quinta-feira, 15 de dezembro de 2016




A ideia da utopia 

Autor: João Anatalino

A utopia é um arquétipo que mora no inconsciente coletivo da humanidade desde os primeiros momentos de sua experiência civilizatória. Todas têm em comum uma base religiosa, mas no fundo, objetivam uma realização política e social que ás vezes buscam uma realização efetiva, outras vezes não. Algumas, como a República de Platão, a Utopia de Thomas Mórus, os discursos de Voltaire em Candido, são apenas sonhos de filósofos, que jamais saem do papel. Outros, como o sonho americano dos pioneiros que colonizaram a América do Norte, o delírio de Hitler com o seu nacional-socialis-mo, ou a quimera comunista, tão elogiada por poetas como Pablo Neruda e Maiakovski, tornaram-se realidade como realizações políticas, embora, como no caso da Alemanha e da Rússia, por exemplo, seus resultados tivessem sido bem diferentes daqueles que seus idealizadores sonharam.

As utopias são arquétipos que afloram no imaginário popular, especialmente em épocas de grande tensão social. Não é sem razão que as primeiras décadas do século XVII, logo após a eclosão da Reforma protestante tenha sido farta na publicação de trabalhos abordando esse tema. Já citamos vários autores dessa época que trabalharam com a ideia da utopia, mas poucos foram tão pródigos e incisivos quanto os rosa-cruzes e os seus contemporâneos, os chamados “maçons aceitos” que compraram a ideia da “fraternidade mundial que reuniria os homens de saber em todo o mundo, para trabalhar pela libertação do homem de seus erros e vícios mortais”. Pois foi exatamente a Maçonaria, como instituição organizada em todo o mundo ocidental, que iria levar a cabo a realização dessa ideia.[1]

O legado dos essênios

O próprio cristianismo pode ser contado entre as utopias. Seu fundador, Jesus de Nazaré, o filho do carpinteiro José, sonhou com um mundo justo e perfeito, onde todas as mazelas que infelicitam o ser humano seriam eliminadas. O que seus seguidores fizeram depois com sua maravilhosa doutrina é outra coisa, porém sua ideia de um “reino de Deus” sobre a terra era uma esperança bem real e possível, tanto que ele morreu por ela. 

Hoje resta pouca dúvida de que Jesus tenha sido membro da seita dos essênios, ou que pelo menos tenha sido influenciado, ou mesmo doutrinado por esses estranhos zelotes religiosos que tanta influência tiveram no pensamento místico que marcou a civilização ocidental nos primeiros séculos do cristianismo. 

Os essênios constituíam uma comunidade místico-religiosa formada por iniciados nos mistérios da religião hebraica. São os precursores da grande tradição judaica chamada Cabala e os cultores da filosofia gnóstica também lhes devem muitas influências. 

Os essênios julgavam-se detentores do verdadeiro conhecimento religioso, aquela sabedoria que Deus comunicara aos primeiros homens e que desaparecera da terra após o dilúvio. Muitos escritores de orientação esotérica os fazem herdeiros dos atlantes, atribuindo-lhes diversos conhecimentos iniciáticos. Nós nos contentamos em reconhecer o legado que eles deram á Arte Real, os quais foram incorporados á tradição maçônica através dos aportes que lhe deram os cultores da Cabala filosófica, entre os quais, diga-se de passagem, havia muitos judeus.

Duas das tradições legadas pelos essênios, e aproveitadas no simbolismo maçônico, são os simbolismos do Homem Universal (Adão Kadmon) e o mistério ligado ao verdadeiro significado do Nome de Deus (o Tetragrammaton). Na Maçonaria esses simbolismos são utilizados para desenvolver alguns ensinamentos dos graus superiores, tanto nas chamadas Lojas de perfeição, quanto os capítulos filosóficos. 

Entre os judeus, os essênios podem ser considerados uma espécie de confraria religiosa, cujos membros discordavam da orientação imprimida á religião judaica pelos seus líderes. Formando uma verdadeira seita radical, eles se afastaram do convívio social e desenvolveram uma espécie muito particular de comunidade, que na verdade, tinha um objetivo bem definido: preparar uma nova nação de eleitos de Deus, que seria a herdeira da Nova Aliança, quando o Messias viesse ao mundo. 

Nesse sentido, eles desenvolveram um complexo sistema iniciático, que exigia de seus membros juramentos solenes de obrigações fraternas e um estrito silêncio sobre suas práticas, crenças e tradições, ao mesmo tempo que inculcavam na cabeça de seus adeptos uma filosofia de vida ascética e moralmente virtuosa, rigidamente orientada pelos preceitos da Torá. . 

A idéia que se fazia dos essênios, a partir de informações extraídas de escritores antigos, como Philo de Alexandria, por exemplo, que já no século I da era cristã confessava a influência que deles teria recebido, era a de que eles constituíam uma comunidade de magos, grandes conhecedores de segredos da natureza, detentores de uma sabedoria muitas vezes milenária, oriunda, talvez, de uma civilização desaparecida.

Por força de tais informações, os essênios sempre foram envolvidos por uma aura de misticismo e mistério. Porém, com as descoberta dos pergaminhos do Mar Morto, uma nova luz foi lançada sobre esse interessante grupo sectário, que sobreviveu por mais de dois séculos em condições sóciais e políticas muito adversas, praticando uma espécie de irmandade que muito os aproxima do ideal preconizado pelos idealizadores da Maçonaria moderna. 

É evidente que qualquer comparação, qualquer analogia que se faça entre a comunidade essênia e a Maçonaria deve levar em conta as culturas em que elas se desenvolveram e suas respectivas épocas. Essa comparação deve ser feita á nível de objetivos e procedimentos, relevando-se as aproximações sem observar as diferenças, que são notórias. Talvez a melhor fórmula para se fazer essa aproximação seja a observação de que os essênios conservaram em sua doutrina e sua prática de vida a essência da tradição iniciática dos sacerdotes egípcios, dos hierofantes gregos, e das comunidades místicas da Pérsia e da Mesopotâmea, aliados a uma ideia de elitismo cultural e zelo pela tradição. Aproximando e adaptando a tradição hebraica á essas antigas formas de desenvolvimento espiritual, eles criaram uma nova cultura, salvaguardando e desenvolvendo a face mística, esotérica, contida naquelas antigas tradições, legando aos gnósticos cristãos, seus sucessores, o que de melhor havia na doutrina religiosa daqueles antigos povos. 

Síntese histórica 

A comunidade dos essênios teria sido fundada por um personagem misterioso, referido na sua literatura ora como Mestre Perfeito, ora como Mestre Verdadeiro. Não se sabe quem foi realmente esse personagem singular, mas acredita-se que tenha sido um sacerdote da tribo de Levi, que revoltado com a corrupção do clero israelita da época, (inicio do século II a. C.), retirou-se para a clandestinidade, arrastando com ele um vasto contingente de seguidores, insatisfeitos com os rumos que a religião vinha tomando em Israel.

No início do século II a C., o reino de Israel fazia parte do chamado mundo helênico. Desde o século IV a C. a Palestina tinha sido incorporada ao império persa, que por sua vez, fora conquistado por Alexandre Magno entre 326 e 323 a C. 

Após a morte de Alexandre, seu império foi dividido entre seus generais. A parte correspondente á Síria e Palestina ficou com Antioco, que estabeleceu a sede de seu governo na Síria. Por volta do inicio do século II a C. reinava na Síria um de seus descendentes, chamado Antioco Epifanes. 

O historiador judeu Flávio Josefo (37-100 e. C) nos dá uma idéia do ambiente que reinava em Israel naquela época.[2] Naquele tempo, diz o referido historiador, a casta sacerdotal responsável pela manutenção da pureza da religião de Israel, fundamentada na lei mosaica, estava profundamente corrompida. Só se preocupava em manter seus privilégios, submetendo-se á pressões e influências estrangeiras, se esquecendo que o maior dever do sacerdote era a manutenção da tradição e da pureza da relação entre o homem e Deus.

Os israelitas sempre foram muito ciosos a respeito de sua religião. Muitos preferiam morrer a adorar ídolos estrangeiros ou violar os preceitos da Torá. Essa situação, que perdurou durante todo o período da dominação helênica, e se prolongou durante a ocupação romana, não raramente ensejava motivos para a eclosão de sangrentas revoltas. 

Durante a época de Jesus, essa situação não se modificara, como se pode perceber pelo seu magistério. Jesus fazia ferrenha oposição á classe sacerdotal da sua época, conforme se lê nos Evangelhos. Essa classe, composta pelos saduceus e fariseus, outras duas seitas existentes em Israel, interpretava a lei em seu próprio beneficio e lançava sobre os ombros do povo cargas “que nem com um dedo queriam levantar”, no dizer de Jesus. 

Com isso não concordavam os “puristas”, os ortodoxos, os cultores da idéia de uma religião isenta de qualquer influência pagã. Esses “puristas” julgavam ser o culto á deuses estrangeiros, a maior das ofensas que se podia fazer a Jeová. Entre eles estavam os essênios e os zelotes.

Um desses homens “puros” foi, sem dúvida, o chamado Mestre Verdadeiro, ou Mestre da Retidão, que fundou a comunidade essênia. No inicio do século II a C., o sacerdócio era exercido pela família de Matatias, um homem da tribo de Levi, famoso por suas posições de defesa intransigente da lei mosaica. O rei sírio Antioco Epifanes, desejando quebrar a resistência israelita, quis implantar em Israel o culto a Zeus Olímpico. Com essa intenção, invadiu o santuário do Templo de Salomão em Jerusalém, colocando no altar do Santo dos Santos uma estátua daquele deus. Os israelitas não suportaram a violação do mais sagrado dos seus locais, e comandados por Judas, o filho mais velho do sacerdote Matatias, iniciaram a rebelião que ficou conhecida como a Revolta dos Macabeus.

Foi durante a Revolta dos Macabeus que um grupo de israelitas ortodoxos fugiu de Israel e se instalou na chamada “Terra de Damasco”. Liderados pelo chamado Mestre da Retidão (talvez o próprio Matatias, ou ainda um dos filhos), sua intenção era praticar a verdadeira religião de Israel, na sua pureza primitiva. 

Durante todo o período de dominação helênica, o núcleo de reação judaica se concentrou em dois grupos: Os essênios e os zelotes. Quanto aos zelotes, o interesse para este estudo é secundário, tendo em vista que eles permaneceram principalmente no terreno militar. Foram eles, inclusive, que forneceram os combatentes que, nos anos 67-70 d.C., sustentaram uma guerra sem quartel contra as tropas romanas.

Já os essênios, conforme se percebe na literatura recuperada através dos pergaminhos do Mar Morto, pregavam uma resistência ora política, ora espiritual. Essa resistência estava sempre conexa com a idéia de um herói, um Messias, que libertaria Israel do domínio estrangeiro e renovaria a aliança daquele povo com Deus.[3]

Chamando-se a si mesmos de “convertidos, penitentes, pobres, justos, santos, eleitos, etc”, os essênios consideravam ser seu grupo a verdadeira Israel, aquela nação cujo modelo Deus teria transmitido a Abraão e realizado através de Moisés. Acreditavam que por ocasião da fuga do Egito, Deus teria transmitido a Moisés a verdadeira sabedoria, que estaria oculta no significado do seu Verdadeiro Nome, segredos esse que Moisés não revelou no Pentateuco, mas transmitiu oralmente aos sacerdotes mais antigos da tribo de Levi. Era esse segredo que os essênios julgavam-se depositários. Acreditando que a maioria dos ensinamentos bíblicos havia sido escrito em código, eles desenvolveram uma interessante forma de interpretação do Livro Sagrado, que certamente deve ter servido de inspiração para os rabinos que desenvolveram a grande tradição da Cabala.


O objetivo dos essênios

A seita dos essênios era uma verdadeira Fraternidade, com características de sociedade secreta. Para se tornar membro dela era preciso que o neófito fosse portador de três atributos básicos: ser israelita, inteligente e disciplinado. Exigia-se do candidato um juramento para com a Irmandade e para consigo mesmo, no qual ele se comprometia a submeter-se á disciplina da Ordem, e a perseguir os objetivos pelos quais se tornara membro dela. Em principio, o iniciado deveria viver na comunidade durante um ano antes de tornar-se membro efetivo. Após esse período, ele se tornava um “numeroso ou sectário pleno”, ocasião em que deveria juntar seus bens aos da comunidade.

O objetivo da comunidade era não só preservar a pureza dos fundamentos da religião israelita, mas principalmente preparar um Messias, um líder que fosse capaz de libertar o povo de Israel da influência estrangeira e reconstituir depois, o reino de Deus sobre a terra. Toda sua organização e o conjunto da sua doutrina eram dirigidos para esse objetivo. 

Não só o Messias deveria ser preparado, porém. Quando o seu reino fosse instalado, ele iria necessitar de “quadros” para governar. Assim, toda a rígida disciplina da Fraternidade era orientada também para a produção de “juízes, guerreiros e administradores”, enfim, todo o “staff” necessário para a administração da nova sociedade que seria fundada com a sua vinda.

Na infância, e até os 20 anos, o iniciado era instruído no Livro da Meditação e nos Preceitos da Aliança; a partir dos 20 anos, passava a viver na Comunidade dos Irmãos e podia casar-se. A partir dos 25 anos poderia ocupar cargo na Congregação; com 30, ser juiz e liderar grupos. Todo esse processo era realizado mediante uma análise de mérito, onde se avaliava a “inteligência e perfeição de conduta” do iniciado, pois como previam as Regras da Fraternidade, todos os homens estavam sendo treinados para formar a elite que governaria o reino que seria instalado pelo Messias.

Em função desse objetivo, os essênios desenvolveram uma organização eclesiástica, uma organização militar e uma organização judiciária. Os juízes seriam em numero de dez, eleitos periodicamente entre os irmãos com idade entre 25 e 60 anos; após os 60 deixariam a função; um sacerdote com idade mínima de 30 anos e máxima de 60, “detentor de todos os segredos dos homens e conhecedor de todas as línguas faladas na terra”, seria o juiz supremo da congregação judiciária. 

Quanto á ordem militar, entre 25 e 30 anos, o irmão poderia ocupar funções de intendente; entre 30 e 45 podia-se ser cavaleiro, entre 45 e 50 oficial de campo, e entre 50 e 60, comandante de campo. Havia também um Conselho Superior da Comunidade, do qual participavam “os homens de renome”. Esses homens eram escolhidos por suas virtudes, seu desempenho nas funções administrativas ou militares, ou dotes sacerdotais. Esse Conselho era uma espécie de Parlamento, que por sua vez era controlado por um Colégio composto de doze irmãos e três sacerdotes, “ perfeitos em tudo o que é revelado em toda a lei, para praticar a justiça, a verdade, o direito, a caridade afetuosa e a modéstia de conduta, uns em relação aos outros, guardar a fé sobre a terra, com uma disposição firme e um espírito constrito, para expiar a iniqüidade entre aqueles que praticam o direito e sofrem a angustia da provação e para se conduzir com todos na medida da verdade e da norma no tempo”[4]

As doutrinas dos essênios

Os essênios eram ascetas que desprezavam os prazeres dos sentidos e a acumulação de bens. O tesouro comum só devia ser utilizado para prover as necessidades mais estritas. Um essênio, ao entrar para a comunidade, devia votar“ódio eterno aos homens da fossa por seu espírito de entesouramento. Ele deixará para eles seus bens e a renda do trabalho de suas mãos, tal como um escravo em relação ao seu amo, e tal como um pobre diante do que lhe tem domínio. Mas ele será um homem pleno de zelo para com o preceito e cujo tempo é destinado ao dia da vingança”.[5]

Dessa forma, todo membro, ao ingressar na Ordem, tinha que entregar a ela todos seus bens. Esse regime de comunhão foi observado também pelos primeiros cristãos, como se observa nos Atos dos Apóstolos, e o desprezo pelos bens materiais constituía um dos pontos mais altos da doutrina ensinada por Jesus. Era também a regra observada pelas Ordens religiosas da Idade Média, particularmente os Cavaleiros Templários[6]

Acima de tudo, porém, os membros da seita deviam observar e estudar a lei mosaica. A lei devia ser cultuada, pois a comunidade era, mais que tudo, “a casa da lei”. Isso explica também o fato de Jesus, não obstante ser considerado pelos judeus como um reformador da lei mosaica, sempre concitou seus discípulos a segui-la. E no conceito de observação á lei, estava o respeito aos rituais e celebrações estabelecidas pela religião, bem como os cuidados com a higiene corporal. 

Para os essênios, a gnose divina que Jeová revelara á Moisés não fora exposta nos cinco livros do Pentateuco. Era uma sabedoria secreta que consistia no conhecimento do Nome Verdadeiro de Deus, na prática do direito justo, e no aprendizado dos comportamentos necessários para se atingir a perfeição. 

Acreditavam que no homem coexistiam dois espíritos. Um presidia o bem o outro presidia o mal. O presidente do bem era o Príncipe da Luz e o do mal o Príncipe das Trevas, chamado Belial ou Satã. Nesse sentido, o mundo seria um campo de batalha entre esses dois princípios. Para eles, o mal não podia ser vencido simplesmente pela ação humana. Era necessária a intervenção divina, o que ocorreria quando o Messias começasse seu ministério. Escolher entre o bem e o mal não era uma opção humana. Deus elegia seus escolhidos, mas mesmo os escolhidos podiam ser desviados para o mal. Para os não escolhidos não havia possibilidade de opção para o bem. Os escolhidos eram aqueles que Deus reuniu na “Congregação”, ou “Casa da Verdade”. Esses eram os ”Filhos da Luz”.
Por outro lado, todos aqueles que aderiram á cultura estrangeira, desprezando a Aliança, eram “filhos das trevas”.

Entre o bem e o mal

A idéia de um combate entre trevas e luz, na verdade, não é originária dos essênios. Foi tomada de empréstimo aos antigos egípcios, que já viam no psico-drama de Osíris e Seth uma luta entre esses dois princípios. Mais tarde os persas desenvolveram essa mesma idéia, identificando o Deus Marduc como o deus da luz e Arimã como deus das trevas. 

Sempre se acreditou que tudo que existe no universo é produto da reação interativa entre dois princípios contrários, que podem ser o espírito e a matéria, o bem e o mal, a verdade e a mentira, a luz e as trevas, etc. Na história da humanidade, uns assumem o papel de Marduc, outros de Arimã. Segundo essa concepção, tudo, na sociedade humana, é produzido pela reação á ação que um dos lados provoca no outro.[7] O próprio materialismo dialético desenvolvido por Karl Marx trabalha com essa tese, fundamentando na interação de dois princípios contrários, que podem ser entendidos como a forma de ganhar a vida e a forma de pensar, o motor da história. [8]

No caso dos essênios, eles assumiram o papel dos “filhos da luz” e retiraram-se para as terras de Damasco para não serem corrompidos pelos “filhos das trevas” , e ali, separados do mal, preparar uma reação contra a ação deles. Os filhos da luz, quando ocorresse o triunfo, seriam vingados de todos os males que os filhos das trevas lhes havia infringido. E mesmos aqueles que estivessem mortos ressuscitariam para participar do conflito final entre os defensores dos dois princípios, ocasião em que o mal, por fim, seria vencido.[9]

A influência dos essênios

Diversos centros comunitários dos essênios se desenvolveram a partir do século II a C. Algumas tradições se referem á aldeia de Nazaré, onde Jesus foi criado, como sendo um centro dessa comunidade. Sabe-se que entre eles desenvolveu-se também a prática mística, bastante antiga, aliás, de usar roupas brancas e não cortar os cabelos. Acreditava-se, com base em antigas tradições, que nos cabelos estava a essência do elo que liga Deus aos homens. Esses homens consagrados a Deus eram chamados de “nazarenos”. Sansão é descrito na Bíblia como sendo um desses homens, e Jesus teria sido criado numa aldeia de “nazarenos”.

Os essênios eram também famosos pelos seus conhecimentos de medicina. No Egito, a sua comunidade era conhecida como “Os Terapeutas”. Acreditava-se que possuíam conhecimentos que se assemelhavam a poderes mágicos. Tais conhecimentos provinham de fontes muito antigas, provenientes talvez, de uma civilização extinta. Eram também mestres na escrita criptográfica e no uso do simbolismo para transmitir seus conhecimentos. O uso de pseudônimos aparece freqüentemente em sua literatura. Títulos como “Mestre Verdadeiro”, “Mestre da Justiça”, “Sacerdote da Iniqüidade”, “Leão da Ira”, “Tempo da Promessa”, etc, eram expressões que mascaravam pessoas e fatos, para evitar a repressão das autoridades seculares. 

Escreviam palavras invertendo a ordem das letras, misturavam alfabetos de diferentes línguas, inventavam eles mesmos alfabetos. Por isso eles são considerados como verdadeiros fundadores da tradição judaica conhecida como Cabala.

Não somente os primeiros cristãos devem grande de sua doutrina aos essênios. Também muitas das seitas gnósticas se inspiraram em suas idéias, as quais, em maior ou menor parcela, tiveram influência no desenvolvimento da Maçonaria moderna, principalmente nos chamados graus filosóficos.

É fácil perceber, no desenvolvimento do ensinamento dos graus superiores, a relação que a doutrina professada por aqueles místicos judeus tem com a Maçonaria, no que respeita o simbolismo utilizado nos rituais. Os Obreiros da Arte Real também acreditam na construção de uma sociedade justa e equâmine, fundamentada no mérito e no trabalho árduo, aliado á disciplina e o respeito ás tradições. Essa sociedade um dia já existiu e pode ser recuperada. Os essênios acreditavam nisso, e por isso julgavam-se os guardiões dessa sabedoria perdida, que só poderia ser repassada aos seus iniciados.

A analogia é evidente. A própria organização do currículo maçônico guarda certa identificação com o sistema adotado por aqueles ascetas. Através de um sistema de ensinamentos morais o catecismo da Maçonaria forma, simbolicamente, guerreiros, juízes, sacerdotes e outros próceres, destinados á edificar, defender e conservar o que de melhor existe na cultura da humanidade. É a mesma idéia de uma utopia, guardadas as diferenças de época, cultura e lugar. 

Os essênios acreditavam que eram detentores de segredos iniciáticos de grande relevância. Não é que a Maçonaria, enquanto sociedade formalmente instituída, seja guardiã de segredos dessa ordem. Aliás, nem acreditamos que tais segredos existam no repertório da cultura humana existente, seja do presente, seja do passado. O que há são leis naturais que a razão humana ainda não logrou entender e por isso as cataloga no conceito de sobrenatural. Entender o processo pelo qual essas leis são formadas e como atuam, constitui a verdadeira sabedoria. 

A fórmula pela qual esse conhecimento de nível superior, que permite ao homem entender esse processo, só pode ser deduzida através de um método que seja capaz de integrar uma iniciação, uma ritualística e uma prática de vida. Essa foi a formidável intuição dos essênios e a sua grande realização. Não é suficiente pensar uma filosofia. É preciso vivê-la para que ela não se torne apenas uma distração mental. As mesmas verdades que eles intuíram já haviam passado antes pela sensibilidade dos sacerdotes de Heliópolis, que a desenvolveram no conceito, ao mesmo tempo religioso e sociológico da Maat, e pelos iniciados nos Mistérios antigos, persas e greco-romanos, que os utilizavam como forma de educação superior de suas elites.

É originária dos essênios, como já nos referimos, a idéia de que é preciso a formação de um Homem Universal, reflexo terrestre do Homem do Céu, perfeito em conhecimento e obras, pleno de virtude e em harmonia com Deus, pois que ele é o herdeiro da Nova Aliança. Não é por acaso, portanto, que nos graus superiores da Maçonaria, correspondentes ás Lojas de Perfeição e Lojas Capitulares, encontraremos tantas alusões a mitos e alegorias de origem judaica, e se insistirá tanto na prática da verdadeira justiça e no exercício das virtudes que fazem um homem justo e perfeito em todos os sentidos.

Outra tradição cultivada na Maçonaria, que tem nos essênios a sua fonte, é aquela que se relaciona com a Procura da Palavra Perdida. Essa Palavra Perdida não é outra coisa senão o Verdadeiro Nome de Deus e o seu significado, que os essênios reverenciavam como sendo o “ Segredo dos Segredos”. O reencontro com essa sabedoria perdida teria o condão de conferir ao seu possuidor a totalidade do conhecimento do universo e faria dele um ser superior. Essa crença animou a especulação dos cabalistas durante séculos, e os maçons a adotaram como alegoria para simbolizar a aquisição da gnose, que é a meta última e definitiva dos praticantes da verdadeira Arte Real. Por isso é que a influência desses antigos irmãos, “Filhos da Luz”, não pode ser desprezada em qualquer estudo que se faça sobre a cultura maçônica.

[1] Sobre o sonho americano, vide a interessante obra de David Ovason, A Cidade Secreta da Maçonaria, publicada no Brasil pela Ed. Planeta, que discorre sobre o simbolismo maçônico presente na capital americana, Washington, e o empenho dos maçons que lideraram a luta pela independência em fazer dos Estados Unidos a sonhada utopia maçônica
[2] Na imagem o historiador Flávio Josefo. Fonte: Obras Completas de Flávio Josefo. Kleger Publications, NY.
[3] Na imagem, moeda com a efígie do sacerdote Matatias, patriirca dos Macabeus , tido como o Mestre da Retidão dos essênios.
[4] Regras XXII- E.M. Laperoussaz- Os Pergaminhos do Mar Morto
[5] Idem, Regra XXIV
[6] Flávio Josefo, escrevendo acerca dos essênios, diz que eles desprezavam as riquezas, e que a comunidade de bens que observavam era realmente admirável. “Os essênios,. diz aquele autor, “ mantém entre eles uma lei, segundo a qual, todos os novos membros admitidos á seita fazem, por si mesmos, confisco de seus haveres em favor da Ordem; resultando daí, que em parte alguma se verá ali, seja a miséria abjeta, seja a desordenada abastança. As posses do individuo se juntam ao existente cabedal comum e eles todos , como verdadeiros irmãos, se beneficiam, por igual, do patrimônio coletivo.”
[7] Na antiga filosofia chinesa do taoísmo, esses princípios são identificados pelos termos yin\yang (positivo\negativo).
[8] Karl Marx acreditava que era a forma pela qual os homens ganhavam a vida que determinava o seu modo de pensar. Assim, as transformações na ordem material determinavam as transformações de ordem ideológica. Como as transformações materiais dependiam da forma como as sociedades se organizavam para produzir, a cultura da humanidade dependia das técnicas de produção. As teses marxistas exercem um papel importante no ensinamento de um dos graus superiores do Kadosh, particularmente o grau 26.
[9] Essa crença foi magistralmente desenvolvida pelo autor do Apocalipse. Nesse estranho e enigmático livro, escrito á maneira essênia, o autor desenvolve a alegoria da luta entre os filhos da luz contra os filhos das trevas, identificando os primeiros com os cristãos fiéis e os segundos com seus perseguidores. Veja-se que a Maçonaria do Rito Escocês muito se vale do simbolismo do Apocalipse para desenvolver alguns dos seus mais importantes graus filosóficos. O ensinamento maçônico muito se utiliza do simbolismo contido na luta entre a luz e trevas, o que justifica as referências que aqui se fazem ao tema. 
João Anatalino

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016









O ARTESÃO E O FILÓSOFO

Autor: João Anatalino

A ciência e a técnica 

A transformação do profissional da construção em filósofo, representado pela passagem do operativo para o especulativo, não eliminou a sacralidade do oficio do maçom, como dizia René Guénon, ao criticar a admissão dos “maçons aceitos” nas Lojas dos pedreiros livres. Apenas fez com que ele deixasse de ser um pedreiro profissional para transformar-se num pedreiro moral. O maçom deixou de construir igrejas, mosteiros, castelos, fortificações, passando a realizar obra de interesse espiritual e social, muitas das quais deixaram sua marca na história. A técnica operativa transmutou-se em atividade do espírito. Seguiu, como toda disciplina que se inscreve no domínio da sabedoria epistêmica, o caminho comum de todas as conquistas da mente humana.

É que toda disciplina cientifica tem sua gênese em uma técnica, praticada empiricamente, tendo como guias apenas a sensibilidade e a habilidade do artesão. Depois, quando submetida ao crivo da razão, ela é organizada e ganha uma epistemologia própria, um método de estudo, incorporando-se ao conhecimento humano como conquista do saber. E da mesma forma que todo conhecimento científico é uma conquista do espírito, é possível justificar também que a passagem da Maçonaria do plano operativo para o especulativo representou uma verdadeira evolução em termos de cultura humana, pois se antes o maçom construía edifícios como mera operacionalização de uma imagem mental, a partir do momento em que a Arte Real organizou-se como disciplina de aperfeiçoamento moral e espiritual do individuo, ela ganhou status de filosofia, tratando não apenas da ciência da construção de edifícios físicos, mas agora também para erguer algo muito mais importante: o edifício moral da humanidade. 

A noção de que a técnica sempre precede á ciência é uma idéia de certa forma constrangedora para muitos cientistas que pensam estar realizando descobertas originais com suas experiências de laboratório, ou para os pensadores que reivindicam a primazia na construção de grandes sistemas de pensamento. Muitas vezes, o que a ciência prova ser impossível, a tentativa pura e simples do técnico acaba desmentindo. Pawels e Bergier nos dão alguns exemplos interessantes dessa inversão. “Na nossa opinião” dizem aqueles autores, “ a técnica não é de forma alguma a aplicação prática da ciência. Muito pelo contrário, ela se desenvolve contra a ciência. O eminente matemático e astrônomo Simon Newcomb demonstra que aquilo que é mais pesado que o ar não teria possibilidades de voar. Dois mecânicos de bicicletas provar-lhe-ão o contrário. Rutherford- Millikan, provam que jamais será possível explorar as reservas de energia do núcleo atômico. A bomba de Hiroxima explode. A ciência ensina que uma massa de ar homogênea não pode se dividir em ar quente e frio. Hilsh demonstra que basta fazer circular essa massa através de um tubo apropriado. A ciência coloca barreiras de impossibilidades. O engenheiro, da mesma forma que o mágico sob o olhar do explorador cartesiano, transpõe as barreiras por meio de um fenômeno análogo ao que os físicos chamam o “ efeito do túnel”. [1]

Destarte, o que chamamos de filosofia, ou ciência, talvez seja apenas a especulação sobre a operação. Ou como dizem Bandler e Grinder: primeiro aprendemos a fazer. Depois tentamos compreender como fazemos.[2]

Da arte á filosofia 

De certa forma, podemos pensar que a Maçonaria seguiu exatamente esse processo. A partir das técnicas de construção, homens sensíveis, de espírito mais religioso que cientifico, perceberam a possibilidade de uma ascese espiritual mais facilmente realizável através das técnicas de seu oficio do que pela prática ritualística de uma liturgia religiosa. Quando a prática operativa, pura e simples, perdeu seu mercado,

face á própria evolução das técnicas de construção, o exercício da Maçonaria operativa deixou os canteiros de obras para refugiar-se nas sociedades de pensamento. O técnico tornou-se filósofo pela descoberta de que seu conhecimento das construções no plano físico podia ser utilizado para realizar construções espirituais. Passando do concreto para o abstrato, a técnica internalizou-se, transformando-se numa disciplina especulativa.

E nesse sentido, a arte de construir um simulacro do universo no plano físico, que eram os grandes edifícios religiosos, passou a ser a arte de construir esse simulacro dentro do próprio homem e, por extensão, na suas sociedades. Pode-se dizer que a Maçonaria, que antes operava apenas num domínio laico-religioso, passou a operar depois em um domínio mais amplo, que integrava a moral, a psicologia, a sociologia e a política, embora o objetivo da prática maçônica continuasse a ser o mesmo, ou seja, realizar a ascese espiritual do praticante. Num certo sentido, o que antes era uma técnica operativa passou a constituir-se numa ciência do espírito.


A conexão Rosa-Cruz

Um dos mais importantes trabalhos de Carl Gustav Jung tem por tema exatamente a alquimia. Nessa obra, o famoso psicanalista suíço desenvolve a noção dos arquétipos, fazendo uma ponte entre o delírio alquímico e as ansiedades do inconsciente humano para alcançar a realização de seus sonhos. Para Jung, a alquimia era uma técnica que procurava desenvolver, operativamente, o mesmo processo que se desenvolve no inconsciente humano, para dar origem ás suas crenças e sentimentos á respeito do mundo espiritual. Com esse trabalho ele estabeleceu um elo entre o pensamento mágico e a ciência psicológica, mostrando que existe uma clara interação entre os dois domínios cerebrais, que só podem ser estudados em conjunto.

Dessa forma, a arte dos “filhos de Hermes”, como tais eram chamados os alquimistas, provinha de um conjunto de conceitos universais, compartilhados pelo Inconsciente Coletivo da humanidade, pois se fundamentava em mitos, símbolos, alegorias e sensibilidades compartilhadas desde sempre pelo psiquismo da espécie humana, e que se revelava em sonhos, intuições, crenças, superstições e folclores, muitas vezes inexplicáveis pelo crivo da razão, mas muito fortes nas bases estruturais do nosso espírito.

A alquimia era a arte das transmutações. Através da manipulação de certo tipo de matéria prima os alquimistas queriam descobrir o segredo que permitia á natureza realizar a transformação física dos metais. Daí a alquimia ficar conhecida como a técnica de realizar a transmutação de metais comuns, como o estanho e o chumbo, em ouro. Ao mesmo tempo, o operador alquímico, ao penetrar na intimidade da natureza e desvelar os seus segredos, ia também adquirindo uma consciência superior que lhe proporcionava uma elevação espiritual ao nível de uma experiência transcendental. Essa era, exatamente, a esperança dos fundadores da chamada fraternidade dos Rosa-Cruzes, grupo de pensadores herméticos que em fins do século XVI e início do século XVII causaram um grande comoção nas estruturas do pensamento ocidental com suas construções especulativas utópicas, fundamentadas no saber alquímico.[3] Serge Hutin, escrevendo sobre esses místicos filósofos da utopia alquímica , diz que “eles constituem a coletividade dos seres elevados ao estado superior á humanidade vulgar, possuindo dessa forma os mesmos caracteres interiores que lhes permitem reconhecer-se entre si”.[4]

Evocamos essas manifestações porque as reconhecemos aplicáveis á Maçonaria. A idéia de uma sociedade internacional, circunscrita a alguns homens puros e de bons costumes, ligados pelo amor á virtude e a beleza, transformados pela prática iniciática, é exatamente a pregação de todos os filósofos maçons. A ciência maçônica, tal como a alquimia, também é a ciência das transmutações. Ela permite a transformação do próprio espírito do iniciado no sentido de se atingir uma etapa mais desenvolvida, seja no terreno da moralidade exotérica, seja no domínio da plenitude espiritual, esotérica. Essa transmutação, a nível filosófico, é a mesma experimentada pelo alquimista, na sua busca pela pedra filosofal, ou pelo cientista moderno na sua procura por uma explicação racional dos fenômenos da natureza. Como dizem Pawels e Bergier, “estamos numa época em que a ciência, no seu termo máximo, atinge o universo espiritual e transforma o espírito do próprio observador, situando-o num nível diferente do da inteligência cientifica, tornada insuficiente. Aquilo que acontece nos corações dos nossos atomistas é comparável á experiência descrita pelos textos alquímicos e pela tradição rosa-cruz.”[5]

E nós completamos: é o que acontece no espírito do maçom que realmente compreendeu o valor e a finalidade da sua Arte. Assim, se para os alquimistas o corolário da sua obra era a pedra filosofal, para o maçom, a pedra filosofal é o seu próprio espírito aperfeiçoado. Completa-se, dessa forma, o processo que faz do espírito do maçom a sua própria obra de arte. Por isso a Maçonaria é chamada de Arte Real.


[1] Pawels e Bergier- o Despertar dos Mágicos, pg. 66/67
[2] Referência a um pressuposto da neurolinguística, técnica que procura demonstrar como são gerados, em nosso sistema neurológico, os nossos comportamentos, as nossas escolhas e crenças. Essa técnica foi desenvolvida pelos professores americanos Richard Bandler e John Grinder, da Universidade de Palo Alto, Califórnia.
[3] Vide, a esse respeito, Giordano Bruno e a Tradição Iniciática e O Iluminismo Rosa-Cruz, de Frances Yates, citado. Na imagem, Francis Bacon, filósofo e alquimista inglês, (15611626) é tido como o fundador da ciência moderna. Sua filosofia pregava o exercício da ciência em favor do progresso da humanidade. Sua principal obra filosófica, “Novum Organum” é considerada uma das principais influências para o movimento intelectual que resultou na Maçonaria moderna. Foi participante ativo do movimento Rosa-Cruz
[4] Serge Hutin . História da Alquimia. São Paulo, Cultrix, 1987.
[5] Idem, pg. 53
João Anatalino