A TRAIÇÃO DOS COMPANHEIROS- MAÇONARIA
João Anatalino
O grau de Companheiro, na tradição maçônica, é o chamado grau da traição. Isso porque foram três Companheiros que assassinaram o Mestre Hiram, o arquiteto do Templo de Salomão e protótipo do maçom perfeito. O porque desse crime nunca foi bem explicado pelos exegetas das tradições maçônicas. São muitas as interpretações que buscam a explicação para esse curioso drama que marca a passagem do companehiro para mestre. Uma delas é aquela extraída da tradição da Cabala, e envolve a chamada familia de Cain, que segundo aquela antiga tradição mística judaica, é uma metáfora que significa o conflito existente entre o bem e o mal, plantado na alma humana quando ocorreu a rebelião dos anjos, liderada pelo Arcanjo Lúcifer.
Na Loja de Companheiros todos já ouviram o nome Tubalcain. É uma palavra de passe. Na Bíblia esse nome corresponde a um tataraneto de Cain, filho do patriarca Lamec. Ele é tido como sendo um grande artesão das artes metalúgicas. Por isso, na tradição maçônica mais antiaga ( dos maçons operativos) Tubalcain é o representante de todos aqueles que trabalham com as mãos e Hiram o representante daqueles que trabalham com o intelecto. Hiram simboliza também o comando, enquanto Tubalcain é o operário. Um representa a técnica, outro a ciência. Dessa forma, a querela entre o Mestre do comando e os Mestres da execução, que acabou se transformando em tragédia, com o assassinato do primeiro pelos segundos, reflete o conflito entre o Criador e seus Demiurgos (ou espíritos delegados, na tradição gnóstica).
Na tradição gnóstica, Deus “pensa” o universo e seus Demiurgos o constroem. A dado momento esses “anjos de luz” tornam-se rebeldes e passam a reivindicar do Criador uma posição semelhante á dele. Essa é a Rebelião de Lúcifer, a que se refere a Bíblia. É um conflito que está presente em praticamente todas as tradições religiosas dos povos antigos. Esse foi o conteúdo trabalhado na alegoria do Mestre Hiram, e explica seu assassinato pelos Jubelos. Esse é, na verdade, o segredo do grau de Companheiro.
Segundo a compilação feita por Ambelain, esse conto cabalístico seria o verdadeiro significado da Lenda de Hiram, o fundidor das colunas do Templo do Rei Salomão. Na verdade essa era uma lenda divulgada pelos cainitas,seita cristã gnóstica do século IV da nossa era, que foi montada a partir de uma interpretação cabalística dos textos bíblicos. Cremos ter sido essa alegoria que os chamados “maçons aceitos”, de origem rosacruciana, adaptaram para os rituais maçônicos de elevação ao terceiro grau simbólico. É no desdobramento dessa lenda que se assentam o simbolismo que faz de Hiram, o Mestre assassinado e regenerado em cada maçom que é exaltado á mestria, o ponto central da escatologia maçônica.
É, portanto, uma lenda que cheira, claramente á heresia, tendo em vista as tradições bíblicas que fazem de Cain um assassino, um símbolo do crime e do mal. Nela, ao contrário, Cain aparece como arauto da ciência, do saber, do conhecimento, e Adonai, o Senhor, nas tradições bíblicas, é, na verdade, inimigo do homem, pois quer mantê-los nas trevas da ignorância.
O nome de Hiram, nas tradições cainitas, está conectado com a ciência, com o conhecimento dos segredos da natureza, com a energia que transforma os metais. Ele conhece, domina o fogo, transmuta os elementos. É uma lenda que serve tanto ás tradições alquímicas, cuja obra consiste na obtenção da pedra filosofal, sintetizando o processo pelo qual a natureza produz os elementos químicos, como á Cabala, prática esotérica que busca o segredo do universo através da síntese do número, (que corresponde ao Verdadeiro Nome de Deus); serve também ás tradições iniciáticas antigas, que procuram a integração dessa energia numa união final com Deus, o Principio Criador do universo; por fim, atende igualmente aos próprios anseios dos filósofos iluministas, religiosos ou não, que acreditavam na construção de uma sociedade justa e perfeita através de uma educação orientada para a prática das virtudes éticas e morais, já que para isso, era preciso criar um espírito novo, livre de preconceitos, dogmas e vícios deformadores do caráter humano( um renascimento cultural).
Tudo isso equivalia a uma “depuração” da alma pelos mesmos processos utilizados pelas sociedades iniciáticas. Os “homens novos” que dái resultariam ergueriam “templos á virtude e cavariam masmorras ao vicio”, construindo uma sociedade ideal, semelhante ás utopias sonhadas pelos filósofos.
OS JUBELOS
A lenda diz que surgiram três Companheiros invejosos e ambiciosos, que á força, quiseram arrancar de Hiram a palavra misteriosa que só os Mestres sabiam. Seus nomes eram Jubelo, Jubelas e Jubelum, claramente corruptelas dos nomes Jubal e Jabel, irmãos de Tubalcain, segundo a Bíblia. Eles trabalhavam como operários de segunda classe no Templo de Salomão. Pretendiam ascender ao mestrado na arquitetura sem ter cumprido os trabalhos e provas necessários para essa elevação. Assim, tentaram conquistar pela violência aquilo que só o mérito lhes poderia conferir. Emboscando o Mestre, cercando as três portas do Templo, os Jubelos exigem que o Mestre lhes dê a Palavra Sagrada. Hiram nega-se e tenta escapar. Com os instrumentos de trabalho, a régua de ferro, o esquadro e o malho, os Jubelos ferem o Mestre, sucessivamente, na garganta (calando-lhe a voz), no peito, (ofendendo-lhe o coração), e na cabeça, ( destruindo-lhe a razão).
Após o crime tratam de fazer desaparecer o cadáver. Levam-no para o Monte Líbano e o enterram, fugindo depois, temerosos da conseqüência do seu ato. Salomão, notando a falta do seu arquiteto - chefe, envia três Mestres á sua procura. Nada encontrando, despacha outros nove, os quais topam com um local onde a terra tinha sido recentemente removida. Desconfiados, começam a remover a terra e logo encontram ali enterrado o corpo do Mestre Hiram. Marcam o local com um ramo de acácia e retornam para avisar o Rei Salomão. Trazido o corpo para o canteiro de obras do Templo, Salomão e seus Mestres lhe prestam as devidas homenagens e o fazem sepultar com as cerimônias ritualísticas apropriadas.
O termo Jubelos, como se disse, é uma designação que provavelmente foi inspirada nos descendentes de Cain, citados na Biblia, Jubal e Jabel, como já se disse anteriormente. Não conhecemos nenhuma outra tradição ligada a esses nomes, razão pela qual só podemos deduzir que tal inspiração só pode ser proveniente de associações com os personagens acima citados, que aparecem na variante gnóstica da Lenda de Hiram.
O significado esotérico desse crime é aquele já referido, inspirado no Sepher-A-Zhoar. Os Jubelos são os rebeldes que se julgam os verdadeiros construtores, e querem, a todo custo ser ombreados aos seus superiores. Representam, simbolicamente, a Rebelião de Lúcifer, já que este, segundo a tradição cabalística, rebelou-se contra o Senhor porque queria que lhe fosse reconhecido o status de construtor,dado aos arcanjos chefiados por Miguel, mas não ao seu grupo.(1) Assim, na tradição maçônica, esses anjos rebeldes, que deram origem á estirpe de Cain, só poderão ser redimidos através do processo escatológico que representa o Drama de Hiram.
Mais importante que a interpretação esotérica desse drama, porém, é o significado moral dessa alegoria.O assassinato do Mestre Hiram simboliza a morte do homem pela violência e a ignorância dos tiranos. Com efeito, implantada a tirania, a primeira violência que se pratica contra o amante da liberdade é calar a sua voz, impedindo que ele se expresse. Depois, violenta-se-lhe o coração, ferindo- lhe os sentimentos, procurando destruir sua honra, seu nome, sua família, sua auto-estima, ao mesmo tempo que se lhe retira todo tipo de liberdade; por fim silenciam-no totalmente, ou pela ameaça da eliminação física, ou pelo próprio cumprimento da ameaça. Esse é o golpe fatal, na cabeça, que tira para sempre a razão, embora, como o Hiram da lenda, o homem assim violentado sempre ressurja, muito mais forte na razão que defendeu e no exemplo que deixou. Nessa alegoria está o cerne do catecismo maçônico, como o quiseram figurar seus elaboradores, egressos que eram de uma era de obscurantismo, tirania e violência contra o espírito humano.
Esse episódio foi desenvolvido principalmente no catecismo preparado por Samuel Pritchard, denominado Massonry Dissected,de 1730. Ali se diz que o Templo de Salomão foi construído em sete anos e meio, mas seu remate foi perturbado pelo infausto acontecimento que foi a morte violenta do Mestre Hiram Abiff, o qual foi enterrado no interior da Loja, perto do templo. Essa lenda consta também dos Primeiros Catecismos Maçônicos já de uma maneira mais detalhada.
A TEORIA DAS GUNAS
Uma outra analogia que pode ser feita com relação aos Jubelos e a morte do Mestre Hiram é a teoria védica das gunas. Literalmente, guna significa corda, e pode ser entendida como os modos pelos quais a psique humana é construída, em cada encarnação, para amarrar-nos á matéria.
Existem três gunas, ou cordas, que nos prendem ao mundo de maya (a matéria). São elas a Sattva (a guna da bondade), a Rajas (a guna da paixão) e a Tamas ( a guna da ignorância). O quanto estamos amarrados a uma delas é ditado pelo nosso modo de viver nas encarnações anteriores. Assim, um homem de vida dissoluta, entregue á preguiça, ás drogas, enfim, um homem de escasso desenvolvimento espiritual está amarrado ao modo de Tamas, a guna da ignorância. Por sua vez, um homem amarado á materia pela guna Rajas é um homem que só vive pelas paixões, pelo desfrute, pelos prazeres materiais. Todavia, o homem nessa condição já apresenta um certo desenvolvimento espiritual, pois a ânsia pelos prazeres, pelo reconhecimento, pelas riquezas, pelo prestigio social, despertam nele uma preocupação com a própria honra, com a aquisição de um certo refinamento intelectual, uma certa educação etc. Essa preocupação, se devidamente desenvolvida e orientada, possibilitará que ele renasça ao modo de Sattva, que é o modo da bondade, do conhecimento, da busca da elevação espiritual. Essa é a ultima etapa do desenvolvimento humano, porém não garante uma superação do processo kármico. O homem Sattva, se acreditar que atingiu um estágio de perfeição pode tornar-se por demais arrogante e pretencioso e, ao invés da superação natural que essa fase proporciona, involuir.
Ultrapassadas, entretanto, essas três etapas, o homem poderá iniciar o seu processo de purificação definitiva, livrando-se da Sansara, que é o longo processo de nascimentos e mortes, ou repetidas transmigações de um corpo para outro, a que a jiva (mente) é submetida no seu processo de desenvolvimento.
A analogia da teoria das gunas com o simbolismo dos três Jubelos da Lenda de Hiram é que, no processo de desenvolvimento do espírito humano, as três gunas tem sido consideradas os três traidores do homem. A submissão da alma humana a uma delas a condena sempre a um nascimento em condição inferior. Ó objetivo de toda e qualquer disciplina de aperfeiçoamento espiritual deve ser a superação dessas três modalidades de gunas, transcendendo-as, liberando a mente de suas influências, para poder elevar-se acima das fatalidades kármicas. Note-se que o desenvolvimento do Drama de Hiram nos graus superiores do Rito Escocês tem justamente essa finalidade. Procura-se primeiro o reconhecimento da própria morte da “consciência”, representada pelo Mestre Hiram, depois busca-se descobrir, prender e justiçar seus assassinos, para, somente após sua destruição, adquirir a sabedoria que liberta. E ai, de posse da Gnose libertadora, está o irmão apto a procurar a Palavra Perdida, chave da vida e do conhecimento.
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(1) Na tradição da Cabala, cada classe de anjo tem uma função na construção do universo.
ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL", PUBLICADO PELA MADRAS ED. SÃO PAULO, 2007.
João Anatalino
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