segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017





O pecado de Adão - Estudos Maçônicos

Autor: João Anatalino

A Bíblia diz que Adão é o ser humano que teve sua alma insuflada pelo “sopro divino”. Em termos de ciência neurológica podemos entender essa metáfora como aquisição da camada neural que deu ao homem a capacidade de refletir. Já para a Maçonaria esse "sopro" é a sabedoria que permitiu ao homem colocar “ordo ab chao”, ou seja, adquirir consciência de si mesmo e do mundo para organizá-lo de uma forma lógica.

No Zhoar (a Bíblia cabalista) essa imagem é descrita do seguinte modo: “Quando o homem inferior descende (dentro deste mundo), do mesmo modo que quando entra na forma superior (nele mesmo), ao mesmo tempo isso lhe confere a base de suas almas ou dois espíritos. (Ou seja) o homem está formado por dois lados: tem o direito ou reto e o esquerdo ou sinistro. E pode ser observado de ambos os lados. Em relação ao lado direito, ele tem Nshmtha Qdisha (Neschamotha Qadisha), a sagrada inteligência; enquanto em relação ao lado esquerdo, ele tem NPShChIH,( Nephesh Chia), a alma animal”.[1]

Aqui, mais uma vez, conseguimos ver as estranhas imagens da inteligência cabalística cantando um dueto bem afinado com que as teses dos modernos cientistas e teóricos do evolucionismo, que vêem o homem como resultado de uma longa evolução que se processou no correr de milhares de anos e que foi conduzida pela sua necessidade de desenvolver meios cada vez mais eficazes de sobrevivência, em face de um ambiente hostil. Assim, o homem, á medida que ia descobrindo essas estratégias, que o fazia cada vez mais sábio, ia também adicionando novas camadas neurais á estrutura do seu cérebro, as quais foram também legadas aos seus descendentes como herança biológica. Por isso é que a interpretação cabalística desse fenômeno diz mais adiante que “O homem pecou, e por isso foi se expandindo até o lado esquerdo; e então, aqueles que carecem de forma também foram expandidos. Isso se refere aos espíritos da matéria, que receberam o domínio das sendas inferiores da Alma de Adão, e aí assentaram as bases da concupiscência. Quando (e portanto) foram unidos e ligados, (na base da concupiscência, juntos com a conexão, as duas almas do homem e o espírito animal), tiveram lugar, portanto, as gerações, como os animais dos quais muitas vidas são geradas, todas em uma mesma conexão.[2]

Esse hermético discurso se refere à notável dualidade que se encontra no homem, de um lado evoluindo na própria biogênese que conforma todas as espécies animais e por outro lado construindo um espírito, através da sua capacidade reflexiva. Um anjo-animal, que tem, por dentro a Neschamotha Qadisha (sagrada inteligência) e por fora a Nephesh Chia, a alma animal. Por isso os estranhos dizeres do Senhor com respeito á serpente que desencaminhou o casal humano: porei inimizade entre ti e a mulher, e entre tua descendência e a sua (dela) descendência. “Ela te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. [3]

Quer dizer, haverá sempre um conflito no espírito do homem entre a sua espiritualidade (a mulher, sua parte feminina) e a sua materialidade (a sua origem animal). Enquanto a primeira o concita a buscar um patamar de espiritualidade cada vez maior (ferindo-lhe a cabeça), o segundo o cutuca no sentido de atender, cada vez mais aos seus sentidos, o seu apego á matéria (o calcanhar).Por isso a metáfora do "calcanhar de Aquiles", ou seja, a natureza humana do homem, sempre exposta ao assalto dos sentidos. Dessa forma se entende a “inimizade” posta entre matéria e espírito, que só pode ser superada pela gnose que ilumina.

Essa ideia se fundamenta nos diversos significados da palavra nefesh (alma) Um dos significados dessa palavra em hebraico, é serpente. Por isso, nas doutrinas místicas, a origem da sabedoria humana está ligada ao mito da serpente.

Mas nephesh significa também sangue, espírito vital. Por isso em muitos cultos ofitas há o registro de sacrifícios de sangue, significando que a oferta do sangue á divindade é o mesmo que ofertar-lhe o espírito vital.

Em psicologia a nefesh pode ser associada á nossa mente inconsciente, onde a intuição e o instinto se originam. Leonora Leet, ao associar essa fase da consciência humana ao estágio mais primitivo da sua estrutura cerebral, diz que “a forma caída da alma Nefesh desenvolveu maiores poderes de emoção e razão, ambas trazidas prematuramente a serviço da vontade, ainda presa a um estágio reptílico de desenvolvimento, correspondente ao bulbo interno do cérebro, uma possível razão de se associar á queda desse nível de consciência com a cobra”.[4]

E desse modo, uma vez mais, as intuições cabalistas aparecem hospedadas nas mais modernas concepções científicas, mostrando novamente que o nosso substrato psíquico, como intuiu Jung, tem uma fonte comum de alimentação, seja qual for o tempo e o lugar.


A desordem cósmica


Destarte, o “pecado de Adão”, visto pela ciência como sendo a aquisição da inteligência pelo ser humano, para os cabalistas significa também a instituição da desordem no âmbito da Criação, pois tanto o surgimento da vida a partir das combinações energéticas da matéria pode ser visto como se fosse um “ponto fora da curva” como dizem os matemáticos, ou como uma “emergência descontínua”, no dizer de Teilhard de Chardin. Da mesma forma se pode considerar a aquisição da capacidade reflexiva por parte do ser humano. Ela desequilibrou o processo natural da vida, colocando o ser humano bem acima, em termos de complexidade, de todos as demais espécies que a natureza havia criado até então. Para recuperar o equilíbrio que essa nascente qualidade do homem provocou na natureza (coisa que talvez não tenha conseguido até hoje), quanto ela não teve (ou ainda terá) que se reestruturar para isso?[5]

Destaque-se que as modernas teses evolucionistas identificam uma fase reptiliana na mais primitiva das combinações cerebrais que a espécie humana já teve. Coleman nos mostra, em seu excelente estudo, como o cérebro humano evoluiu, partindo das suas primeiras conformações, até o desenvolvido equipamento neurológico que ostentamos hoje.[6]

Por outro lado Teilhard de Chardin ensina que as espécies vivas evoluem por aquisição de propriedades, as quais vão sendo adquiridas através das combinações celulares que se processam em níveis cada vez mais complexos. É o que ele chama de aditividade dirigida. Quer dizer, através do fenômeno da hereditariedade, cada geração acrescenta á espécie um grau maior de evolução, adquirido do aprendizado feito em cada experiência de vida. Usando suas próprias palavras, “Por acumulação contínua de propriedades (qualquer que seja o mecanismo dessa hereditariedade) a Vida faz como “bola de neve”. Ajunta caracteres sobre caracteres no seu protoplasma. Vai se complicando cada vez mais...)” nós podemos ter uma compreensão mais clara desse processo. [7]

Ou como diz Coleman ao descrever a evolução do cérebro humano, desde o estágio reptiliano até a avançada conformação de hoje:“Ao longo de milhões de anos, o cérebro humano cresceu de baixo para cima, os centros superiores desenvolvendo-se como elaborações das partes inferiores, mais antigas (...)” [8]

Assim, a evolução do nosso cérebro foi seguindo um caminho mais ou menos semelhante ao da própria Criação, conforme se depreende do desenho da Árvore da Vida da Cabala. Não devemos nos esquecer que para os cabalistas, Adão, antes do pecado, era um corpo etéreo (um espírito) que não tinha nenhuma relação de parentesco com a criação animal. Ele era, como diz Gershon Scholem,“ uma figura puramente espiritual, uma “grande alma”, cujo corpo mesmo era uma substância espiritual, um corpo etéreo, ou corpo de luz. As potências superiores continuavam a fluir para dentro dele, conquanto refratadas e ofuscadas em sua descida. Ele era, assim, um microcosmo a refletir a vida de todos os mundos.”[9] Tornou-se humano por aquisição da propriedade de refletir. Com isso gerou uma desordem cósmica que foi preciso restabelecer.


Tikun: a restauração da ordem

A Cabala ensina também que o corpo do Adão terrestre foi refletido na terra a partir do seu modelo celeste Adão Kadmon, para cumprir uma tarefa. Essa tarefa era a de resgatar as “centelhas” (almas) da Luz de Deus que se espalharam pelo vazio cósmico no momento em Ele se manifestou (ou a sua energia se espalhou em consequência do Big-Bang). Se Adão houvesse cumprido sua tarefa, a Criação teria terminado no Sabbath (o Sábado), consumada na união do masculino com o feminino (a união de Adão e Eva). E o paraíso seria o prêmio final dessa tarefa, não só para o casal humano, mas para toda a sua descêndência. Mas Adão fracassou e a história humana começa, então, com a retirada da vestimenta etérea que cobria o corpo do casal adâmico. Assim se explica a estranha informação constante de Gênesis, 3;21; “ E o Eterno Deus fez para o homem e para sua mulher túnicas de pele e os fez vestir.” Isto é, deu vestimentas de ser humano aos seres que antes, eram espirituais. Por isso o salmista diz: “o que é o homem para que Te lembres dele? E o filho do homem, para que tu o visites? Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. (Salmos 8:5).

O pecado de Adão fez com que a Schehiná (a Luz de Deus, presença divina no universo) fosse espalhada pelo mundo. Dessa forma, a missão do homem Adão, como ser humano, passou a ser a tarefa da reunir, de novo, as centelhas da Schehiná dispersa, o que se dará, por fim, quando se concretizar o processo do Tikun, ou seja, a restauração da ordem no caos, que foi instituída com a queda do homem do céu, e sua transformação em ser humano. 


A função do Messias


Essa restauração (o Tikun) será conduzida pelo Messias, através de um processo do qual todos participaremos. Assim, a redenção de todas as almas é uma consequência dos nossos atos. O Messias é o “professor”, o guia que nos conduz nesse processo. Como bem observa Gershon Scholem, não devemos nos esquecer que essa concepção da doutrina cabalista, que encampa várias idéias gnósticas, reflete a própria vida de Israel enquanto nação, com sua história de ascensões e quedas, e o exílio que marcou a vida do povo judeu. Nesse sentido, diz esse autor, “Israel é a própria Schehiná, e sua dispersão histórica pelo mundo é o símbolo do caos, o qual só será ordenado com a realização do Tikun. Por isso, “no decurso do seu exílio, Israel deve ir á toda parte, a cada um dos cantos do mundo, pois em todo lugar há uma centelha da Schehiná á espera de ser descoberta, apanhada e restaurada por um ato religioso.” [10]

Nesse sentido, a própria nação de Israel seria o “Messias” realizador desse processo. Essas idéias foram desenvolvidas por Isaac Luria e compartilhadas por uma forte corrente cabalista, conhecida como messiânica. É de se notar o estreito paralelo que existe entre essas concepções e as teses desenvolvidas por Teilhard de Chardin no sentido de que, um dia, toda a espiritualidade desenvolvida pela humanidade se reunirá em um ponto único, chamado Ponto Ômega, que ele identifica com a própria alma de Cristo. [11]

Essa idéia, como veremos, irá também refletir na doutrina da reencarnação, desenvolvida pela Cabala. Pois o exílio do corpo, em sua história externa, encontra paralelo no exílio das almas, em suas migrações de encarnação em encarnação, de uma forma de existência á outra.[12] E refletirá não só na história do povo judeu, na sua procura por uma redenção, em termos políticos, com a reconstituição da sua nação, como também irá inspirar, no terreno politico, várias outras propostas messiânicas, como a que fundamentou a formação dos Estados Unidos da América, a Novus Ordo Seclorum, a própria Alemanha nazista e até as experiências sócialistas que se cristalizaram na primeira metade do século vinte.[13]

E dela não escapará a própria experiência maçônica, que em todos os seus temas espiritualistas, e na estrutura do seu próprio catecismo ritual, reflete a enorme influência que recebeu da doutrina cabalista. Esse pressuposto nos parece bem claro nos objetivos da Maçonaria, enquanto sociedade, que como bem definiu André Michel de Ramsay, foi estabelecida para espalhar a ideia de que o mundo todo é uma répública e todo indivíduo um filho. E isso reforça ainda mais a nossa assertiva de que a Maçonaria institucionalizada tem como célula inspiradora a ideia que norteou a fundação da nação de Israel, e que na sua base espiritualista está a grande tradição da Cabala.

[1] Knorr Von Rosenroth- A Kabballah Revelada, Madras, 2011- pg. 110. Imagem: Enciclopédia Barsa.
[2] Kabbalah Revelada, op.citada, pg. 110. 
[3] Gênesis, 3:15.O calcanhar é o símbolo da fraqueza humana, o seu elo de ligação com a terra. Por isso, ferir o seu calcanhar é atingi-lo em sua condição de ser humano. Daí a metáfora do “calcanhar de Aquiles”.
[4] A Kabbalah da Alma, ciada, pg. 141
[5] Emergência descontínua é o termo usado por Chardin para designar um acontecimento excepcional, que atropela as tendências naturais. O surgi-mento da vida é uma dessas emergências descontínuas e a aquisição, por parte da espécie humana, da capacidade reflexiva, é outro desses fenômenos naturais. Por isso a sua obra fundamental se chama o “Fenômeno Humano”.
[6] Inteligência Emocional, op. citado, pg. 23 
[7] O Fenômeno Humano, citado, pg. 160.
[8] Inteligência Emocional, citado, pg. 24.
[9] A Cabala e Seu Simbolismo, citado, pg. 138. O “homem Adão”, aqui é visto como símbolo de toda a humanidade que resultou da queda. Segundo a doutrina luriana, o pecado de Adão representou a “quebra dos vasos” (sheviráh) que continham a Luz divina. Nesse sentido, sua missão, como ser humano, e da humanidade que dele se originou, é realizar o Tikun, ou seja, a reconstrução desses “vasos quebrados”, através da progressiva iluminação da sua mente.
[10] Para mais informações á respeito ver A Cabala e Seu Simbolismo, citado, pgs. 141 a 145.
[11] O Fenômeno Humano, citado, pg. 87. 
[12] A Cabala e Seu Simbolismo, citado, pg.140..
[13] A “Nova Ordem do Século” era o título que os maçons americanos davam á sua nascente nação. Ver, nesse sentido “A Cidade Secreta da Maçonaria, citado.
João Anatalino