quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XXII

A SENTENÇA

João Anatalino Rodrigues

Resolvida a questão de com quem ficariam os bens do Templo, agora que a Ordem estava praticamente destruída, restava decidir o destino daqueles que a dirigiam. Principalmente o que fazer com Jacques de Molay e seus três principais oficiais, que ainda estavam nas masmorras, aguardando seus destinos. 

A Ordem deixara de existir formalmente em 22 de março de 1312, dia em que fora publicada a bula Vox In Excelso. Até então uma boa parte dos cavaleiros presos desde a fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, já havia morrido na prisão. Alguns tinham sido libertados para viver em conventos, outros simplesmente inocentados e liberados para voltar á vida profana e um expressivo contingente deles tinha se filiado aos Hospitalários. Em vários países, os reis haviam fundados Ordens de Cavalaria para abrigar os proscritos cavaleiros, mas principalmente para abocanhar parte de seus bens.

Mas muitos Templários, em diversas cidades francesas, foram queimados em fogueiras, pois a comissão de Inquisição havia liberado os tribunais locais para prolatar sentenças contra aqueles que se tornassem renitentes ou relapsos, e não se confessassem arrependidos de seus infames pecados. 

Assim, em muitos dos tribunais provinciais não se julgou necessária uma completa tramitação do devido processo legal. Bastou a pura e simples recusa do acusado em confirmar seus pecados e solicitar as indulgência, não importando a forma como tivesse sido extraída suas confissões de culpa, para justificar a imposição da pena capital. O espetáculo das fogueiras, erguidas para queimar os hereges do Templo, por toda a França, foram os mais concorridos eventos naqueles gloriosos anos do início do século XIV, quando Filipe, o Belo, governou a França.

Mas na prisão do próprio castelo do Templo, em Paris, para onde haviam sido removidos, depois de amargarem quatro anos nas masmorras do Castelo de Chinon, Jacques de Molay, Geoffrey de Charney, Geoffrey de Gonneville e Hugues de Peyráuld, ainda não sabiam o que seria feito deles. De certo que foram informados da decisão papal de 13 de outubro de 1312, na qual a Ordem do Templo fora dissolvida. E também que muitos cavaleiros, em todo o território francês, tinham sido queimados e que uma boa parte deles havia morrido nas masmorras em consequência das torturas. 

Mas o Grão-Mestre geral do Templo e seus altos dignatários conservavam ainda a esperança de que suas vidas fossem pou-padas. Afinal, tinham uma história que não podia simplesmente ser apagada daquela maneira. O papa, pensava de Molay, não poderia ser tão insensível a um passado de lutas pela fé, como aquele que os dignatários do Templo possuiam. Fosse como fosse, suas folhas de serviço falariam mais alto no momento da decisão.

Pobre Jacques de Molay! Da janela da sua cela, no edifício do Templo, ele podia ouvir os sinos repicando nas igrejas próximas. Saint- Martin, Saint- Germain-l’Auxerrois e na catedral de Notre Dame, dominando, imponente, a ilha de La Citê, com os braços do seu novo transepto, construído pelo Mestre Pierre de Montreil, chamando os parisienses para a missa. Missa que ele nunca mais assistira, mesmo tendo rogado ao papa que lhe concedesse esse privilégio. Essa era uma das coisas que mais lhe fazia falta. Lembrava, com prazer, as missas rezadas na capela do Templo. Como era linda a liturgia daquelas cerimônias! Mas essa lembrança também vinha contaminada de mágua. Como podiam acusar a ele, que era tão rigoroso e estrito observador dos ritos prescritos pela Santa Madre Igreja, de ser impenitente, idólatra, herege? Ele, que sempre fora tão devoto!

Desde que voltara de Chinon para ser encarcerado novamente nas masmorras do castelo do Templo, não vira mais os seus companheiros de infortúnio, embora soubesse que eles também eram prisioneiros no mesmo edifício. Tinham sido encarcerados em celas separadas. Seus algoses ainda temiam uma conspiração.

Foi só em 22 de dezembro de 1313 que ele recebeu a visita de três cardeais enviados por Clemente V, acompanhados por um grupo de prelados, para fazer um novo interrogatório. Eram eles os bispos Arnaud de Farges, sobrinho de Clemente V, Arnaud de Novelli, bispo de Citeaux e Nicolas de Freauville, um padre que já atuara como confessor de Filipe, o Belo.

Jacques de Molay e seus dois companheiros, com as marcas das torturas visivelmente expostas em seus corpos mutilados, apresentaram-se frente aos inquisidores, agora cheios de esperança. O processo enfim, seria encerrado. A Ordem já não mais existia. Qual a vantagem de se manter na prisão os comandantes de uma organização praticamente morta? Não tinham os seus Irmãos, nos outros reinos e em algumas preceptorias da França, sido absolvidos e autorizados a viver como monges em outras Ordens? Por que não poderia a eles, que tantos serviços prestaram á Igreja, ser deferido o mesmo privilégio? Mais do que qualquer outro, eles o mereciam. 



– Faço saber que vossas vidas serão poupadas se ratificardes as vossas confissões – disse Arnaud de Farges, nomeado presidente da comissão. ─ Tudo agora já está esclarecido e firmemente estabelecido. Não há mais razão para vós continuardes persistindo em vossas negativas.

Se estava tudo esclarecido e firmemente estabelecido na cabeça dos julgadores, porque ainda se continuava com esse jogo de gato e rato?, pensou de Molay. Mas só pensou, pois logo percebeu a inutilidade de articular qualquer resposta. Apenas fixou no rosto do inquisidor seus dois olhos brilhantes de ódio.

Essa proposta fora feita em separado aos quatro prisioneiros, para que nenhum deles soubesse o que o outro respondeu. As confissões a que o bispo Arnaud se referia eram aquelas que haviam sido feitas a Guilherme de Paris, por ocasião do segundo interrogatório, quando eles haviam reconhecido a prática dos crimes que lhe haviam sido imputados. Posteriormente eles haviam confirmado suas declarações, quando foram interrogados em Chinon, mais depois desdisseram tudo e continuaram persistindo nas negativas em todos os demais interrogatórios feitos após aquele. Era isso que enfurecia Filipe e seus ministros. Também incomodava Clemente V e preocupava os membros da comissão inquisidora. Com essas marchas e contra marchas no processo eles não conseguiam estabelecer, de forma cabal e absoluta a culpa dos altos dignatários do Templo, nem optar pela sua inocência. Com a Ordem já extinta, eles precisavam, agora, de uma definição quanto ao que fazer com os seus comandantes.



Quase seis anos de masmorra e torturas haviam destruído os corpos daqueles outrora valentes e bravos cavaleiros. Jacques de Molay, especialmente, era agora um alquebrado ancião de quase setenta anos, cujo vulto esguio parecia um caniço ressecado, onde a natureza conservara uma cabeça calva e um rosto macilento, oculto atrás de uma longa e hirsuta barba branca. O corpo, solto dentro de uma puída camisola rota e suja, cuja cor já não se identificava, não era mais que um esqueleto coberto por uma pele enrugada, cheia de manchas negras e feias cicatrizes. Nada do que fora o altivo Grão-Mestre da mais poderosa Ordem de Cavalaria do mundo ocidental restava nele. Mas ainda assim, ele e seus Irmãos, com excessão de Peyráuld, ratificaram as declarações de inocência, para desespero dos inquisidores.

─ Somos inocentes! ─ declararam todos.

─ Se persistis em alegar inocência, a Igreja se desinteressará do vosso destino e vós tereis que enfrentar o castigo por vossos crimes ─ disse Arnaud de Farges a todos os quatro oficiais do Templo.

─ Somos inocentes ─ repetiram todos eles.



A sentença final saiu a 18 de março de 1314. Ela foi lida publicamente, em cima de um tablado, erguido em frente á praça da Catedral de Notre Dame. Esse tablado era usado normalmente como cadafalso onde se montava o cepo para decapitar os condenados á pena capital.

Perante uma platéia de centenas de curiosos parisienses, que usualmente costumavam se aglomerar ali para ouvir as sentenças do Tribunal de Inquisição e as proclamações reais, Jacques de Molay e seus Irmãos, acorrentados uns aos outros por cadeias presas em seus tornozelos, se postavam em pé, em cima do tablado. Pareciam quatro espectros, egressos de seus respectivos túmulos, com as desgrenhadas barbas encanecidas, que lhes caiam até o peito. Nas faces encovadas, os olhos mortiços não revelavam mais nenhum brilho. Os corpos macilentos davam a impressão de estar fazendo um último esforço para sustentar as esvoaçantes camisolas, sujas e rotas, que tremulavam ao vento. 

Não foram poucas as vozes que se levantaram na platéia.

– Idolatras! Usurários! Assassinos! Sodomitas!

– Morte aos hereges!

– Á fogueira com eles!



O bispo Arnaud fez um sinal de silêncio para a turba. Ele ia ler a sentença. 

– No dia 13 de outubro do ano de 1307, a pedido de Sua Graça, o Senhor Bispo Guilherme de Paris, Inquisidor-Mor de França, por indicação de sua Santidade, o papa, sua Majestade, o Rei Filipe, de França, ordenou a detenção de todos os membros da chamada Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão, para averiguação de uma série de crimes contra a fé cristã, dos quais estavam eles sendo acusados (...). 

─ Tais crimes, segundo declaramram as testemunhas que os presenciaram, constituem uma ofensa á majestade divina, uma vergonha para a humanidade, um exemplo pernicioso de maldade e um escândalo universal (...)

A peroração inicial historiava todos os antecedentes das acusações feitas á Ordem do Templo, e que, no entender do procurador do rei, que havia feito a denúncia, justificaram a ordem sumária de prisão. 

Monsenhor Arnald fazia o possível para dar ênfase aos motivos que levaram sua Majestade, o rei Filipe, a agir em nome da fé. As explicações eram longas e entediantes. Defesa da fé, ofensa á moral, combate á idolatria... Levou cerca de duas horas para justificar a decisão do rei. Em seguida começou a discorrer sobre a legalidade do processo e sobre o que foi apurado no seu decorrer.

– Ao longo dos últimos sete anos, foram realizados todos os atos processuais necessários e concedidos aos acusados todos os meios de defesa previstos em lei. Ouvidas centenas de testemunhas e levantados documentos e provas, as autoridades eclesiásticas não têm dúvidas que a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão se desviou dos caminhos da verdadeira fé e seus membros se tornaram criminosos da pior espécie (...).

Passou então a ler as súmulas dos depoimentos.

– Ouvido Messieur Esquin de Floyran, este declarou que (...) os Templários, quando admitidos na Ordem, são obrigados a negar a divindade de Cristo, a santidade da cruz, a validade dos sacramentos da Igreja Católica, (...).

– Ouvido o Irmão Bernardo de Vado, este declarou que (...) oficiava missas nas quais ele, como cônego da Ordem concedia, por si mesmo e com autorização de seus superiores, a absolvição dos pecados cometidos pelos Irmãos (...).

– Ouvido o Irmão Estevão de Troyes, este declarou, que, nos rituais dos Capítulos dos quais participam os cavaleiros da Ordem, estes eram obrigados a prestar culto a um ídolo demoníaco, cuja representação mais comum era uma cabeça barbada de três rostos, (...).

E por aí adiante foi o inefável Monsenhor Arnaud lendo, com sua voz metálica e contundente todas as declarações das testemunhas ouvidas. Ninguém, na silenciosa plateia que ouvia, contrita, a enfadonha leitura, percebeu que ele não citou os testemunhos que negaram as acusações, mas apenas aqueles que as confirmaram. Disso só o sabiam os prelados que fizeram parte das comissões de Inquisição. Mas ninguém, nesse momento, ousaria, ou estaria disposto a levantar essa questão.

A multidão, que no início não se mexia e parecia atenta, começava a dar mostras de impaciência. Era muita longa a arenga. O bispo percebeu o incômodo da plateia e pulou diversos testemunhos, indo para a penúltima folha do enorme pergaminho que um criado lhe entregava.

– Ouvidos o sargento da Ordem, Irmão Jean de Châlons, este declarou que o Preceptor de Paris, Gérard de Villiers, atirou dentro de um poço nove Irmãos noviços que se recusaram a praticar atos contra a natureza, quando os veteranos quiseram se servir deles como mulheres. E que a prática desses atos de sodomia era comum entre os membros da Ordem e até incentivado pelos comandantes, os quais diziam não ser pecado se servir dos Irmãos para satisfazer essas exigências quando estivessem atormentados pelos desejos da carne (...).

O murmúrio voltou a agitar a plateia. Monsenhor Arnaud percebeu o impacto que tais assuntos provocavam nos ouvintes e prosseguiu, procurando dar mais ênfase aos pontos cruciais. Escolhia, entre os depoimentos, aquele que mais lhe interessava.

– Ouvido o Irmão Guy Dolphin, este declarou ter sido várias vezes dessa maneira assediado pelos Irmãos e por ter se resistido a essas práticas, foi severamente repreendido pelo seu superior, o preceptor (...).

Agora, o murmúrio já era mais forte. 

– Não é que esses Templários eram mesmo uns malditos sodomitas – começaram a dizer os ouvintes.

– Pois é. Faziam votos de castidade e desprezavam o uso de mulheres, mas enrabavam uns aos outros – disseram outros.

– Eram uns perversos, tarados – disse uma mulher.

– Têm mesmo que ser queimados – alguém gritou. 

Monsenhor Arnaud pediu silêncio uma vez mais. Contemplou, com satisfação, a reação da plateia. Foi então direto ao cerne da questão.

– Ouvido o monge Hugues de Peyráuld, Inspetor-Visitador da Ordem, este não só confirmou todas essas declarações, mas também aduziu que na qualidade de alto dignatário da Ordem, recepcionou diversos noviços e na ocasião dessas recepções mandou que os iniciados renegassem Cristo por três vezes e cuspissem na cruz (...).

Os murmúrios voltaram a subir de tom. Monsenhor Arnaud fez um sinal com a mão pedindo silêncio. Ele ainda tinha mais coisas escabrosas para dizer. O povo esticava o quanto podia os pescoços e canalizavam as orelhas para ouvir aquelas que pareciam ser as maiores abominações praticadas por aqueles malditos cavaleiros de manto branco.

– Ouvido o Grão-Mestre geral da Ordem, Monsenhor Jacques de Molay – o relator estufou o peito e limpou a garganta, olhando para a plateia, como se fosse fazer uma declaração bombástica – este não só reconheceu a veracidade dessas acusações, como também confessou ter negado Cristo quando da sua recepção na Ordem. Confessou também ter cuspido na cruz, como lhe foi ordenado. E que tal prática era comum por ocasião da recepção de novos Irmãos da Ordem (...).

– É mentira! ─ Gritou Jacques de Molay, com todas as forças de que era capaz.

– O prisioneiro não tem permissão para falar – gritou o preboste Jean de Ployebouche, que fez sinal aos arqueiros, postados atrás dos prisioneiros, com seus piques a posto.

Um dos arqueiros adiantou-se e golpeou-o violentamente na nuca, com o pique. O Grão-Mestre arriou as pernas e caiu de joelhos, o sangue a jorrar da ferida aberta.

Monsenhor Arnaud olhou para ele por um momento. Depois continuou. 

– Todas as acusações foram confirmadas e confessadas pelos prisioneiros aqui presentes. A eles foram dadas todas as oportunidades de defesa e meios de prova em contrário, admitidas pelo direito. Foi-lhes também oferecida à graça de Sua Santidade, pela confissão espontânea e o arrependimento. No entanto, eles persistiram na negação dos fatos sobejamente comprovados. O que mostra a terrível perfídia e a abominável corrupção que atingiu a Ordem do Templo (...).

– É tudo mentira! – murmurou o Grão – Mestre, ainda caído no tablado, como se estivesse falando para si mesmo. 

Monsenhor Arnaud nem se dignou a olhá-lo. Os outros três dignatários conservavam as cabeças baixas.

Jacques de Molay, muito a custo, havia se levantado sobre suas pernas. Sentia na própria alma o frio das pedras que formavam o piso da praça da catedral. Ergueu os olhos para a grande rosácea que brilhava no vitral. Sua cabeça sangrava, no lugar onde o arqueiro o atingira com o bastão. 

– Senhor perdoe os meus pecados. Sede complacente com este vosso pobre filho, ignorante e crédulo, que acreditou demais nos homens – murmurou.

Em seguida olhou para o grupo de prelados, onde distinguiu, entre os bispos, o antigo confessor do rei, o arcebispo Jean de Marigny. Um vulcão explodiu em seu peito e o ódio que esse fogo acendeu no seu espírito veio-lhe imediatamente aos olhos. Aquele jovem bispo, orgulhoso, imóvel, fleumático, em suas vestes episcopais, com aquela vistosa mitra; aquele bispo representava os seus dois mais terríveis inimigos, aqueles que eram diretamente responsáveis pela sua desgraça: o rei da França, Filipe o Belo, e Clemente V, o papa. 

Sim, Aquele era Jean de Marigny, o maldito. Ele era irmão de Enguerrand de Marigny, o ministro das finanças de Filipe. Esse ministro tinha sido o principal articulador da supressão da Ordem, para que o rei pudesse se apossar de seus bens. Por conta disso, esse Jean de Marigny se tornara arcebispo de Sens em 1309 e era sob sua autoridade que todo o processo de Inquisição se desenvolvera. Ele era, claramente, um homem do rei e ali estava, gozando aqueles momentos de glória para ele e de desgraça para os Templários.

– Vencestes, malditos – murmurou, entre dentes, Jacques de Molay – Mas essa vitória será a vossa desgraça. 



Monsenhor Arnaud havia terminado de ler toda a fase instrutória do processo e estava agora chegando á parte final, que resumia as acusações e prolatava a sentença. As longas folhas do enorme pergaminho iam passando das mãos dele para um monge que lhe servia de secretário. Este as recebia e ia enrolando novamente a folhas, fazendo com elas um canudo. Eram centenas os depoimentos e muitas as repetições, todas registradas numa linguagem prolixa, enfática, castiça, entremeada de termos e frases em latim, que poucos, entre as pessoas que se apertavam na praça, conseguiam entender. 

Ele já percebera que o povo, na praça, estava começando a se impacientar. Embora um sol pálido tivesse dissolvido a neblina que cobria a ilha de La Cité, ainda fazia muito frio naquela hora. Por isso ele pulou uma boa parte dos atos de instrução e foi direto para os considerandos, que resumiam as acusações. 

As acusações levantadas no curso do processo somavam cento e vinte e sete. A maior parte delas era repetida, ou redigida em termos que procuravam fazer com que fossem diferentes, mas na verdade, tratava-se da mesma coisa. Monsenhor Arnaud leu uma a uma as acusações, que podiam ser resumidas a sete categorias principais. Em suma, os Templários eram culpados dos seguintes crimes:

– Negação da divindade de Cristo, da existência de Deus, do nascimento sem pecado de Jesus e da virtude dos santos consagrados pela Santa Madre Igreja (...).

– Sacrilégio contra a cruz e a imagem de Cristo, pois os Templários cuspiam nelas e praticavam outros atos de desrespeito á esses símbolos sagrados (...).

– Os Templários praticavam entre si atos obscenos, que consistiam de beijos nas partes íntimas dos Irmãos (...).

– Pecaram contra a castidade e ofenderam a moral e os bons costumes, incentivando e praticando entre si, atos de sodomia (...).

– Os padres da Ordem não obedeciam aos santos rituais instituídos pela Igreja, pois não consagravam a hóstia, nem acreditavam nos sacramentos (...).

– Os Templários haviam se entregue á idolatria, adorando ídolos estranhos e representativos do demônio; entregaram-se á pratica da feitiçaria, sortilégios e rituais satânicos (...).

– Os padres do Templo absolviam os Irmãos de seus pecados, usurpando os poderes que somente os padres da Igreja possuíam (...).

─ Os Templários enterravam em seus cemitérios, mediante pagamento, pessoas excomungadas pela Igreja, o que era proibido pela Santa Sé (...). 



Em suma, os Templários tinham sido julgados culpados de heresia, sacrilégio, imoralidade, feitiçaria, sodomia, ofensa aos princípios consagrados pela fé cristã, idolatria e usurpação dos poderes da Igreja. Isso tudo se resumia numa irrefutável conclusão: os Templários eram hereges, infiéis, corruptos e depravados. Ofenderam a fé cristã, denegriram a Igreja e incentivaram a prática da imoralidade, da bruxaria e de tudo que era pernicioso para a moral e os bons costumes da sociedade e para a salvação da alma do indivíduo. 

O silêncio, agora, era total na praça. Finalmente, depois de mais de quatro horas de leitura enfática, cansativa e quase ininteligível para a maioria das pessoas que se apertava na praça da majestosa catedral de Notre Dame, Monsenhor Arnaud ia ler o que mais interessava: a sentença. Ele já demonstrava o cansaço que tudo aquilo havia lhe provocado. Estivera ali, durante a manhã inteira, lendo aqueles pergaminhos. Os quatro dignatários, debilitados, em pé durante todo aquele tempo, já não mais se aguentavam sobre suas pernas. Fosse qual fosse a sentença, só queriam que tudo aquilo acabasse o mais rápido possível.

– Tendo em vista a confissão dos acusados, e as provas irrefutáveis reunidas no presente processo e que foram amplamente discutidas (...).

– Anda logo com isso– gritou alguém em meio á turba.

– Á fogueira com esses depravados– gritou outro.

Monsenhor Arnaud pediu silêncio com um sinal de mão.

– Estes quatro homens – apontou o bispo Arnaud para os vultos fantasmagóricos que estavam perfilados atrás dele – confessaram pública e abertamente ter cometido os pecados capitais de que foram acusados e nunca mostraram, durante o tempo em que ficaram na prisão, estarem arrependidos deles. Por isso, são condenados á prisão perpétua e severa, pelo resto de suas vidas.

A reação da turba oscilava entre o regosijo e a decepção. 

– É isso mesmo. Que apodreçam nas masmorras esses hereges malditos! – gritaram aqueles a quem a sentença agradou. 

– Não, não! – vociferaram os decepcionados – Queremos vê-los arder na fogueira. 

Hugues de Peyráuld e Geoffrey de Gonneville ajoelharam-se no tablado. Deram graças a Deus e agradeceram ao papa pela sentença que não exigia o preço de suas vidas. Conformavam-se em viver o que restava de suas miseráveis existências na prisão. Pelo menos estariam vivos. O pesadelo acabara. 

Mas isso não satisfez Jacques de Molay nem Geoffrey de Charney. Nesse momento crucial, quando todas suas esperanças se desvaneciam, eles pareciam recuperar o antigo orgulho e a velha coragem que os fizera temíveis nos campos de batalha da Terra Santa. A camisola rota e encardida que vestiam nem de longe lembrava o garboso manto branco, com a cruz vermelha no peito. Mas nesse momento era como se eles tivessem vestido novamente o glorioso uniforme que distinguira sua Ordem por dois séculos e voltado aos seus dias de maior glória, quando cavalgavam ao lado de reis, comungavam com os grandes da Igreja e recebiam os barões e nobres de todo mundo, que a eles procuravam, submissos, para solicitar crédito e favores. 

Não. Sete anos de sofrimento, prisão e torturas, não seriam suficientes para purgar os únicos erros de que eles realmente eram culpados? Sim, porque a teimosia, o orgulho e a avareza eram os únicos pecados que os dois altos dignatários do Templo reconheciam ter, de fato, cometido. Talvez o Grão-Mestre tivesse pensado naquele momento, que se ele não tivesse sido tão teimoso e não deixasse o orgulho falar mais alto, poderia ter aceitado a fusão com o Hospital. Desse modo teria salvado a Ordem e a vida, dele e de todos os seus Irmãos. Mas a arrogância da sua posição, o seu orgulho como comandante do Templo, falara mais alto. E agora, concluia o velho cavaleiro, com um suspiro, com setenta anos de idade, que podia mais esperar da vida. Seria, então, a morte lenta e dolorosa, na prisão? Não. Era melhor acabar com tudo, imediatamente. 



Jacques de Molay olhou para seus dois Irmãos de Ordem, Hugues de Peyráuld e Geoffrey de Gonneville, ajoelhados no tablado, orando, e fez uma careta de escárnio e desprezo. “Covardes”, murmurou, entre dentes. Ele sabia que uma boa parte da desgraça do Templo se devia aquele Irmão, Hugues de Peyráuld, que nem agora, na iminência de viver o resto da sua miserável vida como um rato, trancado numa masmorra, ainda assim não era capaz de um gesto de coragem, desafiando o rei que o traiu e o papa que o deserdou. Depois, olhou para o Irmão Geoffroy de Charney e viu nos olhos dele a mesma determinação de dar um fim naquela farsa. Sentiu, naquele momento, fortalecidas as convicções pelas quais se afastara espiritualmente daquela Igreja, pela qual ele dera parte da sua vida. Agora tinha certeza que ela pregava, realmente, uma fé falsa. O Cristo que ela cultuava era, de fato, um falso deus. Porque o Cristo de Roma não era o mesmo que havia vivido, pregado e morrido na Palestina em nome de um reino de justiça, tolerância, piedade e amor. O Cristo de Roma era apenas um estandarte pelo qual as pessoas lutavam e morriam, não pela fé que nele tinham, mas pelos lucros que adquiriam com as matanças, as pilhagens, as defraudações, os roubos e as invasões de terras alheias, que se fazia em nome dele. O Vaticano, Roma, jamais seria o reino com que Jesus sonhou. E o reino dos Templários, governado quiçá, pelos soldados e obreiros de Cristo, talvez pudesse realizar esse sonho. Mas esse reino, como aquele que o próprio Jesus quis fundar um dia, também morreria antes de nascer. E os verdadeiros cristãos, tornados “Filhos da Viúva”, quando Jesus foi crucificado, ficariam órfãos novamente, pois seu novo pai, o Mestre do Templo, estava a ponto de ter o mesmo destino. A Ordem, viúva e perseguida, como Madalena o fora, teria que ir para a clandestinidade se quisesse sobreviver. O Templo de Jerusalém, cujo simbolismo a Ordem representava, seria derrubado outra vez. Suas colunas seriam abatidas de novo.

Esses pensamentos o fizeram levantar a cabeça e encher o peito com o antigo orgulho. Foi então que avançou dois passos e encarou a multidão. Geoffrey de Charney, ao ver a atitude do Grão-Mestre, adivinhou o que se passava na mente do velho amigo e Irmão, porque era também o que se passava na sua; e também se adiantou. Jacques de Molay olhou para ele com ternura e amizade. Fez-lhe um sinal de agradecimento com a cabeça. E com toda firmeza que ainda lhe restava na voz, encarou a comissão de bispos que se enfileiravam na frente do tablado: Então, o ódio, que de Molay até aquele momento fizera tanta força para estancar em seu coração, na esperança, quiçá, de um milagre, explodiu em sua garganta.

– Infâmia! – gritou ele, a plenos pulmões para os prelados. – Vós sois todos mentirosos, infames e ladrões!

A multidão se calou e os prelados todos se voltaram para ele, estupefatos. Ninguém suspeitaria que um velho andrajoso, alquebrado, todo machucado, fosse capaz de uma reação daquelas. Era como um fantasma que tivesse saído do túmulo, para apontar o dedo acusador para os membros da comissão de Inquisição, que ali estavam olhando, perplexos, para ele.

– A nossa Ordem é santa e pura. Não somos culpados de crime algum. Tudo isso é uma farsa urdida pelo rei para tomar os nossos bens – gritou a plenos pulmões.

– Vós mesmos confessastes todos os vossos crimes. E vossos Irmãos também os confirmaram – gritou Jean de Marigny.

– Sob atrós tortura física e moral – respondeu de Molay. – E mediante promessas enganosas do vosso rei mentiroso e do vosso papa covarde – completou ele. 

O “vosso rei e o vosso papa”, pronunciado daquela forma deixavam bem claro que o velho Grão-Mestre havia rompido, naquele momento, com todo e qualquer vínculo que pudesse ainda ter com a Igreja e o reino que ele agora odiava. 

– Vós confessastes a vossa culpa – repetiu, colericamente, o bispo Marigny.

– A única coisa de que me considero culpado é ter acreditado nas mentiras do vosso rei e na falsidade do vosso papa – disse ele. – Foi a cupidez e a ambição do rei, em relação aos bens da nossa Ordem, que o fez voltar-se contra nós. E a hipocrisia do papa, que fingindo defender-nos, nos levou a concordar com as propostas que nos foram feitas, de confessar o que não havíamos feito. 

– Somos inocentes!– gritou, finalmente, Geoffrey de Charney, que até então havia mantido um cauteloso silêncio. ─ E protestamos veementemente contra o Arcebispo de Sens. 

– Hereges! – gritou Marigny. – Fogueira para eles – disse ele, levantando-se.

A turba se agitava na praça. 

– Sim. Fogueira para eles! – começaram a gritar as pessoas, inquietas. Alguns deles começaram a se movimentar em direção ao centro da praça, onde os prisioneiros estavam. Os arqueiros ergueram seus piques, prontos para reprimir a massa, ainda indecisa quanto ao que devia fazer.

O preboste de Paris levantou-se de sua cadeira e correu até o capitão dos arqueiros.

– Messier de Parreiles, precisa tirar os prisioneiros daqui imediatamente! – disse ele.

– Esses homens devem ser queimados imediatamente! São hereges! – gritou Jean de Marigny, abandonando a praça e subindo, apressadamente, os degraus que conduziam ao grande pórtico da Catedral. Atrás dele, foi todo o séquito. Pela porta dos fundos, o arcebispo deixou a catedral e dirigiu-se, célere, ao palácio real para dar ao rei a notícia do ocorrido. 



– Que dizeis dessa notícia? – perguntou o rei aos seus conselheiros. – Esses malditos hereges voltaram atrás em suas confissões novamente e os cardeais estão em dúvida sobre o que fazer com eles.

– O papa poderá perdoá-los, agora que os bens do Templo já foram destinados – disse Enguerrand de Marigny – Como sabemos, ele sempre foi reticente em condenar essa gente.

– Majestade, não podeis deixar que isso se confirme –, disse Nogaret. – Perdereis vossa autoridade se isso acontecer.

– Que diz o meu caro irmão, Messire de Valois? – perguntou Filipe, olhando para Carlos de Valois, que até então se conservara pensativo e mudo. 

– É preciso por um fim nisso, Majestade – disse Carlos de Valois. – Talvez fosse melhor libertá-los – Afinal, eles não representam mais nenhum perigo para o reino – disse o irmão do rei.

Valois sabia que Filipe, Nogaret e Engerrand jamais concordariam com isso. Falara apenas para contrariar os dois outros conselheiros, de quem tinha ciúme e inveja por causa da influência que detinham junto ao rei. Estes, por sua vez, também tinham consciência de que o irmão do rei nunca fora a favor daquele processo contra os Templários. Ele sempre criticara essa ação, que para ele, era um atentado contra a instituição da Cavalaria. 

Mas Valois sabia que sua voz, naquele caso, era letra morta.

– Os Templários são hereges. Isso está mais do que provado – insistiu Nogaret.

– São relapsos. Devem ser queimados – completou Enguerand.

– Além disso – disse Nogaret, olhando para Valois, – todos os Templários que insistiram em sua inocência foram queimados. Não tem sentido poupar seus comandantes. O povo não vai entender essa justiça, Majestade.

Valois lembrou que somente Jacques de Molay e Geoffroy de Charney protestaram contra a sentença. Os outros dois haviam concordado com ela.

– Dareis todos eles como lenha para a vossa fogueira? ─ Perguntou Valois, com sarcasmo, para Nogaret.

Todos olharam para o rei. 

– Que sejam ambos queimados, e os outros dois cumpram a prisão perpétua, como foi determinado – disse, finalmente, Filipe, o Belo.




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