terça-feira, 3 de novembro de 2015


A TORRE DE BABEL

Autor: João Anatalino

“ E por isso lhes foi posto o nome de Babel, porque aí foi confundida a linguagem de toda a terra, e daí os espalhou o Senhor por todas as regiões.”Gênesis, 11;9.


Nenrod foi um famoso rei dos caldeus
Que construiu a grande torre de Babel.
Há quem diga que ele queria ir ao céu,
E disputar poder com o próprio Deus.

O mundo ainda era jovem naquele dia, 
Poucas tribos naquela terra habitavam,
E uma só era a linguagem que falavam
Por isso é que todo mundo se entendia.

Mas Deus, entrevendo o grande perigo,
Que a torre ia trazer para aquela gente,
Pois ali o que havia era só superstição,

Para aquele povo enviou como castigo,
Para cada pessoa uma língua diferente;
Babel se tornou sinônimo da confusão.

Comentário:

A Bíblia informa em Gênesis 11: 1;9, que a diversidade de línguas existente na terra tem origem numa malfadada obra de construção civil intentada pelos descendentes de Noé, após o dilúvio. Essa obra, que teria sido iniciada num lugar chamado Senaar, supostamente no sítio onde hoje se localizam as ruínas da antiga cidade da Babilônia, foi idealizada por um rei chama-do Nenrod, referido na Bíblia como o “grande caçador perante o Eterno” (Gênesis 10;9). Essa construção, identificada como sendo uma cidade com uma enorme torre no meio dela, feita de tijolos de barro cozidos, ligados com betume por argamassa, revelaria, segundo os cronistas bíblicos, uma intenção vaidosa dos seres humanos, pois estes queriam “tornar célebres seus nomes”. 


Historicamente, não se nega que a Torre de Babel pode ter, de fato, existido. Restos de construção do tipo citado pela Bíblia e pelos historiadores antigos que trataram desse assunto têm sido, amiúde, desenterrados em vários sítios arqueológicos do Oriente Médio. Especialmente nos lugares onde se supõe que o modelo que teria servido para a história bíblica foi erguido.
Afinal, anteriormente aos tempos em que a Bíblia começou a ser compilada (provavelmente no século VII a.C, no reinado do Rei Josias, de Judá)[1] os povos habitantes da Mesopotâmea, região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, já ostentavam uma adiantada civilização, bastante urbanizada, com grandes cidades, tais como Ur, Eridu, Uruk e a famosa Babilônia, que já nos tempos de Heródoto era considerada a maior e mais bela cidade do mundo. Segundo esse historiador, em 440 a C, ele viu em Babilônia os restos de “uma torre de compostería sólida, de 201 metros de comprimento por 50 de largura, sobre a qual estava erguida uma segunda torre, e nessa uma terceira, e assim até oito. A ascensão até ao topo está do lado de fora, por um caminho que rodeia todas as torres. Quando se está a meio do caminho, há um lugar para descansar e assentos, onde as pessoas podem sentar por algum tempo no seu caminho até ao topo. Na torre do topo há um templo espaçoso, e dentro do templo está um sofá de tamanho invulgar, ricamente adornado, com uma mesa dourada ao seu lado” .[2] 

De uma forma geral, os historiadores concordam que a inspiração bíblica para a história da Torre de Babel deve estar nos famosos “zigurats”, enormes torres que os povos mesopo-tâmicos construiam para servir de templos e observatórios astrológicos, e que ainda estavam em voga nos tempos de Heródoto. Na literatura encontrada na famosa Biblioteca de Assurbanipal, rei assírio do século VII a C., que sitiou e destruiu o reino de Israel, já se encontram muitas referências a esse tipo de construção e sua utilização. Ali estão registradas várias lendas da literatura suméria que se referem a esse assunto. Uma delas, por exemplo, diz que Amar-Sin (2046-2037 a.C.), o terceiro monarca da Terceira dinastia de Ur, tentou construir um zigurate na cidade de Eridu, o qual nunca foi terminado. Ali se encontra também outra informação que pode ter servido de inspiração para os cronistas bíblicos, não só para o episódio da Torre de Babel, como também para a criação do personagem chamado Nenrod, que por suposto teria sido o idelaizador dessa obra. É a história do rei Enmerkar (i.e. Enmer, o Caçador) rei de Uruk, que teria construído um grande “zigurat” naquela cidade. Essa história também se refere á briga entre dois deuses rivais, Enki e Enlil, que disputavam as honras desse templo construído por Enmerkar, o Senhor de Aratta, e em razão disso acabam por confundir a linguas dos povos que trabalharam nessa construção. 

Outros registros há na literatura suméria e babilônica sobre esse assunto, que levam os estudiosos a pensar que a inspiração bíblica vem dessas fontes. O rei Nabopolassar, por exemplo, também citado na Bíblia pelas incursões que realizou contra os judeus, é referido como sendo um grande construtor e um dos principais reis a fazer da Babilônia a cidade mais importante do mundo em seus dias. Ruínas do magnífico palácio residencial que ele construiu e do suntuoso templo para o deus Ninurta, podem ser vistas ainda hoje. Porém o seu mais ambicioso empreendimento arquitetônico foi a reconstrução do zigurat Etemenanki, conhecido como “Fundação do Céu e da Terra”, gigantesca torre escalonada que servia de templo e observatório astrológico. 

Linguisticamente, o nome Babel é o corrrespondente grego do termo acadiano Bãb-ilu, que significa o “Portal de Deus”. Assim temos a conotação luciferina dessa obra, adotada pelos cronistas bíblicos e aceita pelos comentadores da Bíblia, espe-cialmente os compiladores da Mishná, conjunto de comentários rabínicos à Biblia, que viam na Torre de Babel uma rebelião contra Deus. Em alguns desses mishnás (comentários) encon-tramos inclusive a idéia de que a construção da Torre foi feita para desafiar Deus, mas principalmente para contrariar Abraão, um dos principais sacerdotes da Caldéia, na época, que vivia criticando seus pares e concitando-os a reverenciar Jeová, ao invés de desafiá-lo. Uma passagem da literatura rabínica que se refere a esse assunto diz que os construtores falavam palavras afiadas contra o Senhor, palavras essas não registradas na Bíblia, informando, inclusive, que uma vez em cada 1656 anos, o céu era sacudido por Ele para que chovesse um dilúvio sobre os ingratos filhos de Adão. Por isso eles iram construir essa torre e suportá-la com colunas firmes o suficiente, para que pudesse resistir a qualquer outra inundação que Deus viesse a mandar sobre a terra. Os comentários do Talmud e o historiador Flávio Josefo também se referem a essas tradições em seus comentários à Bíblia, se referindo a Nenrod como o principal articulador dessa obra. [3]. 

A Torre de Babel também é referida no terceiro livro de Baruque, chamado Apocalipse de Baruque, onde esse visionário profeta, á semelhança de Dante em sua Divina Comédia, vê os construtores da Torre de Babel na forma de cães, sofrendo o castigo que Deus lhes inflingiu.[4] 

Para os antigos sacerdotes caldeus os zigurats eram vistos como portais pelos quais os deuses poderiam entrar na terra. Eles ligavam a terra ao céu, e da mesma forma que os habitantes do céu poderiam vir á terra através desses portões, os homens poderiam também entrar no céu por eles. Daí o temor dos Elhoins (e não de Deus), de que o céu fosse invadido por essa raça degenerada, que eram os humanos gerados pelos anjos caídos. Por isso se diz na Bíblia “vinde pois e confundamos de tal sorte sua linguagem, para que um não compreenda o outro”, assim mesmo, no plural, como a mostrar que não foi Deus quem fez essa obra, de confusão de línguas, mas sim um grupo (de anjos, os Elhoins), como sugerem os comentadores do Talmud e principalmente os cultores da Cabala mística.[5] 

A ideía da existência de uma língua única na terra nos tempos em que a Bíblia identifica a construção da Torre de Babel não é aceita pela maioria dos estudiosos. A tendência é ver esse mito como memória de um processo de organização dos reinos mesopotâmeos, os quais passaram por uma série de ascensões e quedas de diversos povos se sucedendo no poder e as dinastias reais, cada uma procurando superar as anteriores em faustosidade e poder. Daí a construção de grandes obras, que aliás eram comuns entre todas as grandes civilizações do passado. Assim um mega projeto de construção na Mesopotâmea pode ter usado trabalho forçado de diversas populações escravizadas, pois a Babilônia, no apogeu da sua história de conquistas, dominava a maioria dos povos do Oriente médio, com suas diferentes linguas. Algumas delas eram, inclusive, não semitas, tais como a Hurrita, a Cassita, o Sumeriano e o Elamita, que eram línguas cananéias. Provavelmente foi o desmoronamento do grande império babilônico, conquistado pelo persa Ciro, o Grande, em 525 a.C. que proporcionou a derrocada da “Torre”(a Babilônia) e a dispersão dos povos que a constituiam. Dessa forma, a história da Torre de Babel teria sido inserida na Bíblia após a volta dos judeus do cativeiro da Babilônia e o Etemenanki, o zigurat dos reis babilônicos, principal santuário da “abominável religião de Babel”, foi estigmatizada como sendo a responsável pela grande confusão de línguas existente sobre a terra. 

A Bíblia não menciona o que aconteceu á Torre de Babel depois da dispérsão, mas escritores antigos, de várias procedências, informam que Deus a teria destruído. Relatos contidos no Livro dos Jubileus, em obras de Cornelius Alexandre, do grego Abydenus, de Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 1.4.3), e os Oráculos Sibilinos (iii. 117-129) informam que Deus teria derrubado a torre com um grande vento. 

Isso mostra o quanto esse relato foi apropriado pelos cronistas judeus para justificar a sua teologia e a sua ideologia racial, sendo a primeira consubstanciada na idéia da existência de um único Deus e que seria Israel o único povo a adorá-lo. E a segunda para afirmar a supremacia do povo de Israel sobre seus vizinhos. Pois segundo os cultores dessa tradição, a lingua de Israel e seu alfabeto, o hebraico, foram criados no céu. É a língua falada pelos Elohins, os arcanjos que fizeram o homem á sua imagem e semelhança. Todas as outras línguas seriam bárbaras, nascidas da “confusão” provocada pela derrocada pela Torre de Babel. 

Cabe, por fim, lembrar, que a história da Torre de Babel, como as demais lendas e tradições referidas na Bíblia não é exclusiva dos povos mesopotâmicos, nem é a literatura bíblica a única a se referir a ela. Entre os povos da América Central existem várias histórias similares. Entre os astecas temos a história de Xelhua, um dos sete gigantes que se salvaram do dilúvio, construindo a Grande Pirâmide de Cholula para desafiar o Rei do Céu. Os deuses a destruíram com fogo e confundiram a linguagem dos construtores. Também os toltecas, povo anterior aos astecas no rol das civilizações que povoaram o antigo México, tinham uma lenda similar que dizia que os homens se multiplicaram após o grande dilúvio e começaram a eguer um alto zacuali (torre), para se abrigar caso os deuses mandassem outro dilúvio. Dizem também que a torre não foi acabada porque suas línguas foram confundidas e eles foram espalhados para diferentes partes da terra. 

Também na Índia, no Nepal, entre os habitantes da Estônia e os aborígenes da Austrália e da Nova Zelândia já foram recen-seadas histórias similares, que mostram ser a Torre de Babel um arquétipo compartilhado pela memória comum da huma-nidade. 

E como tudo que se refere á Bíblia essa história também se tornou um artigo de fé. Não são poucos o que defendem a literalidade do episódio da Torre de Babel como origem das diversas línguas faladas na terra. E como se diz, a história pode ser discutida, mas a fé não. 

Cabe, por fim, lembrar que algumas Lojas de maçons operativos, antes da introdução do Drama de Hiram Abiff, costumavam trabalhar com o tema da Torre de Babel e tinham em Nenrod uma espécie de Grande Mestre Arquiteto. O tema tinha um desenvolvimento esotérico de alta significação, buscando mostrar aos Irmãos o resultado catastrófico do orgulho e da desunião entre os Obreiros de uma Loja quando eles começam a falar" línguas diferentes dentro da Loja".Geralmente essa confusão de línguas( diga-se egos) é que acabam levando uma Loja a "abater colunas". [6] 


[1] Veja-se a Bíblia não Tinha Razão- Finkerman e Asher, Ed. Girafa, 2003 

[2] Heródoto- História- Editora Edições 70-São Paulo, 1976 

[3] Talmude Sanhedrin 109a. Sefer ha-Yashar, Noah, ed. Leghorn, 12b 

[4] Apocalipse grego de Baruque, 3:5-8 

[5] Já nos referimos, em outros trabalhos publicados, á tese do escritor e historiador azerbaijano, Zecharias Sitchin, que sustenta serem os Elohins, criadores do homem, seres extraterrestres que vieram do planeta Nibiru.


[6] Manuscrito Cooke, +- 1645- Cf Jean Palou –Maçonaria Simbólica e Iniciática Ed. Pensamento, 1982


O CÓDIGO SAGRADO

 Autor: João Anatalino


A Kabbalah é um sistema de pensamento desenvolvido pelos estudiosos da religião judaica para interpretar a Bíblia e desvendar os grandes segredos contidos na palavra de Deus, que no entender dos mestres dessa religião, esse formidável monumento literário que os judeus legaram ao mundo encerra. Para esses estudiosos da religião de Moisés, a Bíblia teria sido escrito em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de combinar letras e números para criar novas palavras, apresentando a cada combinação feita, um significado diferente. 

Assim, a Kabbalah se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem de um mundo superior ao nosso, pois foi desenvolvida no próprio ceu para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, os construtores do universo, que são as dez Ordens angélicas, criadas em cada uma das dez manifestações que Ele emanou em sua ação criadora. Essas dez manifestações são aquelas que estão representadas na Árvore da Vida.[1]

Os membros dessas fraternidades, os arcanjos, ensinaram a Kabbalah a alguns homens na terra, escolhidos especialmente para receber essa sabedoria, com a qual a própria humanidade pode contribuir para a tarefa de construção do mundo planejado pelo Criador. Daí a palavra Kabbalah significar, literalmente, “tradição recebida”, pois o seu contéudo, inacessível ao vulgo, só pode ser comunicada a alguns iniciados. Nesse sentido ela seria uma espécie de código secreto, de craráter sagrado, cujo conteúdo seria interdito aos profanos.

Diz-se que os sons e os valores numéricos desse alfabeto, devidamente combinados, formam palavras e signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas suas partes, sejam elas materiais ou espirituais. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição.

Tradicionalmente, há dois tipos de Kabbalah. Uma é aquela que nasceu da necessidade de os judeus criarem para si uma forma de defesa contra o acirrado anti-semitismo que se desenvolveu contra o povo de Israel desde as suas origens, derivado do fato de os israelitas terem se afastado do convívio com outros povos em razão das suas crenças, bastante diferentes dos demais. Esse tipo de Kabbalah, que pode ser chamado de prática, ou operativa, segundo acreditavam seus praticantes, hospedava, em princípio, um sistema de alta magia, que tinha por objetivo a invocação de poderes do mundo sobrenatural para realizar os desejos do operador. É nesse contexto que se situam os milagres, as visões e profecias realizadas pelos antigos profetas do Velho Testamento e as famosas lendas cabalistas que atravessaram séculos e que ainda hoje povoam a imaginação das pessoas, servindo inclusive de fonte para formidáveis trabalhos literários.[2]

Mais tarde surgiu outro tipo de Kabbalah, que podemos chamar de filosófico. Este constitui um sistema de pensamento e disciplina de conduta moral que foi desenvolvido por um grupo de filósofos, a maioria de origem judaica, a partir do século XII da era cristã, provavelmente na região do Languedoc francês. Embora a temática desse tipo de Kabbalah tenha surgido somente na Idade Média, e seu conteúdo tenha sofrido uma larga influência da Gnose, as raízes dessa doutrina estão fincadas em uma antiga tradição já encontrada entre os rabinos dos tempos bíblicos, e utilizada principalmente por grupos sectários judeus, nos séculos anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. 

Pode também ser recenseada em obras de escritores esotéricos cristãos nos primeiros séculos do cristianismo, que a usaram para disfarçar a pregação da doutrina de Jesus, então posta na clandestinidade pelas autoridades romanas. Um exemplo dessa literatura cristã clandestina, escrita em linguagem simbólica, usando o método cabalístico, é o Apocalipse de São João. Esse curiosa obra, que visa divulgar a doutrina cristã ás sete igrejas da Ásia, até hoje desafia a curiosidade dos estudiosos, em face da estranha simbologia usada pelo autor. Nesas obra, um dos mais significativos exemplos da técnica cabalística é a que o autor usa para designar a enigmática figura da Besta. “ E aqui está a sabedoria. Quem tem inteligência calcule o número da Besta. Porque é número de homem. 

E número dela é seicentos e sessenta e seis”, escreve o autor. Esse número (666), correspondia, usando-se a técnica da gematria, ao nome do imperador romano Nero, que justamente na época em que o autor escrevia o Apocapipse, havia desencadeado uma grande perseguição aos cristãos em todo o território dominado por Roma[3]

Entretanto, parece que o uso da Kabbalah como linguagem de código foi popularizada mesmo pelos essênios, seita judaica radical, que entre os séculos I e II antes do nascimento de Jesus se afastou do convívio social para viver a sua crença em um final apocalíptico para este mundo e a construção de um mundo novo, liderado pelo Messias. Essa seita, cujos documentos foram recentemente recuperados em cavernas situadas ás margens do Mar Morto, é tida como a verdadeira inspiradora do cristianismo, pois suas doutrinas muito se aproximam daquelas pregadas por Jesus e principalmente, por aquele que é tido como seu verdadeiro mentor, o profeta João Batista.[4]

Alguns dos precursores da Kabbalah, segundo os estudiosos desse sistema, foram os profetas Ezequiel e Daniel, cujas visões, extremamente difíceis de serem explicadas em linguagem vernacular, só podem ser estudadas e entendidas por quem domina o arsenal do simbolismo cabalístico. É fato que tais vi- sões guardam relação com os momentos históricos vividos pelo povo de Israel e refletem os próprios sentimentos, temores e esperanças vividas por esse povo, em sua extraordinária saga. Mostram também a existência de uma tradição muito em voga entre os povos antigos, de retratar os seus estados interiores através de complicadas visões gestaltianas. Como explica Northrop Frye “há, no Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal.[5]

Destarte, muitas palavras, que na linguagem comum significam uma coisa, na linguagem usada pelos autores desses antigos textos significam coisas muito diferentes, que só podem ser devidamente decoficadas se postas no exato contexto em que viveram os seus autores e recenseadas as suas relações de sentimento e interação com o ambiente e os acontecimentos que fizeram parte da experiência que eles relatam. Referindo-se ainda ao estudo do autor acima citado, verifica-se que nas sociedades antigas há uma interação mais estreita entre o sujeito e o objeto, no sentido de que a ênfase do sentimento experimentado pela pessoa recai mais sobre a relação que a liga ao ambiente do que na própria observação do sentimento em si, coisa que só começou a acontecer depois da experiência grega. Essa característica também foi explorada por Sir James Fraser, em seu estudo sobre as tradições dos antigos povos, quando se refere ao sentimento do homem primitivo em relação aos seus deuses. É uma relação de simbiose, no sentido de que o homem primitivo não possui um “self” ou seja, um sentimento de si mesmo, independente da divindade que ele cultua. Essa noção, como bem viu esse autor, só seria desenvolvida mais tarde, já nos tempos históricos, pelos gregos com a cultura do pensamento filosofico. [6]

É nesse sentido Frye explica o fato de que “muitas sociedades primitivas possuem palavras que expressam essa energia comum á personalidade humana e á natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias e correntes de pensamento.(...) A articulação das palavras pode dar corpo à este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como fórmulas de “feitiço” ou encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário desse princípio é o que pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tal contexto, as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.[7]

O autor em questão cita, á guisa de exemplo, a palavra maná, ou mana, que em Êxodo, 16, aparece como sendo uma espécie de farinha que Jeová faz cair do céu para alimentar o faminto povo de Israel no deserto. Essa palavra (man, maná, manes, em várias línguas antigas), refere-se á uma força, ou energia, que se encontra concentrada em objetos ou pessoas e que pode ser adquirida, conferida ou herdada. Na mitologia romana, por exemplo, esse termo conecta-se com o termo “manes”, palavra que designa a influência que os ancestrais mortos podiam exercer sobre os vivos. Criam-se, dessas forma, insuspeitadas relações simbólicas, que se hospedam no inconsciente coletivo da humanidade e são passadas de geração á geração, dando formato á crenças, valores e costumes, os quais, no contexto geral da cultura humana podem explicar muita coisa que de outra maneira ficariam para sempre catalogadas como meras superstições.[8]
(Continua)


[1] Cf. Knor Von Rosenroth- A Kabbalah Revelada, op, citado, pg. 50
[2] Exemplos de temas cabalísticos em obras literárias famosas são as lendas do Golém, que inspiraram a escritora inglesa Mary Shelley na composição do seu clássico romance Frankeinsten. Outras obras, como o Aleph, famoso conto de Jorge Luís Borges, o Golém de Gustav Meirink, e mais recentemente, As Aventuras de Pi, filme vencedor do Oscar em 2012, baseado no romance de Yann Martel, também são inspirados em temas cabalísticos.
[3] Ver, a esse respeito Hugh Schonfield- A Bíblia Estava Certa- Ibrasa, São Paulo, 1958
[4] Para maiores referências sobre essa seita e sua influência na história do pensamento maçônico, ver nossa obra “Conhecendo a Arte Real”, publicada pela Ed. Madras, São Paulo, 2009. Ver também Laperroussaz, Ernest- Marie. Os Pergaminhos do Mar Morto, São Paulo, Círculo do Livro, 1990.
[5] Northrop Frye- O Código dos Códigos, Ed. Boittempo, São Paulo, 2004
[6]Sir James Fraser, “ O Ramo de Ouro” publicado pela Zahar Editores, São Paulo, 1982.
[7] Northrop Frye, op citado, pg. 27
[8] O Código dos Códigos, op citado, pg. 28.