas dirigido por uma Vontade que nela atua e se cristaliza. Diferente, pois, do homem obtido simplesmente por seleção natural, que é produto apenas de sínteses químicas que vão se processando pela força das leis que regem a mecânica universal. . 

Nessa composição cabe um lugar inclusive para o próprio Mal, que na tradição bíblica é o diabo travestido de serpente. Pois não é ele que perverte a parte mais sensível da mente do homem (a sua parte feminina) com um discurso que estimula a sua vaidade? Que mais agradaria ao recém-nascido ego humano do que a ideia de tornar-se igual ao próprio Criador? É por isso que a Cabala ensina que “Satã é o nosso Ego, o nosso desejo de ser sempre mais. Ele é o desejo que queima, o egoísmo que exige cada vez maior prazer”.[8]

O que ensina a Cabala

A tradição cabalística sugere que Adão é o ser humano que “capturou” o sopro divino, quando desenvolveu a camada neural que lhe deu a capacidade de refletir. Esse sopro é, segundo a tradição cabalística, a Palavra Sagrada, ou a Sabedoria, que permitiu ao homem colocar “ordo ab chao”, ou seja, adquirir consciência de si mesmo e do mundo e organizá-lo de uma forma lógica. 

No Sepher Há Dtzinioutha (O Livro do Mistério Oculto), essa imagem é descrita do seguinte modo: “ Quando o homem inferior descende (dentro deste mundo), do mesmo modo que quando entra na forma superior (nele mesmo), ao mesmo tempo isso lhe confere a base de suas almas ou dois espíritos.(Ou seja) ou homem está formado por dois lados, tem o direito ou reto e o esquerdo ou sinistro. E pode ser observado de ambos os lados. Em relação ao lado direito, ele tem NShMThA QDIShA, (Neschamotha Qadisha), as sagradas inteligências; enquanto em relação ao lado esquerdo, ele tem NPShChIH, (Nephesh Chia), a alma animal”.[9] 

Aqui, mais uma vez, conseguimos ver as estranhas imagens da inteligência cabalística cantando um dueto bem afinado com as teses dos modernos cientistas e teóricos do evolucionismo, que veem o homem como resultado de uma longa evolução que se processou no correr de milhares de anos e que foi conduzida pela sua necessidade de desenvolver meios cada vez mais eficazes de sobrevivência, em face de um ambiente hostil. Assim, o homem, á medida que ia descobrindo essas estratégias, que o fazia cada vez mais sábio, ia também adicionando novas camadas neurais á estrutura do seu cérebro, as quais foram também legadas aos seus descendentes como herança biológica. Por isso é que a interpretação cabalística desse fenômeno diz mais adiante que “O homem pecou, e por isso foi se expandindo até o lado esquerdo; e então, aqueles que carecem de forma também foram expandidos. Isso se refere aos espíritos da matéria, que receberam o domínio das sendas inferiores da Alma de Adão, e aí assentaram as bases da concupiscência). Quando (e portanto) foram unidos e ligados, (na base da concupiscência, juntos com a conexão, as duas almas do homem e o espirito animal), tiveram lugar, portanto, as gerações, como os animais dos quais muitas vidas são geradas, todas em uma mesma conexão.[10]

Aqui se explica a notável dualidade que se encontra no homem, de um lado evoluindo na própria biogênese que conforma todas as espécies animais e por outro lado construindo um espírito, através da sua capacidade reflexiva. Um anjo-animal, que tem, por dentro a Neschamotha Qadisha (sagrada inteligência) e por fora a Nephesh Chia, a alma animal.[11]

Destaque-se que as modernas teses evolucionistas identificam uma fase reptiliana, na mais primitiva das combinações cerebrais que a espécie humana já teve.[12] É por isso que Teilhard de Chardin ensina que as espécies vivas evoluem por aquisição de propriedades, as quais vão sendo adquiridas através das combinações celulares que se processam em níveis cada vez mais complexos. É o que ele chama de aditividade dirigida. Quer dizer, através do fenômeno da hereditariedade, cada geração acrescenta á espécie um grau maior de evolução, adquirido do aprendizado feito em cada experiência de vida. Usando suas próprias palavras, “Por acumulação contínua de propriedades (qualquer que seja o mecanismo dessa hereditariedade) a Vida faz como “bola de neve”. Ajunta caracteres sobre caracteres no seu protoplasma. Vai se complicando cada vez mais...)” nós podemos ter uma compreensão mais clara desse processo.[13]

Ou como diz Daniel Coleman, ao descrever a evolução do cérebro humano, desde o estágio reptiliano até a avançada conformação que ele tem hoje: “Ao longo de milhões de anos, o cérebro humano cresceu de baixo para cima, os centros superiores desenvolvendo-se como elaborações das partes inferiores, mais antigas (...)” [14]. Assim, a evolução foi seguindo um caminho mais ou menos semelhante ao próprio organismo humano, conforme se depreende do desenho da Árvore da Vida.

O que diz a Maçonaria

A Maçonaria enfrenta essa questão em um dos seus graus rituais quando fala dos “assassinos que matam o espírito humano”. “Matar o espírito humano” é uma metáfora que significa destruir a pureza inicial da alma humana através da inoculação do vício. Por isso o ensinamento maçônico concita a todos os seus membros que “cavem masmorras ao vício e levantem templos á virtude”. A inocência que existia na alma do homem, antes da queda, está morta. Com a aquisição do conhecimento do bem e do mal o homem tornou-se senhor do seu destino porque passou a ter livre arbítrio. Por isso é que em um dos seus graus rituais, diante da questão da morte, posta á frente dos homens, é feita a inevitável pergunta:“De onde viemos? Que somos? O que a morte fará de nós? Que é o homem? É apenas um átomo, aparecido no seio da mulher e que progressivamente se organiza, se harmoniza em suas inúmeras partes? Que cresce, pensa, cai, transforma-se e volta á causa primária, deixando apenas reminiscência de sua última forma ou conservando uma partícula essencial, mutável e mortal? 

Aqui temos o enfrentamento da questão metafísica que tem desafiado a mente humana através de sua história terrestre. Afinal, o homem é apenas uma sombra que passa, um acontecimento despregado de qualquer sentido, que um dia surgiu no universo por causas exclusivamente naturais, ou é ele o resultado de uma Vontade que se manifestou, ao cabo de um longo processo evolutivo que começou, um dia, num átomo que rompeu, por um processo ainda desconhecido, os limites da matéria inanimada? 

Um maçom não pode acreditar na primeira hipótese, por que então estaria negando qualquer virtude á prática que adotou. Por que se o homem fosse um acaso perpetrado por leis exclusivamente naturais, “um vírus” inoculado na corrente sanguínea do universo, como o definiu uma vez um romancista, então ele não teria um espírito, nem poderia acreditar na existência de um Criador. 

Nesse sentido, toda religião, bem como toda prática iniciática não passaria de uma distração infantil de mentes incapazes de conviver com a realidade. Mas, felizmente, temos razões para acreditar que as coisas não são assim, que nós não somos apenas matéria desprovida de espírito, nem seres organizados por leis naturais que só obedecem ao determinismo dos grandes números. 
Nem criacionismo nem evolucionismo. Ou por outro lado, ambas as correntes podem ter razão. Fomos feitos por um Criador, não a partir de um molde perfeito e acabado, como diz a Bíblia, mas sim como parte de um projeto que já estava delineado na Mente de Deus desde o início da Criação. Pois assim como o edifício universal ainda está em construção o homem também ainda não encontrou o seu perfeito acabamento. 

Por isso, na visão da Maçonaria Deus é o Grande Arquiteto do Universo. Ele traça os planos de construção do edifício cósmico e seus anjos, mestres da construção universal, com a ajuda dos homens, seus aprendizes e pedreiros, o constroem. É nesse sentido que toda vida posta no mundo encontra seu lugar e sua missão. 

Assim, não há nenhum pecado em comer o fruto do conhecimento. Nem deve essa ação ser objeto de vergonha ou de culpa. Mas quanto mais dele nós nos apropriamos, mais aumenta a nossa responsabilidade pelo cultivo e manutenção da Árvore que dá esses frutos. 

Que a perda da nossa pristina inocência seja compensada por razão e sensibilidade capazes de nos tornar verdadeiros obreiros do universo e competentes agricultores da Árvore da Vida. Essa é a função da Maçonaria. 


[1] Gênesis, 2: 17.
[2] Idem, 3: 22 .
[3] Ibidem, 3: 2.
[4] O Fenômeno Humano, op. Citado, pg. 186.
[5] Daniel Goleman, PHD- Inteligência Emocional- Ed. Objetiva, pg. 25.
[6] Jean Paul Sartre- A Náusea- Círculo do Livro, 1986. Essa “culpa”, essa fadiga, essa náusea de viver, segundo Sartre, é o reflexo do “castigo” dado ao homem pela desobediência. Ter consciência de si mesmo, e ao mesmo tempo sentir-se despregado de um todo, onde a vida lhe aparece como uma existência vazia e sem sentido, destinada apenas a preencher um espaço entre o ser e o nada. Essa é a verdadeira expressão da metáfora da expulsão do paraíso.
[7] Gênesis, 3:11
[8] A Sabedoria da Cabala, pg. 152.
[9] Knor Von Rosenroth- A Kabballah Revelada, Madras, 2011- pg. 110.
[10] Kabbalah Revelada, citada, pg. 110.
[11] Um dos significados da palavra nephesh, em hebraico, é serpente. Por isso, nas doutrinas místicas, a origem da sabedoria humana está ligada ao mito da serpente. Masnephesh significa também sangue, espírito vital. Por isso em muitos cultos ofitas há o registro de sacrifícios de sangue, significando que a oferta do sangue á divindade é o mesmo que ofertar-lhe o espírito. vital.
[12] Inteligência Emocional, op. citado, pg.24.
[13] O Fenômeno Humano, citado, pg. 160.
[14] Inteligência Emocional, citado, pg. 25.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/05/2016


Tradução José Filardo

Transcrito do site Bibliot3ca







A Maçonaria pretende ser o “Centro de União”. Mas onde se encontra esse famoso centro? Em Londres ou Paris? As duas principais tendências da maçonaria mundial, que se divide entre “regulares” e “liberais” somam verdadeiras rivalidades históricas, diferenças reais de abordagem espiritual, social, simbólica, que, seja o que for que se pense, não estão perto de desaparecer. Especialmente se os liberais parecem agora segurar a corda, é muitas vezes uma reação contra uma maçonaria “inglesa” considerada dogmática, separada do mundo, envelhecida.


Os Maçons acreditam em Deus? A Maçonaria é mista? Os Maçons fazem política? Eles são progressistas ou conservadores? Os membros de muitas potências francesas geralmente têm pouca dificuldade em responder a estas perguntas básicas que parecem lógicas na paisagem maçônica francesa. Mas, suponhamos que você seja membro de uma loja Inglesa ou afiliada à Grande Loja Unida da Inglaterra. Estas perguntas parecerão absurdas a você, ou deslocadas na medida em que elas são estranhas à visão de Maçonaria que ainda prevalece em grande parte do mundo. Porque no seio da Maçonaria Mundial, não é um estreito Pas-de-Calais que separa ingleses e franceses, mas um oceano de incompreensão que, se raramente se tinge de hostilidade aberta, banhada da arrogância mútua de dois continentes soberbamente isolados entre si.

Golpe de cinzel no contrato fraternal

Nessa rivalidade histórica e geopolítica, Londres sempre se prevalecerá do privilégio da anterioridade. Se o inspirador das constituições Anderson fundadoras da Maçonaria Universal foi Jean-Théophile Desaguliers, um pastor de origem francesa, mas já muito inglês, é em Londres e no Reino Unido que as antigas obrigações se espalharam entre 1700 e 1717. No entanto, foi apenas duzentos anos mais tarde, em 1929, que a Grande Loja Unida da Inglaterra, proclamou uma regra de vinte e cinco pontos dos quais o oitavo foi o golpe de cinzel , senão de punhal no contrato fraterno que, bem ou mal admitia a regularidade das lojas francesas e afiliadas desde 1728: “Grandes Lodges irregulares ou não reconhecidas: Existem algumas chamadas potências maçônicas que não respeitam essas normas, por exemplo, que não exigem de seus membros a crença em um Ser Supremo, ou que encorajam seus membros a participar como tais em assuntos políticos. Estas potências não são reconhecidas pela Grande Loja Unida da Inglaterra como sendo maçonicamente regulares, e todo o contato maçônica com elas é proibido. ” As lojas filiadas à GLUI, e mais especialmente as lojas americanas e canadenses, que também já havia mantido relações amigáveis com a maçonaria “continental” foram mais lentas em adotar a mesma atitude sectária. A ruptura entre as duas maçonarias não foi definitiva até o início dos anos 1960. O fato é ainda mais incompreensível que sobre o mérito, a exclusividade proclamada por Londres aplica-se tanto às potências e lojas deístas como as da Grande Loja de França ou do Direito Humano que trabalham sob os auspícios do Grande Arquiteto do Universo, quanto a aquela que fazem da liberdade absoluta de consciência a pedra angular de sua filosofia.

É verdade que no que diz respeito à Federação Internacional du Droit Humain, que possui há bastante tempo lojas em países dominados pela GLUI, a loja mista é um dos principais motivos para o não reconhecimento, ainda mais inaceitável que a liberdade de consciência. Se somarmos a essas diferenças a visão política ou social que certas lojas liberais defendem, não faltarão motivos para explicar a fratura que atravessa a maçonaria mundial. Mas tanto quanto razões ideológicas ou filosóficas, esta divisão é o resultado de circunstâncias geopolíticas ligadas à respectiva influência da França e da Inglaterra no mundo desde o final do século XVIII.

O papel da maçonaria francesa no desenvolvimento das idéias liberais na Europa havia desafiado os britânicos e estes puderam constatar o efeito dessa propaganda. Em primeiro lugar, na América por ocasião da expedição do maçom Lafayette, depois na Irlanda uma geração mais tarde. A grande revolta dos patriotas irlandeses de 1798 que foi afogada em sangue tinha tido como líder Wolfe Tone, um republicano liberal de religião presbiteriana que não sabemos se foi iniciado, mas de quem uma loja do rito irlandês tem seu nome. Vestido em uniforme francês, ele estava no navio comandado pelo maçom e corsário Jean-Baptiste Bompard cuja tentativa de desembarque em Donegal terminou em um fiasco. Esta foi a época em que como uma reação contra a maçonaria do Iluminismo, os mais conservadores dos protestantes irlandeses criaram a ordem para maçônica de Orange. O antagonismo entre duas visões de maçonaria era parte da história. A animosidade inglesa em relação a tudo que vinha da França, já grande, é reforçada nos anos seguintes diante de Napoleão I e seu Areópago de marechais maçons que pretendiam colocar a Europa sob um golpe regulada por um imperador coroado pelo papa … a quem o maçom “inglês” Blücher fez vomitar na planície de Waterloo.

Duas religiões, duas legitimidades

Não se pode nunca destacar suficientement a importância da questão religiosa na diferença que opõe a visão do mundo anglo-saxã à visão de mundo latina e, especialmente francesa. Mas aqui, ela é menos diferença doutrinária entre católicos e protestantes que visões de mundo, resultantes de diferentes sistemas de fidelidade. No Reino Unido, cuja história é tão sangrenta quanto a da França pelas guerras religiosas, é a rainha ou o rei que incorpora a legitimidade política confundida com a legitimidade religiosa. A Maçonaria, cujo surgimento no final do século XVII foi também uma empresa para reunir aqueles que estavam dispersos em excesso de conflitos religiosos, naturalmente se alinhou sob a coroa simbolizando a unidade do país. Tradicionalmente, e até hoje, são príncipes de sangue real que dirigem, pelo menos simbolicamente, a Maçonaria Inglesa. Foi o mesmo na França até a Revolução, primeiro, e depois sob Napoleão, e sob as duas restaurações que se seguiram. Até a Segunda República, as condenações papais tiveram pouco efeito sobre o ingresso de católicos, incluindo muitos religiosos na Maçonaria. Neste contexto, a figura eminente de Joseph de Maistre, um fervoroso Católica que desprezava a República e também propagador na Europa do Rito Escocês Retificado, ilustra essa distorção. Entretanto, com a evolução autoritária do Segundo Império concomitante com mudanças sociais trazidas pela Revolução Industrial, a Maçonaria francesa mudou gradualmente de face. Anteriormente monarquista, católica e aristocrática, ela gradualmente se torna popular, pequeno-burguesa, republicana, senão protestante e judaica, pelo menos amplamente aberta às correntes liberais dessas duas religiões. Isso foi verdade tanto para a Grande Loja de França quanto para o Grande Oriente de França. No entanto, esta evolução liberal, se não libertária, foi parada por dois eventos, aparentemente independentes, mas que de fato imporia à Maçonaria francesa uma nova aliança legalista. Em primeiro lugar, o esmagamento da Comuna de Paris na qual estavam envolvidas lojas parisienses obreiras, foi amplamente aprovado pelas lojas republicanas burguesas do Grande Oriente de França. Então, em 1877, o abandono pelo GODF da referência ao Grande Arquiteto do Universo, consagrou a preeminência da potência enquanto “Igreja da República”, dando aos seus membros um papel de Cavaleiros Templários seculares que eles assumem com zelo até nossos dias.

É assim tanto uma briga doutrinária quanto um conflito de legitimidade que levou a partir de 1877 a uma ruptura de fato entre o Grande Oriente da França e a Grande Loja Unida da Inglaterra. Conflito ainda mais marcado pelo fato de que a época era de expansão colonial. E nós sabemos quanto a Maçonaria operava tanto para o poder colonial francês quanto para o papel do Império Britânico, como um traço de união com as elites locais. Como zelosos missionários, funcionários e militares maçons de ambas as margens do riu delimitaram suas respectivas zonas de influência como fizeram na África após o incidente de Fashoda. Para as obediências francesas as possessões na África, Indochina e do Pacífico. Para a GLUI a Índia, Oriente Médio e suas colônias africanas. A América do Norte, embora já adquirida pela GLUI permaneceu ainda aberta por muito tempo às relações com a maçonaria liberal, enquanto a América Latina, constituída por Estados soberanos teve o prazer de conciliar as duas influências, mas com uma preferência, por vezes, pela visão liberal.

Assim, o mapa da maçonaria mundial fora da Europa foi delimitado a partir do final do século XIX. E iso até a descolonização. Essa teve, primeiro, o efeito de eliminar a Maçonaria de territórios onde ela não estava estabelecida somente entre os colonos e expatriados ou entre uma franja fina das elites ocidentalizadas. Este foi o caso para as lojas francesas em todo o Magrebe, bem como na Indochina onde tudo o que era maçônico foi de barco para o exílio e a derrota. Para os ingleses, foi a ascensão do nacionalismo árabe que em seu auge depois de 1956, varreu as poderosas potências maçônicas egípcia e iraquiana. Somente resistiriam para os liberais as maçonarias da África negra e de Madagáscar e para a “regulares” a maçonaria indiana, ainda que muito reduzida desde os dias de Kipling, permanece até hoje a única maçonaria de alguma importância na Ásia.

“Guerra Fria” entre maçons

Se este quadro, traçado apressadamente permanece ainda atual em termos gerais, ele sofreu desde os anos sessenta a uma série de alterações que modificam um pouco as suas perspectivas. De particular interesse é a crescente influência da Grande Loja Nacional Francesa, que defende os interesses da GLUI sob a bandeira francesa. Mais uma vez, é preciso fazer um pouco de geopolítica. O rito inglês no estilo Emulação introduzido na França em 1901, na Loja Anglo-saxã, criada dentro da Grande Loja de França tinha uma influência muito limitada até depois da Segunda Guerra Mundial, quando sob a influência de muitos maçons americanos presentes nos quadros da OTAN, foi criada a GLNF reconhecida imediatamente como regular pela GLUI. Até então, ao contrário dos ingleses, os maçons americanos mantinham relações cordiais com seus irmãos franceses. Mas a decisão do general de Gaulle de se retirar da OTAN, quando as bases militares deixaram o território francês em meados da década de 1960 levou a uma verdadeira guerra fria entre maçons franceses, todas as potências combinadas, exceto a GLNF e maçons do mundo anglo saxão.

A famosa “arrogância” francesa foi na época qualificada de criptocomunisa, epíteto com que foi presenteado o Grão-Mestre do GODF, Jacques Mitterrand, por todos aqueles que, na mçonaria francesa e internacional reprovavam a politização da potência. Entenda-se isso como progressista. Esta reputação colou-se de uma vez por todas à obediência da Rue Cadet e foi, portanto, possível, ao abrigo de regularidade e ortodoxia do rito, talhar-lhe algumas pedras brutas em seu jardim africano. Assim, enquanto que, por tradição e também pelo jogo político, a maioria das lojas da África Negra permaneceram na órbita do GODF após a independência, vimos aqui e ali, principalmente no Gabão, aparecer potências nacionais ligadas à GLUI, mas apoiadas, se não sustentadas pela GLNF.

Aqui se coloca a questão de difícil compreensão para o profano, da relação entre rito e potência. Se a diferença entre “regular” e “liberais” se limitasse apenas ao rito, ela não teria razão de ser. O que é comumente chamado de ritos ingleses, isto é, os chamados Emulação e Rito de York, que são os da GLNF, são praticados por algumas lojas do Grande Oriente de França e do Droit Humain. Além disso, o antigo Grão-Mestre do GODF Alain Bauer é um alto dignitário do Rito de York no seio da obediência. Da mesma forma, o rito escocês antigo e aceito (REAA) quase desconhecido no Reino Unido, e muito menos na Escócia, é praticado por algumas lojas americanas e de uma forma quase exclusiva pela Grande Loja de França e do Droit Humain. A mesma situação vale para os altos graus cujos capítulos em todo o mundo, obedecem à mesma distribuição geopolítica que as lojas simbólicas.

Os “Regulares” majoritários, mas em declínio constante

Isto pode parecer absurdo e, em princípio, contrário ao espírito da Maçonaria, cujo principal objetivo é reunir o que está espalhado. No entanto, é ela que, ainda hoje, desenha a paisagem maçônica mundial e ainda mais nas próximas décadas vai decidir o futuro da maçonaria em geral. Não nos enganemos: em nível global, a maçonaria não para de declinar desde os anos 1960. Para isso pode-se encontrar muitas explicações, mas não se saberia analisar o fenômeno, sem levar em conta a especificidade da Maçonaria “regular”, ali onde ela era mais poderosa, ou seja, no mundo Anglo Saxão. Se tomarmos o exemplo dos Estados Unidos, os maçons que encarnaram até a Segunda Guerra Mundial, as ideias fundamentais da democracia americana, gradualmente abandonaram qualquer pensamento social, em favor de uma visão conservadora, congelado, antiquada da sociedade americana. Tudo o que esta última fez evoluir na segunda parte do século XX foi, se não combatido, pelo menos, ignorado pelas lojas. A emancipação dos negros, embora ainda existam batalhar a vencer, já é uma realidade na sociedade americana, embora brancos e negros tenham uma maçonaria separada com base no princípio da segregação. O lugar da mulher na sociedade americana, provavelmente o mais avançado do mundo ocidental, ainda é um tabu na Maçonaria estadunidense onde lojas mistas estão ausentes e lojas femininas quase inexistem. Finalmente, a questão do reconhecimento do fato homossexual não só está a milhares de quilômetros das preocupações das lojas americanas, mas certas entre elas, como recentemente no Tennessee, pronunciaram-se abertamente em favor de medidas discriminatórias contra a comunidade gay.

A isso se soma uma prática maçônica muito estranha que se transforma a iniciação em uma espécie de trote e a frequência às lojas uma formalidade social. Na verdade, durante as aulas de um dia, cerimônias de um dia inteiro, que os candidatos ingressam e passam pelos três primeiros graus, antes de prosseguir em uma carreira maçônica nos altos graus de maneira quase tão rápida, pontuadas por três ou quatro sessões realizadas por ano.

Distante das realidades da sociedade, envelhecida, reduzida a uma atividade de clube de serviço, a maçonaria americana, que teve quase quatro milhões de membros nos anos 1950 não contam hoje nem com a metade disso. E, ainda, este número inclui todos aqueles que em um momento ou outro foram iniciados. O número real de membros da Maçonaria norte-americana seria mais perto de duzentos mil membros, em sua maioria com idade superior a setenta anos.

Esta situação não é muito diferente no Reino Unido, onde a maçonaria, antes emblemática de um certo modo de vida britânico, está em declínio constante. Certamente, os rituais são praticados ali de maneira mais séria do que nos EUA, mas as sessões obrigatórias têm lugar apenas uma vez a cada dois meses, e a Maçonaria britânica, em seu todo muito conservadora e comprometida com a crença em um deus revelado, está separada de uma sociedade cada vez mais multicultural e cada vez menos religiosa. A ausência de debates sociais em loja, o envelhecimento dos membros, a recusa absoluta das lojas mistas e a quase ausência da maçonaria feminina completam um quadro pouco dinâmico que se pode, com apenas alguns detalhes a mais ou a menos, transpor para a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Canadá e Israel, países onde a maçonaria ligada à GLUI foi por muito tempo poderosa.

… e os liberais minoritários que progridem

Em última análise, com exceção da pequena Islândia, pais que tem a maior proporção de maçons no mundo, é na França que a maçonaria inglesa seria mais dinâmica. E não é sem interesse saber dos os esforços feitos pelas potências francesas, incluindo o Grande Oriente da França principalmente (ver quadro), mas também o Droit Humain, para se implantar e, se possível progredir no Reino Unido (duas lojas do GODF, doze lojas do DH e uma loja do Grande Oriente da Itália) e na Irlanda (três lodges do GODF). Note-se também que ao lado de algumas lojas liberais localizadas em Nova York, é na Califórnia que as esperanças de um renascimento da maçonaria americana são maiores, com uma loja do GODF em San Francisco, mas também contatos esporádicos sob a cobertura de simpósios históricos e em outros eventos entre a Grande Loja da Califórnia e o GODF, bem como da Grande Loja Feminina de França e o Droit Humain. Observou-se também, na década de 2000, a presença de representantes do GODF e da Grande Loja de França, durante uma conferência maçônica por iniciativa da Grande Loja de Minnesota. No entanto, por mais promissores que sejam, esses contatos não foram acompanhados por nenhum acordo entre as potências e o horizonte de reconhecimento ainda parece muito distante.

Fora a África Ocidental, tradicional território de potências francesas, e em alguns países do sul da Europa (ver caixa), é hoje na América Latina que a Maçonaria liberal mais se desenvolve. Tradicionalmente ligada à emancipação dos povos da região através da memória de maçons ilustres que foram José Marti em Cuba, Giuseppe Garibaldi no Uruguai e Simon Bolívar, o libertador do subcontinente, a maçonaria liberal ali se desenvolve há bastante tempo uma fraternidade matizada de cultura latina e secularismo. O México tem sido há tempos a ponta de lança, enquanto que no Uruguai se encontra a loja mais antiga da América do Sul filiada ao GODF. No Brasil, que tem uma infinidade de potências, incluindo a tradição “egípcia”, a maçonaria é um bom exemplo de diversidade, mas também de desunião, mas com um aumento acentuado de lojas do Droit Humain. Por outro lado, na Argentina e, em menor medida, no Chile, onde se encontra um Grande Oriente Latino-americano, a margem de progressão da maçonaria liberal continua a ser considerável.

O mesmo se aplica ao Extremo Oriente, onde, além da Índia, que conta com cerca de 20.000 maçons, maçonaria tanto “regular” quanto liberal nunca fez sucesso. Provavelmente porque têm a sua própria abordagem simbólica, os chineses, japoneses e Thais nunca estiveram realmente interessados em uma maçonaria que, embora queira ser universal, baseia-se na mitologia bíblica, bem como uma forma de pensamento, características e ferramentas simbólicas de mentalidade ocidental. Falar de colunas do templo de Salomão a um chinês para quem o mundo é circular ou de secularismo a um japonês, cuja identidade é inseparável do culto xintoísta não faz sentido algum.

Resta o mundo árabe-muçulmano, onde algumas pessoas nutrem desde longo tempo a esperança de restaurar a maçonaria à sua antiga glória para conter o máximo possível o fanatismo religioso. Totalmente ausente da Argélia, a Maçonaria existe na Tunísia com lojas filiadas ao GODF, cujos membros se reúnem na discrição mais absoluta. Fora a notável exceção do Marrocos, onde quase todas as potências liberais estão representadas, e o Líbano, onde se enreda uma multiplicidade de potências cujo número de membros não excede, normalmente, dez membros, a maior parte do mundo árabe e muçulmano também parece fechado para a Maçonaria como ela é hoje, para o secularismo, para a emancipação das mulheres e para a tolerância em relação à homossexualidade.

A cifra de sete milhões de maçons em todo o mundo, às vezes apresentada, é certamente falsa. Sem dúvida, ela está realmente mais perto de dois milhões de maçons ativos. E desse número, pouco mais do que três a quatro centenas de milhares de irmãos e irmãs estão sinceramente comprometidos com a liberdade de consciência, o respeito pelos outros na sua diversidade e convencidos de que devem trabalhar tanto para a melhora do homem em seus aspectos morais quanto materiais. É muito pouco. Mais uma razão, nestes tempos tenebrosos, pare que cada um se ocupe em recuperar a sua luz sobre o mundo.

Quadros
A Aliança Maçônica Europeia. Um lobby maçônico em Bruxelas

Tradicionalmente, na Europa, os “regulares” estavam no Norte e os liberais no sul. Esta realidade geográfica se cruza com outra história, que deixou traços. Fora das maçonarias austríaca e alemã, predominantemente “regulares”, são essencialmente os liberais que foram perseguidos por ditaduras comunistas e fascistas. Assim, certamente, existe maior tradição de discrição no sul da Europa. Depois de 1989, foi a corrida para o Leste para uns e para outros. Quase trinta anos depois, se contarmos belas realizações nos Balcãs, a presença maçônica na Rússia e na Europa Oriental ainda está em formação. Se as maçonarias polonesa e húngara são bem constituídas, eles mostram coragem em países cujos governos leem seu futuro no seu passado mais obscuro.

Fora seus dois pilares que são a França e a Bélgica, a Maçonaria liberal é representada por potências nacionais ligadas principalmente ao Grande Oriente de França e ao Droit Humain em cerca de quinze países europeus. Com exceção da Sérvia, as potências liberais desses países *, a que se juntam a Turquia e o Marrocos constituiram há dois anos a Aliança Maçônica Europeia que agrupa 22 potências. “Trata-se de representar junto às autoridades europeias uma força de diálogo e proposta baseada no secularismo e nos valores de escuta e tolerância da Maçonaria adogmática. Julgamos ser útil se fazer ouvir por meio de lobbies junto a Bruxelas para não deixar este terreno às religiões e à extrema direita. Atualmente, somos signatários da petição Wake Up Europe denunciando os abusos do regime autoritário de Viktor Orban na Hungria. Não nos opomos à que os “regulares” se juntem a nós, mas por enquanto eles estão ausentes neste terreno”, explica Henri Sylvestre, Grande Secretário para os Assuntos Externos do GODF, potência que, junto com o Grande Oriente da Bélgica e as federações do Droit Humain estavam na origem desse projeto.

Contato
Aliança Maçônica Europeia, 75 rue de Laeken, 1000 Bruxelas


* Áustria, Bélgica, Espanha, França, Grécia, Hungria, Luxemburgo, Marrocos, Holanda, Polônia, Portugal, Romênia, Eslovênia, Suíça, Turquia.

Inglaterra. Quando os franceses desembarcam …

Terra de Missão, ou terra simplesmsnte incógnita para os franceses de tradição adogmática, o Reino Unido tem alguns poucos passageiros (quase) clandestinos, seguidores de uma maçonaria aberta de rito francês, trabalhando em Inglês, e que até defende as lojas mistas. Chocante!

Em 2010, Philippe Bodhuin, de Calais era conselheiro da ordem do GODF e membro da Loja Hiram, única loja francesa trabalhando em francês em Londres por mais de cem anos. “Esta situação não era absolutamente satisfatória. A ideia nos ocorreu de criar uma loja trabalhando em Inglês, de modo a não limitar o recrutamento aos expatriados”. Isso foi feito em 2010, quando foram criadas as R.L “Freedom of Conscience” – Liberdade de Consciência – que se reúne em um templo do Droit Humain, já presente no Reino Unido. A partir de um núcleo de 26 membros originários da Loja Hiram, esta nova loja procedeu então a uma dúzia de iniciações, incluindo dois ingleses. O que é mais um feito que, de acordo com Philippe Bodhuin que é o atual venerável, “Recebemos regularmente membros da GLUI que não assinam o livro de presença, mas estão muito interessados em nossos trabalhos com os ritos francês e Inglês. Eles ainda descobrem uma maçonaria ativa na qual é possível não acreditar em deus ou na imortalidade da alma, crença obrigatória em lojas inglesas, embora muitos de seus membros não acredito nisso. ”

Quanto às lojas mistas, está programado assim que a oportunidade surgir. Além disso, o fato de estar em Londres é de interesse para esta loja, para misturar-se a uma população cosmopolita atraída pela maçonaria, mas que ignorava tudo sobre a maçonaria de rito francês. O que já permitiu estabeleceu contactos com maçons de Malta e criar três lojas na República da Irlanda.