OS MISTÉRIOS DE MITRA
Autor: João Anatalino
O deus Mtra
Mitra é deus cuja origem é controversa, não sendo matéria pacífica se o seu culto nasceu na Pérsia ou na Índia. Todavia, tanto na Índia, com o deus Varuna, quanto na Pérsia com Mitra, todos concordam que ele é o deus da Luz, cuja função na sociedade humana é proteger a verdade e manter as pessoas afastadas da falsidade e do erro.
Mas se na Índia ele foi obscurecido pela própria metafísica que a religião hindu desenvolveu, na Pérsia, desde tempos imemoriais, Mitra figurou como sendo uma deidade de extraordinário poder.
No início, Mitra não era identificado com o sol, mas com a sua luz, que tudo ilumina, que tudo vê, que tudo aquece. Ele era o deus dos pastos, da natureza, o que fazia chover e levava a terra produzir seus frutos. E por um processo natural de metonímia, invadiu a consciência do povo persa tornando-se o mediador dos seus comportamentos, como fiador dos contratos, vingador das ofensas, paladino da verdade e defensor da justiça.
Sempre ao lado dos virtuosos, Mitra conferia prosperidade aos que faziam o bem e castigava os que faziam o mal; junto com a prosperidade, aos merecedores ele conferia a paz, o amor, a virtude. Protegia a criação de Auhra Mazda contra as maquinações dos devas, terríveis demônios, cujo objetivo era desencaminhá-la. Na guerra ele lutava ao lados dos fiéis e aniquilava os ímpios. Situado num nível somente inferior à própria deidade máxima Ahura Mazda, ou Ormuz, ele era o mediador entre o céu e a terra. Até o nascimento de Zaratustra, ou Zoroastro, a religião persa era composta de por um corte politeísta, com Ahura Mazda (Ormuz) no topo da hierarquia, Mitra imediatamente abaixo dele e uma plêiade de entidades menores chamados ahuras situadas abaixo. Essa era a composição às hostes celestes. Do outro lado havia as hostes do mal, chefiada por Arihmã, o deus do mal, que capitaneava um imenso exército de seres malignos, chamada devas.
Zoroastro
O Mazdeísmo era a doutrina praticada pelo povo persa desde tempos imemoriais. Baseava-se na idéia que o universo era resultado de uma eterna luta entre duas deidades, uma que presidia a sombra, chamada Arihmã, outra que presidia a luz, chamada Aura Mazda. A primeira era representativa do mal, a segunda do bem.
Essa era a religião dominante na Pérsia desde tempos pré-históricos, mas a falta de um estado unificado – que só no século V a.C viria a ocorrer, com o advento de Ciro, o Grande − a impedia de ser considerada uma doutrina de caráter nacional.
No século VI a.C., em data ainda ignorada pelos estudiosos, nasceu Zaratustra, ou Zoroastro, como o chamavam os gregos. Foi esse lendário sacerdote que organizou os temas da religião persa, antes dispersos e tratados como tradição oral pelos sacerdotes mazdeístas, numa vasta doutrina que convencionou-se chamar de Zoroastrismo. Zoroastro não só organizou os temas da crença persa, propriamente dito, como também deu uma ordem à hierarquia de deidades que nelas viviam.
Foi ele quem organizou os diversos arquétipos que informavam o Mazdeísmo, atribuindo a cada deidade uma função no equilíbrio do universo e na vida dos homens e suas sociedades.
A doutrina do Zorostrismo foi reunida num compêndio conhecido como Zend-Avesta. Acredita-se que desse compêndio, o conjunto de dezessete hinos hinos religiosos chamado de Gathas, tenham sido compostos pelo próprio Zoroastro.
Sobressai, nessa composição, a estreita semelhança de linguagem que ela mantém com os Vedas hindús, o que leva muitos estudiosos a crer que ele tenha vivido entre os séculos XV e XII a. C., e não no século VI como usualmente é informado, uma vez que os sagrados livros indianos acima citados foram redigidos nesse período.
A importância da figura de Zoroastro na história das doutrinas religiosas é o fato de ele ter sistematizado para o mundo das idéias uma tradição que já era praticada pelos povos indo-iranianos desde épocas imemoriais. A idéia desses povos, de que a construção do mundo obedecia a uma dialética de forças antagônicas e contrárias, passou a receber, após a sistematização promovida por Zaratustra, outras influências que determinavam o seu equilíbrio ou desequilíbrio. Os intermediários entre Auhra Mazda e Arihmã passaram a exercer um papel fundamental nessa luta. Os ahuras passaram a ser vistos como criaturas do bem, soldados de Ahura Mazda, e o devas assumiram a sua condição de soldados do mal, criaturas de Arihmã. Esse conceito, que anteriormente era entendido apenas na sua natureza metafísica passou a ter contornos de religião mesmo. Nasceria daí a base para a doutrina que mais tarde seria desenvolvida pelos cristãos, que situa o anjo Lúcifer(Satã), como Pontífice do mal e Jesus Cristo como pontífice do bem. [1]
A doutrina de Zoroastro, no entanto, ao ganhar influência sobre o povo irianiano acabou eclipsando por um tempo o deus Mitra. Ele que era um dos principais deuses do panteão iraniano, se tornou uma deidade secundária, sujeita à uma hierarquia, no topo da qual se encontrava Auhra –Mazda. Mitra recebeu funções específicas para cuidar, como os demais ahuras da corte divina. A sua era proteger os guerreiros, distribuir justiça nos tribunais, defender as almas humanas contra os demônios, etc. Mas com o correr dos tempos, verificou-se que o arquétipo mitraico estava tão profundamente entranhado na psicologia do povo persa, que ele logo voltou à sua proeminência de antes.
O Zoroastrismo não trabalha originalmente com Mitra como deidade, mas acabou-o adotando como parte importante do seu panteão. Ocorreu com ele a mesmo processo que os judeus cristãos desenvolveram em relação a Jesus Cristo. Jesus foi incorporado por eles à teocracia divina de Israel como sendo o Messias, controvertido personagem que a tradição judaica havia criado, ora para purificar a sua religião, ora para libertá-lo do jugo estrangeiro. Para os judeus, entretanto, Jesus nunca passou de um pretenso profeta, ou arruaceiro – coisa muito comum naqueles dias − que pretendeu assumir um papel sonhado por muita gente.
E como no caso de Israel, com a figura do Messias, Mitra era também um arquétipo profundamente entranhado no espírito do povo persa, que mesmo Zoroastro, ao sistematizar os temas do Mazdeísmo, por mais que quisesse, não conseguiu deixar de fora.
E á medida que o tempo passava, Mitra foi recuperando o seu antigo prestígio, até que, já por volta do século V a.C. ele já aparece no panteão dos deuses persas junto com a própria divindade máxima, Auhra Mazda, este representando o céu e Mitra a sua Luz. E com os dois, mais Arihmã, o deus do mal, se compôs a trindade persa.
A doutrina de Zoroastro
O Mazdeísmo é essencialmente uma religião dualista, semelhante ao Taoísmo chinês, com a diferença de que o Taoísmo é mais uma filosofia do que uma religião. Entretanto, o que os chineses chamam de Yin e Yang, forças positiva e negativa, masculina e feminina, a gerar e dar equilíbrio ao universo, o Mazdeísmo chama de Auhra Mazda, o deus do bem e Arihmã, o deus do mal. Na doutrina chinesa é o conhecimento do Tao, o viver de acordo com os seus princípios que mantém o equilíbrio cósmico e mantém a vida do universo. No Mazdeísmo essa função cabe á Mitra, pois “Aúhra Mazda o criou para vigiar o mundo.”[2]
O papel de Mitra na religião persa é frequentemente comparado ao de Jesus na complicada hierarquia que a Igreja Católica criou para harmonizar o fato de Jesus ser judeu, jamais ter renegado a religião judaica e ainda assim nunca ter encontrado lugar no panteão das deidades acreditadas pelo sistema judaico. Assim como os cristãos criaram um deus-pai para referir-se ao Deus do Velho Testamento e um deus-filho para referir-se ao Cristo, também os persas trabalhavam com o conceito de um deus supremo. Assim tinham Ahúra Mazda, uma entidade abstrata, que vivia no firmamento (Deus-Pai Jeová), acima das estrelas e abaixo dele estava Mitra (Deus-Filho, o Cristo), uma divindade concreta, ativa, que verdadeiramente comandava as ações no mundo. Era à Mitra que os reis oravam, e foi a ele que os sacerdotes dedicaram seus rituais, desenvolvendo as cerimônias que ficaram conhecidas no mundo inteiro como os Mistérios de Mitra.
Há, pois, que diferenciar-se entre Mazdeísmo, ou Zoroastrismo, como ficou conhecida essa religião e Mitraísmo, embora as duas tenham as mesmas raízes e comunguem dos mesmos elementos de convicção. O melhor paralelo que se lhes pode invocar é o do Judaísmo e Cristianismo, embora mitraístas e zoroastristas pareçam ter convivido muito melhor do que cristãos e judeus.
Como de praxe acontece com todas as religiões, a espiritualizada religião persa acabou sendo muito contaminada pelas interações promovidas entre o Império Persa e os países conquistados a partir do século V a.C.. A religião astrológica dos babilônios e a religião solar dos egípcios acabaram desfigurando-a de tal forma, que Ahúra Mazda e Mitra acabaram sendo confundidos com deidades solares, perdendo aquela característica metafísica que apresentavam em suas mais antigas concepções.
As conquistas persas, como não podia deixar de ser, levaram o Mitraísmo para todos os territórios que o poder imperial tranformou em satrápias. Mas como bem observa Ptolomeu, já não era a doutrina original, e sim uma complicada liturgia enxertada de mitos, crenças e tradições semitas, cuja origem estava mais para a Babilônia do que para a Pérsia.[3]
A conquista do império persa por Alexandre Magno levou o Mitraísmo para o Ocidente, onde ele foi bem recebido pelo mundo grego-romano pelo seu caráter cosmopolita. Não era uma doutrina exclusivista e intolerante como o Judaísmo ou o próprio Cristianismo, mas sim uma religião que tinha traços de universalidade. Era exatamente o que os gregos gostavam, já que, como observou o Apóstolo Paulo quando tentou falar no Areópago grego, os gregos eram tão liberais em termos de religião que mantinham em seu panteão um lugar para o “deus desconhecido”.[4]
Em várias regiões Mitra se tornou um dos deuses preferidos no mundo grego-romano. Até gerações de reis Mitriades (dinastias que justificavam seu poder como oriundo do próprio deus Mitra), surgiram em diversas localidades, denotando o prestígio que esse deus alcançou entre os reinos que sucederam o esfacelado império de Alexandre.
Pouco a pouco, á medida que a cultura helênica ia avançando Mitra ia também absorvendo os atributos e qualidades dos deuses locais, o que mostra a versatilidade da concepção em que ele estava envolvido. E aos seus ritos originais foram incorporados os acréscimos que cada povo conseguiu lhe adicionar.
As antigas concepções da religião mitraica, que eram essencialmente metafísicas, baseadas no embate entre as forças do bem e do mal, com o acréscimo que lhes deram os magos da Babilônia e os sacerdotes egípcios se tornaram uma mistura de mitologia com aplicações morais. Com a adesão dos filósofos helenistas, o Mitraísmo voltou a assumir um caráter de doutrina, porém agora com já claros temperos de esoterismo.
Uma das escolas filosóficas gregas que mais se aproximaram dos mitraistas foram os discípulos de Zeno, os chamados estóicos. Foram estes que, vendo nas idéias difundidas pelo Mitraísmo resquícios de uma antiga sabedoria perdida, procuraram harmonizá-la com suas concepções panteístas, dando à idéia central – o embate entre a luz e as trevas- uma característica de doutrina, e às lendas acrescidas pelos magos babilônios, um caráter simbólico que a reforçava.
Uma das regiões onde o Mitraísmo se enraizou com maior vigor foi a Capadócia, região da Ásia Menor, onde se tornou praticamente a religião oficial. Foi dessa região e da liturgia que ali se desenvolveu que ela se espalhou pelo Império Romano e, durante quase cinco séculos dividiu com os cultos gregos e egícios primeiro, e depois com o Cristianismo, a preferência dos habitantes do Império.
O Mitraísmo em Roma
O Mitraísmo, de início, não ganhou muitoa adeptos entre os povos de influência helênica no Ocidente. Provavelmente isso se deu por razões políticas. Afinal gregos e persas eram inimigos antes de Alexandre e continuaram a ser depois dele. Apesar do forte trabalho de helenização que promoveu durante suas campanhas, após sua morte, praticamente tudo voltou ao que era antes nas províncias do oriente, onde a influência persa havia se cristalizado nos dois séculos de dominação. Os territórios além Babilônia jamais absorveram de fato a cultura helênica e os territórios do Ocidente permaneceram presos à sua tradição Greco-romana. No Oriente as religiões reveladas, no Ocidente o paganismo.
Durante os dois séculos que precedeu a ascensão de Roma como principal potência mundial, Mitra permaneceu como um deus de poucos adeptos no Ocidente. Foi apenas no início do século II da era cristã que ele começou a firmar-se na Europa como divindade importante. Plutarco afirma que Mitra teria sido trazido à Roma pelos legionários de Pompeu.[5].
Os motivos da grande influência que Mitra ganhou entre os romanos são difíceis de identificar. Geralmente se aceita que essa influência tenha ocorrido pelo fato de ser Mitra um deus militar, tido como protetor dos soldados, tanto que o iniciado nos Mistérios de Mitra recebia o título de milites (soldados). Assim o deus tauróctone, como era conhecido, se tornou a principal divindade da soldadesca do Império. Quando estes eram desmobilizados e voltavam para suas casas levavam aos seus povos a nova crença. Assim, Mitra ganhou Roma e se tornou um deus de muitos adeptos.
Como Jesus Cristo, no início, Mitra era considerado um deus das classes mais humildes. Escravos, soldados dispensados, mercadores. Mas á medida que Roma ascendia como potência e uma vigorosa classe média ia sendo formada − constituída principalmene por escravos libertos e soldados desmobilizados − Mitra foi ganhando prestígio entre as classes de maior poder. Por volta da época de Nero, por exemplo, (64-74 e. C.), o Mitraísmo já era professado pelos próprios membros da corte romana. Nero foi um dos iniciados em seus Mistérios. Marco, Cômodo e Diocleciano também. Aureliano (270-275) instituiu o Mitraísmo como religião oficial de Roma.
O Mitraísmo forneceu as bases para que os Imperadores romanos passassem a ser cultuados como deuses. A crença persa dizia que os reis recebiam seu poder diretamente de Ahura Mazda. Isso foi aproveitado pelos Cézares para contestar a supremacia do Senado e colocar nas mãos do imperador o poder absoluto. Nasceria assim, a teoria do poder divino dos reis, que sustentou a pretensão dos imperadores romanos e durante a Idade Média e no início da Idade Moderna iria servir de justificativa para essa pretensão.
Em Roma Mitra se tornaria o arquétipo do Sol Invictus, estranha mistura de idéias metafísicas com o mito solar, enxertada pelas crenças babilônicas e egípcias, e fortalecida com a fama de invencibilidade do exército romano.
A Teologia do Mitraísmo
A teologia desenvolvida pelo Mitraísmo, como não poderia deixar de ser, sofreu as influências dos sistemas onde ele se desenvolveu. No Ocidente ele aparece bastante contaminado pelas crenças gregas e latinas, no sentido que Mitra acaba absorvendo os poderes dos deuses greco-romanos. Assim, em várias representações da estátuária desse período, ele é representado como uma espécie de Cronos, portanto junto de si os símbolos dos deuses olímpicos.
Juntando a primitiva idéia do Mazdeísmo, de um universo gerado a partir da luta entre duas forças contrárias, enxertado com os mitos solares da Babilônia e Egito, mais as cerebrinas concepções dos filósofos helenistas, principalmente estóicos e neoplatônicos, os mitraístas compuzeram uma estranha e singular teologia, que de uma forma bastante acentuada, influenciou bastante os filósofos gnósticos que durante os dois primeiros séculos do Cristianismo iriam exercer uma enorme influência no pensamento ocidental.
Diziam os mitráistas que o Princípio Único (Deus, Ahura Mazda, Ormuzd) gerara, no ínício, um casal original, ou seja o Céu e a Terra. A terra, engravidada pelo Céu, teve um filho, o Oceano. Assim, Céu, Terra e Oceano contituiram a trindade divina, de onde veio, finalmente a vida. Na tradição grega, esses três arquétipos eram identificados com Zeus (Júpiiter), Hera(Juno) e Posseidon(Netuno), correspondentes deidades greco-romanas.
A partir daí, sucessivas gerações de deuses e heróis, semelhantes aos ahuras persas, povoavam o panteão de deuses do Mitraísmo, onde se encontrava lugar para todas as divindades e seu séquito de titãs e heróis dos mitos gregos, todos identificados com símbolos e princípios naturais e morais. Assim vamos encontrar um Hércules simbolizando a Força, Anangkê, simbolizando o destino, Démeter, a agricultura, Afrodite o Amor, Marte, a guerra, Vulcano o fogo, etc., todos eles sob submissos á heirarquia de Mitra, o Sol Invictus.
Em contraste com essa plêiade de deidades celestes havia outra que habitava o reino das sombras, a qual era comandada por Arhimã, ou Hades (Plutão na variante romana). Essa horda demoníaca, em determinada oportunidade, atacaram o Céu e tentaram depor o sucessor de Ahura Mazda, Mitra. Mas foram derrtotados, arrojados e presos ao centro da terra.
Mas alguns deles escaparam de suas prisões no interior da terra e passaram a vagar por ela corrompendo os homens. Assim, a humanidade acossada por esses seres malignos teve que desenvolver ritos e sacrifícios próprios para se proteger dos males por eles provocados.
Nascia, também, dessa teologia, por força da influência dos neoplatônicos principalmente, a teoria dos quatro elementos, formadores da matéria universal. Assim, o Mitraísmo divinizou os quatro corpos simples que segundo a física aristotélica era a composição primitiva do universo. Daí que toda iniciação, para ser perfeita, tinha que simbolizar uma união do neófito com esses elementos. Dessa forma encontraremos, como símbolos rituais do Mitraísmo, um leão representando o fogo, uma taça simbolizando a água, uma serpente a terra, uma águia o ar.
Eram esses quatro elementos que produziam todas as metamorfoses que ocorriam no mundo. E com base nessas crenças desenvolveu-se um formidável simbolismo que mais tarde viria a ser aproveitado de modo bastante profundo pelos hermetistas e pelos cultores da Gnose.
Parte desses princípios a notável semelhança que se nota entre os temas do hermetismo, especialmente aquele aplicado á alquimia, e as visões cosmogônicas dos filósofos gnósticos nas suas explicações do universo e das leis que o regem. Nessa noção, tudo tem origem no Sol que dá a vida, na terra que a incuba, na água que a fertiliza, no ar que a anina. Assim, toda a vida que habita no universo tem que ser tratada por esse processo. Submetida ao calor do fogo, purificada pela água, incubada pela terra, animada pelo ar. E nessa conformação está toda a teoria que informa o desenvolvimento dos Mistérios, não sendo estes nada mais que a encenação ritual desse processo.
Uma rica simbologia, que foi artisticamente retratada na estatuária greco-romana foi desenvolvida para representar essas idéias. Assim encontraremos, ainda hoje, nos museus, várias estatuas de Mitra com seu carro de fogo, puxado por quatro cavalos (os quatro elementos) cruzando o firmamento e desaparecendo no oceano, no qual se regenerava e reaparecia novamente no dia seguinte para expulsar os demônios que durante a sua ausência (a noite), se instalavam na terra.
Mas essa sabedoria era reservada somente aos iniciados. A idéia de que os mistérios mais profundos da religião, ou seja, as implicações astrológicas e os poderes que a eles estavam associados, os quais eram capazes de modificar e governar a vida dos homens, constituia privilégio de poucos.
Essa era uma superstição enxertada no Mitráismo pelas influências dos magos babilônicos e os hierofantes egípcios que os mitraístas não souberam, ou não quiseram expurgar. Mas dessa forma a astrologia passou a exercer um papel muito importante na teologia do Mitraísmo, de tal sorte que pode-se dizer que uma boa parte de toda a astrologia que ainda hoje se cultiva no ocidente teve nessa religião a sua divulgadora mais eficaz.
Mitra, sendo intermediário entre a Divindade Suprema e a sua criação recebia todas as preces e rituais. Ele era o gênio da Luz, o que expulsava as trevas do mundo e concedia aos seres humanos todas as graças e benesses. Portador da tocha sagrada, sua chegada era anunciada diariamente pelo cantar do galo.
O conteúdo esotérico dos Mistérios de Mitra
Mitra nasce de uma rocha situada nas margens de um rio, á sombra de árvore sagrada. Alguns pastores presenciam o seu nascimento, saindo da rocha com um barrete frígio na cabeça, um archote na mão direita e um punhal na mão esquerda. Os pastores se aproximam dele e lhe oferecem os primeiros frutos de suas produções agrícolas e pastoris. Mitra estava nu; por isso se esconde atrás de uma figueira e com as folhas dessa árvore faz para si uma tanga; depois come os frutos da árvore e adquire forças para enfrentar todas as potências do mal.
Mitra absorve a luz do Sol e fica investido dos seus poderes. Simboliza a ação do elemento fogo sobre a alma humana. Depois luta e domina um touro selvagem. Por isso ele é conhecido como Deus touróctene. Essa alegoria representa a luta do homem contra a natureza, o seu domínio sobre o reino animal. A luta de Mitra contra o touro tem um significado simbólico muito expressivo. É uma luta de gigantes. Mitra, depois de dominar o touro, o prende em uma caverna. Mas o touro se solta e foge. Mitra tem que persegui-lo. Ajudado por um cão ele vai atrás do touro e o mata. Do corpo da fera agonizante nascem todas as plantas e ervas que cobrem a terra. Da sua espinha dorsal o trigo e todos os tipos de grão; do sangue a uva que fornece o vinho. Os espíritos malignos tentam envenenar as primícias que o corpo do touro prodigalizam. Esses venenos são lançados na forma de insetos e outros tipos de animais considerados nocivos; formigas, serpentes, escorpiões, sapos etc.
Mas a força de Mitra conjuga todos esses fatores maléficos e o mal não consegue prevalescer. Mitra remanesce como o Criador de todas as benesses que a terra produz.
O Mitraísmo, da mesma forma que o Judaísmo e outras religiões orientais parece ter bebido das mesmas fontes para desenvolver a história da origem da raça humana e o desenvolvimento da sua história. Aqui também encontraremos os anjos rebeldes corrompendo o primeiro casal humano, o dilúvio universal, a reconstituição da espécie através de uma família que se salvou numa arca, a nova espécie humana que se formou a partir dessa família, as guerras e os conflitos que ocorreram durante esse processo, etc.
E por fim, Mitra realiza uma última ceia com os iniciados e depois sobe em sua quadriga e desaparece nos céus, de onde continuará a proteger a criação humana dos seus ferozes e terríveis adversários, os demônios devas.
Mitra exorta seus iniciados que defendam a luz contra as trevas. Que pratiquem o bem − pois que o bem é a luz − e lutem conta o mal, que está nas trevas. A vida é uma eterna luta entre esses princípios. Os iniciados devem seguir os mandamentos. Manter-se puros de coração e perfeitos em sua justiça. Por isso, nos rituais de iniciação se davam tanta importância aos banhos de purificação, semelhantes aos que faziam os essênios. Encorajavam mais a ação do que a contemplação. Os iniciados nos Mistérios de Mitra eram “milites” (soldados) por isso deviam ser mais corajosos do que mansos, em clara oposição com o Cristianismo, que encorajava o comportamento oposto.
Os rituais mitraicos
Há, sem dúvida, um estreito paralelismo entre as crenças mitraicas e cristãs, da forma em que esta última se desenvolveu no Ocidente. Uma grande parte das idéias incorporadas pelo Catolicismo também é encontrada no Mitraísmo. As crenças de uma sobrevivência consciente após a morte; na punição e na recompensa pelas nossas ações num outro mundo; a ressurreição das almas; na luta entre Ahura Mazda e Arihmã pelas almas dos homens; no destino final das almas, entre o céu e o inferno etc.
Da mesma forma, as superstições astrológicas que o Ocidente incorporou às suas crenças e tradições já estão presentes no Mitraísmo. A de que o céu era dividido em sete esferas; que havia uma Escada por onde se subia a essas esferas (a Escada de Mitra). Os iniciados aprendiam as fórmulas e os ritos que deviam ser praticados para ascender a cada um desses degraus e adentrar a cada um dos portais a que eles davam ingresso.
Ao passar por cada um desses portais, o iniciado ia se livrando das impurezas adquiridas em sua vida material. À Lua entregava sua energia vital e nutritiva; á Mercúrio os seus desejos; A Vênus seus apetites; ao Sol suas capacidades intelectuais; A Marte seu espírito de luta; A Vênus, seus apetites sensuais; A Júpiter seus anseios de poder; A Saturno suas inclinações mais baixas. Dessa forma, a alma nua penetrava no oitavo céu, transformado em etérea luz.
Mitra presidia o julgamento após a morte e o guiava na sua entrada no mundo empíreo.
O rito final dos Mistérios prevê uma luta final entre os emissários de Arihmã e as hostes de Auhra Mazda, comandadas por Mitra. Mitra voltará à terra, dominará novamente o touro e julgará os vivos e os mortos. Os bons serão separados dos maus e uma nova terra será composta com essa assembléia de “eleitos”. Tudo isso era representado no ritual onde o vinho era misturado com a gordura do touro e servido aos iniciados.
Os Mistérios de Mitra eram um teatro ritualístico onde os iniciados passavam, simbolicamente, por todas as etapas que segundo a liturgia sagrada que informava o culto, o Deus Mitra havia passado em sua missão redentora. Assim, os iniciados passavam por sete etapas de iniciação, simbolizadas pelo Corvo, o Oculto, o Leão, O Soldado, o Persa, o Sol e o Pai. Usavam, em cada grau, máscaras ou vestimentas representativas dessas etapas.
Eram símbolos que tinham seu significado dentro da complicada liturgia dos ritos, que hoje estão, na sua maioria, perdidos. Um pouco desse significado pode ser recuperada na bizarra simbologia dos hermetistas, onde o corvo, por exmplo é usado como símbolo da decomposição da matéria prima, que se produz nas trevas, bem como o leão, que na iconografia alquímica era o símbolo do mercúrio filosófico, o “rei dos metais”.
De qualquer forma sabe-se, pela interpretação que lhe deram os autores clássicos e eclesiáticos, que todos tinham identificação com temas astrológicos ou conceitos metafísicos ligados à metempsicose.
Sete eram os graus dos Mistérios mitraicos, cada um simbolizando a passagem do iniciado por uma das sete esferas siderais. Fazia parte do ritual o juramento do segredo, a purificação pelos quatro elementos, as oferendas do mel, a oblação com pão e água e outros elementos ritualíscos reconhecíveis hoje em rituais da maçonaria.
Mitraísmo e Maçonaria
As câmaras de iniciação maçônica se assemelham as chamadas criptas de Mitra. Ambas são representações fantasmagóricas do que se presumia encontrar no mundo sepulcral, onde o espírito humano teria que passar para se purgar dos vícios e defeitos adquridos em sua vida material. Depois disso ele poderia emergir, num final apoteótico, como um Sol Invictus, semelhante á Mitra
Tudo ali, como nas câmaras maçônicas, era decorado para causar uma profunda impressão no espírito do neófito. Representações da morte, com esqueletos, do tempo, com ampulhetas, do despertar do dia, com o galo, da luz com os archotes etc.ornavam as criptas mitraicas.
Segundo Tertuliano, as comunidades mitraicas eram Irmandades unidas pelo elo dos espírito e das conquistas sociais Possuiam, como as Lojas maçônicas modernas, personalidades jurídicas e propriedades civis. Além disso constituíam corpos administrativos diferentes do corpo sacerdotal e funcionavam como verdadeiras associações de classe que defendiam os interesses profanos dos seus membros.
Não cabe aqui analisar a veracidade dos pressupostos do Mitraísmo, naquilo que ele contém de doutrina. Até porque, como todas as religiões que sobreviveram até nossos dias, ela está inchada de mitos, superstições e tradições, que no mais das vezes, desfiguram a sua concepção inicial. Jesus Cristo acharia irreconhecível a sua doutrina se voltasse hoje à terra e visse no que ela se transformou.
O que sobreleva, para o estudioso, no culto mitraíco, é o que ele legou de concreto para o farto celeiro de arquétipos que influenciam o espírito humano. Não se pode deixar de reconhecer que a idéia de uma ética particular e social, que vise elevar as ações positivas acima daquelas que trazem prejuízo ao tecido social deve ser saudada com simpatia por qualquer pessoa que dela tome conhecimento. Da mesma forma, a convicção de os homens podem e devem formar um grupo de elite para conservar e desenvolver as conquistas da sociedade humana é outra idéia que merece ser olhada com muito cuidado e consideração.
Ao induzir em seus adeptos a crença em uma existência feliz após a morte, para aquele que se conduziram de acordo com essa ética, essa doutrina também atua como poderoso estimulador para a prática das virtudes desejáveis para a constituição de uma sociedade saudável.
A identificação desses conceitos, altamente abstratos, com mitos, símbolos, elementos físicos e naturais, fizeram o Mitraísmo se tornar acessível ao povo, tanto para os humildes cidadãos que viviam num mundo de superstições transformadas em crenças, quanto para os mais preparados que buscavam uma teologia que justificasse as suas especulações mais complexas.
Satisfazendo as aspirações do homem culto e do mais simples dos cidadãos o Mitraísmo entrou na vida do homem antigo e dele não saiu até ser substituído por seu inimigo mais ferrenho, o Cristianismo romano, que dele emprestou a grande maioria do seu arcabouço teológico e ritualístico.
Os ritos maçônicos estão profundamente impregnados de elementos mitraícos. Especialmente nos chamados graus filosóficos essa influência se faz notar de maneira muito especial. No grau 28, denominado Cavaleiro do Sol, principalmente, todos os elementos simbólicos, doutrinários e ritualísticos ali empregados são diretamente inspirados nos Mistérios de Mitra. O próprio título é uma emulação ao deus Mitra, sendo ele, como se viu, o próprio cavaleiro que representa o sol em sua marcha pelo infinito, presidindo todas as benesses que a Luz prodigalisa aos seres humanos. Ainda que se possa reclamar do pouco interesse espiritual que a liturgia do grau apresenta, não se pode negar que a intenção presente na realização daqueles Mistérios foi preservada na atual prática maçônica. Essa intenção é a que visa dar uma sobrevida aos valores éticos e morais que se hospedavam nessas antigas liturgias. E nisso nós acreditamos que eles cumprem sua função. Daí a importância de se estudar o Mitraísmo se quisermos entender de que fontes se inspira a Arte Real.
[1] Dizemos cristã, porque essa doutrina não é oriunda do Velho Testamento hebreu. No Velho Testamento não existe um diabo, no sentido que os cristãos o concebem, mas sim demônios que executam uma função de subversão dos estatutos divinos. Esses demônios são identificados com os anjos rebeldes, que na tradição da Cabala, se rebelaram contra Deus.
[2] Zend Avesta, c. X.
[3] Ptolomeu, Tetrabil II.
[4] Cf. Atos dos Apóstolos,
[5] Plutarco, citado por Franz Cumont, Os Mistérios de Mitra, Madras, 2004
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 14/11/2011
Reeditado em 14/11/2011
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