quinta-feira, 12 de outubro de 2017

OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XXIX

O CERVO DE FONTAINEBLEAU


João Anatalino Rodrigues

Estava-se em meados do mês de novembro de 1314. As mortes de Clemente V e Guilherme de Nogaret, dado o constrangimento que trouxeram por causa do clima de mistério que as envolviam, ainda não haviam sido esquecidas. A maldição lançada por Jacques de Molay sobre ele e sua família não saia da cabeça do rei e de alguns membros de sua corte. Um dos mais preocupados com esse assunto era o camareiro-mor do rei, o conde Hugues de Bouville, homem de fidelidade canina, que servia a família de Filipe desde os tempos do santo rei Luís IX, avô de Filipe, o Belo. 

– Vossa Majestade não deveria sair para a caça hoje. As primeiras neves começaram a cair e a floresta se torna perigosa para cavalgar – disse ele.

– Ah! meu caro Messire Bouville ─ disse o rei. ─ Agradeço vossa preocupação. Mas nada há de me tirar o prazer da caça. Bem sabeis que este foi um ano difícil. Só tivemos problemas e mais problemas. Mas agora que os assuntos do reino parecem estar entrando numa fase mais propícia, creio que estou a merecer esta trégua de espírito. Não concordais? – perguntou o rei, com uma alegre disposição que não era de seu feitio.

– Decerto, Majestade – concordou Hugues de Bouville. – Posso imaginar a vossa preocupação com todos os problemas que tivestes neste ano. Esse assunto das vossas noras, esse processo dos Templários, a morte do Santo Padre e de Messire Nogaret...

A sombra que passou pelo rosto do rei á menção desses assuntos não escapou aos olhos sempre astutos de Bouville.

– Vejo que esses assuntos ainda vos preocupam, Majestade – disse o camareiro. – Em que pensais? Ainda estais preocupados com a morte de Messire Nogaret e do papa Clemente? Achais que tem algo a ver com essa superstição dos Templários?

– Eu não seria digno de ser o rei da França se acreditasse em tais superstições – meu caro Bouville. – Não temo os demônios, mas não posso descuidar de quem os invoca. Não tenho medo de feitiços, mas sei que os feiticeiros podem causar danos. Não são as forças do inferno que causam dano ás pessoas, mas sim as pessoas que invocam os demônios para poder por a culpa neles de suas fraquezas e maldades. As pessoas, meu caro Bouville – disse o rei, com um olhar distante –. as pessoas são o único e verdadeiro mal neste mundo.

– Então credes que o Santo Padre e Messire Nogaret morreram de morte natural e não atingidos por alguma força sobrenatural, invocada pelos Templários, ou por alguma ação criminosa a mando deles como se diz por aí? – perguntou Bouville.

─ O que creio, Messire Bouville, é que Deus tem suas formas de fazer as coisas e nem sempre elas combinam com as nossas – disse o rei, com olhos distantes, como se estivesse perdido em suas memórias. Eu pensei estar realizando a obra de Deus combatendo os males da Igreja e as ofensas á nossa fé, mas não sei se realmente agi corretamente...

Bouville viu nessa última frase do rei uma ponta de arrependimento, quiçá de dúvida, por alguma decisão equivocada que ele tivesse tomado em relação a alguns dos assuntos que haviam sido levantados na conversa.

– Tudo que Vossa Majestade fez foi no interesse do vosso reino e do vosso povo. Nada tendes do que se arrepender, Majestade – disse Bouville.

O rei se voltou para o camareiro como se este tivesse falado uma bobagem. 

– Que dizeis, Messire Bouville? Arrependido de que? Ah! sim. Arrependo-me de não ter feito algumas coisas, como por exemplo, não ter invadido ainda aquele ninho de serpentes que está reunido em Lyon para eleger o novo papa. Já faz mais de seis meses que Clemente V morreu e até agora não temos um novo Pontífice – disse Filipe, como se tivesse voltado ao próprio corpo.

– Talvez devêsseis fazer valer a vossa vontade de uma forma mais explícita, Majestade. Como fizestes por ocasião da eleição do Arcebispo Bertrand du Goth – disse Bouville, satisfeito pelo fato de o rei ter voltado a um assunto no qual ele podia dar palpites.

– Um rei não deve interferir pessoalmente nos assuntos eclesiásticos, por mais interesse que tenha neles – disse Filipe, com certo sarcasmo. – Todavia – continuou, voltando á postura meditativa que tinha assumido no momento anterior – os nossos cardeais já deviam ter resolvido esse impasse, pois sabem exatamente o que devem fazer.

– A ação que empreendestes para evitar a eleição do cardeal Duéze já deveria ter feito os bispos compreenderem o que realmente desejais desse conclave, não é, Majestade? – perguntou Bouville. 

Ele estava se referindo á invasão que Bernard Du Goth e Guilherme de Budos, sobrinhos do finado papa Clemente V, á testa de uma tropa de soldados gascões, haviam feito ao convento onde se realizava o conclave para a eleição do novo papa. Essa invasão tinha sido ordenada pelo próprio Filipe porque ele não queria a eleição do cardeal Jacques Duéze, bispo de Avignon e ex- secretário de Clemente V, pois este era apoiado pela grande maioria dos cardeais italianos. O temor do rei era que Duéze levasse de volta a sede do papado para Roma. A eleição desse bispo era dada como certa, por isso Filipe orquestrou essa intervenção como sendo feita pelos inimigos do próprio cardeal, dentro da Igreja. O fato de ter sido comandada pelos sobrinhos do papa anterior fez com que o incidente fosse atribuído ás intrigas do próprio colegiado de cardeais, onde a disputa entre os bispos franceses, italianos e alemães pela mitra papal era acirrada. Mas poucas pessoas duvidavam que Filipe, o Belo, estivesse por trás daquela desastrada ação, que fez com que a cristandade ficasse sem comandante durante mais de dois anos.

– Esse é o problema, meu caro Bouville. Esse é o problema – repetiu o rei. – Agora, sabe Deus quando esses patifes vão se entender para eleger o novo papa. 

– Entendo a vossa preocupação, Majestade. Pois agora não há mais um conclave para eleger um papa, mas vários conclaves itinerantes, que podem eleger mais de um Pontífice – disse Bouville. 

– Pois é isso, Messire Bouville. Entendeste bem a questão. Mas deixemos esse assunto aborrecido por ora, pois agora o que quero mesmo é esquecer tudo isso e sair á caça do meu cervo –rematou o rei, pegando sua capa e deixando o aposento.

Os campos estavam esbranquiçados e um vento frio soprava sobre as árvores, derrubando a fina camada de neve que se acumulara sobre seus galhos. O séquito do rei avançava a galope pelo espesso bosque de carvalhos, espécie que constituía a maioria das árvores da floresta de Point-Saint-Maxence. Á sua frente a matilha de perdigueiros, com sua infernal algazarra de latidos, pressentindo a presença iminente da caça, avançava como uma horda de demônios famintos á procura da sua presa. A intuição dos cães estava no seu olfato. Eles sentiam o cheiro da caça mesmo antes de ela surgir ante seus olhos. 

De repente a trompa do chefe dos caçadores se fez ouvir. Eles haviam localizado a manada de cervos. Os cães foram soltos de suas coleiras e começaram a correr e a latir. O barulho dos cascos dos cavalos ressoou no ar frio da floresta. A caçada começara. 

A arisca manada de cervos ouvira o soar da corneta. Orelhas desconfiadas haviam sido erguidas para receber aquele som que eles já conheciam desde os primeiros momentos de suas vidas. Sabiam o que significava. Em seguida veio o latido dos cães. Então a debandada. 

Normalmente, a caçada não tinha como mira o abate de muitos animais. Era mais um esporte do que uma atividade econômica. Não se procurava matar um cervo para fins de alimentação. Por isso, os cães eram treinados para isolar um dos animais do rebanho e persegui-lo até que o bicho fosse confinado em um lugar de onde não pudesse fugir. Assim podia ser abatido pelo caçador em uma luta corpo a corpo Isso geralmente acontecia quando o animal se cansava, ou quando era encurralado num lugar sem saída. 

Os cães haviam selecionado um belo exemplar. Era um animal altivo e forte, que parecia ser o líder do bando. Tinha uma linda e vistosa galhada, que se assemelhava á uma árvore descarnada pelo inverno. Uma coroa digna de um rei. Correndo, era uma bela massa negra que se deslocava célere em meio á paisagem branca. Um magnífico espetáculo. Os cães, latindo como loucos, se puseram a correr atrás daquele bólido, que ziguezagueava entre as árvores, como se conhecesse todas e soubesse exatamente onde estava cada uma delas. Um animal como aqueles jamais seria alcançado pelos cães. Mas, de repente, sem nenhuma explicação, ele parou e ficou á espera. Ergueu, orgulhosamente, a cabeça coroada com as magníficas galhadas e olhou desafiadoramente para a matilha de cães que se aproximava. Resfolegando, bafejando no ar pequenas nuvens brancas que pareciam flocos de algodão, escavando o chão com os cascos, com a galhada pronta para agredir quem quer que invadisse seu espaço vital, ele parecia esperar. 

Os cães chegaram e fizeram uma parede em frente a ele. Latindo loucamente, ficaram cercando o animal, numa espécie de barreira que o deixava completamente sem meios de fuga. Atrás dele havia um alto barranco. 

– Aí está ele, Majestade. É todo vosso – disse o chefe dos caçadores. 

– Por Deus que é um belo animal – disse Filipe. 

– Por certo é digno de um rei – respondeu o chefe dos caçadores. 

O rei da França e o líder da manada estavam frente a frente. O rei sacou a sua espada curta. Pretendia fazer daquilo um combate particular. O cervo ergueu a vistosa galhada como um adversário que aceitava o desafio que lhe estava sendo feito. 

O rei olhou para o animal e o animal olhou para o rei. Algo, em seu inconsciente, lhe deu a impressão que, na testa do cervo havia uma cruz pintada em negro. Foi lá que ele mirou a ponta da sua espada.

– Então é assim, Jacques de Molay? – murmurou uma voz, vinda do fundo do seu inconsciente. 

─ Que seja, respondeu ele, sem se dar conta do inusitado daqueles pensamentos que, espontaneamente, lhe vinham á tona. 

– Que seja! ─ gritou o rei. E arremeteu-se contra o cervo, espada em punho.

O animal percebeu o movimento e deu um salto para a direita. Em seguida saiu em desabalada carreira. Furou a fila de cavalos e cães que o emparedavam contra o barranco e continuou correndo, célere, pelo campo esbranquiçado que se estendia á sua frente. Filipe, surpreso pelo movimento do animal, tentou refrear o cavalo. Mas este empinou e o jogou no chão. O cervo escapou e ninguém pensou em ir atrás dele. Ao contrário, todos correram de encontro ao rei, para socorrê-lo. Só os cães, em resposta á própria natureza, saíram, ladrando como demônios, em perseguição ao animal. Mas este, logo que atingiu o topo de uma pequena colina, parou e ficou a espera, como se pretendesse enfrentar a matilha. Esta, a poucos metros do animal, parou e silenciou. Depois, um a um, os cães voltaram sobre seus passos, como se tudo aquilo não os interessasse mais. O cervo ergueu a galhada com majestática postura e resfolegou, as narinas soltando no ar uma espessa nuvem de fumaça esbranquiçada. Depois, como uma mancha negra que se apaga com uma borracha, desapareceu em meio das árvores cobertas pela neve. 



A imobilidade do rei preocupava os membros do seu séquito. Foi Hugues de Bouville que logo percebeu a gravidade do acidente. 

– Não toquem no rei – gritou ele. Arrumem uma maca para levá-lo até Clermont – disse ele.

Uma dúzia de galhos de árvores foram cortados e amarrados com cordas para improvisar uma maca. Depois, atada a um cavalo, ele foi arrastado até Clermont, onde uma equipe de médicos, avisada de antemão por um cavaleiro que havia galopado na frente, estava prestes para examiná-lo. Logo se viu que não era um caso para sangrias nem para aplicação de beberagens. O rei, simplesmente havia fraturado a coluna cervical. Em consequência, perdera todos os movimentos do corpo, do pescoço para baixo. 

Colocado num leito, foi levado para o castelo de Fontainebleau, onde nascera. Foi parte do seu último desejo. Sair da vida no mesmo lugar em que viera ao mundo. 

Filipe, o Belo, ainda viveu dez dias após o acidente. Teve tempo de ditar seu testamento e passar a coroa para seu filho mais velho, Luís, “o Cabeçudo”, também conhecido como “Turbulento”.

Morreu em 29 de novembro de 1314, pouco mais de oito meses depois de Jacques de Molay e Geoffroy de Charney serem queimados na Ilha dos Judeus. Coincidência ou não, o sinistro vaticínio que o Grão-Mestre do Templo lançara sobre os três principais responsáveis pela destruição daquela Irmandade havia sido cumprido. Em menos de um ano todos eles tinham sido chamados á presença de Deus, para responderem pelos seus atos. 

As chamas da fogueira que havia sido erguida na Ilha dos Judeus, oito meses antes, ainda estavam fazendo suas vítimas. 





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