quinta-feira, 19 de janeiro de 2017



O ILUMINISMO ESOTÉRICO, FILOSÓFICO E MAÇÔNICO


A questão do racionalismo

A partir do século XVII o racionalismo cartesiano invadiu as consciências de tal modo, que nada mais podia ser sustentado no terreno do pensamento e da experiência científica e social, se não fosse passível de ser reproduzida empiricamente, ou explicado com estrita clareza, ordem, concisão e exatidão. Toda e qualquer proposição formulada tinha que ser aceitável pelos parâmetros da lógica. A cultura pelo exato, pelo matematicamente provável, pelo passível de repetição nos laboratórios, expulsou dos meios intelectuais a antiga tradição esotérica dos filhos de Hermes, que escondiam nos símbolos os tesouros da sua ciência. Numa sociedade fundada sob a certeza de suas fórmulas, na organização de suas estruturas, na demonstração inequívoca de resultados, no amor pela evidência racional, não havia lugar para uma metafísica apoiada em símbolos que somente iniciados podiam desvendar, e mesmo assim, sem nenhuma prova incontestável que demonstrasse a verdade de seus postulados ou a certeza da obtenção de qualquer resultado concreto.
A “alta ciência” que se hospedava na pratica da alquimia e da Maçonaria operativa teve que se adaptar as exigências do racionalismo. Daí o nascimento da moderna Arte Real, com a introdução daqueles elementos que Ambelain chamou de caminho político da Maçonaria, onde se aliavam, segundo suas próprias palavras, “as melhores noções de progresso e evolução, e também, infelizmente, ideias novas, desconhecidas dos antigos franco-maçons, e que tenderiam, pouco a pouco, a minar certos valores que fazem a dignidade do homem, pelo ateísmo, pelo materialismo, o laxismo, que conduzem ao amoralismo desagregador.” [1]
Nesse sentido, pode-se dizer que a Maçonaria moderna foi uma concessão do espírito místico ao apelo da razão.
Talvez Ambelain tenha razão, porquanto uma disciplina que fala mais ao espírito do que á razão tem muito mais atrativos que as áridas “logias” ensinadas nas universidades oficiais. Afinal, para se adquirir uma sabedoria que se conforme aos limites de uma fórmula ou um silogismo, é suficiente freqüentar os bancos escolares, ou ser capaz de ler, com proveito, um bom livro. E não é isso que um espírito ávido por uma filosofia de vida, capaz de fornecer-lhe aprimoramento espiritual e ao mesmo tempo uma ética para a vida social, buscaria em uma sociedade iniciática. É nesse sentido que a chamada “profanização” da Maçonaria, como René Guénon entendia ter acontecido após a edição das Constituições de Anderson, talvez tenha prejudicado a influência psíquica dos ritos maçônicos e desmistificada a sua prática, pois a partir de então ela se tornou mais uma espécie de partido político com um utópico programa fundado em uma mística revolução social do que propriamente uma Ordem iniciática. Mas isso foi uma exigência do momento histórico, como nos mostra a própria histórica da Maçonaria enquanto instituição. A Maçonaria secularizada, como todas as instituições, precisava se adaptar ás exigências da cultura da época, que elegera o racionalismo como nova religião oficial.
Da interação entre as antigas tradições maçônicas e as ideias pregadas pelos filósofos iluministas nasceu uma nova ordem de idéias e práticas que podemos chamar de Iluminismo Maçônico.

O Iluminismo filosófico


Vejamos primeiro o que foi o Iluminismo filosófico, propriamente dito. Esse movimento, que teve profundas repercussões sociais e intelectuais, embora seja sempre creditado aos franceses, na verdade tem origem inglesa. Isso talvez ocorra pelo fato dos franceses, reconhecidamente melhores filósofos que os ingleses, terem entendido com mais propriedade as idéias iluministas. Por isso a primazia que se lhes concede sobre esse movimento intelectual que forneceu as bases para o pensamento moderno.
O Iluminismo foi o produto filosófico do racionalismo cientifico inaugurado por Francis Bacon e desenvolvido cientificamente por espíritos do porte de René Descartes e Isaac Newton. Eles, como os iluministas Voltaire, Montesquieu, Locke, Adam Smith, Kant e outros pensadores que lançaram luz sobre o pensamento ocidental, eram maçons, ou de alguma forma estavam ligados aos círculos maçônicos. Descartes, que nasceu em 1596, em pleno apogeu da Renascença e morreu em 1650, fase mais aguda das guerras religiosas, foi o verdadeiro pai do racionalismo. Acreditava na razão como única forma de conhecimento da verdade e tinha a matemática como a fórmula mais perfeita de demonstração. Seu método induzia a mente a estudar um objeto, partindo do particular para o geral. Através de cortes epistemológicos no objeto estudado, do isolamento e do estudo de uma parte do conjunto, ele acreditava que era possível obter conclusões sobre a totalidade dos objetos pertencentes aquele conjunto.

Partindo do estudo das realidades individuais, como o homem, ou do estudo da totalidade das realidades materiais, como o universo, a mente humana poderia organizar um conjunto geral de conhecimentos que abarcasse todo o saber universal, pois o mundo era uma grande máquina, organizado e controlado por leis exclusivamente naturais, que podiam ser deduzidas e conhecidas pelos instrumentos da razão. [2]
O universo cartesiano era um plano que podia ser definido em termos de extensão e movimento. Todos os conjuntos, grandes ou pequenos, obedeciam a uma lei geral de mo-vimento, neles imprimida por Deus. No homem, Descartes distinguia a dualidade espírito-matéria, sendo esta última construída a partir do movimento do primeiro.
O cartesianismo abalou profundamente as convicções teológicas da época, baseadas fundamentalmente na fé e na revelação divina como fontes únicas da verdade religiosa. Se a razão era a única forma de conhecimento, e só através dela se podiam conhecer as realidades do universo, inclusive as divinas, porque então se lutava tanto pela fé? Não seriam as questões éticas e morais mais importantes que a religião?
Muitos pensadores importantes passaram a se ocupar da questão. Barush Espinosa (1622-1677), pensador judeu-alemão, pôs em dúvida os dogmas do judaísmo, valorizando as concepções panteístas do universo que Pitágoras, Parmênides, Plotino e os hindus já haviam defendido. Nesse sentido, ele deu ênfase á ética e a moral como fórmulas mais eficazes que a religião, para a construção de um mundo mais justo e humano.
Thomas Hobbes (1588 — 1679), mais materialista que Espinosa, sustentou que o desenvolvimento da civilização se baseava na busca constante do prazer e na repressão á dor, dando origem á corrente filosófica que ficou conhecida como hedonismo. As idéias de Hobbes refletiram imediatamente no pensamento econômico da época, influenciando pensadores como Adam Smith (1723-1790), por exemplo, o mais importante dos economistas clássicos.
Como já foi dito, o Iluminismo propriamente dito, teve inicio na Inglaterra em 1680, tendo como seus precursores o cientista Isaac Newton (1643 — 1727), pai da teoria da gravitação universal, e o filósofo John Locke (1632-1704). Partindo das concepções cartesianas, que adotava a razão como único guia para o descobrimento da verdade, Newton, mais do que qualquer outro cientista do seu tempo, revolucionou o conhecimento que se tinha do mundo físico. Suas teorias a respeito do universo e suas leis de desenvolvimento permaneceram incontestáveis até o surgimento de Einsten.
Visceralmente inimigo do dogmatismo religioso, Newton introduziu na ciência o conceito mecanicista do universo, banindo a noção do milagre, da explicação dos fenômenos pela fé, do conhecimento da verdade pela revelação divina, afirmando que tudo no cosmo se explicava pela atuação de leis exclusivamente naturais. Como apóstolo convicto da liberdade natural, forneceu aos espíritos ansiosos pelo livre pensamento em todos os campos, o fermento necessário para o desenvolvimento das idéias iluministas que revolucionaram a filosofia nos séculos XVII, XVIII e XIX.
Jonh Locke, refutando qualquer influência divina na formação do espírito humano, pregou que o homem nascia “tabula rasa”, isto é, ele era, ao nascer, uma folha em branco na qual tudo ainda estava por escrever. Com essa concepção, Locke afastava qualquer idéia de predeterminação, qualquer explicação metafísica para o surgimento da consciência humana, qualquer forma de intervenção divina na estrutura psíquica do homem, que não fosse aquela que ele mesmo adquiria no decorrer da vida. Com isso o homem ficava livre para assumir o leme do seu destino, sendo ele mesmo o único responsável por tudo que lhe acontecia.
Dessa forma, os iluministas rejeitavam tanto o tradicionalismo cego da teologia calvinista com suas idéias de predestinação, pecado original e origem corrupta da humanidade, quanto o conteúdo dogmático da doutrina católica, que tinha no Papa e nos seus representantes o monopólio da intermediação entre Deus e os homens. O Iluminismo aparecia como uma religião liberal e otimista, onde todos poderiam se salvar através da sua própria atitude, da sua crença no progresso, sua fé em si mesmo.
Cada individuo tinha em si o caminho da salvação e não precisava de “intermediários’ entre ele e Deus. O que se precisava era de mais ética, mais moral, mais autonomia e mais liberdade de atitude e de pensamento, pois todos tinham direito a uma auto-realização. Assim sendo, que importância tinham os dogmas, as verdades religiosas, os paradigmas da religião? A luta pela fé perdia todo o sentido, pois somente a razão podia conduzir ao conhecimento da verdade. Destarte, a construção de um sistema moral e ético que conduzisse á felicidade geral era muito mais importante do que a luta para defender a crença numa “orientação divina”, que não existia nem nunca existiu.
Na França, o Iluminismo alcançou o apogeu com os trabalhos do grande Voltaire (François-Marie Arouet,1694-1778). Em razão das suas idéias libertárias, Voltaire enfrentou a prisão na Bastilha e o exílio na Inglaterra, onde se filiou ao grupo de pensadores e cientistas do Clube Real onde pontificavam Newton, Locke, Robert Fludd e outros. Recuperou, com base na nova ética e moral do Iluminismo, as idéias utópicas do estado ideal de ordem, harmonia e felicidade, situando-o em algum lugar na América do Sul. Nesse país imaginário, dizia ele, não há monges, nem padres, nem processos, nem governos autoritários e burocratas para infernizar a vida dos homens. Esse país seria governado exclusivamente pelas grandes leis da natureza. Era a aplicação do princípio da Maat egípcia, mas sem um faraó ou um estado organizado para encarná-la.
Voltaire foi o campeão da liberdade individual. Popularizou seu amor pela liberdade na famosa expressão “não concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo”. 

Outros grandes nomes do Iluminismo foram Denis Diderot (1713-1784), Jean d!Alembert (1717-1783), Claude Adrian Helvetius (1715-1771) e o Barão Holbach (Paul-Henri Thiry, 1723-1789). Os dois primeiros formaram um grupo conhecido como “Os Enciclo-pedistas”, pelo fato de terem colaborado na organização da Grande Enciclopédia Filosófica Universal, trabalho que pretendeu reunir todo o conhecimento filosófico e cientifico existente na época. Todos eles eram inimigos irreconciliáveis do obscurantismo e defendiam a educação como forma de eliminar as diferenças entre os homens, a pobreza, a ignorância e as guerras. Outros nomes importantes do pensamento iluminista foram Jean Jacques Rousseau (1712-1778) o poeta Lessing (Gotthold Ephraim 1729 – 1781) e os filósofos Mendelssohn, o compositor 1809 — 1847) e Emmanuel Kant (1724 — 1804), um dos maiores filósofos da época moderna. Todos eles viveram a maior parte de suas vidas e produziram suas obras na primeira metade do século XVIII. [3]

O Iluminismo influenciou os principais movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX que culminaram na organização política do mundo moderno. Na França as idéias iluministas estão no cerne da Revolução Francesa. Na América inspiraram Thomas Payne, Benjamim Franklin, Thomas Jefferson e outros, líderes da revolução que libertou a América do domínio inglês e estabeleceu as bases dos estados democráticos modernos. Todos eles filiados á Maçonaria. No Brasil, o Iluminismo se fez sentir principalmente entre os revolucionários da Inconfidência Mineira e os inspiradores da nossa Independência. [4]

O Iluminismo maçônico


O resumo histórico que fizemos acima teve por objetivo trazer para este trabalho a moldura na qual a Maçonaria moderna se inscreveu. O racionalismo e o iluminismo forneceram o fundo filosófico e cultural a partir do qual ela se definiu, e as lutas políticas e religiosas moldaram o desenho e a conformação que ela assumiu. Desse ponto de partida podemos começar um exercício semiótico. Podemos visualizar grupos de nobres, intelectuais, cientistas, militares e outras pessoas de responsabilidade nas sociedades em que viviam, descontentes com a ortodoxia das religiões oficiais, descrentes da filosofia que as orientava, cujo resultado só conduzira á desarmonia, á desordem, á guerra, á carnificina e á perpetuação das tiranias políticas; podemos ver como esses homens apaixonados pela liberdade, pelo livre pensamento, pelo exercício racional de uma prática religiosa, orientada mais pela razão do que pela fé, decidem procurar uma fórmula que agasalhasse, ao mesmo tempo, a sensibilidade de uma alma que acreditava na origem mágica do universo (presentes principalmente na alquimia, na cabala e na gnose) e a necessidade de uma nova religião, fundamentada na razão pura e na ação social.
Nasce, dessa forma, uma nova filosofia dentro das sociedades de pensamento, que então começavam a se propagar pela Europa a partir da interação entre os “fellow-crafts” das Lojas de companheiros e os “novos maçons aceitos”, cultores da filosofia hermética. Essa nova filosofia era uma espécie de Iluminismo Esotérico que apelava, ao mesmo tempo, para as inclinações profanas do homem desejoso de ser feliz no único mundo que conhecia, mas que também respeitava o sentimento religioso daqueles que acreditavam num universo governado por forças maiores que a razão humana e leis simplesmente naturais. Esses espíritos não queriam o materialismo ateu dos racionalistas ortodoxos nem a fé dogmática dos católicos escolásticos, como também repudiavam o visionarismo intolerante dos calvinistas e luteranos. Como desconfiavam também do catolicismo alternativo dos anglicanos, cujo fundamento era mais político que religioso. 
Eram pensadores formados na onda do racionalismo que varria a Europa, mas recusavam-se a crer que a aventura humana sobre a terra lhes reservasse mais que uma mera lembrança na memória das pessoas. Eles queriam acreditar que alguma coisa mais regia o universo e o processo de evolução da humanidade como um todo, e que essa evolução era sustentada na atuação dos indivíduos. Essa “alguma coisa” mais que regia o universo era o seu Grande Arquiteto. Por isso era preciso ajudá-lo nessa missão, criando um Homem Universal, que fosse capaz de realizar, na sociedade, o mesmo trabalho que o Grande Arquiteto realizava em relação ao universo.
A Maçonaria moderna nasceu, portanto, da fusão entre o pensamento mágico dos hermetistas, sensíveis ás tradições herdadas das sociedades iniciáticas, com o racionalismo iluminista. Buscava, em ultima análise, uma nova forma de gnose, ou seja, uma sabedoria que se fundamentasse, não mais na procura de um caminho para o divino através de construções materiais, como propunham a alquimia e a própria atividade maçônica operativa, mas sim através de uma prática ativa de virtudes éticas e morais, adquiridas através de uma adequada iniciação. Entre esses homens estavam Robert Fludd, Voltaire, o próprio James Anderson, André Michel de Ransay, Jean Teóphile Deságuliers e outros, malgrado suas inclinações religiosas e políticas.
E com eles muitos padres e pastores, descontentes com os rumos que a Reforma e a Contra Reforma religiosa estavam tomando. Havia também muitos judeus cristianizados, dissidentes do judaísmo ortodoxo, mas não totalmente convencidos para assumir, de todo o coração, as doutrinas do cristianismo. Esses, como vimos, eram os mestres praticantes da grande tradição da cabala. Eis, na nossa visão, as tintas, a moldura, a tela e o fundo nos quais se pintaria a figura dos novos Obreiros da Arte Real em suas roupagens modernas. É essa interação entre racionalistas e hermetistas que podemos chamar de Iluminismo Maçônico, eufemismo que podemos utilizar para designar a filosofia que orienta a prática maçônica,
É assim que se percebe, pelo desenvolver do ensinamento maçônico, que este nada mais é que a moral iluminista temperada por um forte apelo ao pensamento mágico, próprio dos hermetistas e dos filósofos gnósticos. Se de um lado ele propaga uma idéia moralista, que poderia ser encampada por qualquer escola filosófica do século XVIII ou XIX, o seu método é francamente iniciático, semelhante ao utilizado pelas seitas esotéricas da antiguidade ou os próprios discípulos de Hermes.
Nesse sentido, podemos dizer que a Maçonaria, na sua face especulativa, nada mais é que uma alquimia do espírito, e uma filosofia que se transmite não somente á razão, mas principalmente aos sentidos. O maçom que realmente entendeu o que é a Arte Real precisa incorporar o espírito do adepto e a mentalidade do filósofo. A Arte Real tornar-se-á então, uma nova Art d!amour, porque se dirige ao espírito do praticante;[5] é também um novo Iluminismo, praticado social e politicamente com a esperança de se construir uma humanidade melhor. Em nenhuma outra atividade humana, seja ela política, social ou intelectual, como bem salientou a professora Frances Yates, se casou tão bem o ideal hermético com a esperança iluminista, como aconteceu na Maçonaria.(6)
A partir daí, tudo foi costurado num catecismo que utiliza o simbolismo da arquitetura como estrutura de sustentação e as diversas manifestações espirituais da humanidade, em todos os tempos, como processo de construção de um sistema de ensino, que busca, em última análise,educar pessoas para o exercício consciente e eficaz da cidadania e uma prática de vida capaz de gerar e sustentar uma sociedade justa e harmônica. Em outro sentido, a utopia sonhada pelos místicos filósofos da Renascença e pelos iluministas que o seguiram.

[1] Robert Ambelain- A Franco Maçonaria , citado, pg. 86
[2] Na imagem, o filósofo Renê Descartes. Enciclopédia Barsa.
[3] Na imagem, Emmanuel Kant, um dos maiores filósofos da época moderna.
[4] No Brasil destacam-se os nomes de José Bonifácio de Andrada e Silva e Gonçalves Ledo, maçons cujo pensamento iluminista influenciaram sobremaneira os acontecimentos que culminaram com a indepen-dência brasileira. Vide a esse respeito a obra essencial de José Castelanni e William Almeida de Carvalho, História do Grande Oriente do Brasil- Madras, São Paulo, 2009.
[5] Art d’amour era um dos termos que se aplicava á alquimia. 
6. Frances Yates- Giordano Bruno e a Tradição Hermética-Cultrix S.Paulo, 1986.
João Anatalino

terça-feira, 17 de janeiro de 2017



A ORIGEM DO BANQUETE


Imagem da disposição das mesas e cadeiras no banquete ritualístico

(HISTÓRIAS)


Texto extraído do livro Banquete de Roy Strong.

É comum, na Arte Real, se realizar banquetes ritualísticos por ocasião dos Solstícios e Equinócios, no entanto, pouco se sabe a respeito da origem dos banquetes.

Há um livro muito interessante intitulado “Banquete – Uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa” de autoria de Roy Strong, que é muito interessante e aborda o assunto desde a antiguidade.

Isso nos leva crer, que ao contrário do que muitos possam imaginar, nossas tradições vêm de épocas remotas e foram se adaptando ao tempo.

No caso específico iremos verificar que os banquetes surgiram muito tempo antes da culinária grega e romana, mais precisamente na Mesopotâmia, e foi evoluindo, tomando forma, até chegar a dos dias atuais.


A análise de resquícios deixados pelos sumérios levou os historiadores a acreditar que os mesopotâmicos eram povos descendentes dos nômades e teriam herdado o costume de criar cabras e carneiros, dos quais extraíam os principais elementos de sua alimentação. Painel “Paz” do Estandarte de Ur: na parte inferior, servos guiam o gado e transportam fardos atados com cilhas à cabeça, ao jeito dos trabalhadores curdos. Na parte central, pastores com vitelos e carneiros. Ao alto, um banquete com o rei, a corte e músicos. 

Esses banquetes foram descritos em relevos, oferendas, figuras de sacerdotes e governantes, celebrações de vitórias militares ou construções de templos.

Basicamente o Banquete está e estará sempre ligado ao convívio de pessoas e a um ritual onde, quase sempre, há uma certa hierarquia, um certo respeito, mesmo nos jantares de gala da Inglaterra.

Nos textos que se seguem, extraído do livro citado, das págs. 11/43, podemos ver quão interessante é a narrativa sobre o Banquete e, portanto, aqueles que tiverem interessados, vale a pena ler essa obra de Roy Strong.

CONVÍVIUM: Em Roma...


“A mais famosa descrição que temos de um banquete aparece no que sobreviveu de uma sátira do século I, Satyricon, de Petrônio. O anfitrião Trimálquio que havia sido escravo, era um aproveitador, especulador de alimentos, fanfarrão, bêbado e batia na mulher. O livro si trata das aventuras de um par de homossexuais, Encólpio, o narrador e seu amigo, o jovem Gitão. No episódio conhecido como Cena Trimalchionis está presente também um terceiro personagem sem escrúpulos, Ascilto, que decide separar os amantes. Encólpio e Ascilto são convidados do banquete de Trimáquio, e Gitão é levado junto, como servo dos dois”.

“O episódio começa com os três visitando os banhos. Os dois convidados já estão vestidos com “roupas de festa” e mostram-lhe o anfitrião jogando bola com os escravos. O que se segue prepara o cenário para uma extravagância de vulgaridade: ”Trimálquio estala os dedos e a este sinal, o eunuco apresenta-lhe o urinol, enquanto ele continua jogando. O anfitrião esvazia a bexiga, pede água para lavar as mãos e, depois de molhar levemente os dedos, enxuga-os nos cabelos do escravo”.

“Ao chegar à casa de Trimálquio (provavelmente em Puteoli, não muito longe de Nápolis), os hóspedes são recebidos por um porteiro e levados por uma galeria cercada de colunas e decorada com cenas alegóricas glorificando o anfitrião. Na entrada da sala de jantar um escravo exorta-os a entrar com o pé direito, o que eles fazem, e logo encontram um servo despido, prestes a ser chicoteado, que se prostra a seus pés implorando para que o salvem desse destino. Eles acedem. ”

“Daí em diante o texto é um longo catálogo de surpresas. Na sala de jantar o escravo resgatado cobre-os de beijos e revela ser o mordomo, prometendo-lhes bons vinhos. Escólpio e Ascilto instalam-se em almofadas e são servidos por escravos, que parecem “um grupo de dançarinos”. Eles lhes oferecem água gelada (uma proeza naqueles tempos anteriores à geladeira) para lavar as mãos e vinho. Surpreendentemente cortam-lhes as unhas dos pés, enquanto os escravos cantam em coro”.

“Depois que os hóspedes – são vários, inclusive (entrando e saindo) a esposa de Trimálquio, Fortunata, e outra esposa, Cintila – tomam seus lugares, a refeição tem início com um hors d´oeuvre (gustativo) ”:

“No prato de entrada havia um jumento de bronze corintiano, carregando uma cesta dupla, com azeitonas verdes de um lado e azeitonas pretas do outro – pequenas pontes soldadas atravessam os pratos; continuam arganazes (uma espécie de esquilo pequeno) mergulhados em mel e polvilhados com sementes de papoula. Havia também salsichas quentes numa grelha de prata e, por baixo, ameixas e sementes de romã”.

“Nesse momento, Trimálquio, enfeitado de púrpura e joias, entra numa liteira ao som de fanfarra. Sem se desculpar com os convidados por chegar após o primeiro prato ter sido servido, instala-se no lugar habitualmente destinado ao hóspede mais importantes. O mesmo, então, continua ignorando os convidados, sem interromper um jogo de tabuleiro. Escravos trazem uma grande travessa com uma cesta contendo uma galinha de madeira com as asas estendidas, no ato de pôr ovos. Ao “som ensurdecedor da música” os escravos pegam na palha, debaixo da galinha, grandes ovos pesando 250 gramas, feitos de farinha de trigo e fritos em óleo. Os ovos são distribuídos entre os convidados que, ao abri-los encontram passarinhos enrolados em gema de ovo temperada”.

“O texto indica que o primeiro prato era acompanhado de uma taça de vinho adocicado (provavelmente do tipo chamado mulsum), pois Trimálquio oferece aos convidados uma segunda taça “quando a um subido toque musical, os pratos de hors d´oeuvre são retirados simultaneamente pelo grupo de cantores”. Uma das travessas de prata cai, mas o escravo que a apanha leva um tapa na orelha e é obrigado a deixa-la no chão para ser varrida com o resto do lixo”. 

“Segue-se um novo excesso: as mãos dos convidados não são lavadas com água, mas com vinho, por dois etíopes de bacelos compridos. Surgem jarras de vidro com vinho de Falerno de “cem anos de idade”. Ocorre então uma coisa estranha: um escravo traz um esqueleto de prata, e Trimálquio arruma-o à mesa numa série de posições diferentes. O primeiro prato da cena propriamente dita é uma travessa circular com iguarias para cada signo do Zodíaco – rins para Gêmeos, carne para Touro, grão-de-bico para Capricórnio, e assim por diante. No centro um quadrado de turfa sustenta um favo de mel. Um escravo egípcio serve pão, aparentemente ainda cantando pois Trimálquio o acompanha “com uma canção estridente”. Encólpio e Ascilto que são aristocratas e todo o tempo zombam da vulgaridade de tudo, lamentam a perspectiva de terem de se alimentar com comida plebeia. Mas subitamente quatro escravos dão um salto e revelam que o Zodíaco é apenas uma tampa que eles abrem”:

“Vimos aí galinhas, úberes de porcas e no centro uma lebre com asas, um verdadeiro Pégaso. Vimos também quatro representações de Marsias nos cantos do prato, de seus odres perfurados jorrava vinho sobre os peixes que, por assim dizer, nadavam num canal”.

“Todos, inclusive os servos, aplaudem e aparece um trinchante que corta a carne ao ritmo da música”.

“Seguem-se comentários frívolos. Trimálquio, ostentando uma pretensa erudição, anuncia que “mesmo quando jantamos devemos fazer avançar o conhecimento”, e dá uma explicação sobre o simbolismo da tampa zodiacal. Todos aplaudem com ar servil. Escravos trazem para o triclínio[1] colchas com cenas de caça pintadas, enquanto cães de caça espartanos saltam para dentro da sala anunciando a chegada do segundo prato”:

“...uma bandeja com um poderoso javali, usando o boné da liberdade. De seus dentes prendiam duas pequenas cestas de folhas de palmeira, uma cheia de tâmaras frescas e a outra com a variedade egípcia seca. O javali estava cercado de porquinhos feitos de massa, amontoados em suas tetas”.

Triclínio

“Os porquinhos são dados de presente. Entra um trinchador vestido em roupas de caça e enterra a faca nos flancos do javali, de onde voam tordos, que ficam volteando pela sala até serem capturados. A carne é então servida junto com as tâmaras, “ao ritmo da música”. Enquanto isso, um belo menino escravo vestido de Baco canta poemas de Trimálquio que logo depois se dirige ao lavatório”.

“A festa parece não ter fim. É servido um porco que ao ser trinchado despeja salsichas e morcelas, surgem acrobatas, atores declamando em grego, coroas de ouro e jarras de perfume descendo do teto, presentes para todos, bolos espirrando açafrão nos convidados, e por fim vem a sobremesa (secundae mensae). Consistia de tordos de massa recheados de passas e nozes, havia também marmelos com espinhos enfiados, parecendo ouriços do mar... um ganso gordo cercado de todos os tipos de pássaros”.

“Escravos trazem ânforas de onde cascateiam ostras e vieiras. Chegam cogumelos numa rede de prata e meninos de cabelos compridos lavam os pés dos hóspedes com perfume e enfeitam suas pernas com guirlandas. A esta altura todos estão bêbados, e a história termina com Trimálquio reclinado como um cadáver, enquanto os músicos tocam uma marcha fúnebre e leem seu testamento em voz alta. Neste ponto, Encólpio, Ascilto e Gitão se retiram”.

“O que devemos apreender da “Cena Trimalchioris”? É um quadro preciso, afora as distorções da pena de um satírico, de um convivium ou jantar festivo romano? A resposta, surpreendentemente, é que a Cena Trimalchioris” se aproxima mais da realidade do que uma primeira leitura pode sugerir. Ao que parece, o autor é Petrônio Arbiter, político arbiter elegantarium da corte de Nero, que foi obrigado a cometer suicídio em 66 d. C; assim, pode-se supor com bastante segurança que o Satiricon tenha sido escrito entre 63 e 65. Qualquer pessoa que tenha familiaridade com os relatos de Suetônio sobre os excessos de Nero encontrará muitas características daquele notório imperador incorporadas em Trimálquio. E mesmo considerando a sátira, um convivium daquele período podia muito bem ser uma questão de extremos”.

“O jantar de gala era um acontecimento determinante na sociedade romana do primeiro século. Trimáquio pertencia às classes emergentes, um liberto decidido a impressionar seus convivas pela opulência explícita de sua hospitalidade. Em meados do primeiro século essa refeição já havia alcançado o alto nível de rituais e artifícios. Era preciso vestir roupas especiais. As visitas aos banhos como prelúdio estabelecia que tal banquete ocorria na parte do dia dedicada ao otium (lazer) e não ao negotium (negócio). Os convivas levavam servos e instalavam-se em sofás (pois os romanos jantavam reclinados), numa certa ordem que denotava seu status. (Petronio chama a atenção para a maneira pela qual o anfitrião usurpou o lugar – locus consulares – que deveria ter sido dado ao conviva mais importante). A refeição dividida em três partes parecia um espetáculo teatral, com músicos e um grande elenco de servos cantando com coro enquanto serviam, lavando mãos e pés, cortando as unhas dos pés dos convidas e distribuindo guirlandas. A culinária era pródiga e elaborada, com comidas esculpidas como lebre com asas e marmelos disfarçados de ouriço. Era também programada para espantar os convivas com surpresas constantes, como o porco recheado de salsichas e morcelas. Além dos espetáculos de cantores, dançarinos, acrobatas e atores, algum tipo de diálogo erudito também tinha papel importante. Em suma, essa refeição era o epítome das aspirações de uma época e um alvo perfeito para a sátira, ao expor sua vacuidade”.

“Mas a zombaria da tolice significa, é claro, que existia o tipo oposto de convivia, reuniões que refletiam a essência da sociedade ordenada, como os romanos a definiram. Como mostrarei, cada época produziu seu próprio festejo arquetípico. O convivium era tão determinante para os romanos quanto o jantar de cala para os vitorianos. Desde o início, o ato de comer em conjunto transformou uma função corporal necessária em algo muito mais significativo, um evento social. Supunha a aceitação de normas sobre o desenrolar da reunião. No mundo da Antiguidade clássica, esta foi uma das primeiras ações que distinguiu homens civilizados dos semisselvagens. O convívio, tanto para gregos como para romanos, era visto como uma das pedras angulares da civilização, embora ambígua e complexa. A mesa e os convidados que se reuniam em torno dela para partilhar seus prazeres podiam ser um veículo de agregação e unidade social, mas podiam também encorajar distinções sociais separando as pessoas em categorias pela colocação dos lugares, ou, pior ainda, pela exclusão. Para os poucos escolhidos, comer em conjunto era uma expressão do princípio da oligarquia, uma refeição para as massas da democracia. A comida oferecida a um superior expressava humildade e subserviência por parte do anfitrião. A reunião de iguais demonstrava a comunhão do grupo. A refeição e tudo o que a ela se ligava era, e em larga medida ainda é, um veículo determinante de status e hierarquia – e também aspiração -, qualquer que seja o padrão dominante da sociedade. Isso era bem claro na época da Cena Trimalchioris, quando já tinha alcançado uma forma de expressão muito sofisticada. No entanto, constituía uma tradição que os romanos haviam tomado dos gregos e, antes deles, das antigas civilizações do Oriente Próximo. É com estas culturas mais antigas que devemos começar”.

A HERANÇA GREGA


“Já no segundo milênio antes de Cristo, partilha comida e vinho como contraponto social para um contrato escrito – como ocorre num casamento ou num tratado – era costume estabelecido entre os babilônios. Os monarcas mesopotâmicos produziam banquetes estupendos para acontecimentos importantes, como uma vitória militar, a chegada de uma embaixada, a inauguração de um novo palácio ou templo. A etiqueta nessas ocasiões era sofisticada: o rei sentava-se à parte, reclinado num divã, com a rainha por perto e os convidados colocados em grupos, segundo seu status. Servir o vinho envolvia um grande cerimonial. Havia o ritual de lavagem das mãos – os convidados recebiam um frasco de óleo perfumado com cedro, gengibre e murta, com o qual se untavam no começo e no fim da refeição. Carnes cozidas e grelhadas eram servidas em fatias de pão, seguidas por uma sobremesa de frutas e tortas adoçadas com mel. Havia também música, canto, malabaristas, palhaços, lutadores e atores”.

“Tais festividades se realizavam em grande escala. Assumasirpal II (883-859 a. C) inaugurou seu novo palácio com uma festa que durou dez dias, para nada menos de 69.574 convidados. Eventos desse tipo tinham um papel da maior importância na política dinástica. As provisões consumidas mostravam claramente a todos os presentes que o soberano poderia dispor de tributos de todo o vasto domínio persa. A comida e a bebida trazidas de regiões remotas enfatizavam a prepotência do governo, e a própria refeição deixava manifesta a aliança da monarquia com grandes famílias aristocráticas. Um aspecto desse grande espetáculo é especialmente significativo para a história da mesa. Os representantes dos domínios reais que desejavam bajular o rei enviavam deliberadamente iguarias para tentar o paladar real e o apetite dos convidados poderosos. Desde essa época bem no início de nossa pesquisa, um fenômeno é evidente: o uso de ingredientes raros e o desenvolvimento da haute cuisine (alta cozinha) como decorrência da hierarquia ligavam-se claramente à manipulação de um grupo por outro com finalidades sociopolíticas”.

“De maneira semelhante, no Antigo Egito o banquete era um importante ritual social. As pinturas nas paredes dos túmulos provam isso. Vemos convidadas oferecendo flores, provavelmente ao chegar, a comida servida em procissão, inúmeros servos, música e dança. O banquete, mesmo naqueles tempos remotos, já era uma experiência estética que ia muito além do mero consumo da comida, abarcando a elegância da roupa, tipos de condutas, cerimonial e todas as formas de entretenimento teatral”.

“Tudo isso teria uma profunda influência sobre a Grécia, que se tornou uma importante civilização a partir de unidades agrícolas isoladas e de pequenas cidades muradas, como é relatado na Ilíada e na Odisseia. Contudo, até mesmo na sociedade homérica o banquete era lugar de ostentação e prestígio. Nas palavras do herói Odisseu”:

“Quanto a mim, digo que não existe alegria mais completa do que o povo tomado de contentamento e os comensais nos salões, sentados na ordem estabelecida, escutando um menestrel à sua frente as mesas supridas com pão e carne, o vinho despejado dos vasos e servido nos copos em várias rodadas. Isso parece, para meu espírito, a mais bela coisa que existe”.

“Temos aí, já presentes, todos os elementos do banquete cerimonial: música e canto, lugares distribuídos de acordo com o status e o papel simbólico dos escanções[2]. Mas a Grécia antiga iria ainda mais longe e desenvolveu uma cultura culinária muito mais complexa, deixada como legado para Roma”.

“A cozinha da Grécia era baseada nos mar. A variedade de peixes em suas águas era imensa: atum, peixe-sapo, salmonetes, tainha, enchova, lúcio, bagre, congro, arraia, esturjão, carpa, peixe-espada, brema, cação. A esses acrescentem-se o polvo, lula, siba, ostra, caranguejo e lagosta. A carne era muito valorizada, mas relativamente rara. Em todas as sociedades primitivas os animais domésticos tornavam-se muito mais necessários pelo leite, pela e para o trabalho na terra do que para consumo. Mas os gregos comiam carneiros, porcos, bodes e caça, e também animais menos atraentes para as sensibilidades modernas, como cachorros e cavalos. A caça incluía lebres, javalis, cabras, asnos, raposas, veados e leões, bem como presas de penas, como tordos, tentilhões, cotovias, codornas, galinhas d´água, gansos, pombos, patos selvagens e faisões. Havia aves domésticas. Quanto aos vegetais, a variedade era também considerável, à medida que a horticultura evoluía: aipo, agrião, aspargo, beterraba, repolho, alcaparra, couve, alcachofra, chicória, endívia e funcho. Quanto aos frutos, havia azeitonas, marmelos, ameixas, cerejas, melões, maças, figos, pepinos, peras e uvas, assim como diversas nozes. As uvas forneciam vinho e as azeitonas azeite. Ambos os produtos foram básicos para a evolução da gastronomia greta. A todos esses ingredientes adicionemos os prestigiosos temperos importados, especialmente a pimenta vinda da China, Índia, Arábia e África”.

“O pouco que sabemos da culinária grega vem de uma obra de Ateneu de Naucratis, no Egito, intitulada: “Os Deipnosofistas” (o banquete dos sofistas). Foi provavelmente concluída no ano seguinte à morte do imperador Cômodo, em 192 d.C. Inclui 15 livros e tem a forma de uma série de conversas ficcionais que aconteciam durante os jantares em Roma, onde erram discutidos inúmeros tópicos, inclusive gastronomia na Grécia Antiga. Graças ao hábito do autor de incorporar grandes trechos dos escritos de outras pessoas. “Os Deipnosofistas” nos dá muitas informações sobre uma época que de outro modo estaria envolta em obscuridade. Em particular, incorpora passagens do mais antigo autor que se conhece sobre comida e culinária, Arquestrato, um grego nascido na Sicilia no século IV a. C”.

“A gastronomia grega desenvolveu-se a partir da prática do sacrifício. A carne, como já observei, era relativamente escassa e disponível principalmente após o sacrifício de um animal doméstico aos deuses. Em tais ocasiões era dividida em porções iguais e assada (o fato de ser dividida em porções iguais e distribuída por sorteio significava que não existia a profissão de açougueiro. Mas a paixão dos gregos, certamente a dos atenienses, eram os frutos do mar, que, como não faziam parte do igual religioso, eram uma comida totalmente profana). Com a invenção do fundamento da gastronomia – o caldeirão -, a carne ou o peixe podiam ser cozidos ou guisados. Então os mais sofisticados começaram a adicionar outros ingredientes à panela, como sal para intensificar o gosto, ou mel para adoçar ou a fragrância de ervas e especiarias. Desta maneira nasceu a arte culinária, que, no caso dos gregos, rapidamente se tornou bastante sofisticada. O texto de Ateneu contém nada menos que 30 referências a livros de cozinha gregos, sendo que o primeiro pode ser datado do século V a. C. Grande parte das habilidades culinárias que registra parece ter chegado à Grécia com cozinheiros da Sicília, nos séculos IV e III a. C. Também nesse período o comércio de vinho havia se desenvolvido completamente com diferenças geográficas já reconhecidas. A culinária de então incluía um grande número de pratos de carne e de peixe bastante complexos, bem como, um repertório de biscoitos, pães e bolos”.

“O objetivo era alcançar um equilíbrio entre o doce e o amargo, entre o ácido e os sabores bastante fora do comum. Isso envolvia o uso de um vasto conjunto de ervas e especiarias frescas ou desidratadas, juntamente com mel e vinagre, e um ingrediente que também era básico nas cozinhas subsequentes de Roma e de Bizâncio – o molho de peixe chamado garos em grego, e garum em latim. No garos o peixe era misturado com sal, fermentava por até três meses, depois era coado, e o líquido engarrafado. Desde tempos remotos sua produção já era feita segundo uma linha de montagem”.

“Apenas alguns fragmentos desses livros de culinária do século V e IV a. C. sobreviveram, mas eles deixam claro que ao final do século V a. C. a civilização grega havia dado nascimento a uma literatura completa e interconectada, englobando dieta, saúde, exercício e higiene, bem como culinária. Além do mais, os gregos foram os primeiros a reconhecer a culinária como uma das habilidades e artes básicas da vida humana. A dieta no mundo antigo era vista sobretudo como um meio de prevenir e curar doenças. Baseava-se numa visão quase universal de que o corpo humano era composto por quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, cada qual com sua característica própria: quente e seco (sangue), frio e seco (fleuma), quente e úmido (bílis amarela) e frio e úmido (bílis negra). Todos elementos incorporavam um ou mais desses atributos. O equilíbrio perfeito, essencial para manter o corpo saudável e livre de doenças, dependia de uma alimentação capaz de corrigir qualquer desequilíbrio no sistema”.

“Esse desequilíbrio não era apenas uma característica inata do ser humano individual, também variava com a idade e as estações do ano. Assim, por exemplo, homens idosos deviam evitar amido, queijo ou ovos cozidos. E as comidas consumidas no inverno deveriam ser mais quentes, fortes e secas que as do verão. O conjunto desta teoria foi mais tarde compilado na obra de Galeno (129-199/216 d. C), médico da corte do imperador Marco Aurélio, cujos trabalhos sobre medicina, dieta e higiene especificavam o que exatamente cada pessoa deveria comer, segundo sua disposição humoral. Galeno foi a autoridade máxima sobre dieta, desde o fim da Antiguidade, ao longo da Idade Média e até o Renascimento”.

“Como eu disse antes, em “Os deipnosofistas” há muitas passagens de escritos anteriores. Duas delas nos dão vislumbres preciosos e detalhados sobre os banquetes na Grécia. Um poema intitulado “O Banquete”, de Filoxeno de Leucas, descreve uma festa que pode ser datada do final do século V ou começo do século IV a. C. Trata-se de uma produção muito elaborada, que poderia ter ocorrido numa cidade como Atenas no início do século IV a. C. Havia apenas homens presentes, reclinados em divãs, com uma pequena mesa à mão. A festa começava com a ablução das mãos e a distribuição de grinaldas de murta. Chegavam então “cestas de pães de cevada brancos como a neve”, seguidas por uma sucessão de belos pratos de peixe; enguia, cação, arraia, lula, siba e camarões glaçados com mel. Havia também “passarinhos de maça folheada”. Em seguida vinha a carne: porco, cabrito e carneiro, tanto cozida como assada, salsichas, frangos, pombos e perdizes. “Croissants”, escreve ele, “fofos e macios, eram servidos com coalhada”. Depois de tudo isso, escravos lavavam de novo as mãos dos convidados e os presenteavam com grinaldas de violetas. Vinha então mais bebida e o que era chamado pelos romanos de “segundas mesas” (secundae mensae): “conchas de massa doce”, panquecas, bolos, queijo e gergelim, doces, amêndoas e nozes”.

“O segundo texto é uma longa citação de uma carta escrita por um certo Hipólogo descrevendo a festa de casamento de Carano, rei da Macedônia, em 275 a. C. aproximadamente um século havia transcorrido desde Filoxeno, e o crescimento da opulência e do espetáculo sob a influência do Oriente é quase espantosa. Esse banquete era para 20 homens, cada um com seu escravo. Havia uma abundância de utensílios de mesa em ouro e prata, e por duas vezes, os convidados foram presenteados com argolas de ouro. Após os pratos de abertura, partilhados com os escravos acompanhantes, foram distribuídas grinaldas de flores. Então, uma surpresa: “De repente irromperam moças cantando e tocando flauta e algumas harpistas de Rodes, penso que estavam nuas, mas alguns dizem que vestiam túnicas...” Após este frisson, apareceram mais moças, desta vez carregando frascos de ouro e prata com perfumes para os convidados. A refeição foi reiniciada com a chegada de um porco assado numa grande travessa de prata, que, como a do banquete de Trimálquio, vomitava “tordos, tiberes e um número infinito de beccafici (literalmente papafigo, isto é, passarinhos minúsculos), com gemas de ovo derramadas por cima”. O cardápio incluía ostras grelhadas e vieiras, cabritos inteiros (junto com recipientes individuais, para que os convidados empanturrados pudessem levar comida para casa, se quisessem), peixe grelhado e um javali assado num espeto. Era servido vinho quente em grandes taças de ouro e havia muitas abluções entre as sequências de pratos, terminando o evento inteiro com as habituais “segundas mesas” de frutas, nozes e bolos. Acompanhando essa maratona culinária havia o que era considerado uma produção teatral que incluía “dançarinos fálicos”, bufões, mulheres acrobatas nuas e um coro de cem vozes masculinas fortes cantando um hino nupcial, seguido por dançarinas fantasiadas de ninfas e nereidas. Por esse relato vemos que o banquete como teatro já havia desabrochado plenamente na segunda metade do século III a.C”.

“Os gregos ricos faziam uma refeição principal por dia, no início da noite. Qualquer tipo de alimentação formal era exclusividade dos homens, mulheres e crianças ficavam excluídas. Meninos mais velhos podiam estar presentes, mas sentavam-se no divã do pai ou de um amigo. Antes de tudo, a sociedade era patriarcal. Essa refeição, conhecida como deipnon, era separada do symposion, destinado exclusivamente à bebida comunal que se seguia. A sala iluminava-se por lâmpadas suspensas, perfumadas com óleo e folhas de cheio suave. A refeição era servida por escravos, que começavam oferecendo pães de trigo e de cevada em cestas. Vinha então uma espécie de hors d´ouvre – frutas frescas, mariscos, passarinhos assados, esturjão e atum salgado, além de acepipes de carne com molhos extremamente temperados. Seguia-se peixe fresco e a refeição culminava com carneiro cozido ou assado no espeto. Então tudo era limpo para as “segundas mesas”: bolos, nozes, frutas secas e queijos. A mistura ritual de vinho com água assinalava o começo do symposion”.

“Até aqui apenas esbocei o papel da refeição na sociedade grega. Seu significado interno era profundo e fundamental para a operação da pólis. Na Grécia antiga, comer e beber em conjunto eram expressões de igualdade – igualdade entre membros de um grupo distinto que partilhava os mesmos valores e também o poder político. Tanto na fase oligárquica como na democrática, as cidades gregas eram governadas por círculos maiores ou menores, compostos exclusivamente por cidadãos masculinos. Mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não tinham lugar nesse esquema. Dentro da estrutura de poder, o banquete cívico surgiu numa data remota, como uma forte expressão comunitária da unidade entre os cidadãos da polis. Esse acontecimento tinha como elemento central um sacrifício sangrento feito para os deuses, após o qual a carne era dividida igualmente entre os cidadãos, cozida e comida em conjunto. A admissão no banquete garantia a cidadania, e embora a festividade assumisse a natureza de uma liturgia de Estado, era extremamente agradável para os que nela tomavam parte. Realmente ninguém, até o advento dos moralistas clássicos e mais tarde dos primeiros pais da Igreja, escreveu uma única palavra de condenação. Os banquetes cívicos eram vistos como uma necessidade, um meio de sustentação da ordem política da cidade-estado. Portanto, comer em conjunto tornou-se uma atividade tão importante das classes governantes que em Atenas, c.480-460 a. C., foi construído um edifício especial onde a comissão formada pelos 58 governantes da cidade comia juntos todos os dias”.

“É claro que a forma dessas festividades comunitárias mudou ao longo dos séculos. No entanto elas sempre se realizavam nos feriados públicos que homenageavam um deus, ou junto, por exemplo, com jogos. Eurípedes, em “Íon”, faz uma descrição muito rica de tal celebração, um verdadeiro retrato em palavras. O banquete realizou-se numa tenda cuja decoração, incorporando temas dos mitos atenienses, sugeria que a descrição talvez refletisse bastante bem a realidade”:

“E logo o jovem em pé, pano por pano,
Sua tenda levantou, com cuidado para não encontrar
Os raios ardentes do meio-dia ou do entardecer
Um quadrado de alguns metros ele fez para receber
Como convidado, se fosse preciso, todo o povo de Delfos.
Então tecidos da reserva sagrada ele tirou
Para revestir o arcabouço, coisas maravilhosas para os olhos.
Primeiro, para o teto, uma ala de bordados
Estendeu...
Nos lados, também havia outros bordados
De arte oriental, navios de guerra com proas que corriam
Para afundar navios gregos e formas metade animal, metade homem,
E veados perseguidos a cavalo, e a caça
De leões preando na floresta.
Então, no meio da tenda
Colocou grandes vasilhas para misturar e adiante mandou
Um arauto que, na ponta dos pés, gritou
Que todos os delfianos que quisessem podiam entrar
E partilhar do banquete. Quando a sala estava cheia,
Todos foram coroados com flores, e
Abundante era a festa”.

“Havia na verdade muitas formas de jantares comunitários na Grécia antiga, mas todos começavam por um sacrifício de sangue, seguido de comida e finalmente de bebida. A divisão entre os dois últimos elementos, entre a refeição e a festa da bebida, talvez fosse a mais marcante. Era um arranjo herdado pelos romanos e que persiste até hoje na Inglaterra, onde em algumas casas as mulheres deixam a sala de jantar, enquanto os homens lá ficam, entregando-se a muita bebida e muita conversa. Na Grécia antiga essa parte da ação, o symposion era de longe a mais importante, exigindo a observância de regras e rituais elaborados”. 

“A palavra symposion aparece pela primeira vez no século VII a. C. Lá pelo século V construíram-se salas específicas para festas ou salas de jantar quadradas e projetadas inicialmente para sete divãs, e mais tarde para 11. Cada um deles acomodava dois homens. Normalmente a sala tinha três divãs por parede, sendo que a parede da frente tinha um a menos, para caber uma porta fora de centro. Os divãs podiam ser de pedra ou madeira. É crucial lembrar que tais ambientes eram prerrogativas de uma elite”. 

“Existem alguns conjuntos deles em santuários onde o sacrifício de sangue era feito antes do deipnon e do symposion. Os que estavam abaixo na escala social faziam piqueniques do lado de fora”.


“O symposion era uma festa na qual se bebia, mas não constituía de maneira alguma uma orgia. O vinho ocupava um lugar central na Grécia Antiga. Era tido como um presente divino e uma benção dos deuses, com poder para curar tristezas, induzir o sono, diminuir as preocupações e aliviar as misérias. Portanto atribuía-se muito poder ao deus do vinho, Dioníso. Mas nunca se bebia vinho sem misturá-lo com água. Tal prática era uma característica que distinguia o homem civilizado do bárbaro”.

“A separação entre o symposion e a refeição era enfatizada pela limpeza do chão, a ablução das mãos e a presença de traças e guirlandas de flores. Os homens reclinavam-se nos divãs, os jovens sentavam-se; a passagem para a idade adulta eventualmente dava-lhes o direito de se reclinarem. Os divãs eram posicionados na sala de modo que cada conviva pudesse ver os demais. O primeiro ato era a escolha de um symposiarca, cujo dever era definir a ordem do dia e – mais importante – decidir a mistura entre água e vinho na krater que ficava no mio. Vinha depois uma libação dedicando a krater a Zeus e aos deuses olímpicos, enquanto, acompanhados por uma flauta dupla, os presentes contavam em coro, dois hinos em homenagem aos heróis e mais três em homenagem a Zeus Soter (Zeus salvador, nos momentos de necessidade). ”

“Aquele era um pequeno mundo à parte, um universo masculino. O symposiarca definia o que ia acontecer: o tema dos discursos, as músicas a serem tocadas, o tipo de mímica e de dança a serem apresentadas ou as competições que se dariam entre os participantes. Também podia ser um ponto para encontros homossexuais. Platão, em Symposium (c. 385 a. C) descreve como Alcibíades tentou seduzir Sócrates durante um evento desses. Às vezes a festa era animada pela incursão dos akletoi, pessoas famintas que eram alimentadas e obrigadas a “representar”, revelando assim (ou melhor, sendo forçadas a revelar) sua inferioridade social. O desfecho podia muito bem ser uma procissão com os participantes embriagados cantando pelas ruas”.

“O Banquete de Xenofonte (430 a. C) é de longe a mais viva evocação de uma dessas ocasiões. O jantar e o symposion são dados por Calio em homenagem ao herói dos jogos pan-atenienses, Autólico. Sócrates é um dos convidados. A conversa é inteligente, flui com vivacidade, e a noite é animada pelos gracejos de um bufão profissional, um flautista, uma dançarina e prestidigitadora, e um menino que tocava lira, cantava e dançava, trazido por um convidado de Siracusa. No meio das brincadeiras, com os excessos homoeróticos, é proposto um jogo cujo prêmio é beijar Autólico, e o evento termina com um intervalo dramático em que Ariadne e Dioníso, ao som da música, são proclamados amantes.

O symposion tinha sempre como motivo algum acontecimento – jogos públicos, um festival, boas-vindas a visitantes. O que torna tais reuniões tão significativas para nós hoje em dia é que então os grandes épicos eram cantados ao som da lira pelos bardos profissionais. No século VI isso deu lugar a coros e novos gêneros poéticos, poesia lírica, elegíaca e canções populares. Mais tarde essa prática seria substituída por discussões intelectuais e filosóficas do tipo platônico. Em suma, o symposion funcionava como uma expressão ritualizada das paixões, um microuniverso psicológico e cultural, um mundo à parte em que o vinho relaxava as inibições e liberava a imaginação para preservar antigas formas poéticas e criar novas”.



“Esse foi o legado da Grécia para Roma: uma estrutura dual de festejo, dominada pelos homens, na qual comer e beber eram dois momentos bem separados, embora conectados. Porém havia mais. Qualquer tipo de refeição formal já envolvia cerimonial, hierarquia e espetáculo, para não falar das artes – não apenas as artes culinárias, mas aquelas associadas ao teatro: música, dança e canto. Até mesmo as artes intelectuais expressas nas reuniões para debates eruditos encontraram ali o seu lugar. Os romanos iriam preservar a estrutura essencial da festa grega, mas o que ocorria em seu interior era, como já vimos no banquete de Trimálquio, de outra ordem”.

A IDADE DE APÍCIO


“A dieta romana também era mediterrânea, mas com uma diferença. Enquanto a base da culinária grega havia sido o mar, os romanos olhavam para a terra, e sua atitude em relação à comida e ao ato de comer era dominada por uma dualidade”.

“Os alimentos eram divididos entre fruges, produtos do solo (e, portanto, basicamente vegetarianos) e percuades, comidas derivadas de animais ligados – como no caso dos gregos – ao sacrifício ritual. Bois, carneiros e porcos eram usados para sacrifícios públicos, enquanto ovelhas, leitões e frangos empregavam-se privadamente. Também em comum com os gregos, o concurso da carne do sacrifício – confinados às classes superiores – identificava os membros civilizados de uma comunidade. Os que se comportavam como as tribos germânicas, cuja dieta consistia em grande parte de qualquer tipo de carne, eram considerados bárbaros”.

“A dualidade romana a respeito dos alimentos manifestava-se de várias outras maneiras, talvez a mais marcante seja o contraste entre os dois ideais de frugalidade pessoal e hospitalidade pródiga. Esse contraste é perfeitamente sintetizado na natureza das duas principais refeições de um dia romano qualquer. O prandium, espécie de lanche ao meio-dia, muitas vezes era pouco mais que as sobras do dia anterior, comidas de pé. A cena, por outro lado, ou sua forma mais grandiosa, o convivium, era uma refeição substancial e podia implicar uma copiosa série de prados cozidos, comidos numa posição reclinada, junto com os convidados. O prandium tinha o mero propósito de encher o estômago para que se pudesse continuar com os afazeres do dia, o negotium. O tempo da cena era o do otium, o período de lazer que se seguia à atividade, quando a pessoa podia legitimamente encontrar satisfação em entreter a “goela” com ricas iguarias, ingeridas por puro prazer”.

“À medida que Roma passou de república a capital de um vasto império, o contraste entre essas duas abordagens da culinária foi percebido pelos moralistas, que viram nos luxos modernos um sinal de decadência comparado à nobre frugalidade dos tempos passados. Na verdade, as satisfações complacentes estavam à disposição de quem podia pagar por elas. À medida que o império crescia, as iguarias do mundo conhecido fluíam para Roma. Aulos Gellius, em seu Noctes atticae, descreve uma sativa de Marcos Varro (116-27 a. C) que mostra até que ponto esse tipo de gulodice imperial podia chegar. O poeta em sua sátira “trata da elegância sofisticada nos banquetes” e lista as iguarias que os glutões buscavam”.

“...estas são as variedades e os nomes das iguarias que ultrapassam todas as outras, que uma goela sem fundo caçou e que Varro analisou em sua sátira, com os lugares onde são encontradas: pavão de Samos, pica-pau da Frígia, garças de Média, cabritos de Ambrácia, ostras de Tarento, ameijoas da Sicília, peixe-espada de Rodes, lúcio de Cilícia, nozes de Tassos, Tâmara do Egito, Bolotas de carvalho da Espanha”.

“Tais refinamentos culinários refletiam a realidade, e sabemos isso pelos relatos dos banquetes dados por Licínio Lúculo (morto em 57/56 a.C.) cujo nome passou para a história como sinônimo das mais extremas formas de repastos sibaritas. No seu caso os petiscos podiam incluir ouriços-do-mar de Capo Miseno, caramujos de Tarento, atum da Calcedônia, ostras de Locrino, prosciutto da Gália, esturjão de Rodes, camarões de Formia, avelãs de Nola, amêndoas de Agrigento, uvas sicilianas e tâmaras egípcias”.

“Essa apreciação da qualidade também se estendia ao vinho. O interesse pelo bom vinho começou no último século da República e em 121 a.C. no consulado de Opimius, ocorreu a primeira vindima famosa. Os vinhos falermíacos e de Nomentanum eram os mais valorizados. Os conhecedores gradualmente se deram conta de que os melhores vinhos ficavam ainda melhores se guardados por cinco ou quinze anos, e impôs-se o conceito de vindimas datadas. O vinho de cem anos de Trimáquio era uma crítica a isso. Como no caso dos gregos, bebia-se muito pouco vinho durante as refeições; as bebedeiras sérias começavam depois que acabava a comida”.



“Os romanos da mesma maneira que os gregos associavam alimentos particulares aos humores. Mas eles também condicionados por outra crença, a de que apenas os ingredientes frescos eram absolutamente puros e incorruptos. Em sua forma mais elementar, essa teoria julgava, por exemplo, que a azeitona era mais pura que o azeite, porque a pressão necessária para produzir o óleo era um passo no sentido da corrupção e da podridão. A ideia aplicava-se especialmente à carne, que nunca era seca; qualquer coisa que remotamente se assemelhasse à decadência da carne era vista como causa de mau hálito, vômitos e disenteria. Aqui chegamos mais uma vez à dualidade romana. A refeição frugal de vegetais crus, pão e um pedaço de toucinho cozido era vista como ideal em termos de saúde. A cena, em contraste, com seus elaborados pratos cozidos era encarada como potencialmente perigosa. Expunha o sistema orgânico a comidas deliciosas e macias, obtidas com métodos análogos ao que acontecia no estômago, considerado um caldeirão. Assim, as partes mais macias que exigiam menos cozimento, como miúdos e órgãos sexuais, e que apenas exigiam uma rápida grelha, eram muito mais valorizadas que a carne com cartilagem, que exigia longos cozimentos – outro passo no caminho da podridão”.

“Assim, em termos de dieta, todo romano tinha duas caras. Para o soldado, orador ou homem de negócios havia o repasto frugal do prandium. Para o cavalheiro, cidadão que se reclinava numa túnica folgada no divã e comia pratos potencialmente perigosos para seu sistema, havia a cena. No entanto, o mesmo homem – ou mulher – podia envolver-se em ambos”.

“A segurança sutilmente dúbia da cena explica a razão pela qual mulheres e crianças, vistas como mais fracas, não tinham permissão para se reclinar e eram obrigadas a permanecer sentadas. Reclinar-se relaxava o sistema, o que apenas os homens adultos podiam suportar. Isso também ajuda a explicar por que, de tempos em tempos, as autoridades insistiam em tentar controlar a cena e o que nela se comia”.

“Da lex Orchia, de 182 a. C. em diante ocorreu um fluxo constante de normas que tentavam regular o número de pessoas convidadas e o que lhes podia ser servido”. O decreto senatorial de 161 a. C. por exemplo, estabelecia a quantia que podia ser gasta num jantar, limitava o número de convidados de fora da família a cinco e bania o consumo de galinhas gordas. A legislação de 115. A. C. proibia comer arganazes, mariscos e pássaros importados. Tudo isso, no entanto, não tinha muito efeito. O que se comia e quantas pessoas eram convidadas para jantar mantinham-se fora do controle do Estado. A opulência crescia cada vez mais, juntamente com os horrorizados lamentos dos moralistas, que pregavam restrição a frugalidade republicanas como modelo da vida pública e familiar”.

“No entanto, embora não fosse seguida, havia uma crença genuína e geral que a grandeza de Roma havia sido construída sobre o cultivo de uma austera frugalidade. Além do mais, essas tentativas de controlar estilos ricos de vida durante o período imperial destinavam-se a tentar fazer com que não se ampliasse o hiato entre os ricos e os despossuídos, o que poderia ameaçar a estabilidade social. A verdade é que para a maioria da população a comida consistia de uma sopa grossa de aveia e carne com pão, suplementada por nabos, azeitonas, feijão, figos, queijo e, de vez em quando, porco”.

“A capacidade de usufruir a riqueza de um poderoso império deixou sua marca na culinária romana. O livro de Apício, de re coquinária, faz referência a galinhas da Mumídia, inclui um molho alexandrino para peixe e até mesmo oferece ervilhas ao modo indiano. No apogeu, a culinária romana foi a primeira cozinha internacional na história da Europa Ocidental e era praticada, com variações regionais, de um lado a outro do Império, das areias da África do Norte às fortalezas da ilha bretã. O que começou como culinária rústica e vegetariana no tempo da República tornou-se, sob o Império, cada vez mais sofisticado, em resposta primeiro às influências etruscas e depois às gregas. Estas últimas filtraram-se através da Sicília e do sul da Itália. Depois, através de Cartago, veio o impacto do Oriente. No final da República e no começo do Império romano a gastronomia alcançou riqueza e refinamento, e isso foi felizmente registrado por Apício. O alto Império iria seguir essa tradição que, apesar de toda sua elegância ainda apresentava um certo grau de restrição e levou-o na direção da decadência e do excesso. Finalmente com a desintegração do Império nos séculos V e VI d. C. a gastronomia romana gradualmente fragmentou-se e desapareceu, junto com a civilização que a fizera brotar”.

“De re coquinária (sobre a culinária) de Apício é o mais antigo livro de cozinha que resta. Quem era ele? Conhecemos três romanos com este nome, mas sem dúvida o Apício do livro é M. Gabio Apício, um gourmet rico que ensinava haute cuisine na primeira metade do século I d. C. nos reinados dos imperadores Augusto e Tibério. Muitas de suas receitas tornaram-se famosas, e pratos que não eram dele receberam seu nome, em sua homenagem. Sabemos que Apício escreveu dois livros de receitas que não sobreviveram e que fundou uma escola de culinária. É compreensível, portanto, que seu nome seja ligado ao De re coquinária”

Essa coleção de receitas chegou até nós em sua maior parte através de dois manuscritos do século IX, um deles escrito em Tours, entre 844 e 851, e o outro em Fulda, no mesmo século. Ambos remontam a outras anteriores, perdidos e o que restou está longe de ser completo. Há pouquíssimas receitas de pratos doces e nenhuma de pastelaria, e ambos são aspectos essenciais da cozinha romana. Aos dois manuscritos deve-se acrescentar um terceiro, com muito menos receitas, compilado por um certo Vinidário, um ostrogodo que viveu no norte da Itália no começo do século V. A cópia existente desta versão foi escrita no século VIII. O latim de Apício sugere que o original data de uma fonte do final do século IV ou V, embora já tenha sido situado até no século III.

De ré coquinária contém 470 receitas no total, divididas em 11 livros com títulos como “O jardineiro”, “sobre os pássaros” e “O mar”. Como a maioria dos livros de receitas é uma compilação e recorre a uma tradição que se estende por séculos, até a culinária da Grécia clássica. O livro 10, “O pescador”, que fala principalmente de molhos de peixe, é tão diferente dos livros de 1 a 8 que parece constituir uma versão romana para um tratado grego sobre molhos de peixe (Ateneu informa que havia muitos). Certas receitas tinham claramente em vista um grupo específico de usuários, como fazendeiros que desejavam aprender como conservar alimentos. Havia também um núcleo de receitas derivadas de fontes médicas. No geral, o quadro apresentado não é, de maneira alguma, de excessos, embora inclua o infame arganaz recheado. Até hoje Apício continua sendo um documento confiante e alegre, de leitura agradável”.

“O livro parte do pressuposto de que tudo dava uma enorme trabalheira. Galinhas, caças e animais domésticos eram principalmente recheados e semi cozidos, e então mergulhados em molho para serem lentamente impregnados por ele. Os sucos de carne cozida eram engrossados com amido ou farinha de trigo, ragu com ovo, miolo de pão ou farelo de pastéis. O que Apício revela é que, a despeito de sua preferência teórica pela simplicidade, os romanos não gostavam de ingrediente algum em sua forma pura. Não há quase receita sem um molho que mude de modo radical o gosto dos principais ingredientes”.

“O Objetivo dos molhos variava. Podiam disfarçar ou aumentar o sabor, colorir ou descolorir, adoçar ou azedar, engrossar ou afinar a mistura. Molhos doces predominavam nos pratos de carne; agridoces nos de peixe. Um único prato podia exigir até dez ervas e temperos, enquanto 90% das receitas pediam caras especiarias importadas. Como no caso dos gregos, a pimenta encabeçava a lista, seguida de canela, gengibre, noz-moscada e cravo vindos da Índia, Ceilão, baia de Bengala e China. Essa obsessão por especiarias importadas seria na verdade o maior legado romano à Idade Média. Sabe-se que Apício era lido na corte de Carlos Magno”.



“O garum mantinha seu lugar, juntamente com dois outros condimentos populares – silphium, um tempero da Líbia que se extinguiu no século I d. C., e asafoetida, a resina da planta Ferula asafoetida, um parente da erva-doce e que a substituía. Quanto às ervas, ligústica e arruda, encabeçavam a lista, ambas preferidas pelo sabor acre e amargo. Vinha a seguir coentro, cominho, orégano, sementes de aipo, de salsa, louro, sementes de aniz, funcho, hortelã, cariz, sementes de mostarda, losna, cerefólio, rúcula, tomilho, salvia, piretro, ínula, açafrão e almecega”.

“Embora Apício inclua muito do que hoje em dia encaramos como alimentos em desuso. Como língua de garças, papagaios e flamingos, sua cozinha é refinada, saborosa, e reflete plenamente uma classe alta sofisticada e culta. O que esse corpus de receita ilustra é como os romanos, que descobriram a cozinha grega ao final do século III a. C. adotaram-na e mudaram-na, aumentando em muito o uso de temperos e ervas exóticas. O que não nos diz e que jamais saberemos, apesar de possuirmos esse documento impressionante, é qual era o sabor da comida romana e qual exatamente o seu aspecto”.

CENA E CONVIVIUM

“Os romanos dividiam o dia em duas partes – 12 horas de dia e 12 horas de noite -, pontuadas por três refeições. A primeira, jentaculum (desjejum), imediatamente após o despertar, consistia de pouco mais que um lanche de pão e frutas. A segunda, prandium (almoço), não tinha hora nem lugar fixos e consistia, como vimos, de alimentos simples, destinados a manter a pessoa durante o dia de trabalho. Sua frugalidade era vista como exemplo das virtudes romanas”.

“A única refeição propriamente dita em todo o dia era a cena ou fercula (ceia ou jantar), normalmente na nona hora. No verão, isso significava entre 14h:30min e 15h45min, e no inverno entre 13h30min e 15h. No passado, a cena era ainda mais cedo, seguida por um segundo repasto frugal chamado vesperna, à noite. Com o advento da luz artificial ela passou a ser realizada cada vez mais tarde – como o jantar no século XIX – e se tornou o mais importante evento social e culinário do dia. Quando a cena era farta e incluía convidados, era um convivium, a versão romana do jantar de gala. O orador Cícero acreditava que esses eventos eram o coração da vida civilizada romana: “pois foi uma boa ideia de nossos ancestrais a presença de convidados numa mesa de jantar – pois isto implicava uma comunidade de prazeres – de convivium, “viver em conjunto”.

“Graças à influência etrusca, o convivium romano diferia de seu predecessor grego no sentido de poder incluir mulheres entre os participantes. Sua centralidade na vida romana decorria da complexa tentativa de alcançar um equilíbrio perfeito. Quem não oferecia convivia era chamado de avarus, enquanto quem comparecia a muitos era castigado como parasitus. Para o anfitrião, o objetivo era evitar uma aparência de sovinice e uma ostentação desnecessária. Os escritos de Cícero, Sêneca, Tácito e Plínio o Moço estão cheios de relatos de membros das classes altas jantando juntos, na cidade ou nas vilas, no campo ou no litoral. Para tais pessoas, o convivium era uma elegante cerimônia de civilidade, ocasião em que o homem privado saboreava suas realizações e, em certa medida, exibia-as a seus pares no cenário de sua própria casa ou família. Como mecanismo social, o convivium era tão importante para os romanos como o salon para a França do século XVIII, ou o jantar de gala para a Inglaterra vitoriana”.

“Na verdade, ao final do período republicano, o convivium exigia roupas especiais. A syntesis combinava uma túnica com um casaco diminuto (pallium), ambos feitos do mesmo material, com coloridos brilhantes e elaboradamente bordados. O pallium podia ser leve ou pesado, dependendo de estação e temperatura. O tamanho e a maneira como era dobrado variava de acordo com as preferências pessoais e a ocasião. A synthesis também era usada pelas mulheres. Diferente da familiar toga, só era usada privativamente, jamais em público. Os vaidosos às vezes trocavam diversas vezes de synthesis durante um único jantar. Marcial zombava de Zólio por trocar de roupa nada menos que 11 vezes.

Na Roma de meados do século IV, Amiano Marcelino, o último grande historiador latino, lamentando a indulgência e a decadência dos nobres, escreveu: “Suas ideias de civilidade são tais que é preferível um estranho matar o irmão de um homem que não comparecer a um jantar ao qual tenha sido convidado”. O jantar de gala romano começou como a pura expressão de uma elite da sociedade republicana, essencial para sua coesão social. Na ausência de uma corte imperial, servia para reunir pessoas poderosas e iguais, embora, naturalmente, muitas vezes incluíssem dependentes e penetras. No entanto, durante o período imperial o jantar de gala passou a ser visto como sobrevivência de uma era extinta, a ocasião em que anfitrião e convidados de vários níveis podiam se comportar como iguais em torno de uma mesa. Esta ao mesnos era a maneira como se viam os velhos convivia republicanos em retrospecto – ocasiões agradáveis e sem distinção de classe, em que as barreiras sociais eram suspensas, as convenções normais relaxadas, e os “inferiores” tinham permissão de fazer livremente observações audaciosas sem temor de recriminação. “Sirvo o mesmo para todos, pois quando chamo meus convidados é para uma refeição, não para fazer distinções de classe”, escreveu Plínio, o Moço. “Trouxe-os como iguais para a mesma mesa, portanto dou-lhes o mesmo tratamento em tudo”. A realidade tornava-se muito diferente. Os jantares festivos em Roma eram como os de hoje, na base de quem é convidado e quem não é. Como sempre havia os convidados para serem julgados quanto à adequação, e muitas vezes não eram chamados de novo. Um conhecido rafito dos muros de Pompéia resumia isso: “o homem com quem não janto é um bárbaro para mim”.

A verdade é que, embora a pretensa noção de igualdade continuasse ao longo do período imperial, tais eventos eram exercícios hierárquicos de precedência e quem tinha uma posição senatorial ou militar, ou quem era conselheiro local ou magistrado, desfrutava uma posição que os que eram apenas ricos não alcançavam. O imperador augusto oferecia os chamados cenae rectae (jantares formais) “com atenção estrita à posição social e aos indivíduos”. Os romanos eram obcecados por hierarquia, profundamente preocupados com conceitos como dignitas e existirmatio, liberalitas e munificentia, todos virtudes patrícias. O imperador Domiciano pode ter convidado diferentes ordens (categorias) a seus cenae rectae e até a seus cenae publicae (banquetes oficiais), mas é claro que havia uma rígida segregação de convidados em termos de posição e também uma distinção no que era servido à mesa. Mesmo antes do final da era republicana ofereciam-se pratos diversificados a convidados de diferentes categorias. Quando Cícero recebeu Júlio César em Puteoli durante a Saturnália de 45 a. C. os convivas jantaram em três mesas separadas. Todos comeram bem, mas os convivas da segunda e da terceira mesas não tão bem como os da primeira. Plínio é mordaz quanto a esse comportamento e envia uma descrição de um jantar como um “exemplo de alerta” a um jovem amigo: “os melhores pratos eram postos diante dele mesmo e de alguns escolhidos, e comida barata diante do resto do grupo. Até mesmo pôs vinho em garrafas pequenas, divididas em três categorias. – Um lote destinado a ele e a nós, outro aos menos amigos (todos os seus amigos são classificados em categorias) e um terceiro ao seus e aos nossos libertos”.

“A organização de uma festa era calculada era calculada, mas ainda assim o resultado tornava-se imprevisível. Homens de posição superior, por exemplo, não hesitavam em aparecer com um amigo que não estava na lista de convidados. Também havia sempre um punhado de pessoas convidadas para preencher as ausências, as chamadas umbrae (sombras). Dependentes ou clientes, como eram chamados, compareciam como hóspedes pagos”.

“Em jantares opulentos a diferença de alimentos de uma mesa para outra podia ser bem considerável. Marçal fala da angústia de um convidado rebaixado”:

“Já que não mais sou convidado a jantar por um preço, como antes (isto é, como convidado pago), por que não ganho o mesmo que você? Você ganha ostras engordadas no poço de Lucrine, eu corto a boca chupando um marisco. Você ganha cogumelos frescos, eu ganho cogumelos de porcos. Você se serve de linguado, eu de brema. Uma rola dourada enche o seu prato com seu traseiro descomunal, e a mim servem uma pega que morreu na gaiola”.

“O advento do Cristianismo com suas festas comunitárias trouxe outra luz à questão da hierarquia da comida. O apóstolo Paulo teve de encontrar uma forma de evitar reuniões onde os ricos e seus amigos recebiam comida e bebida melhores que outros de status mais baixo. Resolveu a questão, afinal, decidindo que era melhor que os ricos comessem privadamente”.

“Essa reunião de convidados podia levar a uma certa irritação, o que nada era comparado à tensão existente entre o anfitrião e seus convidados e o pequeno exército de escravos à disposição de cada um. Uma única casa chegava a ter 400 escravos, e um convivium podia exigir os serviços de cada um deles. O cardápio muitas vezes era escolhido por um escravo liberto, um obsonatur, que conhecia tanto o gosto de seu senhor como o dos convidados. Escravos conhecidos como nomenclatores organizavam e entregavam presentes aos convidados quando eles partiam. O vocator ficava de olho na equipe durante o evento e provavelmente também supervisionava os escravos da sala de jantar. A equipe incluía os ministri ou pueri a cyatho, escolhidos por uma bela aparência, que tinham permissão de manter os cabelos compridos. Esplendidamente vestidos, sua tarefa era servir vinho e cortar a comida em pedaços que coubessem na boca. (Criados particularmente bonitos também podiam ser empregados para satisfazer as necessidades sexuais dos comensais). Um escravo especialmente treinado atuava como trinchante ou structor. Numa posição inferior vinham os scoparii, de cabeça raspada e roupa grosseira, que limpavam o chão”.

“Os escravos viam tudo, mas exigia-se deles que se mantivessem em silêncio. Eram subalimentados, reprimidos e sujeitos à mais brutal repressão pela mais leve falta. Por duas vezes no banquete de Trimálquio ocorreram ameaças de castigos selvagens. Esta era a norma. Se o assado estava malpassado ou se o peixe estava muito temperado, o cozinheiro (que na verdade tinha uma posição bastante alta na hierarquia dos escravos) podia ser despido e espancado. Qualquer escravo que roubasse ou destruísse um objeto de valor era morto, mutilado ou acorrentado. A crueldade da época é exemplificada no famoso caso de uma cena dada por P. Vedio Pólio, amigo do imperador Augusto, durante a qual um escanção que quebrou uma taça de cristal teve as mãos cortadas e penduradas no pescoço. Depois foi obrigado a desfilar entre os comensais antes de ser jogado para as lampreias num poço”.

“O cenário da cena ou convivium era o triclinium. No início do período romano as refeições eram servidas no atrium, e mais tarde numa sala chamada cenaculum; mas quando veio a moda de comer reclinado, foi desenvolvida essa sala especial. Muitos triclinia sobrevivem nas ruínas de Pompéia e Herculano. As salas eram projetadas para três divãs, cada um deles acomodando três comensais em volta de uma mesa central redonda ou retangular. Nas grandes casas e vilas podia haver vários triclinia, uns mais quentes para o inverno e outros situados de maneira a aproveitar as frescas brisas e a sombra do verão. Alguns eram feitos para jantares ao ar livre nos jardins”.

“Os assentos frequentemente levavam em conta as belas vistas do campo ou do mar. Nos triclinia os divãs podiam ser de madeira ou pedra, com todos os tipos de decorações luxuosas. Alguns triclinia em Pompéia tinham um jato de água jorrando da mesa central e pequenos regatos refrescantes gotejando diante de cada comensal. Na chamada casa de Loreius Tiburtinus, os pratos boiavam numa grande bacia em frente a cada conviva. Enquanto a maioria dos triclinia era salas essencialmente pequenas, os ricos também tinham salões de banquetes com grupos de divãs que acomodavam muitos hóspedes”.

“A arrumação da sala de jantar iria mudar mais tarde, no século II e no começo do século III d.C. Em vez de três divãs retangulares havia um grande, em semicírculo, chamado stibalium, sigma ou acabitum, onde sete ou oito convidados podia reclinar-se. Há evidências de que esta forma foi desenvolvida primeiro para jantares ao ar livre e mais tarde adaptada para dentro da casa, em resposta a entretenimentos mais elaborados introduzidos pelo anfitrião nos convivia. O próprio triclinium mudou de formato, transformando-se numa sala com até três alcovas, cada qual com um divã diante de um espaço vazio nomeio. Na verdade, a sala de jantar foi transformada em teatro de arena”.

“Mesmo na sua forma mais primitiva, o triclinium era repleto de tons simbólicos. O teto podia ser equiparado aos céus, a mesa e seus conteúdos à Terra, e o chão à morada dos mortos, Hades. Tal visão do triclinium como uma espécie de microcosmo do universo, era reforçada pelo tema dos pavimentos de mosaico, que sobreviveram. Por exemplo, na entrada da sala, Cérbero, o cão que guarda o mundo inferior, está muitas vezes representado. Na famosa Domus Aurea de Nero, recentemente escavada em Roma, o teto retratava os céus e até mesmo podia se abrir. Suetônio registra que o telhado girava dia e noite, de acordo com o céu. Outras salas de jantar na Domus “tinham tetos com relevos de marfim, com painéis deslizantes que permitiam que uma chuva de flores ou perfumes caísse sobre os convidados. ”


Planta de um triclinium


Cena de banquete, século IV ou V d.C. com os convivas reclinados num stibadium. Um servo verte vinho de um jarro, o outro carrega um vaso de água e uma bacia para lavar as mãos. Iluminura.

“No atrium de toda casa romana havia um altar para os deuses, os lares, num determinado momento da cena os deuses eram carregados e colocados na mesa. As naturezas mortas que aparecem com destaque nas paredes de tantos triclinia em Pompéia e Herculano são na verdade alimentos para os mortos. Não que isso fosse uma barreira para as festividades. Ali também se encontram conselhos francos e diretos que sugerem tudo, menos melancolia: “poupe a mulher do vizinho de olhares lascivos e requebros amorosos, e deixe que a modéstia viva em sua boca”; “Seja amigável e evite bravatas raivosas, se puder. Se não, deixe que seus passos o levem de volta para casa”.



“Ao chegar a um jantar, o conviva tirava as sandálias ou os sapatos de andar na rua, passava-os para o escravo que o servia e calçava chinelos fornecidos pelo anfitrião. Então se juntava aos outros no atrium ou em alguma outra sala próxima à sala de jantar. Era uma ocasião de conversa; só no período de Tibério, no começo do século I d. C. é que beber antes do jantar tornou-se norma. Casas opulentas tinham um mestre de cerimônias que controlava a coreografia desse entretenimento”.

“A um sinal todos entravam no triclinium e tomavam seus lugares nos divãs, tirando os chinelos. Nesse momento os escravos lavavam os pés dos convidados, ritual expresso em outra inscrição em Pompeia: “deixe que os escravos lavem e sequem os pés dos convidados, e faça com que tenha o cuidado de estender uma toalha de linho nas almofadas dos divãs. ” No período pré-stibadium os três divãs eram chamados de lectus summus, lectus medius e lectus imus. O anfitrião reclinava-se no último geralmente com membros da família. O lugar de honra, ou consulares lectus, podia variar, mas em geral situava-se no meio do lectus meius – imus in médio - aparentemente indicado para falar de negócios, caso necessário. No stibadium o lugar de honra érea no centro, mas ao final do Império passou a ser à esquerda. Os divãs eram inclinados, com a cabaceira mais alta, e os comensais ficavam separados uns dos outros por muros de almofadas. Todos tinham uma coberta.

“O direito de um homem de reclinar-se vinha com o uso da toga virilis, aos 17 anos. Com os direitos, é claro, surgiam os perigos. Aos olhos dos moralistas pagãos e cristãos, essa passagem à idade adulta abria para os jovens uma trindade de vícios: comida, bebida e sexo. O perigo da sedução homossexual era particularmente grave. Quintiliano, uma autoridade em retórica, levantava as mãos em horror. O que se poderia esperar, escreveu, diante de tudo a que os jovens estavam expostos antes mesmo de ter idade para se reclinar ao jantar? “Nós ensinamos: eles nos ouvem usar tais palavras, veem nossas amantes e nossos concubinos, em todos os jantares ouvem-se canções indecentes e apresentam-se a seus olhos coisas das quais deveríamos corar simplesmente ao falar delas”.

“Basta isso para as tentações não palatáveis do divã. À mesa, diante de cada comensal ficava um saleiro, salinum, e uma garrafa de vinagre, acetabulum. Perto havia dois aparadores, um para vinho, o cilibantium, e outro para comida e para as travessas, o repositorium. Havia jantar para vinho, o oenophorus, vasos para água quente, caldarium, e vasilhas para misturar, cratera – os romanos bebiam vinho misturado com água quente. A sala era iluminada por candelabros e lâmpadas penduradas no teto em correntes. A fumaça de óleos aromáticos desprendia-se de turíbulos, pois parte do prazer do jantar estava no olfato. O chão de mosaico era coberto de folhagens aromáticas – ancusa, berbena e avenca – e vasos de flores, especialmente rosas, decoravam a sala. Os convivas recebiam guirlandas de flores e óleos perfumados para o corpo e o cabelo”.

“O comensal ficava reclinado de lado, com o braço esquerdo apoiado numa almofada e os pés virados para a direita. Qualquer refeição começava com a ablução das mãos, e o ritual repetia-se a intervalos regulares. A todo momento os escravos traziam água perfumada e toalhas para os convivas. No século I um guardanapo, mappa, era oferecido pelo anfitrião, embora alguns convidados trouxessem os seus, que eram grandes o suficiente para levar para casa qualquer iguaria não consumida”.

“Os alimentos eram comidos num prato (patina, patela ou, se fundo, catinus) que o comensal segurava com a mão esquerda. Os escravos cortavam os alimentos maiores em pedaços pequenos para facilitar. Em geral os convivas comiam com a ponta dos dedos, tomando muito cuidado para não sujar as mãos ou o rosto. A comida também podia ser levada à boca na ponta de uma faca, e havia colheres, de várias formas, desde a concha, trulla, à cochilea ou lígula, para alimentos pequenos como ovos ou mariscos. Só no fim da era imperial surgiram os garfos. Distribuíam se palitos. Os pratos individuais e as travessas em que os alimentos eram servidos podiam ser incrivelmente ricos e luxuosos, como testemunham as numerosas pratarias desenterradas por toda a Europa. As taças eram de cristal, ouro, eletro (uma liga de ouro e prata) e murra, uma rica pedra opaca que melhorava o buquê do vinho, ou pelo menos assim se pensava. Podiam ser vários formatos, com ou sem asas, estampadas ou incrustadas com pedras preciosas”.

“A refeição começava com o gustus ou fustatio, uma espécie de hors d´ouvre que consistia principalmente de vegetais e ervas, azeitonas, fatias de ovos cozidos, caramujos e mariscos, tudo regado a vinho adoçado com mel, conhecido como mulsum. Nas refeições mais opulentas podia haver outros pratos, como ostras, tordos e arganazes recheados. Seguia-se então a cena propriamente dita, em geral com três serviços – cena prima ou ferculum, secunda e tertia – mas podia haver muitos outros O prato mais importante era sempre feito com carne de sacrifício, possivelmente de porco ou vaca prenha. Cabritos novos eram considerados uma grande iguaria. Podia haver faisão ou ganso, presunto ou lebre, junto com uma variedade de peixes, sendo os preferidos o linguado e a lampreia. Os convidados escolhiam o que queriam dentre o que lhes era oferecido. Após o último serviço limpava-se a mesa e varria-se o chão. (Nas casas mais importantes esse processo podia envolver serragem colorida). Vinha então a sobremesa, secundae mensae ou bellaria, que consistia de maçãs, peras, nozes, uvas e figos, algumas vezes acompanhados de mariscos e passarinhos”.

“Sobreviveram muito poucos cardápios de uma refeição romana. Macróbio, em Saturnália, nos dá o relato de uma cena opulenta oferecida entre 74 e 69 a. C. pelo colégio de pontífices (“sacerdotes”) de Roma, na estreia de um flamen martalis. Havia 11 sacerdotes presentes, inclusive Júlio César, bem como a esposa e a sogra do novo flamen e quatro virgens vestais. Os homens foram distribuídos em dois grupos, as mulheres em um, e o jantar deu-se como se segue:

“Foram servidos, para o serviço preliminar, ouriços-do-mar, um número sem limites de ostras cruas, vieiras e amêijoas, tordos com aspargos, galinhas gordas, um prato de ostras e vieiras e então outro serviço de amêijoas, mariscos, passarinhos, pernil de veado e de javali, empadões de galinhas gordas, mais passarinhos e múrices. Como pratos principais foram servidos úbere de porca, pato, marreco cozido, lebre, galinhas gordas assadas, trigo com creme e rolinhos de Picenum”.

“No caso dos romanos, a bebida que se seguia à cena, a comissatio, não tinha as complexas ressonâncias da época grega, mas envolvia um certo grau de formalidade ritual. Antes que ela começasse, os lares eram trazidos e postos na mesa. Vertiam-se as libações e pronunciavam-se as palavras de bom agouro. O grego escolhia um rex convivi, ou magister ou arbier para decidir, como fazia seu protótipo grego, a proporção de água e vinho. Durante a comissatio os convivas punham guirlandas de flores e se perfumavam. A principal atividade era oferecer brindes – aos ausentes, às mulheres, aos exércitos imperiais. A maneira mais comum de brindar um outro convidado era encher o copo, esvaziá-lo, enchê-lo de novo passa-lo para que ele bebesse”.

“Macróbio fala, sobre esta parte da noite, que “a conversa à mesa vai naturalmente assumir um aspecto mais jovial, buscando o prazer pelo prazer, e não um outro propósito mais sério”. Cícero, em seu De Officis, aconselha o convidado a não falar muito de si mesmo e a não passar adiante os tipos errados de mexericos, mas concentrar-se em questões domésticas, politica, artes e ciências, e nunca se entregar à paixão ou à raiva. “O imperador nos convidava para jantar todos os dias”, escreve Plinio, o Moço numa carta, “e era tudo muito simples, considerando a posição dele. Algumas vezes recitavam-se poesias, e em outras a noite se prolongava com conversas agradáveis”. Os jantares romanos envolviam tanto leitores como cantores, numa comunicação da crença grega de que os prazeres de alimentar o corpo não deviam separar-se dos prazeres mais elevados de alimentar o espírito. Cícero, tentando convencer um amigo que não queria voltar a frequentar jantares, argumenta: “você se privou de muita diversão e prazer...a conversa é muito mais agradável nos jantares. Sob este aspecto nossos patrícios são bem mais sábios que os gregos. Eles usam palavras que literalmente significam “co-beber” ou “co-jantar”, mas nós dizemos “co-viver”, porque nos jantares, mais que em qualquer outro lugar, a vida é vivida em companhia”. Este era o ideal. As reuniões podiam naturalmente desviar-se para outra direção muito diferente, passando a orgias de mau gosto, onde as pessoas se empanturravam, se entregavam a licenciosidades sexuais, vomitavam e se embriagavam”.

“Em qualquer casa havia um ou mais leitores, lector ou anagnostes, escravos ou libertos. Geralmente os trechos lidos eram escolhidos por seu valor educacional ou por serem divertidos – passagens da história grega e romana, poemas líricos em latim e grego, em particular as obras de Virgílio e de Homero. A pior coisa que um anfitrião podia fazer era infligir suas próprias composições aos convidados. Sobre este ponto, passemos a palavra a Marcial:

Esta, e nenhuma outra, é a razão pela qual você me convidou: para jantar. Ligurino: para recitar seus versos. Eu tiro meus chinelos e imediatamente um enorme volume é trazido entre as falaces e o molho picante. Outros é lido durante o primeiro serviço. Vem um terceiro e a sobremesa ainda não chegou. E você recita um quarto e finalmente um quinto rolo. Se você não me serve javali tantas vezes, ele vai cheirar mal. Mas se não limitar seus detestáveis poemas à cavala, Ligurino, no futuro vai jantar sozinho”. 

“À medida que crescia a opulência do Império durante o século I d. C, os ricos cada vez mais contratavam artistas profissionais de todos os tipos, entre eles tocadores de lira, cantores, atores, bufões[3] e cômicos, para não falar de travestis, dançarinas, gladiadores e anões meio idiotas. Suetônio registra que até mesmo o frugal Augusto dava jantares que incluíam pantomimas, artistas de circo e, frequentemente, contadores de histórias. O gosto dos imperadores percorria toda a gama do inofensivo ao profundamente horrível Calígula gostava que seus jantares fossem animados com tortura ou decapitações. A tendência de Adriano era teatral, tragédias, comédias e farsas, tocadores de sambuca, bem como leitores, poetas e especialistas em mímica. Lúcio Vero preferia assistir a lutas de gladiadores”.

“O que mais chama a atenção do observador e contemporâneo no convivium na forma mais restrita, sem os excessos decadentes do período final, é sua modernidade – ordem, excelência culinária, sentido de estilo e de cerimonial, assim como gosto por todos os complementos da vida civilizada, como conversa e música, leitura de prosa e de poesia, que na verdade muitas vezes resultavam num cabaré ligado a uma refeição, o que hoje chamaríamos de café-teatro. Mas tal modernidade era sustentada por uma vasta infraestrutura de escravidão, que por sua vez se baseava em brutalidade, violência e todas as formas de sujeição cruel. Em nenhum outro período da história da alimentação ocorreu uma polaridade tão espantosa e assustadora”.

BANQUETES PÚBLICOS E BANQUETES IMPERIAIS

“Os banquetes públicos eram quase tão importantes para os romanos quanto para os gregos. Em ambos os casos aconteciam numa estrutura de referência profana e sagrada. Em Roma, o patrocínio privado de tais acontecimentos começou durante as festas públicas no século I a. C. quando os ricos, aflitos com possíveis inquietações populares, passaram a achar que os banquetes seriam uma maneira de aplacar e pacificar as massas. As festas públicas pontuavam o ano romano. Dezessete de março, por exemplo, era festa do pai Liber (equivalente a Baco ou Dionísio), quando toda a população se banqueteava nas ruas. Outras festas celebravam o nascimento de uma criança, o aniversário de 17 anos e um jovem, um matrimônio. O casamento na verdade envolvia duas festas – uma cena no dia das nupciais, que acontecia na cada da noiva, e a chamada repotia, no dia seguinte, já na nova casa conjugal. A cena funebris era consumida no túmulo dos mortos antes dos últimos ritos de purificação”.

“Tais refeições faziam parte da própria tessitura social da vida romana. Mas nada se comparava aos espetaculares banquetes realizados pelos imperadores, que se tornavam uma parte da lenda culinária. Esse convivia publica reuniam pessoas chaves de todos os níveis da sociedade romana. O imperador Cláudio chegou a convidar 600 pessoas de uma só vez, e em outro de seus jantares havia mil mesas. No entanto, não foi apenas a escala imperial que deixou uma impressão indelével na imaginação das eras subsequentes, mas os frequentes excessos”.

“No caso do Imperador Heliogábalo, por exemplo, os banquetes realizados no verão tinham de mudar de cor em cada ocasião. Ele foi o primeiro a realizar exibições maciças de pratarias, a mandar fazer salsichas de peixe e de moluscos, ostras, polvo e caranguejo. Seus convidados jantavam iguarias exóticas, como pés de camelo, cristas de galinhas, pavões vivos e línguas de rouxinóis. Vastas travessas cheias de fígado de tainha, miolos de tordos e de flamingos, cabeças de papagaios, faisões e pavões podiam enriquecer um banquete, nos divãs espalhavam-se violetas, lírios, jacintos e narcisos, enquanto mecanismos suspensos despejam sobre os comensais violetas e outras flores, em tal quantidade que algumas vezes os convidados ficavam sufocados”. 

“A ambição do Imperador Vitélio era alcançar proporções épicas, como conta Suetônio:

Ele banqueteava-se três ou quatro vezes por dia, ou seja, de manhã, ao meio-dia, de tarde e à noite – a última refeição era principalmente uma bebedeira – e, sobrevivia a este ordálio[4] tomando eméticos[5] com frequência. O pior é que costumava se convidar para esses banquetes nas casas de várias pessoas diferentes no mesmo dia, e eles nunca custavam a seus vários anfitriões menos que quatro mil peças de ouro cada. A festa mais famosa da série lhe foi oferecida pelo irmão, quando ele entrou em Roma; diz-se que foram servidos dois mil peixes magníficos e sete mil pássaros selvagens. No entanto, mesmo isto dificilmente se compara em matéria de luxo a um púnico prato imenso que Vitélio dedicou à deusa Minerva e que chamou de “Escudo de Minerva, a Protetora da Cidade”. A receita incluía fígado de lúcio, miolo de pavão, língua de flamingo e vesícula de lampreia e os ingredientes, reunidos de todos os cantos do Império, da fronteira de Pártia aos estreitos da Espanha, foram levados a Roma por capitães dos triremes”.

“A extravagância dos banquetes imperiais não conhecia limites. Tigelino, comandante da guarda pretoriana, organizou um jantar para Nero, provavelmente no verão de 64, encepado no meio de um lago artificial. O imperador e seus camaradas reclinavam-se sobre tapetes e almofadas numa grande jangada rebocada por barcas enfeitadas de ouro e marfim e tripulada por exoleti (meninos alegres), escolhidos deliberadamente por suas habilidades lascivas. Povoou-se o bosque que cercava o lago de pássaros e animais exóticos, e na beira d´água havia pavilhões e bordeis. O historiado Dio Cássio descreve os acontecimentos:

“Nero, Tigelino e os companheiros ocuparam o centro, onde festejaram em tapetes cor púrpura e almofadas macias, enquanto todos os outros se alegravam nas tavernas. Eles também entravam nos bordéis, e sem qualquer restrição tinham relações com qualquer uma das mulheres que lá estavam sentadas, entre as quais se encontravam as mais belas e distintas da cidade...Todo homem tinha o privilégio de se aproveitar de qualquer uma que quisesse, pois, as mulheres não podiam recusar ninguém”

“Nero foi o mais teatral de todos os imperadores romanos, e por isso a plebe o adorava. Seu comportamento era muito menos admirável. Em 54, num banquete por ocasião de seus 17 anos, tentou gracejar com Britânico, filho natural do imperador Tibério, pedindo-lhe que cantasse para as pessoas reunidas. Britânico, no entanto, não apenas cantou bem como escolheu uma canção que falava de sua própria expulsão da casa do pai e do trono. Na festa seguinte Nero envenenou-o à mesa”. 

“Talvez o mais estranho de todos os banquetes imperiais tenha sido encenado pelo imperador Domiciano, com o tema do inferno. Pediu-se aos convidados que não se fizessem acompanhar pelo habitual escravo. Ao lado de cada comensal havia uma pedra tumular com o nome do convidado. O banquete era iluminado por lâmpadas votivas, do tipo que se pendurava nos túmulos, e a comida, toda preta, assemelhava-se aos pratos sacrificais oferecidos aos manes[6] dos mortos nos funerais. Os escravos serviam e dançavam pintados de preto e durante todo o macabro evento apenas Domiciano tinha permissão de falar. Seu tema era a morte. Em certo momento do jantar os convivas foram subitamente mandados embora e escoltados para casa por escravos desconhecidos, o que os fez suspeitar que haviam sido escolhidos para se tornarem as novas vítimas da sede de sangue do imperador. Em vez disso, no entanto, foram chamados de volta para um segundo banquete, ao término do qual receberam presentes caros”.

“O esplendor dos banquetes imperiais de Roma seria lembrado. Fica-se tentado a sugerir que, quando os textos que se descreviam foram descobertos e passaram a ser conhecidos, nos séculos XV e XVI, aquela extravagância e senso de espetáculo tiveram alguma influência nas refeições festivas das cortes renascentistas. Porém, por incrível que pareça, iriam se passar mil anos antes que qualquer coisa remotamente parecida aos espetác7ulos romanos fosse reencenada nas cortes humanistas de Mántua e Ferrara”.


DESINTEGRAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA

“O império romano provou que era mortal. Atíla, o Huno, saqueou Roma em 410 e após essa catástrofe a sede do poder mudou para a capital do Império Oriental, Constantinopla. O último soberano no Ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto em 476 pelo alemão Odoacer, que então se proclamou rei da Itália”.

“Tal acontecimento é geralmente tomado como o fim do Império Romano na Europa Ocidental, mas na verdade a estrutura diária da vida romana, inclusive a que cercava cena e convivium, iriam continuar até o século XV, e de maneira mais tênue até o século VIII. Nas pequenas aldeias gaulesas a vida continuava mais ou menos como antes. Em meados da década de 460, por exemplo, o patrício Sidônio Apolinário, mais tarde bispo de Avernus, visitou o amigo Tonantio Ferreolo em sua villa perto de Nimes, ao sul da Gália. Sidônio descreve que os convidados se reuniram na biblioteca, com as mulheres sentadas de um lado e os homens em pé, do outro, todos posicionados ao alcance de livros cujos assuntos eram considerados apropriados: as mulheres, dos livros religiosos, e os homens, “de obras conhecidas pela grandeza da eloquência latina”. Passaram o tempo conversando e jogando até que um escravo entrou e anunciou o almoço. Em outro lugar Sidônio descreve a sala de jantar na villa de um amigo chamado Leôncio. As portas eram dobráveis e se abriam para uma vista do pátio emoldurada por colunatas e para um sortido lago de peixes. A distância, os comensais podiam contemplar um panorama do vale do Garona. Assim, pelo menos em algumas partes do velho Império, a vida civilizada continuava. No geral, entretanto, os escritos de Sidônio refletem o conflito entre o tradicional da vida romana e as novas realidades impostas pela presença de tribos germânicas”.

“Quando Sidônio visitou Teodorico, o Ostrogodo (morto em 466), observou com surpresa que seu anfitrião sentava-se à mesa, mas não se reclinava. Era um símbolo de mudança – e de resistência à mudança. No final do século VI, outro aristocrata romano Gregócio de Tours, descreve um jantar privado onde os comensais se reclinavam, exceto a esposa do anfitrião, que permanecia sentada. Ainda no final do mesmo século o bispo Venâncio Fortunato referiu-se ao antigo bispo Leôncio reclinando-se para comer numa villa romana. Vemos assim que o antigo modo de vida romano sobrevivia naquelas edificações em ruínas. Mas depois do século VI o ato de reclinar-se sobreviveu apenas nos contextos mais exclusivos, nos grandes palácios imperiais e papais do começo da Idade Média, revivido, ao que se diz, pelo papa Leão III ao final do século VIII”.

“Da mesma forma a tradição culinária se desintegrou e fragmentou. Com o colapso do Império deixaram de estar disponíveis os ingredientes de que dependiam os cozinheiros criados na tradição de Apício. No entanto, as rotas comerciais não foram inteiramente abandonadas. Mesmo depois do século VI, quando a Gália se estilhaçou num quebra cabeça de reinos bárbaros, o porto de Marselha continuou mantendo o comércio com o Egito, a África do Norte e a Espanha, importando especiarias, sal e garum. Mas a tradição culinária inevitavelmente se rompia, à medida que o contexto social da vida na villa romana dava lugar ao das novas cortes bárbaras e a educação clássica ruía. A gastronomia clássica iria sobreviver principalmente por meio da tradição médica, pois as cortes bárbaras recrutavam médicos treinados no sistema de Galeno. Entre eles, um médico grego chamado Antimo, que estudou em Constantinopla. Mas no começo do século VI foi condenado a exilar-se na corte de Teodorico, o Ostrogodo, rei da Itália. Teodorico, enviou-o como embaixador a Teuderico, rei dos francos, que reinou na área em torno de Metz entre 511 e 534. Para Teuderico, Antimo escreveu “Sobre a observância dos alimentos”, a principal fonte documental para a transição entre a tradição culinária clássica e a da Idade Média”.

“Embora não mencione, Antimo trabalhava com os principais galênicos dos humores e estava claramente a par das prescrições tradicionais da culinária como meio de garantir uma boa saúde, no Ocidente; a tradição galênica estava quase perdida por essa época, e só retornaria na Idade Média, por influência dos estudiosos árabes na Espanha. Ele se refere a temperos exóticos e ingredientes pouco comuns, como pavão, embora à época essas coisas fossem muito raras. O mais notável é que Antimo percebe um deslocamento para os ingredientes nativos – manteiga em vez de óleo de oliva, salmão em vez de tainha vermelha -, ao mesmo tempo que se preservavam certas predileções romanas – o gosto pelo agridoce (misturar vinagre com mel, por exemplo), ou por ovos moles. Por todo o texto fica claro que está escrevendo sobre e para bárbaros comedores de carne constantemente usa frases como “os francos têm o hábito de comer...”

“O Império Bizantino iria herdar a tradição culinária greco-romana. Isso fica claro pelos raros relances da corte imperial registrados por visitantes do Ocidente. Em 968, o bispo Luitprand de Cremona chefiou uma embaixada enviada por Oto III ao imperador Nicéforas focas. “Os alimentos, escreve ele, eram bem sórdidos e asquerosos, encharcados de óleo, à maneira dos bêbados, e além disso também umedecidos com um licor de peixe muito ruim...” (Deve ter sido o outrora indispensável garum, que como vimos, ainda era conhecido e usado na Gália do século VI, mas três séculos depois haviam se tornado repugnante ao paladar ocidental). Antimo escreve mais adiante: “o imperador sagrado enviou-me um de seus pratos mais delicados, um ganso gordo... ricamente recheado com cebola, alho e alho-poró, nadando em molho de peixe”. Embora na época da visita de Luitprand, na maioria das refeições, o imperador e sua corte se sentassem sem se reclinar, em certas importantes ocasiões cerimoniais as velhas tradições eram observadas. Uma delas era a grande festa do dia de Natal”:

“Existe um salão próximo ao Hipódromo que dá para o Norte, maravilhosamente amplo e bonito, chamado Decanneacubita, a Casa dos Dezenove Divãs. A razão para o nome é óbvia: deca é “dez” em grego, ennea é “nove”, e cubita são divãs com espaldares curvos. No dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu, 19 pratos são sempre colocados ali na mesa. Nessa ocasião o imperador e seus convidados não se sentam à mesa, como normalmente fazem, mas reclinam-se em divãs, e tudo é servido em vasilhas, não de prata, mas de ouro. Após os alimentos sólidos são trazidas frutas em três vasilhas de ouro, tão pesadas que não podem ser carregadas por um homem sozinho; vêm em carro cobertos com panos de cor púrpura, da seguinte maneira: de orifícios no teto estão penduradas três cordas cobertas de ouro dourado e com argolas de ouro nas pontas, as argolas são presas nas asas que se projetam dos vasos, e com quatro e cinco homens puxando de baixo, são elevados para a mesa com a ajuda de um aparelho móvel no teto (e removidos da mesma maneira)”.

“O mundo de Nero e Trimálquio estava claramente vivo e próspero na Bizâncio do século X, fato corroborado por um segundo relato de um prisioneiro de guerra sírio cativo em Bizâncio em 911-12. Ele também dá uma descrição da festa do imperador no Natal”:

“Ao levantar uma cortina e entrar no palácio, vê-se um vasto pátio quadrado, com 400 passos de lado, pavimentado de mármore verde. As paredes são decoradas com vários mosaicos e pinturas...à esquerda da entrada há uma sala com 200 passos de comprimento e 50 de largura. Nessa sala há uma mesa de madeira, uma de mármore e, em frente à porta, uma de ouro. Após as festividades, quando sai da igreja, o imperador entra ali e senta-se à mesa de ouro. É isto o que acontece no Natal. Manda buscar os cativos muçulmanos e eles sentam-se a essas mesas. Quando o imperador se acomoda na mesa de ouro, eles lhe trazem quatro pratos de ouro, cada um em seu próprio carro.

Um desses pratos, incrustado de pérolas e rubis, dizem que pertenceu a Salomão... o segundo, também incrustado, a Davi...o terceiro, a Alexandre e o quarto a Constantino. Os pratos são colocados diante do imperador, e pode-se comer neles. Ali permanecem enquanto o imperador estiver à mesa: quando ele se levanta, são levados embora. Então, para os muçulmanos, são colocados muitos pratos quentes e frios nas outras mesas, e o arauto imperial anuncia: “Juro pela cabeça do imperador que não há porco em nenhum desses alimentos”. Os pratos sobre grandes travessas de prata e ouro, são então servidos aos convidados do Imperador.

Eles então trazem um órgão. É um notável objeto de madeira como uma prensa de azeite, coberto de couro sólido. Nele estão colocados 60 tubos de cobre... e cada tubo, segundo o tom e o desempenho do mestre, soa louvores ao imperador. Enquanto isso os convidados estão sentados às suas mesas e 20 homens entram com címbalos nas mãos. A música continua enquanto os convidados aproveitam a refeição”.

“De muitas maneiras não estamos muito longe de onde começamos; a Roma Imperial vivia no Oriente. Mas na Europa Ocidental toda uma nova civilização estava prestes a surgir”.

Meus irmãos, aqui termino este trabalho, extraído do Livro O Banquete, de Roy Strong, concitando-os a ler toda a obra, pois vale a pena.

Aqui, nestes relatos, encontramos a origem do banquete, nascido na mesopotâmia e depois propagado pela Grécia e Roma, o que nos permite ver que a partir de então, o nosso banquete ritualístico vai tomando forma, inspirando-se, inclusive nos banquetes militares e nos banquetes festivos da Inglaterra.

[1] Sala de refeições com três leitos inclinados dispostos em redor de uma mesa. 
2] O escanção era o criado encarregado de servir o vinho. 
[3] Bobo da Corte - quem faz rir por falar ou comportar-se de modo cômico, ridículo, inoportuno ou indelicado, ou aquele a quem falta seriedade nas relações humanas. 
[4] O ordálio, também chamado juízo de Deus, foi muito usado nos primeiros séculos da Idade Média. Consistia em submeter à prova do fogo ou da água o acusado, que, se dela saísse salvo, era em geral declarado inocente. 
[5] Medicamento usado para provocar vômito. 
[6] Manes - para os antigos romanos, as almas deificadas de ancestrais já falecidos