OS MONGES MALDITOS
CAPÍTULO XVIII
O PERGAMINHO DE CHINON
João Anatalino Rodrigues
Setenta e dois cavaleiros tinham sido levados, com escolta, para Poitiers. Entretanto, o rei se recusara a encaminhar junto com eles Jacques de Molay e os três outros dignatários da Ordem, os quais ficaram pelo meio do caminho, presos no Castelo de Chinon.
Perante o papa e o colégio de cardeais reunidos para ouvi-los, a maioria dos setenta e dois andrajosos Templários ratificaram as declarações prestadas perante o Inquisidor-Mor, Guilherme de Paris, admitindo que a corrupção dos costumes entrara na Ordem cerca de cinquenta anos antes, e se agravara nos últimos vinte. E que essa corrupção era maior na França do que em outros reinos, e especialmente na região do Languedoc, onde a tradição cátara era ainda muito forte.
Isso deu o que pensar a Clemente V. Até aquele momento ele se recusara a crer que houvesse, de fato, um caso de heresia entre os Templários. Acreditava sim, que alguns dos monges do Templo pudessem ter se desviado, em termos de conduta pessoal, das Regras prescritas por São Bernardo. Afinal, o papa sabia que a corrupção é própria do ser humano e nem todos têm estofo moral suficientemenre forte para resistir ás tentações da carne, aos apelos da luxúria, da cobiça, da inveja, e outros vícios capitais, que a doutrina da Igreja condenava. Mas as confissões dos altos dignatários do Templo, embora acreditasse que foram feitas sob tortura e outros constrangimentos morais, e agora as ratificações feitas pelos Templários ouvidos pela comissão episcopal não deixava dúvidas de que alguma coisa de errado estava acontecendo no interior da Ordem do Templo. Em sua bula Subit assidue, editada em 5 de julho daquele ano, Clemente V dizia que “alguns Templarios haviam admitido os erros praticados, mas outros, em menor número, negaram. Assim, a dúvida persistia, o que justificava uma investigação mais ampla do assunto.”
Entre os setenta e dois prisioneiros que Filipe havia enviado á Poitiers, a maioria era composta de membros leigos da Ordem, que seus senescais haviam arrebanhado por todo o território francês e colocado nas masmorras. Nem todos eram cavaleiros. A maioria nem participava das cerimônias que eram feitas nos Capítulos. O que diziam sobre a Ordem e os crimes de eram imputados aos Irmãos era por ouvir dizer.
O colégio de cardeais que ele convocara para ouvir os setenta e dois acusados não puderam, de pleno, se convencer da culpa dos Templários. Era possível sim, que houvessem ocorrido desvios na fé daqueles bravos cavaleiros que haviam lutado, com tanto destemor, na Terra Santa. Mas esses desvios, pensava a maioria deles, tinha ocorrido em virtude das próprias vicissitudes da vida que levavam. Expostos ao perigo constante, acossados pelo inimigo, constrangidos pela dureza das regras monásticas, confinados ao rigor do claustro, aqueles homens duros, austeros, viris, poderiam, muito bem, ter sucumbido ao apelo dos sentidos. Se isso acontecia nos claustros dos mosteiros e dos conventos das Ordens mais virtuosas da Igreja, porque não ocorreria entre rudes soldados, cuja atividade estava envolvida em assuntos profanos de todos os misteres?
Isso foi o que os cardeais e prelados que ouviram os setenta e dois acusados enviados por Filipe relataram ao Santo Padre. E o estado deplorável em que estavam aqueles pobres diabos não deixava dúvida dos terríveis constrangimentos morais e físicos a que tinham sido submetidos. “Desse jeito, quem não confessaria ter amizade com o próprio Diabo?” disseram eles.
Mas havia a questão dos altos dignatários do Templo, que haviam confessado perante o Inquisidor-Mor da França, Guilherme de Paris e os doutores da Universidade, os pecados pelos quais Filipe os estava acusando. Como resolver esse imblóglio? A sugestão foi que o papa enviasse a Chinon três prelados por ele indicados, para ouvir de Molay e seus companheiros, já que Filipe se recusava, obstinadamente, á liberá-los para irem a Poitiers.
Foi com essa incumbência que uma comissão de inquisição, presidida pelo bispo Estevão de Susy, foi a Chinon ouvir as declarações dos altos dignatários do Templo. Eles chegaram ao castelo no início de agosto, mas só puderam ouvir os prisioneiros entre os dias quatorze e vinte daquele mês porque o condestável daquele castelo só consentiria na oitiva depois que os dois Guilhermes, Plaisians e Nogaret, chegassem a Chinon, pois este último havia dado ordens expressas que nenhum enviado do papa se avistasse com os prisioneiros sem a suas presenças. E antes da entrevista, o próprio Nogaret visitou os prisioneiros, um por um, fazendo as mesmas ameaças e promessas que lhes haviam sido feitas em Paris. Que eles admitissem a culpa pelos erros nos quais incorreram, porque assim seriam perdoados e reintegrados á Santa Madre Igreja. O contrário seria a condenação, pura e simples, depois de cruel tortura, á fogueira.
Foi com essas promessas e ameaças na cabeça que os altos dignatários do Templo foram ouvidos pelos prelados nas masmorras do Castelo de Chinon.
– A Igreja não deseja o mal para seus filhos – disse o bispo Suisy aos prisioneiros. – Todos os homens são passíveis de cometer pecado e serem desviados dos caminhos de Deus. O que não se perdoa é o fato de eles permanecerem no erro quando se lhes é mostrado o caminho correto.
– Os desvios de conduta praticados pelos Irmãos do Templo já foram suficientemente verificados e comprovados e vós mesmos já os confessastes – continuou ele – Cabe, agora, pronunciar os atos de contrição e mediante sincero arrependimento, voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Com isso – enfatizou o bispo – também vossas vidas serão poupadas e vós não sofrereis mais os constrangimentos a que foram submetidos até agora.
Jacques de Molay era um sujeito analfabeto e bronco, como diziam seus inimigos, mas tinha uma aguda percepção da realidade. Por isso não deixou de observar a mudança de estratégia que se operara depois das primeiras oitivas, em Paris. Agora os inquisidores do papa estavam mostrando uma boa disposição com eles, tratando-os com brandura e comiseração, dando a entender que os pecados cometidos pela Ordem não eram tão graves e poderiam ser perdoados, sem maiores consequências para seus membros. Haviam até questionado a legalidade do ato do rei e mostraram-se indignados contra o uso da tortura. Mas agora era a própria Igreja que pedia a colaboração deles no sentido de dar a esse inquérito uma aparência de legalidade. E para isso adotavam a mesma estratégia de Guilherme de Paris e seus comandados: promessa de indulgências e brandura de tratamento. Mas ninguém falou em liberdade.
– Vós estais agora nas mãos da Igreja e vossas vidas e bens estarão salvaguardados. Podeis, portanto, falar livremente e sem constrangimentos. Vossas declarações serão registradas por notários públicos, para que não se pairem nenhuma dúvida sobre o que foi dito e registrado ─ informou Estevão de Suisy.
O porquê disso é que de Molay não compreendia. Já não dissera, ele e seus comandados, tudo que a Igreja queria que dissessem? Que mais a Igreja esperava que ele e seus irmãos confessassem? Os inquisidores do papa, diferente de Guilherme de Paris e os esbirros de Filipe, não perguntaram pelo tesouro do Templo. Nem fizeram insinuações sobre o suposto desejo dos Templários de se desligarem da Igreja e fundar um estado independente, semelhante aos que os cavaleiros teutônicos haviam feito nos Bálcãs. Nenhuma suspeita de conspiração. Sequer questionaram sobre as estranhas doutrinas que diziam ser professadas intramuros pelos Irmãos da Ordem. A questão da negação de Cristo e as cuspidelas na cruz, que podiam ser consideradas como atos de desrespeito e até marcados como grossa heresia, poderiam ser justificadas pelos altos dignatários do Templo como sendo uma espécie de prova pelas quais os noviços deviam passar. Essa alternativa fora proposta pelos próprios inquisidores, depois de ouvir uma justificativa dada por Hugues de Peyráuld.
─ Quando alguns Irmãos foram capturados pelos sarracenos ─ disse Peyraúld aos inquisidores ─ eles foram submetidos á tortura e sofrimentos, com seus carrascos sempre os incitando a que negassem sua fé. Prometiam que se negassem Cristo e desprezassem a cruz, suas vidas seriam poupadas. Vários Irmãos o fizeram. Foi por isso que o Irmão Robert de Craon, quando se tornou Grão-Mestre geral da Ordem, instituiu essa prova na recepção dos noviços. Aqueles que o fazem sem contestar ─ explicou Peyráuld, demonstram não estar seguros na sua fé. Assim, embora possam ser recepcionados na Ordem, jamais atingirão cargos de importância dentro dela.
A explicação deve ter sido considerada plausível pelos inquisidores de Chinon, porquanto eles não insistiram no assunto, parecendo dar-se por satisfeitos com a justificativa. Era uma espécie de prova, portanto, a exigência de que o noviço negasse Cristo e cuspisse na cruz. Podia ser uma estranha forma de demonstrar uma profissão de fé, mas no todo, se era isso mesmo, não era coisa tão grave que não pudesse ser corrigida com arrependimento e penitência, coisa que os altos dignatários do Templo se mostraram dispostos a fazer. Era, ao contrário, uma forma de comprovar a verdadeira têmpera de um cavaleiro de Cristo. No caso, o que valia era a intenção e não o procedimento em si.
Jacques de Molay sentira nessa ocasião uma mudança de disposição nos inquisidores. Como dissera Estevão de Suisy, eles teriam que repetir suas declarações perante notários públicos e homens de bem. Seria também aberta a possibilidade para que qualquer Irmão do Templo, que tivesse qualquer coisa a dizer em defesa da Ordem, se apresentasse para defendê-la, sem o perigo de ser preso.
A razão de tudo isso intrigou de Molay. Então não estava tudo esclarecido? O que os inquisidores estavam lhe dizendo é que a Ordem iria mesmo ser submetida a uma investigação formal e que tudo deveria obedecer ao devido processo legal. Para isso seria feito um inquérito, depois uma acusação formal, com o devido direito á defesa e finalmente um julgamento, onde seria emitida uma sentença.
─ Meu Deus ─ murmurou de Molay ao saber que continuaria preso e seria interrogado, e talvez torturado de novo, se não consentisse em dizer o que os inquisidores queriam: ─ Dai-me forças para suportar tudo isso.
─ Quanto maiores as provações, maior o galardão nos céus, meu filho ─ dissera-lhe o bispo, fazendo o sinal da cruz sobre ele, antes de retirar-se da cela.
Os homens de bem, a que o bispo Estevão se referira, incluíam, naturalmente, Guilherme de Nogaret e Guilherme de Plaisians, além de vários prelados, advogados e autoridades civis e eclesiásticas. Foram esses dois cavalheiros que levaram, com indisfarçável alegria, a Filipe, o Belo, a notícia de que os líderes do Templo haviam confirmado as declarações feitas a Guilherme de Paris e o papa decidira, finalmente, submeter a Ordem do Templo e seus membros ao julgamento pelo Tribunal da Inquisição.
– A sorte do Templo está selada – disse Nogaret a Filipe. ─ Vossa Majestade venceu mais uma vez.
─ Quem venceu foi a verdadeira fé, Messire Nogaret ─ respondeu Filipe, com estudado sarcasmo.
Do que os três bispos apuraram no interrogatório dos altos dignatários do Templo, resultou o documento conhecido como Pergaminho de Chinon. Eles estavam convictos de que os Templários, embora tivessem cometido, em suas cerimônicas iniciáticas, alguns comportamentos condenáveis do ponto de vista doutrinário e litúrgico, ou até da moral, não era o caso de imputar-lhes o crime de heresia. Assim, eles mereciam reprimendas mas não condenação. Poderiam ser perdoados e após pagarem suas culpas com algum tipo de penitência, serem reintegrados ao seio da Igreja.
Com esse documento Clemente V poderia desfazer o que Filipe fizera, se tivesse a coragem para tanto.
O papa, entretanto, estava em uma encruzilhada. Se atendesse aos desígnios do rei teria que sacrificar os Templários. Se não atendesse, poderia ter o mesmo destino de Bonifácio VIII. Prisioneiro do rei ele já era. Havia sido confinado no castelo episcopal de Poitiers, com uma tropa de arqueiros a guardá-lo. Se resolvesse confrontar Filipe, provavelmente ele nem o deixaria sair de Poitiers para Avignon.
Foi então que decidiu colaborar. Mas ainda queria conservar uma aparência de legalidade e justiça no processo. Isso poderia acalmar sua consciência e calar vozes discordantes, que ele sabia que seriam levantadas. Mandou chamar de novo á sua presença os Templários que foram postos sob a guarda da Igreja. Eram agora setenta e um, pois Oliver de Penne, o Preceptor da Lombardia, que havia sido mantido pela guarda papal em prisão domiciliar em Poitiers, se evadira. Uma recompensa de 10.000 florins foi oferecida pela sua cabeça, mas ninguém conseguiu descobrir onde ele se escondera.
Clemente V sabia que a maioria dos prisioneiros enviados por Filipe era composta por membros de grau inferior dentro da Ordem. Eram, na sua maioria, sargentos, capelães, cavaleiros sem nenhum cargo ou hierarquia dentro da Organização. Talvez não soubessem, de fato, o que realmente se passava no interior dos Capítulos, onde eram doutrinados os Irmãos que se tornariam altos dignatários da Ordem.
Entretanto, apesar de mostrar certa consternação com o que ouviu deles, ele disse aos inquisidores estar, de fato, convencido e indignado pela confirmação dos pecados cometidos por cavaleiros tão estimados e respeitados pela cristandade, de tal forma que a Igreja lhes havia outorgado tamanho poder. Embora tivessem mostrado arrependimento, havia, sem dúvida, alguma coisa errada acontecendo com a Irmandade. E isso precisava ser apurado. Em vista disso emitiu imediatamente a bula Faciens Misericordiam, na qual oficializava a abertura do processo contra a Ordem do Templo e dava completos poderes aos inquisidores por ele nomeados para extrair dos Templários as confissões necessárias.
Agora sim, os Templários poderiam ser perseguidos, presos e inquiridos em todos os reinos da cristandade sem dúvidas nem constrangimentos, pois agora era a própria Igreja que assim ordenava. O rei que não o fizesse, ou contestasse a autoridade papal, poderia sofrer as consequências. Filipe o Belo, finalmente triunfara em todos os sentidos.
Para ele, aliás, o caso já estava decidido. Mas para manter a aparência de legalidade, ele não se importou que o papa se reservasse no direito de julgar os grandes dignatários da Ordem, em especial o seu Grão-Mestre geral, Jacques de Molay. Além dos oito prelados que iriam dirigir o processo, ele definiu que os inquéritos deveriam ser assistidos por membros das Ordens franciscanas e dominicanas e julgados por um conselho provincial de bispos em cada província onde houvesse acusados. Assim, começou o devido processo legal. Mas este, como se veria, seria apenas para cumprir os regulamentos. Pois o papa já tinha em mãos o relatório dos bispos que tinham inquirido os altos dignatários do Templo em Chinon. Para estes, os Templários eram inocentes da acusação de heresia. Em consequência eles poderiam ser absolvidos pela Igreja. Mas para Filipe, o Belo, e o papa covarde que preferiu ocultar o relatório, eles já estavam condenados. Tratava-se, pois de um caso de inocência culpada.
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