sábado, 15 de outubro de 2016


O Real Segredo na América antes de 1801

por Brent Morris, 33°, Grã-Cruz

Tradução: S.K.Jerez

Trinta e um de maio de 1801 é a data mais significativa na história dos altos graus da Maçonaria nos Estados Unidos. Naquele dia, o Supremo Conselho Mãe do Mundo foi aberto por John Mitchell e Frederick Dalcho em Charleston, Carolina do Sul, e no decorrer do ano “todo o número de Grandes Inspetores Gerais foi completado agradavelmente com as Grandes Constituições”. Por este ato, a Ordem do Real Segredo, de vinte e cinco graus (muitas vezes chamado de Rito de Perfeição) foi transformada no Rito Escocês Antigo e Aceito, de trinta e três graus.

Antes da criação do Supremo Conselho Mãe, os altos graus foram espalhados por meio de um sistema inconsistente de inspetores, cada um dos quais poderia nomear também um número ilimitado de inspetores, com autoridade ilimitada. Os registros são escassos, mas dois inspetores parecem ter vindo trabalhar no hemisfério ocidental antes de 1761: “Lamolere de Feuillas, feito adjunto antes de 1750, na França, e Bertrand Berthomieu, feito adjunto por Feuillas, em 1753, nas Índias Ocidentais.” Não se sabe se Feuillas ou Berthomieu nomearam novos inspetores.

Em 1761, Etienne Morin recebeu uma patente em Paris que o autorizava a propagar o Rito em todo o mundo. Ele chegou na Jamaica em 1762 ou 1763 e logo nomeou seis inspetores gerais, incluindo Henry Andrew Francken, como Inspetor Geral Adjunto. Francken por sua vez, estabeleceu uma Loja de Perfeição em Albany, Nova York, em 1767, e estabeleceu seis outros adjuntos da Inspeção Geral. Ele também preparou pelo menos três livros com os rituais traduzidos para o inglês. No fim, cinquenta e dois inspetores eram herdeiros de Francken e, no total, pelo menos setenta e cinco inspetores foram nomeados na América antes de 1801.

Os inspetores e os Adjuntos fizeram mais do que apenas reproduzir-se; conferiram os graus inefáveis (4°-14°) e Sublimes (15° e acima) para Mestres Maçons e, ocasionalmente, estabeleceram corpos. Novamente, os registros são escassos, mas pelo menos os oito corpos abaixo relacionados foram estabelecidos antes de 1801:
1764 – Loge de Parfaits d’Écosse, New Orleans, Louisiana;
1767 – The Ineffable Lodge of Perfection, Albany, New York;
1781 – Lodge of Perfection, Filadélfia, Pensilvânia;
1783 – Lodge of Perfection, Charleston, Carolina do Sul;
1788 – Grand Council, Princes of Jerusalem, Charleston, Carolina do Sul;
1791 – King Solomon’s Lodge of Perfection, Holmes’ Hole (agora Tisbury), ilha de Martha Vineyard, Massachusetts;
1792 – Lodge of Perfection, Baltimore, Maryland;
1797 – Sublime Grand Council, Princes of the Royal Secret, Charleston, Carolina do Sul.

Estes fatos básicos da atividade de altos graus antes da criação do Supremo Conselho são bem conhecidos e têm sido repetidos em muitos lugares. O que eles não conseguem fazer é nos informar como os altos graus atraíram maçons americanos, como os inspetores espalharam os graus e como os corpos operavam. As respostas a estas perguntas nos ajudam a compreender a aceitação do Supremo Conselho Mãe.


Os atrativos dos Altos Graus para os maçons americanos

Por volta de 1730, os Graus do Ofício (Craft) ou Azuis[i] já estavam sendo conferidos na América. Vinte e três anos depois, em dezembro de 1753, a Loja Fredericksburg, na Virginia, registrou quando, pela primeira vez, foi conferido o Grau do Real Arco. Os Mestres Maçons americanos logo perceberam que não tinham recebido todo o relato da Palavra do Mestre e que o Real Arco era necessário para completar a história. A Maçonaria do Real Arco tornou-se popular à medida que mais maçons procuravam completar seu conhecimento maçônico. A constante propagação do Real Arco foi auxiliada pelo domínio crescente, na América, das lojas Antigas que conferiam o grau sob a autoridade de seus mandados de Ofício. Pelo menos cinco capítulos independentes de lojas foram criados em torno de 1794, o Grande Capítulo da Pensilvânia foi instituído em 1795 e o Grande Capítulo Geral dos Estados da Nova Inglaterra foi formado em 1796. O grau de Cavaleiro Templário foi conferido pela primeira vez em 1769 e há evidências esporádicas da respectiva ordem até 1796, quando o primeiro Acampamento (agora Comanderia[ii]) foi formado em Connecticut. Os dez graus e ordens do que veio a ser conhecido como o “Rito de York” americano foram resumidos e receberam ampla publicidade no Freemason’s Monitor; or, Illustrations of Masonry (1797) de Thomas Smith Webb.

Os maçons americanos buscavam entusiasticamente mais luz na Maçonaria, mas como a Ordem do Real Segredo era de origem francesa e não tinha nenhuma tradição em lojas inglesas, estes altos graus eram pouco conhecidos. Suas cerimônias devem ter parecido sedutores rumores, provenientes de lojas não-inglesas remotas ou de viagens de conferencistas maçônicos. O conhecimento fragmentário da Maçonaria Sublime era auxiliado por tentadoras menções ocasionais em livros maçônicos.

O primeiro livro americano sobre Maçonaria foi a reimpressão das Constituições dos Maçons Livres, de Anderson, em 1734, por Benjamin Franklin. E 626 volumes tratando sobre Maçonaria foram publicados na América até 1800; dez deles tratavam de precursores do Rito Escocês. Para o estudante de Maçonaria interessado, esses dez livros forneciam indícios da existência de conhecimentos que iam além dos que eram encontrados em lojas de origem inglesa. Eram eles:

1787 – The Memorial of Lodge, No. 40, on the Registry of Pennsylvania, to the Right Worshipful Grand Lodge

Este panfleto de dez páginas é uma queixa de que a Grande Loja dos Antigos Maçons de York da Carolina do Sul (a Grande Loja dos Antigos) teria sido formada de modo irregular. No entanto, a página 5 dá pistas intrigantes de uma forma de maçonaria diferente da praticada na Inglaterra. “O Irmão Joseph Myers, Jr. era então, e ainda é (sob a jurisdição do último monarca prussiano) um Inspetor Geral e Grão-Mestre de e sobre os Graus Inefáveis da Maçonaria. O segundo, irmão James Fallon, é, e era, um Past-Master regular … empossado e instalado em uma … Loja de Inefáveis Maçons na Filadélfia, em uma comissão regular. …”

1797 – [Charles Louis Cadet de Gassicourt], The Tomb of James Molai.

Esta é uma tradução de 22 páginas do original francês de 1796. A página 8 explica que Jacques de Molay estabeleceu quatro capítulos com vinte e sete membros cada um, que têm privilégios especiais em lojas maçônicas: “Quando eles entram em uma Loja têm o direito exclusivo de cruzar no meio do tapete que fica em frente do trono. Todos os maçons de Lojas ignoram quem eles são”.

1797 – Thomas Smith Webb, The Freemason’s Monitor; or, Illustrations of Masonry.

Este foi o primeiro “monitor” americano de graus maçônicos, trazendo orações, responsabilidades e trechos não-secretos do ritual. Foi amplamente distribuído, traduzido para o espanhol, e passou por várias edições antes da morte de Webb. A parte II deste livro, nas páginas 227-66, contém as descrições dos onze graus de uma Loja de Perfeição, incluindo informações sobre quem substituiu Hiram Abiff no templo do rei Salomão, como os malfeitores foram tratados, e como a palavra perdida foi recuperada. O monitor de Webb foi extremamente influente na criação e divulgação do ritual “americano padrão”. Sua ampla popularidade deve ter atraído a curiosa atenção de muitos maçons americanos para os graus sublimes.

1798 – John Robison, Proofs of a Conspiracy against All the Religions and Governments of Europe.

Esta é a primeira edição americana deste livro influente, que criou histeria com a ideia de que os Illuminati estavam secretamente infiltrados nos governos do mundo e, possivelmente, no da América. Na página 384, Robison faz comentários sobre rituais de Cavaleiro do Sol e Cavaleiro Rosa Cruz, do Abbé Barruel. Aqui está outro exemplo de referências tentadoras sobre graus maçônicos desconhecidos para a maioria dos maçons americanos.

1798 – John Robison, Proofs of a Conspiracy. The second American edition.
1799 – Augustin de Barruel, Memoirs, Illustrating the History of Jacobinisn, Vol. I.

Como havia três impressões separadas para os quatro volumes, Walgren atribui a cada uma delas uma entrada separada em sua bibliografia. Há mais sugestões provocantes de forças invisíveis na Maçonaria: “lojas ocultas” (que Barruel denominava de “arrieres loges“)

1799 – Augustin de Barruel, Memoirs, Illustrating the History of Jacobinisn, Vol. II.

O leitor pode encontrar descrições do grau do Eleito (página 161), Cavaleiro do Sol (página 163n), graus mais elevados da Maçonaria escocesa (páginas 163-68), grau de Rosa Cruz (páginas 168-72), Maçonaria Mística (páginas 172-74) e Cavaleiro Kadosh (páginas 174-75).

1799 – Augustin de Barruel, Memoirs, Illustrating the History of Jacobinisn, Vol. III.

Este volume trata especificamente com graus de Iluminismo de Weishaput, mas, para o leitor Maçônico em geral, ele aponta para graus mais continentais, desconhecidos pelas lojas inglesas.

1799 – Augustin de Barruel, Memoirs, Illustrating the History of Jacobinisn, Vol.IV.

Outras referências aos graus continentais: Irmãos Africanos, Cavaleiros da Águia, o Adepto, o Sublime Filósofo (página 81); Cavaleiros da Palestina, Cavaleiros Kadosh, Diretório Escocês (páginas 97-100); Arquiteto Escocês (página 328).

1800 – Robert Griffith Wetmore, A Feeble Attempt to Promote the Felicity of Campbell’s Mark Master’s Lodge in Duanesburgh [,New York].

Na página 6, Wetmore diz: “Quando me tornei próximo a você, eu estava na posse de trinta graus na Maçonaria (incluindo aqueles denominados inefáveis) e, portanto, me considerava como tendo chegado ao ne plus ultra. …”

O Webb’s Freemason’s Monitor foi o primeiro guia oficial a trabalhar os dez graus e ordens de rito de York americano: Ofício [Craft] (três graus), Real Arco (quatro graus), e Cavaleiros Templários (três ordens). Ele também dava informações emocionantes sobre um tipo exótico de Maçonaria conhecido por alguns maçons americanos, e deve ter gerado grande curiosidade entre os seus leitores. O ambiente de uma loja americana típica era simplesmente decorado com colunas, no Ocidente, um altar no centro e um “G” iluminado, no Oriente. Compare essa austeridade com a descrição pródiga que Webb dá para apenas um dos Graus Inefáveis:

Observações sobre o Grau de Preboste e Juiz

Esta loja é decorada com vermelho, e iluminada por cinco grandes luzes; uma em cada canto e uma no centro. O mestre é colocado no Oriente, sob um dossel azul, cercado com estrelas, e é denomado [sic], Três Vezes Ilustre.

O Venerável Mestre de um Ofício americano ou Loja Azul usava suas roupas habituais com uma fita em volta do pescoço da qual pendia um quadrado. O avental era provavelmente feito em casa e decorado por sua esposa, irmã ou mãe. Há muitas imagens de George Washington e Benjamin Franklin em tal vestimenta simples, mas digna. Novamente compare a descrição que Webb dá para o traje de luxo do presidente do “Grau de Cavaleiros do Nono Arco, ou Real Arco:

O mais poderoso grão-mestre, representando Salomão, no Oriente, [está] sentado em um trono, sob um rico dossel, com uma coroa em sua cabeça, e um cetro na mão. Ele está vestido com vestes reais amarelas, e um paramento de cetim azul guarnecido de arminho, atingindo o nível dos cotovelos; uma ampla fita roxa do ombro direito até o quadril esquerdo, à qual é pendurado um triângulo de ouro.

Depois de ter sido atraído desde a década de 1760 com alusões e insinuações da existência de graus maçônicos misteriosos que preservavam a história completa da Arte, os maçons americanos receberam informações claras em 1802. O Supremo Conselho Mãe publicou a sua Circular Para os Dois Hemisférios, anunciando-se e explicando os graus sob seu controle. A Circular pode ser vista como um catálogo de vendas maravilhosamente escrito, seduzindo candidatos a se filiarem, ao explicar por que os Graus Inefáveis e Sublimes são necessários para compreender plenamente a Maçonaria. Ela dava muitos exemplos do por que os Altos Graus são tanto superiores quanto essenciais:
O Conselho Supremo sozinho é governado com documentos historicamente corretos.

Grande parte da história da Maçonaria nos primeiros tempos é tão misturado com fábulas e envolvido com a ferrugem do tempo que pouca satisfação pode ser obtida; mas quando nos aproximamos mais de nossos próprios tempos temos registros autênticos para nosso governo.
Os três primeiros graus são apenas uma preparação para os graus mais elevados.

[Os três primeiros, ou Graus Azuis] foram conferidos como o teste do caráter e capacidade dos iniciados, antes que eles devam ser admitidos ao conhecimento dos mistérios mais importantes.
A verdadeira Palavra do Mestre foi perdida para os Graus Azuis com a morte de Hiram Abiff, mas os Graus Inefáveis e Sublimes ainda a possuem.

É bem conhecido do Mestre Azul que o rei Salomão e seu visitante Real estavam de posse da palavra verdadeira e pura, mas da qual ele deve permanecer na ignorância, a não ser que seja iniciado nos graus sublimes.
Os Graus Inefáveis e Sublimes preservaram suas cerimônias incólumes.

Muita variedade e irregularidade, infelizmente, penetrou nos graus Azuis em consequência de … aqueles que não estão familiarizados com o idioma hebraico, no qual todas as palavras e palavras-de-passe são dadas… Não é assim nos graus superiores, onde elas aparecem naquela Sublime vestimenta que seus fundadores lhes deram. …
Os Graus Inefáveis e Sublimes continuam a tradição dos cruzados e baseiam seus graus em registros autênticos descobertos na Palestina.

Enquanto [27.000 maçons que acompanhavam os príncipes cristãos nas Cruzadas estiveram] na Palestina, eles descobriram vários manuscritos maçônicos importantes entre os descendentes dos antigos judeus, que enriqueceram nossos arquivos com registros escritos autênticos sobre os quais alguns dos nossos graus estão fundamentados.

Desde a introdução do Real Arco, em 1753, até a Circular Para os Dois Hemisférios, em 1802, os maçons americanos tinham sido avisados, direta e indiretamente, que os graus do Ofício não contam toda a história da Maçonaria. Nem todo maçom era induzido a perseguir a luz, mas, para aqueles que eram, deve ter sido um desafio saber quando parar. Insinuações sobre revelações adicionais, talvez o ne plus ultra[iii] – poderiam vir com o próximo visitante chegado do exterior, na mais recente publicação ou nas mãos de um palestrante maçônico itinerante.

A propagação do Altos Graus por conferencistas maçônicos

A Maçonaria veio para os Estados Unidos proveniente de muitas fontes e de variadas formas. As primeiras lojas tiveram pouca orientação para seus rituais e cerimônias, provavelmente contando com doses iguais de tradição oral e exposições[iv]impressas. Quatro exposições rituais foram publicadas na América antes de 1801, todas cópias de originais ingleses: The Mystery of Free-Masonry (1730); Masonry Dissected (1749-1750); Hiram: Or the Grand Master-Key (1768); Jachin e Boaz (1774-1801). “Antes da publicação da obra de Morgan, [Illustrations of Masonry by one of the fraternity (1826)], [Jachin and Boaz] foi a exposição mais importante publicada em solo americano e muito auxiliou a uniformidade ritual.” Embora houvesse, sem dúvida, outras exposições importadas disponíveis, foi Jachin and Boaz, com o seu trabalho Antigo, a que mais influenciou o ritual americano. Ela passou por dez edições americanas antes de 1801, enquanto as outras três exposições americanas não foram reimpressas. Podemos inferir, a partir de sua popularidade, queJachin and Boaz foi amplamente utilizada, ainda que informalmente, por lojas americanas, como guia para seus rituais.

A natureza abomina o vácuo, e no vácuo do ritual maçônico americano apareceram conferencistas maçônicos itinerantes. Esses empreendedores exclusivamente americanos viajaram o país ensinando trabalhos uniformes dos três graus do Ofício, dos quatro graus do sistema do Real Arco americano (Mestre Maçom da Marca, Past Master, Mais Excelente Mestre e Real Arco), e graus “secundários”. O grande unificador do ritual americano foi Thomas Smith Webb, que é conhecido por ter usado Jachin and Boaz para ensinar seus alunos. Webb formalizou as cerimônias contidas em Jachin and Boaz, ajustando o idioma ao vernáculo americano e preenchendo as lacunas procedimentais. Ele estendeu a linguagem e as formas de sua obra do Ofício para o Real Arco e ensinou e certificou outros conferencistas. Em 1797, Webb publicou o The Freemason’s Monitor, que era uma ferramenta de ensino que ajudava a consolidar a codificação de seu ritual. Como observado antes, ele também deve ter despertado o interesse nos altos graus.

Pouco se sabe sobre as práticas comerciais dos conferencistas maçônicos, mas podemos fazer algumas inferências razoáveis com base no registro de 1782-1808 de Abraão Jacobs e no diário de Jeremy Ladd Cross, de 1817-1820. Se assumirmos que cada inspetor da Ordem do Real Segredo era um conferencista itinerante de algum tipo, então talvez um total desses 100 a 150 vendedores ambulantes ofereciam seus serviços para corpos maçônicos e maçons individuais. Além de “palestras” sobre o Ofício e Graus do Real Arco (o que significava ensinar de memória o ritual e os trabalhos de solo), estes docentes venderam ou deram graus laterais para os seus clientes e licenciaram vários corpos sob a sua autoridade.

O diário de Jeremy Cross nos dá uma boa ideia sobre o negócio de um conferencista bem-sucedido. Embora suas entradas de diário sejam de 1817-1820, as finanças não poderiam ter sido muito diferentes no período anterior a 1801. Sua taxa para lecionar por um dia, em 1817, parece ter sido de US$4, cerca de US$55 em 2003, e ele estabeleceu Conselhos de Mestres Selecionados por US$20, cerca de US$275 hoje. Tornou-se conferencista maçônico em 1814, mas em 1818 ainda estava em débito e com a esperança de se estabelecer. Em 17 de agosto de 1817, ele começou a partir de Haverhill, New Hampshire, viajando de diligência e barco, e chegou em Richmond, Virginia, em 4 de dezembro: uma viagem de 635 milhas. Muitas vezes ele ficava com os maçons e regularmente jantava com eles, mesmo quando ficava em um hotel. Durante a viagem de dezessete-semanas a Richmond, ele estabeleceu pelo menos seis Conselhos de Mestres Selecionados (US$120) e passou uns 29 dias ensinando nas Lojas e Capítulos ($116). Sua renda total para a viagem até Richmond foi cerca de US$236.

Para que se tenha uma estimativa muito grosseira de suas despesas, note-se que durante a sua estada em Washington, DC, ele pagou US $ 8,75 por 3 1/2 dias de quarto e refeições no Thomas Crafford Union Hotel, ou seja, US$ 2,50 por dia. O custo de hospedagem em cidades menores deve ter sido menor, digamos, cerca de US$1,50 por dia. Se ele usou hotéis ou bares entre metade e dois terços de sua viagem e ficou com irmãos no resto do tempo, então gastou cerca de US$90 em hospedagem, quase metade de sua renda. No momento em que se adiciona seu transporte e despesas diversas, é fácil ver porque após quatro anos de palestras ele ainda tinha dívidas.

Seu diário é impreciso sobre o número de Conselhos criados, dias de palestras pagos, e suas taxas, mas ainda podemos ter uma ideia de suas economias na sua viagem de 1.817 de New Hampshire para a Virgínia, olhando para suas entradas no diário entre 9 e 16 de outubro de 1817, oito dias particularmente atarefados para ele.

Diário de J. L. Cruz de 9-16 outubro, 1817 Comentários
Dia 9. Às 04h00 peguei meu lugar na diligência e por volta das 8h00 cheguei em Lantwecks Bridge, uma pequena aldeia ao sul de New Castle, [Delaware] parei em uma pequena Taverna. … Conheci os irmãos na véspera e dei uma palestra . • US$4 por palestra


Dia 10. Passei o dia com o Maj. Moody olhando a pequena, mas agradável, aldeia. Passei a noite em sua casa … e voltei [para a Taverna e] mantive algumas outras conversas com os irmãos e recebi o meu centavo. O “outras conversas com os irmãos” pode significar palestras, e “recebi meu centavo” significa que ele foi pago.


• US$4 por palestra?
Recebido: US$8 por palestras de 9 e 10 de outubro


Dia 11. Depois do almoço eu parti para Dover, [Delaware] … e cheguei em Dover por volta das 14h00. Logo tornei-me familiarizado com o Hon. William Hall. … Lecionei para os Companheiros ao anoitecer . • US$4 por palestra
Dia 12. Domingo. …



Cross observava fielmente os sábados e não realizou nenhum trabalho no dia.
Dia 13. Passei o dia na maior parte com o Ir. Hall. Na véspera eu conheci os Companheiros. Exibi trabalho no Capítulo e estabeleci um Conselho de Mestres Selecionados. Estas poderiam ser instruções particulares para o Ir. Hall.


• US$4 por palestra
• US$20 por um Conselho de Mestres Selecionados.
Dia 14. Passei o dia com o irmão. Hall e o anoitecer com os Companheiros.

Esta poderiam ser mais instruções particulares para o Ir. Hall.

• US$4 por palestra?
Dia 15. … Dei algumas instruções sobre disposições etc etc

Encomendei US $ 20 em provisões indica que ele provavelmente ficou em uma taverna.
Dia 16. Terminei com os Companheiros e recebi o meu pagamento, tive um jantar com [Dr.] Naudim e por volta das 14h00 peguei a diligência e rumei para Milford, [Delaware] onde eu [cheguei] no pôr do sol. Parei no Mr. Godwin Hotel. Recebido: US$32 para dar palestras em 11, 13 e 14 de outubro e para estabelecer o Conselho de Mestres Selecionados em 13 de Outubro

O preço diário de US$4 por palestra parece ter sido a taxa aceita. A Grande Loja de Massachusetts, em 22 de Julho de 1805, designou Benjamin Gleason como Grande Conferencista e, após um ano lecionando para as lojas de Massachusetts recebeu US $ 1.000 ou cerca de $ 15.600 em 2003. Se Gleason palestrasse cerca de vinte e um dias por mês, receberia sobre a mesma remuneração por palestra que Cross.

A sorte de Cross como conferencista melhorou significativamente em maio de 1818 quando a Grande Loja de Connecticut o nomeou “Grande Conferencista, para visitar as vários Lojas nesta jurisdição, e instruí-los no modo correto de trabalhar e palestrar; e que cada Loja subordinada seja chamada a pagar à Tesouraria da Grande Loja a soma de dez dólares, quando – ou próximo – da Grande Comunicação, com a finalidade de custear a despesa de tal visita. “Além disso,” cada Loja pagará ao Irmão Cross” despesas quando efetivamente utilizado por tal Loja para dar palestras e instruções; e nenhuma Loja será obrigada a pagar esta soma de dez dólares, a menos que primeiro tenham tido o benefício das referidas palestras pelo menos dois dias e meio.”. Cross estava agora cobrando os US$ 4 “padrão” por dia, mais despesas, e tinha mais ou menos garantido o emprego em cada uma das lojas de Connecticut. Em 1818, havia cerca de cinquenta e oito lojas em Connecticut, o que geraria cerca de US $ 580 / $ 9048 em taxas de palestras; ele também instituiu uma dúzia de Conselhos de Mestres Selecionados por outros US$240 / $3,744. Outro impulso para a sua prosperidade veio em 1819, quando ele publicou The True Masonic Chart or Hieroglyphic Monitor. Este livro popular passou por oito edições em 1850 e foi seguido por The Templar’s Chart or Hieroglyphic Monitor, em 1820 (duas edições em 1850) e por um negócio de venda de aventais gravados e outros suprimentos maçônicos.

Abraham Jacobs não parece ter lecionado nos graus do ofício, nem o seu registro indicam quais eram seus honorários. No entanto, sabemos que Cross e Gleason recebiam US$4 por dia para instruir nos sete graus do Ofício e Real Arco por volta dessa mesma época e que Cross recebia US$20 para estabelecer um Conselho de Mestres Selecionados, conferindo apenas um grau. Além disso, em 1806, Antoine Bideaud, do Supremo Conselho Sulista, conferia os graus de 4 a 32 em Nova York, para J.J.J. Gourgas e outros quatro por US$46, ou cerca de US$1,50 por grau. Assim, não é razoável supor que Jacobs recebesse US$10-20 por indivíduo quando conferia os treze graus da Loja de Perfeição e do Conselho de Príncipes de Jerusalém, talvez dando um desconto para uma classe maior de candidatos.

Em 9 de Novembro, 1790, Moisés Cohen iniciou Jacobs como “Cavaleiro do Sol, com plenos poderes para iniciar irmãos e constituir Lojas”, e foi isso que ele fez. Ele conferiu o Inefável, Sublime, e outros graus “secundários” para complementar sua renda de professor de hebraico. Embora seu registro não traga nenhuma informação sobre sua renda, ele nos dá uma visão de como ele conferia graus, a partir do que podemos conjecturar sobre os métodos de outros inspetores.

Em dezenove dias – de 10 de Junho a 3 de julho de 1792 – Jacobs conferiu treze graus de Mestre Secreto até Príncipe de Jerusalém a dezesseis irmãos de Augusta, Georgia. Seu registro do dia 14 de junho era típico de como os graus eram conferidos:

Dia 14 de Junho. Neste dia conferi os graus de Preboste e Juiz para os irmãos Zimmerman e Prescott, e também os graus de Intendente do Edifício, ou Grande Mestre em Israel. O Irmão James Gardner participou e recebeu os graus de Mestre Secreto e Mestre Perfeito, com todas as instruções necessárias.

Geralmente um ou dois graus eram conferidos a cada noite, mas já que nem todos poderiam estar presentes, graus eram repetidos, como em 14 de junho. Jacobs não tinha nenhuma ajuda para conferir os graus, e assim as cerimônias eram “tudo, menos completas.” É razoável perguntar: Por que demorou tantas noites para conferir os graus? A explicação pode estar na frase do registro de Jacobs em 14 de junho, “com todas as instruções necessárias.”

Arturo de Hoyos, Grande Arquivista e Grande Historiador do Supremo Conselho do 33°, S. J.[v], acredita que Jacobs ditava as cerimônias para os candidatos, e eles transcreviam os rituais para seu uso pessoal. Em apoio desta tese, os Arquivos do Supremo Conselho do 33°, S. J., tem vários pequenos livros desamarrados com graus individuais transcritos neles. Considere a página de título de um livro sem data com os rituais de Cavaleiro Kadosh escritas em cinquenta e oito de sessenta e quatro páginas de 12′ ou 16,5 cm.

Cavaleiro de Kadoch 
ou Águia Branca & Preta
Inspetor de todas as lojas
Grande Eleito
24o
29º grau
Gd eleito Cvl de
Kadosh


O que é significativo é que o “24” é riscado e substituído por “29”. Antes de 1801 o Grau de Kadosh era o vigésimo quarto na Ordem do Real Segredo, mas a Circular para os Dois Hemisférios lista o Kadosh como o grau vigésimo nono (e mais tarde tornou-se o trigésimo). Assim, de Hoyos data o manuscrito de algum tempo antes de 1801. Ele foi preparado sob a égide da Ordem do Real Segredo, mas logo após o seu proprietário deve ter transferido a obediência para o novo Conselho Supremo e o ritual foi renumerado e renomeado por uma mão diferente. Note-se que só era necessário renumerar graus acima do 22°, Príncipe do Líbano, uma vez que até ali os dois sistemas concordam, e é graças a essa renumeração que livros dos graus podem ser confiantemente datados como tendo sido escrito antes de 1801. O Supremo Conselho convidou todos os detentores de patentes da Ordem do Real Segredo a transformá-las e receberem uma patente do novo corpo.

Poucos destes livros ainda existem por, provavelmente, várias razões. Em primeiro lugar, nunca houve muitos recipiendários destes graus, como testemunham os poucos corpos estabelecidos antes de 1801 e a escassez de comentários nos anais da Grande Loja. Em seguida, durante o Período Antimaçônico Americano de 1826-42 maçons que renunciavam à Ordem eram incentivados a destruir toda a sua parafernália maçônica. Por fim, ninguém menos que uma autoridade como Albert Pike encorajou a destruição de versões anteriores e não aprovadas de graus do Rito Escocês e recomendou que “cahiers velhos e inúteis de graus, sejam lançados às chamas.”

Agora podemos montar um modelo de como os inspetores propagavam os altos graus. Armados de suas patentes, eles se reuniam com um ou vários candidatos, resumiam as cerimônias de grau, e ensinavam as palavras e toques. Depois de cada cerimônia abreviada, os inspetores ditavam os rituais para os novos membros que os transcreviam para seu uso pessoal. Alguns inspetores, como Abraão Jacobs, encorajavam seus candidatos a solicitar mandados de autoridade competente, embora, obviamente, poucos o fizessem. Livres dos regulamentos da Grande Loja, os inspetores tinham liberdade para vender suas mercadorias onde quer que encontrassem candidatos dispostos. Seus clientes, quer atraídas pelo discurso do vendedor sobre graus exclusivos ou seduzidos pela obtenção de mais luz na Maçonaria, ansiosamente pagava pela informação. Os graus eram conferidos tão bem quanto possível pelo Inspetor, talvez com alguns irmãos a auxiliá-lo. Os novos candidatos tinham, então, permissão para transcrever os rituais para seu uso e estudo posterior, e talvez para a organização de um Corpo de Altos Graus com um mandado.

O funcionamento dos Corpos de Altos Graus na América antes de 1801

De acordo com o primeiro censo dos EUA, em 1790, a população total era de 3.893.635, e as cinco maiores cidades eram New York City (33.131), Filadélfia (28.522), Boston (18.320), Charleston, SC (16.359) e Baltimore (13.503). Cinco corpos de altos graus estavam localizados em três das cinco maiores cidades americanas, com Charleston contando sozinha com três corpos. Albany (3.498) era a décima-nona maior cidade americana e tinha um corpo. Uma localização surpreendente para um corpo de altos graus era Holmes’ Hole, na ilha de Martha’s Vineyard, em Massachusetts. O censo de 1790 mostra apenas cerca de 350 pessoas na cidade, embora no entorno do condado de Dukes houvesse uma população de 3.245, que se fosse uma cidade seria classificada como a vigésima maior. Assim, os Corpos da Ordem do Real Segredo eram localizados principalmente nos maiores centros urbanos, o que lhes daria uma excelente exposição aos maçons.

Temos muito poucos registros existentes de qualquer um desses corpos:
O primeiro corpo de altos graus nos E.U.A. foi estabelecido em New Orleans. A Loge de Parfaits d’Écosse foi aberta lá, em 12 de abril de 1764, e trabalhava no “sistema de Bordeaux”, mas ser a primeira não garante a longevidade. Pouco depois a França cedeu New Orleans para a Espanha através do Tratado de Paris 1763, a Maçonaria ou passou à clandestinidade ou morreu completamente na cidade. Resta apenas um documento da Parfaits d’Écosse, que são as atas de duas reuniões; não sabemos nada sobre suas operações ou influência. Os altos graus não retornaram formalmente a New Orleans até 1807.
A Inefável Loja de Perfeição de Albany foi licenciada por Henry Andrew Francken em 1768. O seu registro está nos arquivos do Supremo Conselho, 33°, N.M.J., e registra 123 reuniões de 1768 a 1774, sem nenhuma reunião realizada em 1772. As atas existentes são banais, e não refletem a promessa da sublime perfeição da Maçonaria de Ofício.

O Livro de Atas da Loja de Perfeição em Filadélfia, estabelecido por Solomon Bush foi preservada pela Grande Loja da Pensilvânia e foi reeditado em 1915. Ele registra as reuniões desde a primeira, em 1781, à abrupta última, em 1789. Enquanto os membros realmente escrevessem para Frederico, o Grande, os processos nada têm de excepcional.

Isaac Da Costa organizou a Sublime Grande Loja de Perfeição em Charleston, em 1783. “A 13 de junho de 5796 a sala de loja, registros, jóias e mobiliário da Inefável Loja de Perfeita e Sublime Maçons foram consumidos pelo fogo, o que, somado a outras causas, suspendeu as reuniões da Sublime Loja (exceto algumas ocasionais, para fins especiais). …
 “
Cinco anos depois de Da Costa ter organizado a Loja de Perfeição em Charleston, Barend M. Spitzer, Abraham Forst e Joseph M. Myers abriram um Grande Conselho dos Príncipes de Jerusalém, em 1788, na cidade. A sua jurisdição sobre as Lojas de Perfeição e Conselhos de Príncipes de Jerusalém foi reconhecida, pelo menos por Abraham Jacobs, que instruiu seus iniciados para se inscreverem em Charleston para obter uma licença.

A Loja de Perfeição do Rei Salomão em Holmes’ Hole (agora Tisbury), na ilha de Martha´s Vineyard, foi criada por Moses Michael Hays, vice-inspetor-geral, em 1791, quando ele estava servindo como Grão-Mestre da Grande Loja de Massachusetts (Antigos). Em 1797, o corpo entregou sua carta à Grande Loja e recebeu uma nova carta com o mesmo nome, mas apenas como uma Loja do Ofício. A Loja de Perfeição do Rei Salomão entregou suas jóias,

Henry Wilmans, “Grande Inspetor, Geral” estabeleceu uma Loja de Perfeição em Baltimore, mas o único documento remanescente é a “Constituição e Leis dos Grandes Eleitos, Perfeitos, e Sublimes Maçons” assinada por setenta e sete membros, em 1792, quatro dos quais tornaram-se Grãos-Mestres de Maryland. Há uma referência, em 1804, para que Loja Concordia No. 13 de Baltimore liquide uma conta de aluguel com a “Sublime Loja” por US$150. Isto parece indicar que a Loja de Perfeição sobreviveu pelo menos doze anos. Nada mais se sabe sobre ela.

Charleston tornou-se o centro da Maçonaria de altos graus norte-americana, em 1797, quando um Sublime Grande Conselho de Príncipes do Real Segredo foi aberto lá sob a autoridade de Hyman Isaac Long. Este foi o último corpo de alto grau a ser formado antes de 1801.

Os únicos corpos Inefáveis ou Sublimes que ainda trabalhavam em 1801 eram, provavelmente, de Baltimore e, definitivamente, de Charleston. Embora não muitos desses corpos tenham sobrevivido mais que alguns anos, aqueles em Charleston proveram o solo fértil do qual emergiu o Supremo Conselho dos Estados Unidos. A maioria destes corpos de alto grau operavam junto a várias lojas azuis e outros corpos. Sua mera presença chamou a atenção de outros maçons em sua área para os Sublimes Graus, mas a atenção não foi suficiente para garantir o sucesso ou interesse.

Antes de 1801, os Corpos do Real Segredo operavam sem qualquer direção central; não havia nenhuma liderança estadual ou nacional para dirigi-los. Em contraste, por volta de 1791, havia Grandes Lojas em doze dos estados originais, com Delaware formando a sua Grande Loja em 1806. Algumas Grandes Lojas permitiam que suas lojas trabalhassem com a Marca, o Real Arco e outros graus em virtude de suas autorizações. Em 1801, o Rito de York estava começando a decolar. Havia Grandes Capítulos de Maçons do Real Arco em pelo menos sete estados, e a Maçonaria do Real Arco era vista como a extensão lógica e natural da Maçonaria de Ofício e os Cavaleiros Templários tinham um “Grande Acampamento na cidade da Filadélfia.”

Uma distinção sutil, mas importante, entre os procedimentos do Rito de York e da Ordem do Real Segredo, pode estar no fato de que os Graus Inefáveis e Sublimes tinham um apelo intelectual, enquanto os graus do Rito de York – especialmente nos graus do Capítulo – tinham elementos populares de humor rude. Esta diferença pode ser vista pela vontade de iniciados da Ordem do Real Segredo de pagar pelo privilégio de apenas transcrever os rituais – certamente uma abordagem erudita à Maçonaria, de maior apelo para os letrados. Poucos dos homens elevados pelos inspetores participavam de reuniões porque quase não havia corpos a serem frequentados. Assim, pareciam estar satisfeitos em ler e estudar os rituais.

Realmente não sabemos o que acontecia durante as reuniões maçônicas americanas antes de 1801, mas as exposições do Período Antimaçônico Americano (1826-1842) permitem que façamos tênues inferências sobre essa época inicial. O Light on Masonry (1829), de David Bernard, foi a principal exposição daquele tempo, passando por cinco edições cada vez mais detalhadas entre abril e dezembro de 1829, e o A Ritual of Freemasonry (1831), de Avery Allyn, foi seu principal concorrente. Ambos os livros procuraram destruir a fraternidade, expondo seus rituais e retratando-a da pior maneira possível. Assim, qualquer imagem negativa deve ser considerada à luz do objetivo final dos autores. Suas descrições refletiam variantes locais de rituais que podem ou não ter sido mais amplamente populares. Arturo de Hoyos salienta que tais variantes são uma consequência esperada da tradição do ritual de boca-a-ouvido do Rito de York. A tradição escrita dos Graus Inefáveis e Sublimes permite muito menos variação.

Se é possível acreditar nas exposições de Bernard e Allyn, os graus de um Capítulo do Real Arco ofereciam aos participantes turbulentas e maldosas brincadeiras de iniciação. Estes graus, especialmente o Real Arco, traziam uma conclusão lógica para o Grau de Mestre Maçom, embora aparentemente fornecessem algum divertimento inocente durante as cerimônias, uma combinação popular, com muito mais sucesso do que simplesmente transcrever e estudar rituais. As descrições que eles fizeram dos graus do Capítulo do Real Arco, o mais amplamente trabalhado dos altos graus, falam de várias oportunidades para constranger e surpreender os candidatos. Allyn até mesmo fornece desenhos cômicos das cerimônias, com destaque para a confusão do candidato.

Em contraste com os graus Capítulo, suas descrições de “Onze Graus Inefáveis”, são austeras e solenes, quase como peças teatrais históricas. Bernard tinha avançado até o 6°, Secretário Íntimo, e Allyn não tinha recebido nenhum dos Graus Inefáveis e Sublimes, e, portanto, tinham pouca evidência em primeira mão do que se passava em uma Loja de Perfeição. No entanto, nenhum dos autores perderia uma oportunidade para enfatizar qualquer aspecto negativo, mesmo rumores. A simplicidade de suas descrições apoia a ideia de que as cerimônias eram, de fato, sérias, sem recursos para divertir os observadores. Os Graus Inefáveis e Sublimes podem não ter se espalhado rapidamente porque faltaram a eles as humorísticas possibilidades de iniciação dos Graus do Capítulo do Real Arco. Mas isso provavelmente nunca saberemos.

Conclusão

O Supremo Conselho dos Estados Unidos apareceu num momento em que os maçons americanos foram tomando ciência de que havia conhecimento maçônico além das Lojas de Ofício. Essa consciência foi espalhada por conferencistas itinerantes, livros e Corpos da Ordem do Real Segredo. A Ordem, com os seus inspetores em grande parte não controlados, não tinha uma infraestrutura organizacional que a permitisse sobreviver. Sua filha, o Rito Escocês Antigo e Aceito, tinha as características que lhe garantiam a grandeza. Em duzentos anos, cresceu para se tornar o maior e mais generalizado ramo da fraternidade maçônica. Hoje tem até maiores possibilidades de esplendor do que em 1801.

Agradecimentos

Estou em dívida com dois de meus companheiros estudiosos de Mackey que generosamente me deram ajuda inestimável: o Ilmo. Ir. Arturo de Hoyos, 33°, Grande Arquivista e Grande Historiador, Supremo Conselho, 33°, S. J., me deu apoio, inspiração e orientação nas muitas conversas sobre a Ordem do Real Segredo. O Ilmo. Ir. Alain Bernheim, 33°, refinou minhas referências e sugeriu melhorias importantes no texto.


Notas

[i] Graus do Ofício ou Graus Azuis é a denominação dada nos E.U.A. (e em outros países de língua inglesa?) para os Graus Simbólicos. (N.T.)

[ii] Segundo o dicionário Merriam-Webster, Commandery (que é a palavra no texto original) é um distrito sob controle de um comandante de ordem de cavaleiros ou uma assembleia ou loja de uma ordem secreta. (N.T.)

[iii] Ne plus ultra é uma expressão latina que significa o ponto máximo a que se pode chegar ou o que há de melhor ou o supra-sumo (N.T.)

[iv] Que podem ser traduzidas como revelações ou vazamentos.(N.T.)

[v] Abreviatura de Southern Jurisdiction, ou, em português,Jurisdição Sulista. Refere-se ao Supremo Conselho de Charleston, no estado da Carolina do Sul, E.U.A.. (N.T.)

Share this:

Budismo, Maçonaria e Ocidente – Uma sabedoria no espírito dos tempos

Tradução José Filardo
por Jean-Moïse Braitberg



Considerada a quarta religião da França, o budismo, em suas diferentes variações, não é percebido por seus seguidores ocidentais como uma religião, mas como um compromisso entre sabedoria, espiritualidade, filosofia e estilo de vida. Popularizado pela figura do Dalai Lama, que acaba de completar uma viagem à França, este aparelho de crença originário na Ásia parece desenhar os contornos de uma nova religiosidade pessoal no espírito da era que não deixa indiferente alguns maçons.

Numa altura em que, nas palavras de Emmanuel Todd, o catolicismo tornou-se “zumbi”, o protestantismo exaltado no evangelismo, o judaísmo exilado no sionismo e o Islã em luta contra seus demônios, o budismo, por sua discrição passa por um mar de tranquilidade espiritual, um sopro sutil de primavera, uma fonte refrescante de sabedoria. A prova? Em um momento em que uma sobrecarga secular generalizada estigmatiza toda a visibilidade religiosa – quer dizer muçulmana – as estátuas de Buda substituem os gnomos nos jardins e imagens de Buda decoram certos lugares públicos – salas de espera de hospitais e consultórios médicos, em particular – provocando os novos cruzados do secularismo.

O fenômeno não é novo. O escritor Alexandre Vialatte que observou in loco a Alemanha dos anos 20 ainda desorientada por sua derrota (“A Alemanha Misteriosa” em “As Bananas de Koenigsberg”, Paris, Julliard 1985), escrevia então: “Os farmacêuticos da alma social, caracterólogos, fierotistas e outros neo-asiatistas sociais, tinha feito uma fortuna no início distribuído ao povo as pastilhas calmantes do budismo e os vinhos restauradores do wotanismo. (…)

As lojas de temperos venderiam, segundo me disseram, Budas de sabão para popularizar nas cozinhas o culto dos ritos vegetarianos. (…) Não se sabia mais a que mito se devotar, a que ópio, a que magia. (…)

Sabemos a que delírios místicos e esotéricos foi conduzida a Alemanha pelo asiatismo misturado com o arianismo. E, de fato, existe, ou melhor, existia uma área problemática onde as teorias nazistas faziam uma boa dupla com uma certa ideia do budismo. (Ver quadro). Mas, olhado com cuidado, este tipo de contato também é encontrado nas margens do cristianismo e do islamismo. O problema é que com o budismo, pelo menos tal como ele se apresenta, ou que a mídia o retrata no Ocidente, tem-se a impressão que esta “filosofia” supostamente sem dogma nem deus revelado seria diferentes das outras crenças religiosas e se distinguiria por um pacifismo e uma tolerância muito maiores. Se adicionarmos o fascínio do Oriente misterioso, muita ignorância, a moda do vegetarianismo, a estética emocionante das representações de buda e uma espiritualidade matizada de “desenvolvimento pessoal”, entendemos melhor o sucesso desta religião “a la carte” no ocidente consumista.

Não se saberia, portanto, reduzir a abordagem de uma doutrina complexa que afeta cerca de trezentos e cinquenta milhões de pessoas à imagem oferecida pelos budistas ocidentais. E então, de que budismo estamos falando? O budismo é uma galáxia que reflete a diversidade de universos culturais em que ele se desenvolveu (ver quadro). Ele é, também, de certa forma, uma religião iniciática, ou pelo menos progressiva. O que explica seu apelo a um certo número de maçons que acreditam encontrar nas quatro verdades nobres, um complemento, se não uma correspondência com a jornada maçônica.

Mal-entendido por muito tempo, ou completamente ignorado em nossa latitude, o budismo começou a interessar ao Ocidente no início do século XIX, mas foi ao final dos anos 60 com o surgimento de “novas espiritualidades” na Europa e nos Estados Unidos que ele abriu seu caminho entre o New Age, o xamanismo e o movimento hippie. Fato único na história das religiões, o neo Budismo não se desenvolveu fora da sua tradicional esfera de influência com o apoio de uma força conquistadora. Não apenas sob este aspecto e além do seu conteúdo espiritual, ele constitui um fenômeno sociológico particular. Ou melhor, um sintoma: o da doença espiritual de um Ocidente que desgostoso das ideologias decepcionado pelo cristianismo, não pobre o suficiente para esperar o reino dos céus, mas rico demais para fazer a revolução, coloca o indivíduo e seu desenvolvimento pessoal no centro de suas esperanças de que, segundo a fórmula bem conhecida, tudo mude para que nada mude.

Filosofia humanista e desenvolvimento pessoal

Conforme demonstrado pelos trabalhos de Thierry Mathé (1), a mutação da religião budista asiática em uma filosofia humanista ocidental decorre principalmente de uma mutação do pensamento religioso europeu. Todos os trabalhos sobre a relação que os europeus estabelecem entre suas crenças religiosas e suas convicções filosóficas e políticas mostram que houve desde a segunda metade do século XX uma secularização de valores anteriormente incorporados pelas religiões. Considerando que, para a França, havia duas concepções de mundo radicalmente diferentes entre católicos e leigos – grupo em que é preciso incluir os maçons, judeus e protestantes liberais, e mais geralmente a corrente republicana – essa divisão é largamente ultrapassada devido ao fato de que existe agora um amplo consenso sobre os valores morais sem qualquer referência a um deus ou uma religião. Se ele pode abrigar lealdades religiosas e mesmo se podem existir, de acordo com o sociólogo Michel Maffesoli, “fidelidades sucessivas” em relação a grupos religiosos ou políticos, essas “fidelidades” geralmente não contradizem a intangibilidade de certos valores: “Os cristãos são meus irmãos. Eu não quero fazer deles novos budistas. Quero ajudá-los a aprofundar sua própria tradição”, proclama o monge budista vietnamita Thich Nhat Hahn, um dos promotores do budismo no Ocidente. Isto significa que, na maioria dos casos, a conversão ao budismo, na medida em que ela seja formalizada pela busca de refúgio – veja abaixo – não é absolutamente uma negação, mas, pelo contrário, uma fidelidade reafirmada à sua crença original sob uma forma ainda mais pura.

Em relação aos neo-budistas, percebemos que suas motivações são essencialmente “centristas”, o que em termos religiosos corresponde ao “caminho do meio”. Os direitos humanos, a justiça social, valores tradicionalmente da esquerda e a ecologia, valor da direita passado à esquerda, acompanham uma posição bastante conservadora com relação à família e o mundo do trabalho. Os extremismos da direita como da esquerda são descartados em nome da “harmonia”. Mais amplamente, a ideia que fazem os budistas ocidentais de suas escolhas filosóficas é, em seu conjunto, coerente com os quatro princípios que fazem a tendência. Multiculturalismo, ecologia, feminismo, direitos dos homossexuais agora servem como “verdades nobres” para aqueles designados sob o nome de “bobus” – boêmios burgueses. Mesmo em relação às mulheres e aos gays, a realidade do budismo nos países onde ele é a majoritário está muito longe de corresponder à sua “realidade” fantasiada. O que importa pouco, na medida em que o não-dogmatismo reivindicado pelos neo-budistas supõe uma livre adesão individual, independentemente de qualquer ação coletiva, militante e cultural. É aí, sem dúvida, que é preciso procurar um ponto de encontro entre o budismo e a Maçonaria. A rede budista encarnada por figuras midiáticas do Dalai Lama ou de Matthieu Ricard não se inscreve em uma perspectiva de crítica nem de mudança social, mas de uma visão progressista do indivíduo. Isso explica o apelo do budismo entre os maçons rejeitando o “social” em favor do simbólico, ou seja, do espiritual. E isso é explicado pelo fato de que jornalistas, budistas e maçons compartilham valores das classes médias e superiores educadas a que pertencem. Porque uma das principais características da ideologia própria destes ambientes é que se nós não acreditamos mais na política nem na ação coletiva, esperamos um mundo pacífico e sem conflitos para preservar as situações adquiridas pela o poder da boa vontade e dos bons sentimentos. E, especialmente, através do desenvolvimento pessoal. Esta noção, amplamente popularizada por revistas sobre psicologia ou gestão, tomam empresado da psicanálise junguiana, bem como da análise transacional, técnicas de treinamento e programação neurolinguística. Todos os métodos que “visam a autotransformação: seja para se livrar de alguns aspectos patológicos (fobia, ansiedade, depressão, timidez), ou para melhorar o desempenho (melhor comunicação, gestão do tempo, assertividade). ” (1) E que propõem o budismo, pelo menos, se se acredita uma das suas inúmeras escolas, se não um método de desenvolvimento pessoal: “Nós gostaríamos de crescer, nos desenvolvermos, mas nem sempre sabemos como fazê-lo . Isso não parece muito claro, não sabemos como começar. Então, de que precisamos? Precisamos de um método, de um método de desenvolvimento e isso é a primeira coisa oferecida pelo Budismo, oferecida por Buda, que oferece a AOBO – NDLA Associação da Ordem Budista Ocidental – àqueles que o conhecem: um método de desenvolvimento pessoal”. (2)

Em outras palavras, o budismo ocidental não seria uma religião e que é talvez uma filosofia, apresenta-se como uma técnica. Uma técnica eficaz para ter sucesso na vida, não é ter sucesso na vida. Daí o seu sucesso no meio dos negócios e especialmente nos meios de recursos humanos 2. Portanto, não é surpreendente que em 2008, o Dalai Lama tenha publicado o livro “O que o Budismo pode trazer aos gestores” (3).

E estamos ainda à espera Volume II: “O que o budismo pode trazer à classe trabalhadora” …

Mudar o mundo sem mudar nada

No entanto, a corrente dominante do budismo ocidental, chamada Vajrayana – budismo tântrico tibetano – não está interessado no destino daqueles que não tiveram nem a oportunidade nem o desejo de fazer uma carreira como gerente. A compaixão e a supressão do sofrimento estão, mesmo, no coração da doutrina budista. Mas, sua abordagem se situa em uma visão geral da vida e não a partir de uma perspectiva de mudança social. Por isso, se o budismo abre o caminho para a iluminação de cada um, independentemente de casta, ele não questiona a realidade social das castas. Não são os exploradores, os opressores, os especuladores, os aproveitadores, os cínicos e violentos que causam sofrimento aos oprimidos e sua miséria, mas a ignorância de como a vida funciona tanto entre os escravos quanto os senhores. O desejo, a principal causa do sofrimento é o mesmo para ricos e pobres. “Os ricos são favorecidos porque tendo tudo, eles podem entender mais rapidamente que os pobres, que este tudo é nada”, escrevia Paul Morand em seu Buda Vivo.

Mudar o mundo sem mudar nada no mundo. Uma vez que tudo é impermanência, o objetivo final do ensino do despertar não é construir um mundo melhor, mas praticar uma economia de respeito, de uma perspectiva pessoal, participando tanto quanto possível da regulamentação da realidade vivida. Tudo isso, sabendo também que tudo não passa de ilusão …

E qual é o sentido de tudo isso? Não há sentido. Ou melhor, existe apenas na experiência individual confrontada com a realidade imediata tornada não compreensível, mas aceitável graças ao ensino de um mestre e à extinção do ego. Isso porque o budismo, ou melhor, o conjunto de tradições e ensinamentos do budismo pretende ser uma “reserva de sentido”, mais que doutrina e ainda menos que ensinamento dogmático. “É bom que exista um supermercado de religiões onde cada um possa tomar o que quiser”, diz o Dalai Lama (5). Mais uma vez, esta visão sincretista, alguns dirão consumista, convém perfeitamente à moderna sociedade de consumo, onde cada um passeia com seu carrinho e toma o que lhe convém nas prateleiras do grande bazar espiritual para dar forma a uma crença ou a um deus à sua imagem e de acordo com suas necessidades, seu desejo, sua busca por bem-estar, seu conforto moral … De uma perspectiva judaico-cristã, isso tem um nome: idolatria, esta crença em um deus feito para as nossas necessidades pessoais, que se honra não pelo que ele nos exige, mas pelo que se espera dele pessoalmente.

E se você pensar bem sobre isso, dificilmente é um exemplo de fé uma forma ou outra de realidade sobrenatural, que visa apenas trocar sua crença no que é incrível contra uma forma ou outra de recompensa. Seja ela a vida eterna como no cristianismo, ou o fim do ciclo da reincarnações que se pretende alcançar no budismo.

“Eu rezo o Pai Nosso, após a minha meditação sem que isso me incomode”, nos confessou um irmão particularmente eclético. Nascido católico, tornou-se um protestante, entrou em uma loja de rito francês do Grande Oriente da França antes de ingressar em uma do Rito Escocês Retificado e se filiar à Grande Loja da França, ele também é zen budista de orientação japonesa e milita em um partido de centro-direita. Tudo isso em perfeita coerência consigo mesmo. Ele não é o único no seu caso. Outro ex-irmão, que nunca passou do grau de companheiro, foi iniciado em uma loja do Grande Oriente da França do Rito Escocês (REAA), enquanto era mestre zen. Judeu de nascimento e membro por mais de 50 anos do Partido Comunista Francês, ele se diz, também ateu e materialista. Nenhum problema de coerência ali também.

“Eu sou um pesquisador espiritual”, explica Manh Hung Nguyen, de origem vietnamita, mas de pais católicos, membro de uma Loja de Memphis Misraim do Grande Oriente de França depois de ser iniciado na Grande Loja da França, frequentou por algum tempo o Rito Escocês Retificado e interessou-se pelo martinismo … Antigo funcionário de relações humanas que se tornou terapeuta e consultor de desenvolvimento pessoal, ele se diz mais maçom que budista, tem dúvidas sobre a reincarnação, mas ainda considera que não se pode dizer budista, a não ser que, como ele, se procure “refúgio”, o que significa se engajar em seguir as três jóias que são o caminho para a iluminação – Buddha – a lei universal e seu ensino – Dharma – e fazer parte da comunidade budista – Sangha -.

Negar a complexidade do mundo

Um corpo complexo de crenças que nega a complexidade do mundo. Tal é, sem negar nem a sinceridade nem a boa vontade de seus adeptos, a impressão que dá o neo-budismo, tanto no discurso expresso por seus seguidores quanto pela alta figura midiática do Dalai Lama – que representa apenas uma das muitas tendências do budismo tibetano -. Isso deixa a impressão de um consenso mole baseado no consumo imediatamente disponível de bons sentimentos, enunciados simplistas e verdades eternas. É preciso lembrar o sentido da palavra pathos, que significa sofrimento, e o objetivo final do budismo é eliminar o sofrimento. Mas o pathos, em termos de retórica é também o meio pelo qual o orador tenta impor uma convicção à sua audiência jogando com o afeto. Neste sentido, se o budismo ocidental como todas as religiões pode, às vezes, assumir um aspecto patológico, ele é mais evidentemente – certamente não em sua doutrina, mas nos meios que ele usa para convencer – a expressão patética de um pensamento simplista na recusa de tudo o que divide. Em suma, uma unanimidade “neutra”, “pureza da verdade infundida que nega a complexidade do real” como escreveu Regis Debray (6).

Ser pelo bem contra o mal, pela paz contra a guerra, pelo respeito ao meio ambiente, por uma partilha equitativa de recursos, contra o sofrimento… quem seria contra? O problema é que o discurso em preto ou branco não suporta nem nuance nem crítica e traz consigo as sementes de um totalitarismo de bons sentimentos. Acima de tudo, esta prontidão a pensar só se dirige a um público ocidental essencialmente ignorante do budismo em sua realidade concreta.

O budismo, uma religião sem deus? Todos aqueles que por menos que seja viajaram ao Sudeste da Ásia, a Sri Lanka, ao Tibet, Mongólia e Japão puderam constatar que se celebram todos os tipos de deuses, gênios, semideuses, espíritos, antepassados, demônios e outros espíritos malignos ou benéficos em todos os templos budistas.

O budismo, uma religião pacífica? Pergunte o que eles pensam os Tamouls do Sri Lanka que nos anos 1980-1990 foram objeto quase de um genocídio incentivado por monges budistas em nome da pureza racial cingalesa. Pergunte a Aung San Suu Kii, a muito midiática e budista Prêmio Nobel da Paz, agora primeira-ministra de fato da Birmânia, sobre as atrocidades sofridas pelos muçulmanos Rohyngias do estado de Arakan pelos nacionalistas budistas. “Se lhe mandamos marchar: um, dois, um, dois! ou atirar: bang, bang! Esta é a manifestação da mais alta sabedoria da iluminação. A unidade do zen e da guerra […] se espalhou até os confins da guerra santa que está em andamento. “Pergunte aos seguidores do zen o que eles pensam desta proclamação feita pelo mestre Sõtõ Zen Daiun Sogaku Harada em 1939, quando as tropas imperiais estavam a cometer as atrocidades na China que conhecemos (6).

Finalmente, notemos que a pena de morte é praticada nos principais países budistas: Japão, China, Tailândia, Vietnã.

É preciso, portanto, rejeitar em bloco o Budismo Ocidental? Não, é claro. Existe nesse movimento, assim como em outras espiritualidades elementos úteis para a reflexão e, sem dúvida, também para uma melhor compreensão entre as pessoas. Mas, assim como as outras religiões, o budismo é uma criação humana culturalmente marcada cuja tradução ocidental é essencialmente uma tentativa de preencher o vazio deixado por um cristianismo secularizado que abandonou espiritualidade e o misticismo pelo “viver juntos”.


Budismo e Maçonaria: pontos de concordância e as divergências

As relações entre o budismo e a Maçonaria são nulas quando colocadas em uma perspectiva histórica e geográfica. O budismo era desconhecido pelos maçons antes do século XIX e a maçonaria totalmente desconhecida até hoje nos países budistas. Então, é no Ocidente, a terra de escolha da Maçonaria, que se precisa procurar pontos de convergência entre as duas correntes de pensamento. O essencial do encontroe entre Maçonaria e budismo operou-se a partir do final dos anos 1960 através de abordagens individuais que nunca foram realmente formalizadas coletivamente … com algumas exceções originais. Na Bélgica, no início do século XIX, o surgimento de uma corrente anticlerical reunirá certos maçons de altos graus do REAA a substituir o ritual trinitário do grau 26 por um ritual de inspiração hindu-budista registrado no “Livro da Grande Renúncia, ritual para o uso dos Príncipes de Misericórdia “(BRUXELAS IMPRIMERIE DU F ∴ WEISSENBRUCH, 33 °, A ∴ M ∴ 5809). Este ritual que toma emprestado tanto do budismo quanto do hinduísmo afirma que “O Venerável é chamado Mui Respeitável Reitor ou Mahatma; o Vigilante recebe o título de Respeitável Guru, o Orador intitula-se Venerável Arhat, o Secretário Sábio Pandit, o Capitão da Guarda, Maharaja. Há também um Mestre de Cerimônias. Três IIr ∴ designados para preencher o papel de brâmanes ficam perto da pintura que representa o monge.

A decoração do grau é um cordão verde, branco, escarlate, usado como colar de onde pende a joia sobre o peito. Esta joia é feita de uma roda, quatro raios em ouro, inscrita em triângulo do mesmo metal.

O avental é escarlate com uma larga borda branca, no o centro duplo triângulo equilátero, branco e verde. A aba é vermelha, de bordas brancas. ”

Na era moderna, o budismo não entrou nos templos, a não ser em forma de sessões públicas e outras pranchas. Por outro lado, um certo número de Irmãos e irmãs tentaram formalizar as relações entre o seu compromisso maçônico e sua adesão ao budismo. Em 1993, o primeiro simpósio sobre “Budismo e Maçonaria” teve lugar na Savoia por iniciativa do Instituto budista Karma Lin. As atas desse simpósio foram publicadas. (Budismo e Maçonaria, Éd. Albin Michel, Coll. Question de, n° 101, Paris, 1995). Posteriormente, foram realizados encontros regulares. Nesse meio tempo, foi fundada uma fraternal destinados a reunir maçons budistas: A “Acácia e o Lótus”, que se tornou em 2007, “Os Companheiros do Dharma”, que definiu como seu objetivo “reunir os maçons budistas para estudar, aprofundar e combinar as convergências entre estas duas espiritualidades; trabalhar para o surgimento de um Oriente Budista no Ocidente”. Mas os principais iniciadores desta associação tendo falecido, a associação parece, no momento, estar em uma fase lenta do ciclo das reencarnações…

Christophe Dioux, um professor de filosofia, maçom do Grande Oriente da França e que se converteu ao budismo tibetano com a idade de 13 anos escreveu vários livros sobre o budismo e está prestes a publicar um dedicado especificamente às relações entre o budismo e a Maçonaria. Aqui, ele nos oferece observações sobre os pontos de convergência, mas também de divergência entre essas duas correntes, que ele compara a “espiritualidades”.

As Semelhanças

– A Maçonaria (Liberal) e o budismo são duas formas de espiritualidade: a Maçonaria oferece aos seus membros aprender mais sobre si mesmo, trabalhar para se aperfeiçoar, dar sentido à sua existência através de um caminho não-religioso. O Budismo, também, é uma verticalidade desprovida de transcendência, um caminho espiritual livre de qualquer referência a um divino absoluto, uma vez que Buda não é um deus.

– A Maçonaria e Budismo compartilham um objetivo comum: o aperfeiçoamento do indivíduo, um ideal de perfeição. É uma questão para eles libertar-se gradualmente da matéria e das paixões. Na Maçonaria, assim como no Budismo, considera-se que os seres humanos são portadores, no mais profundo de si mesmos das sementes da sabedoria. A eles cabe trabalhar sobre si mesmos, a fim de tornar manifesta a força, sabedoria e beleza que existe neles.

– A Maçonaria liberal e o budismo têm uma vocação universalista: a Maçonaria propõe uma forma de espiritualidade que pode ser apropriada para crentes a não-crentes, bem como valores humanistas universais. O budismo se dirige a todos os homens.

– A Maçonaria e o Budismo compartilham uma ética comum: amor fraternal, compaixão, caridade, igualdade são valores tanto maçônicos quanto budistas; mas também a justiça, honestidade, tolerância, respeito, paciência e aplicação …

– A Maçonaria e o budismo são dois caminhos iniciáticos: o budismo, especialmente na sua versão tântrica, bem como a Maçonaria é uma corrente iniciática. A iniciação é visto de uma parte e outra, como uma semente colocada no coração do neófito. Ninguém pode realizar o trabalho interior em seu lugar.

– A Maçonaria e o budismo são dois caminhos simbólicos: utilizam-se símbolos na Maçonaria. No budismo, também, o prêmio vai nesta área, o Tantrismo.

As Diferenças

Os meios utilizados para o aperfeiçoamento são diferentes: no budismo encontramos meditações como um trabalho solitário em si mesmo, e na Maçonaria o intercâmbio com os outros, enquadrado por um ritual. Mesmo que a abordagem do maçom seja individual, ela assume a forma de contato com outros. Sem o trabalho em loja, não haveria Maçonaria. O trabalho iniciático em Maçonaria supõe os outros e isso mais que no budismo. Outra diferença: os rituais e iniciações budistas têm um carácter religioso. O budismo é, sem sombra de dúvida, uma religião e não uma corrente espiritual secular. Uma religião de um tipo particular, pois sem deus e sem dogma, mas, mesmo assim, uma religião. Se existem semelhanças entre o budismo e a Maçonaria, seria errado querer juntar as duas.

s amigos nazistas do Dalai Lama

“A filologia leva ao crime” é entendido na peça de Eugene Ionesco, A lição. É, na verdade, a proximidade linguística entre a palavra sânscrita Ary, que significa nobre na tradição budista, e a palavra alemã Ehre traduzida como honra, que explica o interesse dos nazistas pelo budismo e o Tibete, considerado nos anos 30 como o berço da raça ariana.

Foi por iniciativa do Reichsführer SS Heinrich Himmler que se criou o Ahnenerbe Forschungs und Lehrgemeinschaft, a “Sociedade para a Pesquisa e Ensino sobre a herança ancestral” destinada a provar as teorias raciais nazistas. A partir de 1937, o diretor do Ahnenerbe era Walter Wüst, perito orientalista da Índia. De acordo com o historiador das religiões alemão Horst Junginger, professor na Universidade de Leipzig, (1) Wüst afirmou que Gautama Buda era um ariano e que Hitler era sua reencarnação. Em 1939, o Ahnenerbe organizou uma expedição ao Tibete, sob a liderança do alpinista Ernst Schäffer. Uma das figuras da expedição era o jovem antropólogo e capitão da SS, Bruno Beger, com 28 anos de idade. No local, Beger realizou pesquisas craniologicas, fotografias, impressões digitais e moldagens para seus estudos de “raciologia” comparada (2).

Graças às suas habilidades médicas, Beger foi capaz de se introduzir na família Phala de onde se originou Tenzin Gyatso, o atual décimo quarto Dalai Lama. Durante a guerra, Bruno Beger foi responsável por fornecer ao médico nazista August Hirt, da Universidade Estrasburgo presos de diferentes origens étnicas retirados de campos de concentração. Ele foi a Auschwitz em junho de 1943 e com a ajuda dos mesmos métodos utilizados no Tibete, ele selecionou 79 homens e 30 mulheres judias, quatro espécimes asiáticos – provavelmente prisioneiros de guerra soviéticos – e dois poloneses que ele enviou para a Alsacia, onde 86 deles foram mortos na câmara de gás montado para a ocasião no campo de Struthof-Natzweiler nos Vosges. Os corpos foram então cozidos e descarnados para manter os esqueletos destinados à coleção antropológica do Dr. Hirt. Por alguma razão desconhecida, eles nunca conseguiram chegar à Universidade de Estrasburgo (3).

Depois da guerra, Bruno Beger foi brevemente incomodado pela justiça alemã. Em 1971, um tribunal de Frankfurt am Main o condenou a três anos de prisão que nunca foram cumpridos. Até sua morte em 2009 com a idade de 98 anos, o ex-nazista dedicou-se à causa da independência do Tibete e se reuniu várias vezes com o atual Dalai Lama como ele relata no livro Meine Begegnungen mit dem Ozeam de Wissens ( “Meus encontros com o oceano de sabedoria”), publicado em 1986 pelas edições Schwartz. Em 1994, o líder espiritual dos budistas tibetanos organizou em Londres um encontro com personalidades que tinham ficado no Tibete. Uma foto desse encontro mostra “Sua Santidade”, o Dalai Lama apertando calorosamente as mãos do assassino nazista. A outra personalidade amiga do Dalai Lama foi o esoterista nazista Miguel Serrano, anti-semita demente e fundador do partido nazista chileno. Nomeado embaixador do Chile na Índia de 1953 a 1962 (6) ele fez amizade com Nehru, Indira Gandhi e o Dalai Lama com quem se reuniu várias vezes (7). Nomeado então embaixador na Áustria, ele frequentou círculos nazistas e fez amizade com o psicanalista Carl Gustav Jung, que prefaciou seu livro As visitas da Rainha de Sabá (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1972). De volta ao Chile após o golpe de estado de Pinochet em 1973, ele acusou este último de ter “(…) ajudado os judeus e supercapitalistas a se aproveitar do Chile (…)”

O Budismo na França

Impossível saber com precisão quantos budistas existem na França, porque muitas pessoas que se declaram próximas da filosofia budista não o são no sentido religioso do termo, uma vez que eles não “procuraram refúgio”. Na verdade, a imensa maioria dos budistas franceses são originários ou emigrantes de países do Sudeste da Ásia – Vietname, Laos, Tailândia, Camboja – seguidores do budismo Theravada – veículo menor – a forma mais antiga e mais religiosa do budismo. Seu principal centro europeu é a vila de ameixeiros em Dordogne fundada pelo Vietnamita Thich Nhat Hanh.

O budismo tibetano, que tem um número infinito de escolas e variações é semelhante ao Mahayana ou Grande Veículo, que apareceu no início da nossa era. Ele enfatiza o vazio e o estado de bodhisattva, o estado mais próximo da iluminação. Este é também um Budismo Tântrico baseado em textos e uma iniciação progressiva. Ele está presente em diferentes escolas na China, Coreia, Mongólia e Japão. Ele tem dois centros principais na França. Na Borgonha, na vila de La Boulaye e na Dordogne em Saint-Léon-sur-Vézère.

O Budismo Zen nasceu no Japão de uma confluência entre o budismo Mahayana o Taoísmo chinês. Ele enfatiza a meditação, postura zazen e o ensino de um mestre. Ele é vivido pela maioria de seus praticantes ocidentais como uma filosofia.



A MAÇONARIA E O PASSO DA REFLEXÃO


Autor: João Anatalino

O passo da reflexão


O Passo da Reflexão é um simbolismo ligado à chamada queda do homem, ou seja, a expulsão do casal humano do Paraíso em razão da sua desobediência aos preceitos de Deus, que os havia proibido de comer do fruto da Árvore do Conhecimento.1

Essa passagem bíblica é uma metáfora que evoca o momento histórico em que o homem se tornou uma criatura inteligente e passou a fazer reflexões sobre as suas razões de existência. Ele descobriu a natureza do bem e do mal e extensão da sua própria força. Com isso pensou que poderia dominar a natureza e ombrear-se com os próprios deuses que eles cultuavam. Isso é o que diz a Bíblia e também o que sugerem os mitos gregos. Embora essa ideia tenha ficado mais patente na cultura dos helenos, uma cultura profundamente humanista, centralizada no homem como ponto máximo da criação universal, todas as tradições religiosas dos povos antigos sugerem que em dado momento da sua história o homem se sente, ele mesmo, um deus. Parece ser capaz de tudo. Assim, o herói grego, conforme aparece nas lendas e nas tradições da Grécia clássica é um semideus, que em certos momentos, se mostra inclusive mais inteligente e poderoso que os próprios deuses.

Na verdade, o herói das tradições gregas e judaicas nada mais é que uma emulação das virtudes masculinas de dominação, derivada da concepção patriarcal que se instalou na sociedade a partir de certo momento histórico. Com isso, o homem rompeu seus elos com os poderes superiores e afirmou-se como um poder paralelo, capaz de desafiar a própria divindade. Com essa concepção a movê-lo, ele elevou-se acima de sua condição humana, invadiu os territórios que antes eram reservados aos deuses, enfrentou-os, e não raras vezes até conseguiu derrotá-los. Assim é que Ulisses desafia Netuno, Prometeu rouba o fogo divino, Hércules realiza todas suas provas sem que nenhum Deus seja capaz de detê-lo, os faraós tornam-se, eles mesmos, verdadeiros deuses, os gregos fazem de Alexandre uma divindade, os imperadores romanos são deificados e assim por diante. (2)

E. Wallis Budge lembra que o anseio humano pela conquista da divindade era particularmente forte entre os egípcios, que pensavam poder adquiri-la diretamente dos deuses, comendo-os. Na Pirâmide de Unas lê-se que aquele faraó, “comera” parte do corpo dos deuses para obter seus atributos divinos. Com isso se tornara também uma divindade, representada pela estrela Orion. Diz aquele autor que o objetivo dos egípcios era obter a posse do poder mágico e o conhecimento das palavras de passe, que lhes daria poder ilimitado e imortalidade, atributos que só se conferiam à divindade. E o único meio pelo qual poderiam se apossar deles era “comendo o corpo dos próprios deuses”.(3)


Essa prática também foi observada por James Fraser, que relatou em sua obra clássica (O Ramo de Ouro, 1929), o costume dos indígenas da Polinésia de devorar a carne dos seus inimigos. Muito mais que a necessidade de se alimentar, o canibalismo entre as tribos polinésias, africanas e americanas, tinha um sentido esotérico. Eles costumavam comer a carne dos seus inimigos na esperança de adquirir sua força. O próprio Cristianismo não escapou a influência dessa tradição. Jesus concitou seus discípulos a “comer a sua carne e beber o seu sangue” como forma de realizar comunhão com ele. O simbolismo dessa metáfora é evidente. A Igreja Católica, ao adotar o costume de partilhar a hóstia em suas missas incorporou essa tradição aos seus rituais. Nesse costume está o profundo sentido místico de “comer o deus” para realizar a união com ele, isso é, adquirir a sua força.(4)


A teologia hebraica- cristã interpretou o mito da expulsão do casal humano do paraíso como sendo uma consequência do pecado que o homem cometeu contra Deus, instigado pelo seu opositor, Satã, tido como o invejoso anjo do mal que queria usurpar o lugar Dele. Assim, aquilo que para os gregos foi um grito de liberdade do homem em relação aos desígnios divinos, para as religiões inspiradas no monoteísmo hebraico foi uma rebelião perpetrada pelo anjo opositor e espalhada entre os seres humanos. Daí o conceito de pecado e as teorias da expiação e resgate do ser humano, desenvolvidas pelos povos do Oriente Médio e amplamente divulgadas em suas religiões (5)

Parece-nos, todavia, que esse mito não é mais que a evocação inconsciente de um acontecimento biológico, ocorrido na longa história da evolução do organismo humano. Ele significa, na verdade, o momento em que o homem, emergência descontinua numa sucessão de ocorrências biológicas processadas em série, deu um salto qualitativo no seu processo de desenvolvimento e produziu a sua primeira reflexão. E dela emergiu como um deus, com a sensibilidade do bem e do mal, do que era certo e errado, com a sabedoria enfim, ainda que meramente intuitiva, de que havia forças no universo que produziam os acontecimentos, e que eles não eram meramente obras de “entidades” que as perpetravam ao seu bel prazer.
Assim, todos os mitos que evocam uma rebelião do homem contra os deuses, ou o conflito deste com a divindade, nada mais simbolizam que o momento em que o homem deu o grande passo que o fez diferente das demais espécies vivas: o Passo da Reflexão.

Esse é, inclusive o entendimento de alguns teólogos e mestres cabalistas, que vêm nessa metáfora bíblica uma forma de compatibilizar a visão bíblica com as modernas teorias científicas que pregam ser o homem um produto de uma longa evolução que começou na mais primitiva das formas de vida e vem seguindo um processo de desenvolvimento controlado por leis postas na natureza por uma Mente Universal. (6)

O despertar da consciência

De que outra forma se poderia entender a curiosa metáfora imaginada pelo cronista bíblico para figurar o nascimento da consciência no ser humano, senão pensando que o Eterno planejou a sua Criação de forma que ela pudesse evoluir, em diversos ramos distintos, como se ela fosse, de fato, uma Árvore? Constrói-se, dessa forma, uma biogênese, na qual é possível seguir os filamentos que ela manifesta, verificando os graus de complexidade que cada espécie assume em cada momento específico de sua vida.

Teilhard de Chardin, cujo pensamento tem nos socorrido em praticamente todos os enigmas em que os exegetas da Bíblia não o conseguem, nos dá uma boa compreensão desse tema. Ao se referir a Arvore da Vida, que na sua visão é o próprio fenômeno da Criação, nele compreendido todas as manifestações de existência orgânica, desde a primeira e indivisível célula, até o organismo mais complexo que a Natureza engendrou, que é o ser humano, ele releva esse momento especial em que os “olhos do homem se abriram e ele se equiparou aos deuses, conhecendo o bem e o mal”. Em páginas de infinita beleza poética esse magistral filósofo nos mostra como esse “pecado”, ou seja, a aquisição do conhecimento ocorreu. “Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a Reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor; não mais apenas conhecer ─, mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que sabe. Por essa individualização de si mesmo, no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. ”(7)

Nesse texto esse grande filósofo está a nos dizer que uma organização celular ocorrida no interior do organismo humano, mais propriamente uma concentração energética sobre um órgão do nosso corpo, o cérebro, nos fez diferenciar do ramo dos primatas, ao qual pertencemos como espécie. A vida interior, refletida sobre si mesma, nos proporcionou esse salto evolutivo que a Bíblia chama de “comer o fruto do conhecimento do bem e do mal”. O nascimento do Adão terrestre, como ser inteligente e “imagem” do seu Criador, deu-se, portanto, no momento em que ele capturou uma consciência, e o “pecado”, que na dicção bíblica se traduz por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, foi o momento limite em que ele praticou a sua primeira reflexão, tomando conhecimento de que tinha um ego, um “self”, que o identificava e lhe dava a capacidade de classificar e entender os próprios pensamentos.

A interpretação científica

Modernas concepções científicas também chegaram ao mesmo patamar de entendimento. Eis como um discurso científico descreve esse momento singular, em que o homem dá o salto qualitativo que o distingue das demais espécies animais: “ Há cerca de cem milhões de anos, o cérebro dos mamíferos deu um grande salto em termos de crescimento. Por cima do tênue córtex de duas camadas ─ às regiões que planejam, compreendem o que é sentido e coordenam o movimento ─, acrescentaram-se novas camadas de células cerebrais, formando o neocórtex. Comparado com o antigo córtex de duas camadas, o neocórtex oferecia uma extraordinária vantagem intelectual. 

O neocortéx do homo sapiens, muito maior do que o de qualquer outra espécie, acrescentou tudo que é distintamente humano (...).” (8)

Até esse momento, os hominídeos, como diz Teilhard de Chardin, acompanhavam a filogênese da criação, apenas como mais um ramo da Árvore da Vida, em seu desenvolvimento normal. Mas a partir do momento em que adquiriu a capacidade de refletir, o homem diferenciou-se entre todas as espécies criadas, passando, como diz a Bíblia, a ser “uma imagem de Deus”, aquele que Ele escolheu para subjugá-la e dominá-la. Quer dizer, o que faz o homem ser uma imagem do seu Criador não é o seu aspecto físico, mas o seu carácter intelectual, pois é deste que transcende a sua parte espiritual.

Sim, porque a partir desse momento o homem adquiriu o livre arbítrio e a capacidade de fazer as próprias escolhas, dando um sentido a evolução. Isso, para uma sensibilidade inocente, que até então não tinha a consciência do próprio ego, deve mesmo ter significado a morte da inocência, a expulsão de um paraíso, onde, por não existir o exercício da escolha, também não existia ansiedade, culpa, estresse, cansaço e náusea da própria existência, por não saber a que ela se destina, nem qual é o seu propósito, como dizia um personagem de Sartre. (9) como salienta o cronista bíblico, o homem pagou caro por essa ação. Foi expulso do paraíso. Mas isso foi para que ele “não comesse também da Árvore da Vida”, pois esse fruto lhe daria a imortalidade. Quer dizer que se os homens tivessem, concomitantemente a aquisição do conhecimento, obtido o dom de viver para sempre, prejudicado estaria todo o projeto do Criador, que planejou a construção do universo de combinação em combinação, através de um plano de evolução, onde a energia que o formata sai do ínfimo (o núcleo atômico) e caminha para o imenso, no plano material, externo, e do simples (a célula) vai para o complexo (no plano espiritual, interno), como intui Teilhard de Chardin quando desenvolve a sua noção hiperfísica do universo.

A Árvore biológica do ser humano

A visão teilhardiana da Árvore da Vida contrasta, naturalmente com as visões literais dos criacionistas, que vêm a espécie humana como nascida a partir de um casal feito a imagem e semelhança de Deus, ou seja, na sua forma orgânica e espiritual já perfeita e acabada. Ao revés ─ e isso significou para esse originalíssimo pensador jesuíta uma feroz repressão da sua própria Igreja ─, ela está muito mais para as teses defendidas pelos adeptos da seleção natural, embora destes Teilhard se afaste quando introduz nessa evolução um componente de espiritualidade, negado pelos evolucionistas. Pois aqui o homem é resultado de um longo processo de evolução, maturado no seio da matéria universal, mas dirigido por uma Vontade que nela atua e se cristaliza. Diferente, pois, do homem obtido simplesmente por seleção natural, que é produto apenas de sínteses químicas que vão se processando pela força das leis que regem a mecânica universal.


Nessa composição cabe um lugar inclusive para o próprio Mal, que na tradição bíblica é o diabo travestido de serpente. Pois não é ele que perverte a parte mais sensível da mente do homem (a sua parte feminina) com um discurso que estimula a sua vaidade? Que mais agradaria ao recém-nascido ego humano do que a ideia de se tornar igual ao próprio Criador? É por isso que a Cabala ensina que “Satã é o nosso Ego, o nosso desejo de ser sempre mais. Ele é o desejo que queima, o egoísmo que exige cada vez maior prazer”. (10)


E por isso a Maçonaria se apresenta como disciplina onde o homem procura aperfeiçoar o seu espírito, erguendo “templos a virtude e cavando masmorras ao vício”. Tudo isso nada mais é uma tentativa de mitigar as razões do Ego para, em troca, obter maiores ganhos em espiritualidade. Essa é, em resumo, a função da prática maçônica. 

1. Gênesis, 2;16 a Bíblia diz que no Éden havia duas árvores: a Árvore da Vida, que concedia a imortalidade e a Árvore do Conhecimento, cujos fruto concediam a ciência do bem e do mal. Foi desta última que o casal humano se apoderou e comeu. Modernas concepções cabalistas vêm nessa metáfora uma advertência de Deus a respeito do conhecimento da energia atômica (capaz de destruir o planeta) e da engenharia genética (passível de dar ao homem o poder de criar e prolongar sua vida).

2. O próprio termo designativo de Fraternidade, que é aplicado a um grupo de tradições comuns vem do grego Frátria, que na antiga Atenas designava uma associação de cidadãos unidos pela mesma cultura religiosa compartilhante dos mesmos símbolos. Eles formavam uma unidade política e religiosa. A legislação de Sólon legitimou essas associações, determinando a sua composição em trinta famílias. Cada tribo podia manter três desses grupos. Assim, Atenas estava dividida em quatro tribos com um total de doze frátrias.

3. E. Wallis Budge, The God of Egipcians, Vol. II, Ed. Dover New York, 1929.

4. No caso cristão tratava-se de um ritual que visava “incorporar” nos apóstolos a natureza divina de Jesus, uma fórmula comum de se realizar “Irmandade”. Aliás, o banquete, a chamada “comensalidade”, praticada por Jesus e seus discípulos, era uma forma bastante comum de simbolizar essa Irmandade entre os povos antigos. O Banquete de Platão é um claro exemplo disso. No caso de Jesus e seus discípulos o banquete da Páscoa, realizado na tarde da quinta-feira e não na sexta, como era costume entre os judeus, mostra a clara disposição de Jesus de realizar um novo pacto entre o povo de Israel e Deus. Por isso também ele reuniu exatamente doze discípulos, cada um simbolizando uma das tribos do antigo Israel.

5.As religiões em questão são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.

6.Nesse sentido veja-se a obra monumental de Teilhard de Chardin “O Fenômeno Humano”, Ed. Cultrix, São Paulo, 1968. Veja-se também Daniel Goleman, Inteligência Emocional, Ed. Objetiva, 1995.

O Fen7.ômeno Humano, op. Citado, pg. 186.

8. Daniel Goleman, PHD- Inteligência Emocional- Ed. Objetiva, pg. 25.

9. Jean Paul Sartre- A Náusea- Círculo do Livro, 1986. Essa “culpa”, essa fadiga, essa náusea de viver, segundo Sartre, é o reflexo do “castigo” dado ao homem pela desobediência. Ter consciência de si mesmo, e ao mesmo tempo sentir-se despregado de um todo, onde a vida lhe aparece como uma existência vazia e sem sentido, destinada apenas a preencher um espaço entre o ser e o nada. Essa é a verdadeira expressão da metáfora da expulsão do paraíso.

10. A Sabedoria da Cabala, op. citado, pg. 152.