sábado, 12 de novembro de 2016


A LEI INICIÁTICA DO SILÊNCIO

Autor: Antonio Rocha Fadista

Platão, chamado a ensinar a arte de conhecer os homens, assim se expressou: “os homens e os vasos de terracota se conhecem do mesmo modo: os vasos, quando tocados, têm sons diferentes; os homens se distinguem facilmente pelo seu modo de falar”.

O pensamento do filósofo Iniciado nos oferece excelente oportunidade para uma profunda reflexão, principalmente para os que integram a Ordem Maçônica. Nem sempre nos damos conta de como nos tornamos prisioneiros das palavras que proferimos. Por serem a expressão do nosso pensamento, por traduzirem as idéias e os sentimentos, as palavras se tornam um centro emissor de vibrações, tanto positivas quanto negativas.

A palavra é o elemento que identifica o Homem e é a síntese de todas as forças vitais; é o elemento que interliga todos os planos, do mais denso ao mais sutil. A palavra está intimamente ligada ao silêncio, outra sublime expressão da psique humana.

No mundo profano a palavra - falada ou escrita - é usada indiscriminadamente. A sociedade humana está cheia de palavras que ofendem, que humilham, que magoam e que denigrem a honra do próximo. Se se trabalhasse mais e se falasse menos, com certeza que a humanidade seria mais evoluída e mais civilizada. Infelizmente existem palavras em excesso, não só no mundo profano como também nos Templos Maçônicos. Tal situação é inconcebível em um Maçom, pois no estudo dos símbolos ele aprende a refletir sobre o conteúdo oculto das palavras que, em última análise, refletem a essência interior do ser humano.

Não por acaso a doutrina Maçônica reserva o silêncio aos seus membros, de acordo, aliás, com a Tradição Pitagórica. A Escola Iniciática de Pitágoras tinha um sistema de três graus: o de Preparação, o de Purificação e o de Perfeição. 

Os neófitos do grau de Preparação, equivalente ao grau maçônico de Aprendiz, eram proibidos de falar; eram só ouvintes e cumpriam um período de observação de três anos, durante o qual a regra era calar e pensar no que ouviam. No grau de Purificação, equivalente ao de Companheiro Maçom, o silêncio se estendia por mais dois anos, adquirindo estes Irmãos o direito de ouvir as palestras do Mestre Pitágoras. Assim, para atingir o grau de Perfeição, equivalente ao de Mestre Maçom, quando então os Irmãos podiam fazer uso da palavra, era necessário praticar o silêncio durante cinco anos.

Nas reuniões maçônicas, sem dúvida, constitui uma prova de sabedoria saber ouvir e manter o silêncio. Chílon, um dos sete sábios da Grécia Antiga, quando perguntado sobre qual a virtude mais difícil de praticar, respondia: “calar”. No Zend Avesta, que contém toda a sabedoria da antiga Pérsia, encontramos normas e regras sobre o uso e o controle da palavra, cuja universalidade desafia os séculos. No mundo maçônico, a dimensão da palavra falada e escrita não é diferente.

Ao entrar em nossa Sublime Instituição encontramos, na ritualística, referências à sacralidade da palavra que, como meio de expressão dos pensamentos e dos sentimentos, deve ser sempre dosada, moderada, e deve espelhar o equilíbrio interno do orador. Em nossa Ordem, a palavra deve ser usada no mesmo sentido em que Dante Alighieri exortava o seu personagem Metelo, na Divina Comédia: “usa a tua palavra como um ornamento”.

À primeira vista, o silêncio poderia parecer um condicionamento e um castigo. Na realidade, o silêncio, a meditação e o raciocínio, são a única via que leva à libertação das paixões e dos maus pensamentos. Além de exercitar a autodisciplina, em seu silêncio o Maçom apreende com muito maior intensidade tudo o que ouve e tudo o que vê. 

Assim, a voz do Irmão que se mantém em silêncio é a sua voz interior, quando ele dialoga consigo mesmo e, neste diálogo, analisa, critica, tira suas próprias conclusões e aprimora o seu caráter. Em suma, pelo silêncio, a Maçonaria estimula os Irmãos a desenvolver a arte de pensar, a verdadeira e nobre Arte Real. Deste modo, o silêncio em Maçonaria não é meramente simbólico e não é também um meio de castrar a iniciativa dos Irmãos. O silêncio é indispensável e decisivo no processo de lapidação da Pedra Bruta e no aperfeiçoamento interno dos Irmãos.

Ao cruzar as portas de uma Loja Maçônica, trazendo consigo a liberdade total de expressão, um direito natural que lhe é garantido pela Declaração dos Direitos Humanos, sem as restrições que lhe impõem a moral e a razão, o novo Maçom aprende a controlar os seus impulsos, pela prática espartana do silêncio. Assim ele aprimora o seu caráter e prepara-se para ser um líder, numa sociedade na qual prevaleçam a Liberdade responsável, a Igualdade de oportunidades e a Fraternidade solidária.

Se tiver de falar, que o maçom siga o conselho de Dante e use a sua palavra como um ornamento. Tudo se resume na prática da Lei do Amor e da Tolerância. Certamente que o Grande Arquiteto do Universo ilumina e abençoa a todos os que pensam mais do que falam, pois estes espiritualizam a sua matéria, e são os Seus filhos mais diletos.

EM TEMPO:
O Irmão Aprendiz não só pode como precisa e deve usar a palavra quando apresentar os seus trabalhos, quando for questionado por outro Irmão, quando tiver informação relevante sobre qualquer candidato à Iniciação, ou quando tiver informação fundamental para a Loja ou para a Ordem. Basta pedir a palavra ao Vigilante de sua Coluna.

ANTÓNIO ROCHA FADISTA
M.'.I.'., Loja Cayrú 762 GOERJ / GOB - Brasil

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

ESTUDOS MAÇÔNICOS - OS CÓDIGOS DA BÍBLIA


Autor: João Anatalino

Religião não se discute?

Uma vez um aluno um pouco mais curioso perguntou ao grande mestre Santo Agostinho, bispo de Hipona, o que Deus fazia antes de começar a fazer os céus e a terra, como está escrito nas primeiras linhas da Bíblia. Ele tinha curiosidade em saber, já que o livro sagrado começa com uma ação ativa de Deus, separando a luz das trevas e depois fazendo o restante do universo. Santo Agostinho deu uma resposta meio enviesada, bem a moda dos mestres daqueles tempos, quando era proibido discutir religião, e principalmente aqueles dogmas de fé, cujas respostas pudessem suscitar alguma contestação. Utilizando a linguagem de hoje, poderíamos dizer que ele respondeu ao espevitado aluno que “ antes de começar a fazer o universo, Deus estava preparando um inferno para os “pentelhos” que se metem a fazer esse tipo de pergunta”.

Muita gente ainda age assim hoje em dia. Finca posição em certos dogmas e vai em frente como se fosse um burro em quem se coloca viseiras para que não olhe para os lados e se distraia.

Isso é conveniente para quem vive da indústria da fé, mas já se disse que pior do aquele que nunca lê livro nenhum, é a pessoa que lê um livro só. A Bíblia nos interessa porque ela é base da nossa cultura. O Big Bang também nos interessa porque ele um fato científico que é fruto da especulação que a espécie humana desenvolveu em busca da sua origem. O que havia antes dele também preocupa porque simplesmente pensar que tudo começou com o Big Bang, ou da forma que a Bíblia conta não satisfaz a nossa sede de saber. Assim, nada deveria ficar fora do território especulativo da mente humana, e opor dogmas, ou selecionar assuntos que não podem ser discutidos não é defender a fé. Antes é enfraquecê-la, colocando freios á nossa mente, que deve avançar sempre, a despeito de todas as portas que algumas pessoas tentam fechar na frente dela.

Ler a Bíblia como se ela fosse um código de leis, ou uma história literal do mundo, ou ainda pior, como uma cartilha doutrinária infalível, pode gerar mentes maravilhosas como a de Jonh Milton, de Madre Teresa de Calcutá, a Irmã Dulce, e outras luminosidades mais, mas também pode gerar malucos como Jim Jones e Charles Manson, por exemplo.¹

Da mesma forma pode inspirar mentes como a de José Saramago, que via na Bíblia um livro pernicioso que incentiva as guerras, a matança, o incesto, os ódios raciais e tudo quanto há de ruim de mundo.

Cain e Abel como exemplo

Northrop Frye é um professor canadense que escreveu um livro chamado Código dos Códigos, analisando a Bíblia do ponto vista literário. Nesse trabalho, despido de toda roupagem doutrinária e ideológica, ele mostra a riqueza do inconsciente humano, comunicada pela Bíblia através dos mitos, das histórias, provérbios, parábolas, símbolos e visões, muitas delas intraduzíveis em linguagem vernacular, mas que fazem dela um livro formidável e único, onde toda a aventura humana, desde a sua origem celular, até a sua organização em sociedade, é referida.

Frye nos mostra que histórias como a da criação e queda do homem são ecos de um desenvolvimento natural das sociedades humanas, que refletem a passagem de uma colonização extrativista, onde o homem tirava o essencial do seu sustento da natureza, para o momento em que, premido pelo aumento populacional, o homem foi obrigado a desenvolver a agricultura e o pastoreio para sobreviver. Assim, a história de Cain e Abel, por exemplo, é uma metáfora do conflito entre a agricultura, atividade que necessitava de terras agricultáveis, e o pastoreio, que precisava de espaço aberto para a criação de animais. Esse fato, que reflete o avanço da civilização e sua urbanização, tem sido, amiúde, o responsável pelos grandes conflitos da história e sobrevive ainda hoje, até no interior do Brasil, onde a competição entre as grandes fazendas de gado e o assentamento de colonos tem rendido incontáveis mortos, como já aconteceu nos Estados Unidos e outros países, no passado.

A terra prometida- um arquétipo utópico

O que é a terra prometida dos israelitas senão um arquétipo da utopia longamente sonhada pelo homem em todos os tempos? Quem não sonhou um dia com uma terra que mana leite e mel ─ um lugar onde a vida possa ser vivida sem conflitos─, lugar esse que pode ser um país, uma cidade, ou mesmo um sítio, uma casa de praia, uma aposentadoria, uma casinha pequenina na serra, etc.? Dessa forma, toda a saga bíblica do povo de Israel pode ser vista como uma longa e eterna procura pela realização desse arquétipo que está no inconsciente coletivo da humanidade. Destarte, a terra prometida, tanto a de Abraão, como a de Moisés, os reinos de Davi e Salomão, a restauração do reino judeu, empreendida por Zorobabel, e a própria ideia do reino messiânico dos essênios, que se cristalizou na promessa cristã, são, na verdade, ecos dessa utopia que alimenta a alma humana desde os primórdios da nossa civilização.

A Bíblia- Retrato do inconsciente da humanidade

A Bíblia, do ponto de vista estritamente literário, reflete a totalidade do inconsciente da humanidade codificado em mitos, histórias, aforismos, metáforas, metonímias, provérbios, que juntos, fornecem um celeiro infinito de arquétipos para toda a nossa cultura. A moral, o direito, a filosofia, enfim, todos os estratos que compõem a superestrutura da nossa civilização podem ser encontrados nela. E praticamente, todos os clássicos enredos literários que conhecemos já estão, de alguma forma, também nela presentes. 
Por fim, o que ressalta, desse trabalho de Frye, é a ideia de que o conceito de Deus não é fruto de intuições estanques, separadas uns dos outros, como de princípio se poderia pensar, mas sim a cristalização de uma sensibilidade que é desenvolvida na forma como a sociedade é organizada. Cada povo tende a prefigurar e atribuir ao seu Deus suas próprias identidades. Assim, se Israel desenvolveu a ideia de um deus patriarcal, apegado á tradições pastoris, é porque assim vivia esse povo. Da mesma forma, os gregos, com seus deuses quase humanos refletiam a evolução social e mental de um povo que via a vida sempre como um limite a superar.

A questão da hierarquia

Destarte, os conceitos que se referem á divindade não podem ser separados da forma como a sociedade organiza a sua hierarquia. O fato de o Deus hebreu aparecer prefigurado sempre como uma espécie de patriarca severo é próprio da sociedade pastoril da Israel bíblica, da mesma forma que o Deus Brhama, que aparece no topo da hierarquia dos deuses hindus, é um arquétipo fundamentado na figura do nobre brâmame, cujo status na sociedade daquele povo era o mais alto. Por isso, também, os deuses, em todas as tradições religiosas dos povos antigos, moram em montanhas (lugares altos), como os deuses do Olimpo, ou Jeová no Monte Sinai, UiraCocha (o deus dos povos andinos) em Tiuhanaco, etc.

Da mesma forma, o fato de os deuses morarem numa montanha, ou aparecerem numa delas, ou ter seus templos construídos em lugares altos, é uma metáfora que indica a condição superior dele em relação aos seus subordinados homens. É uma transposição da realidade social vivida pelos povos que os cultuam, o que nos leva a deduzir que o conceito de Deus é uma dinâmica extraída da forma como a sociedade é estratificada. 

Deus é sempre verdadeiro

Assim, pode-se deduzir também que os diferentes nomes que os antigos davam a Deus não refletiam identidades de deidades em si mesmas, mas sim apenas códigos linguísticos extraídos dos seus sistemas sócio-políticos. Desse modo, os nomes de Jeová, Aton, Marduc, Baal, Uiracocha, Zeus, etc, não representam deuses diferentes, mas sim retratos de uma mesma ideia, desenvolvida segundo diferentes visões. São frutos de diferentes fases vividas pela humanidade e suas consequentes formas de ver o mundo. Por isso são deuses agrários uns, deuses urbanos outros, divindades pastoris, extrativistas, patriarcais, matriarcais, humanistas, belicosos, pacifistas etc..conforme a forma de viver de cada povo.

A ideia é a de que Deus muda conforme o tempo e a vida em que se vive. Por isso, talvez, a melhor conceito que até hoje foi expresso a seu respeito ainda é a do Apóstolo Paulo. “ Deus”, disse ele, “é sempre verdadeiro, seja qual for o lugar e o tempo.” 


¹ Jim Jones, pastor, fundador da igreja Templo dos Povos (Peoples Temple), induziu seus seguidores a um suicídio em massa na comunidade de Jonestown na Guiana, em 18 de novembro de 1978. 918 pessoas morreram, em sua maioria, por envenenamento. Charles Manson foi o líder de uma comunidade hippie nos anos sessenta. Considerado uma espécie de profeta por seus seguidores, ele cometeu vários assassinatos ritualísticos nos Estados Unidos, inclusive da atriz Sharon Tate, na época grávida de oito meses. Foi condenado á morte mais teve sua pena transformada em prisão perpétua, pena que está cumprindo até hoje, na Penitenciária de Corcoran, Califórnia.

João Anatalino


A PROCURA DO EQUILÍBRIO PERDIDO


Autor: João Anatalino

O equilíbrio cósmico 


Houve uma época na vida da humanidade em que todos os homens tinham consciência da unidade do universo e sabiam que o céu e a terra eram complementos um do outro. Ambos refletiam uma Consciência maior que os havia pensado.

Em dado momento, porém, ocorreu uma ruptura entre essas estruturas, fazendo delas compartimentos dois estanques. Essa é ideia que se transmite na tradição hermética e está assente em todas as doutrinas esotéricas que acreditam na existência de civilizações anteriores á nossa.

Essa ruptura foi interpretada pela tradição religiosa como sendo uma queda do homem do seu status anterior, de parente dos deuses, Daí surgiu a visão dialética do cosmo como se ele fosse composto de estruturas diversas, incomunicáveis entre si, opostas, antagônicas e, ás vezes, até inconciliáveis. A produção universal, fosse matéria ou pensamento, passou a ser vista como reação entre energias antagônicas: bem e mal, luz e trevas, verdade e mentira, ação e reação, macho e a fêmea etc. O divino e o profano, da mesma forma que céu e terra, tornaram-se unidades independentes, cuja unidade foi rompida e precisava ser recomposta através de uma atitude religiosa por parte dos homens. A religião, como tentativa de religar os deuses aos homens foi o resultado dessa impostura.

Nos primórdios da nossa atual civilização os povos se recordavam dessa ruptura, cuja consequência foi interpretada como uma “queda” que provocou a sua expulsão de um paraíso. E a partir dessas lembranças procuraram reconstituir, pela religião, esse estado anterior de unidade onde o múltiplo era um, o que havia dentro era igual ao que havia fora, o que estava cima igual ao que estava em baixo. A experiência mais conhecida e importante nesse sentido foi a que os hebreus, antecedentes dos israelitas, legaram á humanidade. Nesse sentido, a instituição da nação de Israel como maquete da humanidade autêntica e perfeita que Deus desejaria instituir sobre a terra foi a mais clara e contundente experiência nesse sentido. Com a escolha do povo de Israel para ser o “povo eleito”, o que se buscava era a recomposição do equilíbrio cósmico, abalado pela queda do homem. Essa é a ideia que está no centro do estranho conceito cabalístico do Tikun[1

Maat, e o equilíbrio universal

Em contraposição á essa ideia, há quem acredite que a civilização que chegou o mais próximo possível dessa unidade primordial talvez tenha sido a antiga civilização egípcia e as que dela se derivaram, ou seja, as civilizações pré-colombianas. Os ecos de uma cultura ainda incompreensível, apesar de todos os estudos realizados, ainda ressoam pelas ruínas dos monumentais corredores dos imensos e magníficos templos construídos por aqueles povos. Parece que os espíritos dos maçons que construíram as gigantescas tumbas e os colossais edifícios que se encontram nos areais do Egito e nas montanhas andinas e planícies mexicanas e da América Central, lá ainda se conservam para nos dizer que o tempo não existe, que o universo é único, que somos nós que não entendemos as leis naturais, e consequentemente utilizamos mal o fluxo constante da energia que molda o universo, interrompendo a corrente de Maat. 

No Antigo Egito, como sabemos, a idéia de um estado de perfeita ordem e harmonia estava inserida no culto à Maat, a deusa da justiça e da retidão moral. Acreditava-se que essa divindade era a mediadora entre as potências do céu e da terra. Ela regulava as relações entre os deuses, estabelecendo a harmonia entre eles, e também entre os homens, fazendo com que eles vivessem em paz e em união. Por isso, todos os homens de responsabilidade na sociedade egípcia deviam viver de acordo com a Maaty, ou seja, se comportar de acordo com rigorosos princípios religiosos e morais, vivendo uma vida justa e perfeita, em todos os sentidos. Falhar em viver segundo esses princípios implicava em ser julgado com muita severidade no chamado Salão de Maat (também conhecido como Tribunal de Osíris, onde as almas dos mortos eram julgadas), e ser condenado á destruição pela serpente Apépi. Já aqueles que viveram suas vidas de acordo com essas regras eram conduzidos pelo deus Osíris através da Tuat (a terra da escuridão), até o outro lado, onde entravam no território de Rá, o sol radiante, e se integravam à luz que emanava daquele deus. Essa era a reintegração da centelha divina, que está em cada alma humana, ao centro irradiante, que os egípcios identificam no deus Rá, o Sol.

Na iconografia egípcia, a deusa Maat aparece como sendo a esposa, ou a parte feminina do deus Thoth, que com ele veio ao mundo quando as águas do abismo primitivo se abriram pela primeira vez. Seu símbolo era uma pena, que representava a leveza que uma alma devia apresentar quando estivesse diante do tribunal dos deuses. Nos tempos mais antigos do Egito, o nome dessa deusa estava conectada também com os artesãos (que deveriam fazer obras com perfeição), o que justifica o apreço com que o termo Maat é usado na simbologia maçônica. 

Os egípcios usavam o termo de uma forma moral e espiritual, significando direito, verdade, lealdade, honestidade, retidão, caráter, justiça, probidade, etc. De acordo com os antigos egípcios, são essas ações Maaty que instruem os processos cármicos a que estão submetidas todas as almas que nascem no mundo, e nos dão como resultado uma sentença de mérito ou demérito, cuja aplicação reflete em nossas existências orgânicas e espirituais, fazendo de nós criaturas mais ou menos afortunadas, que evoluem ou regridem, numa escalada ascendente ou descendente. É um conceito semelhante ao desenvolvido pelo mestre cabalista Isaac Luria, em sua doutrina.[2]

Esse processo tem como meta um aperfeiçoamento constante das nossas qualidades e virtudes, até um ponto onde possamos transcender da nossa condição de meros seres humanos para uma esfera mais sutil da realidade cósmica. Esse é o sentido da nossa escalada da matéria para o espírito e a finalidade de toda a vida. 

A função dos Antigos Mistérios

Era crença dos antigos egípcios que a sua civilização lhes tinha sido transmitida diretamente pelo Deus Thoth, que viera à terra justamente para essa missão civilizadora. Ele lhes deu os rudimentos da civilização, ensinando-lhes a agricultura, a metalurgia e a organização social. Ele ensinou todas essas coisas a Osiris, o primeiro rei a governar em todas as terras do Egito, e este a propagou entre todos os povos do reino, mantendo a harmonia e a paz, até o dia em que foi assassinado e esquartejado por seu invejoso irmão Seth.

Essa é, precisamente, a função dos chamados Antigos Mistérios egípcios, festivais rituais nos quais se representava a reconstituição do corpo dilacerado do rei-deus Osíris por seu invejoso irmão Seth, na lenda conhecida como Mistérios de Ísis e Osíris. Nessa lenda, o corpo de Osiris, cortado em pedaços e espalhados pelos quatro cantos da terra é reunido e recomposto pela sua esposa-irmã Ísis, que lhe dá novamente a vida. Esse Mistério simboliza a ideia egípcia da reconstituição da unidade cósmica, quebrada pela rebelião do mal contra o bem. [3]

A repercussão na filosofia

É possível que o mal tenha realmente entrado no universo quando os homens começaram a “fazer” história, ou seja, a partir do momento em que passaram a compor exercícios semióticos variados, como consequência da variedade de linguagens que se instalou na terra com a multiplicação das famílias humanas. Por essa razão, os símbolos deixaram de ser comuns e Deus “afastou-se dos homens”, pois desse momento em diante, sua história não seria mais que um reflexo das suas próprias consciências, não mais refletindo a consciência Dele. 

É provável, também, que até certo momento na vida dos grupos que povoaram a terra, tivesse sido possível para eles captar o reflexo da Consciência Divina, e com isso interferir nas próprias ações da natureza. Mas isso, como é possível perceber, deixou simplesmente de acontecer a partir de certa época. É certo que até os tempos de Josué, (pelo menos a Bíblia está a indicar isso), Deus parecia estar bem presente na história humana. Grosso modo, parece que a intervenção divina, imobilizando o sol no firmamento para que os israelitas pudessem marchar em volta das muralhas de Jericó e derrubá-las com o som de suas trombetas, foi uma das últimas ações diretas da Divindade na história dos homens. Depois dela as intervenções diretas de Deus na terra escassearam, e a partir de certa época, não se falou mais nisso. [4]

Tudo acontece como se a divindade se desinteressasse do destino dos homens, provocando uma ruptura entre os dois estratos: o divino e o profano. E por isso o Zaratustra de Nietzsche pode dizer: Deus morreu. [5]

Aqui, precisamente, é onde se insere a religião. Após a separação entre o céu e a terra, entre o sagrado e o profano, alguns espíritos mais sensíveis começaram a pensar num meio de religar essas duas estruturas, recuperando aquele estado de harmonia, ordem e felicidade que acreditavam, um dia, existiu no universo. 
Então inventaram a religião e construíram templos para neles invocar a Divindade, que segundo acreditavam, voltaria a visitar os homens a partir do momento que a reunificação pretendida ocorresse. Por isso é que a função de toda religião é religar o profano ao sagrado. É levar o homem de volta para o território da divindade, como espírito, de onde um dia ele saiu como centelha de luz que capturou massa física.

A rebelião gnóstica

Quando os teólogos transformaram o Cristianismo numa ideologia de massa e a vincularam á cultura do povo romano como religião oficial, a maravilhosa doutrina do mestre de Nazaré deixou de ser uma verdadeira ponte entre o sagrado e profano, para se transformar em mais um instrumento ideológico. E assim também aconteceu com o Islamismo, o Judaísmo, o Bramanismo e todas as demais religiões que foram apropriadas pelos governantes, e utilizadas como instrumento político.

Nesse sentido, Jesus também deixou de ser o Messias, o redentor das almas perdidas, para se tornar apenas mais um ideólogo. O Jesus do Cristianismo oficial transformou-se em mais um filósofo, contestável e doutrinariamente insatisfatório para um espírito que buscava uma realidade divina. Assim pensavam os filósofos neoplatônicos e com base nesse pensamento floresceram as teses gnósticas, como tentativas de recuperar aquele Cristianismo messiânico e mágico que as primeiras comunidades cristãs professaram, e que fez a força do novo credo.

É nesse sentido que os gnósticos cristãos dos primeiro século procuraram preservar a pureza do conhecimento iniciático contido na mensagem cristã. Eles não acreditavam em nenhuma verdade revelada por um Deus particular e preconceituoso, como lhes parecia ser o Deus do Velho Testamento. A verdade, segundo a sensibilidade que os dominava, estava na própria criação que Deus espalhara sobre o universo e não na mensagem de uma pessoa em particular. Da mesma forma que os sacerdotes egípcios e os mestres das religiões orientais, eles pensavam que o conhecimento do mundo divino só podia ser atingido através de uma adequada iniciação, onde a prática ritualística pudesse ser combinada com fórmulas apropriadas de meditação e invocação da divindade. Para esses místicos pensadores dos primeiros séculos, Jesus não tinha em mente criar um novo credo, mas sim reformar o Judaísmo, que ele acreditava ter sido corrompido pelos fariseus, saduceus e outros “doutores” da lei, que segundo ele, interpretavam as escrituras sagradas em seu próprio benefício, “colocando sobre os ombros do povo, fardos que nem com um dedo queriam erguer.” Nesse sentido, ele era o Messias, o Reformador, o Restaurador, que os antigos oráculos profetizaram. Aliás, o termo “Messias” corresponde a um personagem exclusivo da tradição de Israel e se referia a um profeta, ou herói, na mesma linha de Elias, Eliseu, Moisés, Sansão, Davi, etc. ainda que mais poderoso. A sua apropriação como salvador da humanidade, como redentor universal, foi uma criação dos seus discípulos, especialmente do Apóstolo Paulo. Os filósofos gnósticos fizeram a ponte entre as tradições judaicas do Messias e o Cristo universal, arquétipo existente em todas as tradições religiosas dos povos antigos, e os doutores da Igreja se apropriaram da ideia, transformando-a numa religião universal. Daí o entendimento da Igreja de Roma, de que todas as interpretações doutrinárias contrárias á sua constituíam heresias.

Os gnósticos e a Maçonaria 

Os gnósticos acreditavam que a popularização do conhecimento obtido pela prática iniciática acabava por abastardá-lo. Por isso transmitiam a sua doutrina á pequenos grupos, e no mais das vezes, por via oral e sempre através de símbolos e alegorias. Nisso imitavam as antigas sociedades iniciáticas do Oriente, e essa tradição foi transmitida para os hermetistas, que depois deles fundaram diversas Fraternidades para conservação e transmissão dos conhecimentos que pensavam ter obtido em suas nessas práticas. 

Os gnósticos não devem ser confundidos com mágicos ou divulgadores de heresias religiosas, embora em suas práticas, apelassem constantemente para o pensamento mágico. Seus temas são naturalmente religiosos, e não o poderiam deixar de ser, dada á própria cultura no qual se inseriram. Constituíam, na verdade, grupos de livre pensadores que recusavam qualquer dogma e deduziam seus conhecimentos das grandes leis da natureza. Cultuavam o saber pelo saber, sem temores religiosos. Seu objetivo era criar uma ciência do divino, uma teosofia, cujo objetivo era a descoberta dos caminhos para a salvação do homem através do conhecimento, em oposição ao caminho da Igreja, que era o da fé, absoluta e incontestável, nas interpretações dos doutores da Igreja. 

A base da filosofia gnóstica estava em uma visão unificada do universo, onde tudo estava contido em tudo, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o que estava dentro refletia o que estava fora. A função do iniciado era a descoberta dessas realidades e unificá-las em seu espírito, atingindo assim a verdadeira iluminação que constituía, na verdade, a única salvação que o homem poderia almejar. Semelhante á pratica que hoje se observa na Maçonaria, os gnósticos dos primeiros séculos formavam comunidades calcadas na interação mestre-aprendiz, acreditando que tal processo gerava a energia necessária para alimentar a chama sagrada do conhecimento do divino (gnosis). Em função disso desprezavam o clero secular considerando-os como ”ovelhas perdidas”. Para eles, os membros do clero regular eram padres, enquanto eles se consideram monges.

Essa fórmula viria a ser utilizada mais tarde pelos Cavaleiros Templários, o que, de certa forma, contribuiu para o seu afastamento da Igreja. É possível que a transformação da Ordem dos Cavaleiros do Templo do rei /Salomão em sociedade iniciática tenha sido um dos principais motivos da sua condenação pela Igreja. Mas essa é outra história...[6]


[1] Tikun significa reordenação. A Cabala ensina que o pecado de Adão quebrou “a unidade primordial” do universo, fazendo com que a luz divina, que deveria se espalhar pelas “conchas” universais de uma forma ordenada, se dispersasse pelo vazio cósmico. Assim, o objetivo de Deus, ao escolher um povo para “discípulo” e orientador da humanidade era a recomposição dessa unidade quebrada pela queda do homem.

[2] Ver Gershom Schollen- A Cabala e seu Simbolismo- 2006. Nesses dias anteriores aos tempos históricos, os deuses eram tidos como Mestres da construção universal e os homens os seus aprendizes. O que os primeiros faziam no céu refletia sobre a terra, e o que os homens faziam na terra repercutia no céu. Por isso a responsabilidade recíproca na construção e no equilíbrio do edifício cósmico se dividia por igual entre homens e deuses. Um dia esse equilíbrio foi rompido, por isso a desordem, a desarmonia, a injustiça, o mal, enfim, entraram no universo e nele se mantém. E nele se manterá até que nós restabeleçamos esse fluxo, tornando-nos justos e perfeitos novamente. Essa é a ideia que está no cerne da doutrina maçônica.

[3] Quanto á história do assassinato de Osíris por Seth, e sua posterior ressurreição, promovida por sua irmã e esposa Ísis, essa é uma lenda bastante conhecida dos maçons. Para mais informações veja-se a nossa obra Conhecendo a Arte Real, citada. Veja-se também Edward Wallis Budge, Os Deuses Egípcios, Vol I. A propósito, essas tradições egípcias também tem correspondência entre os povos andinos, para quem o Espírito Supremo (Uira Cocha) também promovia a civilização na terra através do seu escolhido, o Inca. Os monumentais templos erguidos pelos incas para homenagear à sua divindade solar não têm outra finalidade a não ser mostrar que seus discípulos, na terra aprenderam bem a lição dos seus mestres divinos.

[4] A doutrina cristã sugere que a suposta ausência de Deus na história dos homens ocorre em virtude de Ele ter mandado a terra seu próprio filho, o qual foi o último enviado divino. Depois da vinda de Jesus, Deus não precisou falar mais com os homens face a face, pois toda comunicação entre o céu e a terra seria feita pela Igreja que ele fundou. Esses postulados encontrariam fundamento nas palavras de Jesus “ Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, 4;3) e “ Tudo que ligares na terra, eu ligarei também no céu” ( Mateus 16,17, ). 

[5] Friedrich Nietzsche- Assim Falava Zaratustra, Ed Hemus, São.Paulo,1979, sustenta que as religiões reveladas (Judaísmo,Cristianismo, Islamismo), destruiram a verdadeira religião, ( as antigas religiões solares) substtuindo-as.por uma farsa ideológica, representada por um Deus cruel e injusto. 

[6] Veja-se a nossa obra, Conhecendo a Arte Real, citado. Veja-se também Sarane Alendrian, op citado. . Sobre a saga dos Templários e a sua face oculta, veja-se o interessante trabalho de Baigent, Leigh e Lincol, The Holly Blood and The Holly Grail, Ed. MacGraw Hill, Londres, 1986.
João Anatalino