OS MONGES MALDITOS
CAPÍTULO XXIV
OS SINOS DE NOTRE DAME
João Anatalino Rodrigues
O tempo estava frio e brumoso naquela segunda-feira, dia 18 de março de 1314. A névoa subia do Sena e envolvia todos os contornos da Cité. A respiração dos homens que acompanhavam o velho alquebrado e andrajoso, que subia com extrema dificuldade os degraus da torre, formavam nuvens brancas que saiam de suas bocas em cada expiração que davam no esforço de vencer a íngreme escadaria que levava ao pátio do Templo. A cada instante tinham que parar para sustentar o prisioneiro, cujas forças pareciam ser insuficientes para fazer aquela jornada.
Jacques de Molay já conhecia de sobejo aquele caminho tortuoso feito de escadas íngremes e sombrias. Quantas vezes ele não tinha visitado prisioneiros no calabouço daquele castelo? Afinal, aquele era o seu castelo. Aquele era o edifício do Templo. Ele mesmo supervisionara os Irmãos maçons, os Pedreiros do Bom Deus, construindo muitas obras ali. Erguera aquelas torres, cujas ameias se viam, agora, despontando como velhos fantasmas, em meio á espessa neblina. Reformara aquele pátio para onde estava sendo conduzido, tornando-o muito maior, em condição de recepcionar e comportar mais de quinhentos cavaleiros. Ah! que saudade daqueles tempos!
O aparato policial concentrado no pátio do castelo fez o velho Grão-Mestre pensar que finalmente alguma coisa diferente estava acontecendo. Nenhuma troupe daquela qualidade havia se reunido antes para acompanhá-lo á uma seção da Inquisição. Ele divisou, entre as dezenas de soldados postados como um batalhão preparado para avançar, o capitão dos arqueiros, o nobre Alan Parreiles. Lembrou-se que esse homem estivera presente, naquela fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, quando fora preso, naquele mesmo castelo. “Volto ao lugar onde tudo começou e com as mesmas pessoas que lá estavam”, pensou de Molay.
Messier de Parreiles estava mais velho, observou. Nas têmporas, o cabelo castanho claro do capitão dos arqueiros começava a embranquecer. Tufos prateados, em meio á sua barba escura e cerrada começavam a crescer. Sua face estava crispada e seus olhos, frios como o tempo que fazia em Paris.
– Messier de Parreiles, para onde estão me levando? – perguntou Jacques de Molay.
– Para Notre Dame, Monsenhor de Molay. Ali serão lidas as vossas sentenças.
– Outra vez? Mas ela já não foi dada? Não fomos sentenciados a morrer na prisão? ─ perguntou, ofegando, o Grão-Mestre.
– Não sei vos dizer, Monsenhor de Molay. Só tenho ordens de levar-vos para lá – respondeu De Parreiles.
Em meio á bruma que escondia os rostos naquele pátio, onde, por nove anos, presidiu a muitas reuniões dos seus cavaleiros, Jacques de Molay, de repente, viu surgir um rosto macilento, todo coberto com uma barba desgrenhada e hirsuta, parecendo um matagal de murtas. Logo, um corpo alquebrado, esquelético, coberto com os andrajos do que fora, um dia, o vistoso manto dos Templários, tomou forma á sua frente. Nele de Molay reconheceu o seu Irmão de Ordem, Geoffrey de Charney.
Deu um abraço emocionado no Irmão Charney. Lágrimas copiosas escorreram dos olhos de ambos, que eles secaram com a manga dos seus puídos mantos.
– É o fim, Irmão? – perguntou Charney.
– Creio que sim, meu Irmão. Coragem. Afinal, somos cavaleiros templários – disse ele.
Jean de Janville, o carcereiro, aproximou-se deles e perguntou. – Quereis que vos tire essas cadeias, Monsenhor de Molay?
Molay respondeu. – Não temos como pagar-vos, Messier de Janville.
Essa era uma lei que vigorava em relação a prisioneiros, cujas sentenças finais ainda não haviam sido pronunciadas. Como cabia ao Estado a sua manutenção, havia uma verba destinada para cobrir esses custos, da qual eram retiradas as despesas com comida, transporte para os interrogatórios e a até o preço das correntes com que eles eram presos em suas celas. A verba era tão pequena que os carcereiros costumavam cobrar dos próprios prisioneiros algumas das despesas que eles ocasionavam. As correntes e cadeados com que eles eram presos em suas celas eram algumas dessas despesas.
– Tirai essas cadeias dos prisioneiros – ordenou o capitão dos arqueiros – Eu pagarei por elas. Sacou algumas moedas de uma bolsa presa em sua cintura e as entregou ao carcereiro. As algemas foram imediatamente abertas.
– Deus vos pague por isso – disse de Molay ao capitão Parreiles, esfregando os pulsos libertos dos incômodos braceletes.
O capitão não respondeu. Apenas se dignou a lançar um olhar inexpressivo para os dois andrajosos anciãos, como se não os estivesse vendo.
– Andando senhores. Somos esperados em Notre Dame. Vamos acabar logo com isso – ordenou.
Uma carroça aberta esperava por eles. Foi ordenado aos dois prisioneiros que subissem nela. Vinte e cinco arqueiros se postaram em ambos os lados da carroça, que se moveu em direção ao enorme portão do castelo do Templo. Alan de Parreilles e seus oficiais montaram em seus cavalos. Jacques de Molay passeou os olhos pelas imensas muralhas que desapareciam na bruma. Seria a última vez que estaria contemplando aquele edifício, que para ele, era um lugar sagrado?
Por duzentos anos os Templários haviam exercido seu poder na terra, cumprindo as ordens que emanavam daquele castelo. Aquilo não podia estar acontecendo. Parecia um pesadelo interminável. Jacques de Molay pensava que de repente iria acordar e ver que tudo aquilo não passara de um sonho mau. Mas não. Ao se abrirem as pesadas folhas do grande portão, um alarido ensurdecedor, formado por milhares de vozes, veio arrancá-lo desse torpor. Não imaginava que houvesse tanta gente do lado de fora do castelo. Era uma verdadeira multidão que se aglomerara em frente aos portões do Templo. Uma turba que gritava, vociferava, dizia impropérios, esperava pela saída dos dois altos dignatários do Templo. Como não pudera ouvi-los antes?
A carroça rodava lentamente pelas estreitas vielas do bairro do Templo. Sairam pela rua de La Bretonnerie; passaram em frente ao Convento de Saint Merry; rodaram por toda a extensão da Rua dos Blancs Mantoux. As pessoas, aglomeradas nas ruas, se espremiam contra as pedras dos muros. Por onde passava, o cortejo era saudado com impropérios e insultos.
– Hereges malditos!
– Assassinos!
– Sodomitas!
– Á fogueira com esses desgraçados!
Mas não era toda a multidão aglomerada nas estreitas ruas que conduziam á praça de Notre Dame que atirava impropérios e insultos aos desgraçados e imundos prisioneiros. De cabeça baixa, eles seguiam, em pé sobre a carroça que rolava, lentamente, pelo piso de pedra que cobria a rua que desembocava na praça da catedral. A maioria dos rostos, naquela multidão, estava muda. Alguns pareciam até mostrar alguma tristeza. Talvez até tenham vertido algumas furtivas lágrimas, na passagem do triste cortejo com aqueles velhos e andrajosos cavaleiros a caminho dos seus tristes destinos. O que os comandantes do Templo ainda não sabiam, toda aquela turba parecia saber.
Jacques de Molay e Geoffrey de Charney gostariam de ver tristeza naqueles rostos e talvez até imaginassem ter visto algumas mulheres se persignando quando eles passaram e algumas lágrimas brilhando nos olhos delas. É sempre um consolo pensar que alguém se incomoda com a nossa desgraça. Faz com que ela pareça ser mais leve.
Lentamente, o cortejo atingiu a ponte que conduzia á ilha. Do outro lado da ponte, a praça de Notre Dame. Á direita da igreja, a pequena Ilha dos Judeus. A espessa neblina que subia do rio não deixava ver muita coisa. Os sinos de Notre Dame, durante toda a manhã, repicaram com ensurdecedora insistência. A carroça atravessou a ponte e parou no meio da praça, onde uma enorme multidão estava concentrada.
Então, de repente, os sinos pararam de repicar. Um silêncio mortal invadiu a praça. Nem nas janelas das casas em volta do quadrilátero que cercava o enorme edifício não se ouvia um único murmúrio. Paris ficou silente, imóvel, esperando. Como por milagre, toda a bruma que envolvia a praça se dissipou e um sol, um tanto pálido e mirrado, apareceu por trás de uma das imensas torres de Notre Dame. Por todos os lados do imponente edifício podiam ser vistos os andaimes dos maçons que ainda trabalhavam para dar acabamento ao grande e magnífico Templo, que era o orgulho de Paris. A rosácea central brilhava como uma coroa de luzes, destacando os grandes pórticos dessa magnífica obra da Arte Real que se erguia no centro da ilha de La Cité, como se fosse o próprio rei dos edifícios. Os onze degraus que separavam seu pórtico do chão lajeado da praça faziam com que o maciço colosso parecesse estar suspenso no ar. As pequenas casas de madeira e tijolos, de dois e até três andares, que a cercavam como se fossem cortesãos em volta do seu rei, destacavam ainda mais seu aspecto de sagrada majestade. No meio da praça o monólito sagrado de Febígeno, como sentinela silente e perene, ainda resistia á fúria dos elementos e ao vandalismo do populacho, para dizer a todo mundo que essa Paris cristã e tão devota, já fora, um dia, uma cidade de adoradores do sol e da lua.
De pé sobre a carroça, de costas para a grande multidão silenciosa, mas de frente para um grande grupo formado por membros do clero, em seus hábitos cardinalícios, nobres cavaleiros em suas quotas de malha, o preboste de Paris com seu traje de veludo negro e seu chapéu de plumas coloridas, os grandes dignatários do Templo, andrajosos, esqueléticos, alquebrados, pareciam dois espectros egressos do mundo dos mortos.
Monsenhor Arnaud d’Auch, cardeal de Albano, nomeado secretário do Tribunal de Inquisição para aquele processo, estava começando a ler a sentença.
. – A comissão de Inquisição, no exercício de seus poderes, á vista dos autos, condenou os acusados Hugues de Peyráud e Geoffroy de Gonneville ao silêncio perpétuo, pelo resto dos seus dias, para que, no confino da masmorra e na solidão da clausura, possam remir os seus pecados pelo arrependimento e pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois só ele pode conceder perdão (...).
─ Quanto aos acusados Jacques de Molay e Geoffroy de Charney, por terem se recusado a aceitar a sentença de prisão perpétua, são, de acordo com a lei, considerados relapsos. Assim, devem ser levados á Ilha dos Judeus, para ali serem queimados.
Monsenhor Arnaud deu por encerrada a sua leitura. Enrolou a última folha do pergaminho e entregou-a ao clérigo que lhe servia como secretário. Persignou-se e olhou para a multidão.
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