A MISSÃO PERMANENTE DA MAÇONARIA
Autor: Rubi RodriguesINTRODUÇÃO
No mundo maçônico, uma notícia comemorada nos últimos anos diz respeito ao advento de estudos acadêmicos sobre a Maçonaria desenvolvidos por estudantes regulares do ensino superior, em diferentes universidades da Europa e das Américas (CASTELLANI; CARVALHO, 2009). A novidade foi festejada no meio maçônico em razão de ampliar o cuidado metodológico dos estudos da história maçônica, tradicionalmente conduzidos por maçons independentes que, em alguma medida, pecavam justamente quanto ao rigor metodológico das pesquisas.
Esse aporte do formalismo acadêmico, embora promissor, também desperta cuidados, tendo em vista as dificuldades que se antepõem a um não iniciado para compreender os arcanos que suportam a doutrina da Ordem e lhe definem o espírito. Não se trata meramente de compreender as razões e as motivações formais da Maçonaria, mas também de saber ler a linguagem simbólica e metafórica dos rituais, tão distante da linguagem conceitual cultivada na Academia e cujo domínio requer tempo e muita reflexão recursiva. E, mesmo assim, depois de o pesquisador ter adquirido familiaridade com os símbolos, volta e meia, surpreende-se com insuspeitos significados que sempre estiveram ali, diante dos olhos, sem serem notados.
De outro lado, a própria comunidade dos maçons, em constante renovação (Ibid., p. 517), encontra dificuldades equivalentes para interpretar e entender tanto a instituição e seus propósitos quanto a doutrina e seus desafios. A proliferação de potências e de ritos constitui evidência eloquente de dificuldades interpretativas e perdas de foco cuja acomodação se fez ao custo da unidade da Ordem. Além disso, o saudosismo recorrente sobre feitos políticos do passado (Ibid., p. 511), e as constantes reclamações e críticas dirigidas às lideranças sobre a passividade da Ordem, diante das mazelas políticas e sociais do momento, também revelam visões tencionadas, predominantemente, por olhares de curto prazo, por circunstâncias que mudam constantemente e que, certamente, não possuem escopo para justificar uma instituição secular como a Maçonaria e, muito menos, para contemplar a tradição milenar que lhe fornece os alicerces.
Compreende-se naturalmente que essa diversidade de visões constitui preço da ampla liberdade de pensar, intencionalmente cultivada (GOB, 2001), como ambiente propício tanto à geração de novos conceitos como ao resgate de significados simbolicamente preservados. Entretanto, em se tratando de um projeto que perpassa os séculos e o próprio milênio, é evidente que nenhum estudioso, seja maçom ou acadêmico, poderá contemplar adequadamente a Maçonaria, desprovido de consistente compreensão sobre as suas razões e motivações secularmente preservadas. Da mesma forma que o labor científico especializado, voltado para um aspecto particular da realidade, não pode ser realizado sem que o cientista tenha em mente as leis gerais da natureza, também a competente contemplação e compreensão da Ordem maçônica requerem a consideração de suas razões essenciais e de suas motivações permanentes.
A par dessas razões eminentemente maçônicas, cumpre destacar o novo alento que os estudos metafísicos têm recebido no meio acadêmico, em decorrência de tese oriunda das escolas de Tübingen e de Milão (SZLEZÁK, 2009), evidenciada em trabalhos filológicos (Ibidem) e historiográficos (REALE, 2004) de grande consistência, segundo os quais se impõe considerar as lições que Platão reservou e tratou exclusivamente na oralidade – identificadas sob o título de “doutrinas não escritas” – para se entender devidamente a sua obra. A força com que essa nova perspectiva vem-se impondo, inclusive no Brasil (PERINE, 2011), prenuncia uma retomada ou um novo ímpeto nos estudos acadêmicos de metafísica, fato que abre preciosa oportunidade de diálogo entre a Academia e a Maçonaria, dado que esta, apesar de valer-se de linguagem simbólica, nunca se afastou da perspectiva metafísica.
Em face dessas circunstâncias, objetiva-se, com o presente trabalho, primeiramente, lançar alguma luz sobre os arcanos que são determinantes do seu espírito e indicativos da sua missão de longo prazo, na expectativa de melhor instrumentalizar o ensino maçônico e de contribuir para que estudiosos, maçons e leigos, possam, nas suas análises, levar em conta o que a Ordem possui de mais valioso e essencial. Secundariamente, objetiva-se postular uma estrutural afinidade entre doutrina maçônica e estudos metafísicos, com base em legados de Platão, cuja doutrina não escrita adquire significados esclarecedores quando contemplada por olhos iniciados, configurando contribuição conceitual importante para todos e, em particular, para os estudos da obra de Patão orientados pelas mencionadas “doutrinas não escritas”.
Para atingir esses objetivos, contextualiza-se, em largos traços, uma tradição de Escolas de Mistério cultivadora de um conhecimento esotérico, cuja orientação ontológica encontrou terreno fértil no espírito grego clássico, empenhado em superar a cultura mitológica – mediante a busca de fundamentos da natureza que pudessem ser suportados pela razão. Esse movimento alcança seu ápice na Academia Antiga que, sintomaticamente, mantém a tradição de um conhecimento esotérico distinto do saber liberado para todos, configurando um fato apenas marginalmente contemplado nos estudos modernos da obra de Platão e que, agora, ganha relevância em razão dos novos rumos que se oferecem para tais estudos.
Uma vez detectada a presença dessa tradição esotérica no berço da filosofia ocidental, ausculta-se a doutrina maçônica a fim de identificar os seus motivos, constata-se que Platão comungava de preocupações semelhantes, tendo se dedicado intensamente à questão – particularmente no mito da caverna e no desafio que coloca ao verdadeiro filósofo. Na sequência, a fim de avaliar a extensão dessa confluência, examina-se a teoria das ideias de Platão, identificam-se limites do modo platônico de ver o mundo e constata-se que a superação de tais limites depende da sua “doutrina não escrita” ou do que Aristóteles vai designar de “teoria dos princípios” de Platão. Finalmente, aportam-se conceitos conquistados na modernidade e, com isso, logra-se alcançar, em alguma medida, os objetivos formais deste trabalho, que apenas abre uma picada no meio da floresta, indicando um percurso promissor que, virtualmente, poderá vir a recepcionar uma civilizadora autoestrada pavimentada de intenso tráfego, mas cuja consecução certamente requer árduos esforços complementares de pesquisa.
Desenvolvimento
A Maçonaria inscreve-se em uma tradição de Escolas de Mistério de orientação filosófica, cujas raízes são encontradas na mitologia egípcia. Mas, em se tratando da civilização ocidental, isso não constitui prerrogativa da Maçonaria, uma vez que a religião e a filosofia do ocidente também possuem o mesmo nascedouro.
Está demonstrada a origem egípcia das concepções básicas de Pitágoras e de Platão (JÁMBLICO, 1997) que inauguram o pensamento filosófico ocidental bem como a influência egípcia na formação do povo hebreu e na própria composição de certos relatos bíblicos, inclusive na concepção de um Deus único (GADALLA, 2003), de sorte que convém levar em conta que, embora a mitologia operasse uma linguagem simbólica e metafórica, ensejou tanto derivações religiosas de cunho místico quanto derivações filosóficas de caráter racional.
Esse fato, por si só, já evidencia que os relatos mitológicos precisam ser levados a sério e que, apesar de a sua origem ser desconhecida, a riqueza e a densidade de seus conteúdos denunciam a genialidade e a sabedoria dos seus criadores, o que também revela que a história oficial da humanidade está omitindo parte da verdade ou, no mínimo, apresenta instigante lacuna. De qualquer modo, parece perfeitamente interpretável que a mitologia egípcia representou construção pedagógica de cultura superior, visando a impregnar certos valores em uma cultura incipiente, incapaz de preservá-los como tradição racional (CAMPBELL, 1989). De certa maneira, solução similar foi adotada pelos criadores da Maçonaria especulativa, no século XVIII, quando os rituais foram concebidos. Estes registram simbolicamente certos conhecimentos que tendiam a desaparecer ou serem esquecidos, em meio a uma cultura que, inexoravelmente, voltava-se para a materialidade e para a valorização de uma ciência excludente de tais saberes, porquanto confinada ao âmbito do espaço tridimensional.
Aliás, a preservação e o cultivo de conhecimentos julgados essenciais, em contextos culturais hostis, parecem representar motivação base de boa parte das confrarias e Escolas de Mistério de que se têm notícias. Essas iniciativas, que se reproduzem no tempo a partir dos templos do Egito Imperial, passando pela Grécia Clássica antes de assumir as formas Rosa Cruz e Maçônica modernas, precisam ser consideradas seriamente, tal como se requer da mitologia. Tais iniciativas, em boa parte das ocasiões, sobreviveram à revelia do poder político estabelecido, significando que impunham aos seus membros algum grau de risco (PORFÍRIO, 1987). A adoção de um discurso exotérico distinto do conhecimento esotérico praticado na intimidade evidencia cuidados que eram tomados. Na contrapartida, isso torna também evidente que havia convicção, perspectiva de longo prazo e dedicação à causa da cultura humana, de sorte que, quando a Academia, agora, passa a estudar cientificamente a Maçonaria, demonstra que não se pode apreciar simplistamente um fenômeno social dotado de tal persistência e que convém apreciá-lo com formalismo científico.
Em face do acima exposto, entende-se pertinente procurar, no âmbito dos rituais maçônicos, as razões e as motivações permanentes da Ordem. Nesses rituais, a condição de maçom pleno é obtida com a conquista do grau de Mestre, que é conferido em uma cerimônia ritualística própria: a Cerimônia de Exaltação (GOB, 2009). Ora, se essa cerimônia confere ao obreiro a plenitude maçônica, parece justo supor que os projetistas dos rituais tenham definido, nessa ocasião, tanto o papel do Mestre como os propósitos da Ordem, uma vez que aquele somente pode ser estabelecido à luz destes.
Além de fixar, na Cerimônia de Exaltação, o ponto de partida desta investigação, cumpre considerar que se está contemplando conteúdos simbolicamente registrados, dado ser essa a linguagem do ritual que, conforme já vimos, no caso da mitologia, admite derivação tanto no sentido místico-religioso quanto no sentido filosófico-racional.
Obviamente, o presente estudo requer que se siga esta última linha, no sentido da racionalidade, por ser ela que possibilita não apenas a identificação do papel do Mestre, mas também a identificação da missão da Ordem. Curiosamente, como se verá, essa passagem do simbólico para o conceitual demonstrará o caráter essencialmente filosófico da Maçonaria e, para ser mais preciso, o caráter metafísico da Maçonaria (RODRIGUES, 2012).
Ora, sabe-se que, na modernidade, a Filosofia abandonou a linha metafísica, assumiu um caráter subjetivista, converteu-se em Teoria do Conhecimento, realizou estudos de lógica, configurou uma Filosofia da Linguagem e chegou, com Heidegger, a afirmar que Metafísica só seria possível à margem da racionalidade (MORA, 1978; MOLINARO, 2004). Somente nas últimas décadas, a percepção das “doutrinas não escritas” de Platão traz novo alento aos estudos metafísicos e promete recolocar a Filosofia no seu leito original.
Observe-se que a doutrina maçônica manteve-se fiel à perspectiva metafísica e que o desvio da Filosofia por caminhos outros comprova o acerto dos criadores da Ordem tanto no diagnóstico da situação como na solução de preservação adotada, o que indica, de modo bastante efusivo, que a Maçonaria constitui um projeto comprometido com a cultura humana e que os estudos acadêmicos que estão surgindo merecem efetivamente ser festejados.
O que nos diz a Cerimônia de Exaltação
A construção do Templo da Razão ou da mente, em todo o seu esplendor, tanto quanto a libertação do espírito da caverna das ilusões, potencializando os estágios superiores de lucidez e discernimento que a natureza faculta à espécie humana, não pode ser realizada por outro, de fora para dentro, mas apenas pelo ser que possui acesso à razão. Apenas cada um, individualmente, pelo seu próprio esforço e empenho, pode libertar a sua própria mente. Não há a mínima possibilidade de fazê-lo de modo distinto. Portanto, o que a Cerimônia de Exaltação informa-nos é que a Maçonaria constitui um projeto de libertação (SUPREMO…, 2005ª), de libertação do espírito ou da mente humana, para as suas melhores potencialidades e que o desafio do Mestre Maçom consiste, primeiramente, em realizar essa libertação em si mesmo: realizar a sua própria libertação.
A Necessidade de Passar do Simbólico para o Racional
A compreensão da missão da Ordem e do desafio do Mestre inscreve a Maçonaria na condição de promotora do processo civilizatório e de instituição a serviço da humanidade, nos mesmos moldes de outras instituições existentes, tais como escolas, universidades, igrejas, institutos de pesquisa e tantas outras. O objetivo específico, porém, de libertar o espírito das ilusões que o enganam e potencializar a competência cognitiva superior preconizada no projeto humano implica projeto de domínio pleno do ato de pensar, de modo a torná-lo um ato metódico, plenamente formalizado (RODRIGUES, 1999). Ora, saber pensar metodicamente exige um método formal de pensar, e pretender ensinar isso para seus adeptos pressupõe uma instituição que detenha e domine esse conhecimento. Isso diferencia a missão da Maçonaria e a torna uma instituição única no mundo, de vez que, pelo que se sabe, em nenhuma universidade, encontra-se uma disciplina com a pretensão de ensinar a pensar metodicamente. No máximo, encontram-se, em diferentes cursos, estratégias de desenvolvimento de capacidade interpretativa ou, então, estratégias de desenvolvimento de habilidades lógicas e metodológicas gerais.
Impõe-se perceber que libertar o espírito da matéria constitui um projeto ambicioso, caso, efetivamente, vise ao amadurecimento intelectual da espécie e a habilitação do homem para uma compreensão totalizante do universo, da natureza e de si mesmo. Algo claramente diferente e que não se confunde com as formações científicas especializadas de toda ordem que, hoje, são propiciadas nas faculdades e universidades do mundo profano; algo que deveria instrumentalizar todo homem que tenha a pretensão de desenvolver ciência sobre o universo, pois, caso a sua visão de mundo esteja equivocada, o resultado de sua ciência fica comprometido.
A questão é que a especificação conceitual e científica desse método libertador do pensar não consta dos rituais da Maçonaria, embora ele esteja simbolicamente indicado com grande destaque (RODRIGUES, 2009). A especificação formal desse método não consta dos rituais, não por deficiências na sua elaboração, mas porque, até a presente data, não apenas a Maçonaria, mas todas as Escolas de Mistério do mundo não conseguiram produzir uma descrição formal e científica dele.
Certos estudos revelaram que quem mais se esforçou para conseguir essa descrição foi Platão, tomando por base uma solução precária legada por Pitágoras (SZLEZÁK, 2008). Apesar do seu esforço, ele não logrou resolver o problema, embora tenha aportado decisiva contribuição para solucioná-lo, como ainda veremos. Na ocasião, Platão enfrentou dificuldades intransponíveis, representadas pela inexistência de certos recursos conceituais que a humanidade somente desenvolveu na modernidade. Platão e Pitágoras foram os primeiros grandes iniciados que se esforçaram para converter uma convicção, simbólica e metaforicamente descrita, em uma descrição formal, racional e, logicamente, suportada. Esse conhecimento tinha sido recolhido por Pitágoras no seio da mitologia egípcia (PORFÍRIO, 1987; JÁMBLICO, 1997; SCHURÉ, 2011) e, embora fosse absolutamente convincente, tinha apenas descrições simbólicas, possivelmente não muito diferentes daquelas usadas pela Maçonaria de hoje. Isso podia ser suficiente no âmbito de uma confraria unida pela lealdade e pelo desejo de compreender, mas era nitidamente insuficiente para conquistar mentes extramuros e ganhar universalidade.
Atualmente, a situação da Maçonaria não é diferente. Os obreiros estão todos convencidos da necessidade, da utilidade e da conveniência de libertar o espírito da matéria. Apenas não sabem como fazer isso racionalmente. Já se viu que não basta derivar para a religião e o misticismo e apelar para a fé. Esse caminho tem sido tentado pelas religiões. A solução almejada implica derivação para a racionalidade e a razão. A demanda é de elementos conceituais, solidamente amparados pela lógica, que se revelem convincentes e possam ser testados em procedimentos confiáveis, tais como aqueles preconizados pelo método científico. Portanto, impõe-se transitar do simbólico para o conceitual sob o amparo da racionalidade. Capitaliza-se, para tanto, os esforços, no mesmo sentido, desenvolvidos por Platão e, depois, acrescenta-se o que a modernidade ensina.
A TEORIA DAS IDEIAS E A RAZÃO ÁUREA DE PLATÃO
Platão percebeu que os sentidos orgânicos de percepção que instrumentalizam os homens são especializados. O ouvido ouve sons; o olho vê formas e cores; o tato sente texturas, temperaturas e formas; o gosto percebe sabores; o olfato percebe odores; e a mente compreende. Percebeu, também, ser impossível para o ouvido ver, para o olfato sentir sabor, para o olho compreender etc., sendo apenas possível a cada sentido realizar a percepção de sua própria especialidade, a percepção para a qual o sentido está habilitado. Nesse contexto, percebeu, ainda, que os homens confundiam e não distinguiam, adequadamente, os objetos de percepção do olho e da mente. Os homens acreditavam pensar o que viam, o que contrariava a especialização dos sentidos. Se o olho via o objeto, as cores e a forma da matéria, a mente pensava o que do objeto?
Platão soluciona essa questão com a sua teoria das ideias, segundo a qual a mente entende e tem acesso à inteligência organizativa que constitui a essência modeladora dos objetos. Essa essência ou inteligência organizativa ele designou de ideias ou formas. Essas ideias ou formas determinam a compleição dos objetos e constituem a essência constitutiva deles, conferindo-lhes propriedades que são identificadas como atributos. Em lugar de ideias e formas, prefere-se usar a expressão inteligência organizativa para designar essa essencialidade constituinte, uma vez que, modernamente, sabe-se que os objetos não resultam da junção aleatória de componentes, mas da articulação inteligente de certos e determinados componentes, capazes de se integrar em uma totalidade estável que resultará dotada de propriedades específicas. Nessa perspectiva, Platão encontra uma maneira simples de diferenciar os objetos de percepção da mente dos objetos de percepção do olho: “Os objetos são visíveis, mas não inteligíveis, ao passo que as ideias são inteligíveis, mas não visíveis” (PLATÃO, 2012).
Essa frase sintetiza de forma simples e clara a percepção que suporta a teoria das ideias de Platão: há um mundo inteligível distinto do mundo visível que, ordinariamente, prende a atenção dos homens. Esse mundo inteligível configura uma realidade essencial situada mais além do mundo visível imediato e se compõe de ideias ou inteligência organizativa que cumpre papel determinante da compleição e da forma desse mundo visível. Essa separação entre a instância visível e a instância inteligível proporciona a Platão um poderoso e revolucionário modo de ver o mundo que, juntamente com a sua dialética, explica o poder de sedução e a magnitude da sua obra. Pode-se esquematizar esse modo de ver o mundo da seguinte forma:
Figura 1: Modo platônico de ver o mundo. Fonte: Platão (2012)
Essa figura foi extraída de texto que antecede a apresentação do mito da caverna por Platão, no diálogo A República (Ibidem), em que o personagem Sócrates é desafiado a falar do bem em si que, na teoria das ideias, ocupa a posição de fonte a partir da qual as ideias emanam. Em outros textos, essa fonte primordial é também designada de o belo em si e também de o uno. Esse uno, em Platão, expressa a simplicidade absoluta e indivisível que antecede ao próprio número e à própria unidade quantitativa, sendo assim considerada a origem primeira do cosmos (REALE, 2004). Sócrates recusa-se a falar do bem em si – que está justamente no cerne do que, hoje, está sendo designado de “doutrinas não escritas” de Platão –, mas se dispõe a falar do filho do bem em si, o qual afirma ser muito semelhante ao pai que o gerou e que resulta ser o Sol. Essa semelhança é afirmada por ele em uma frase em que estabelece verdadeira relação áurea, ligando o mundo inteligível ao mundo visível, que exerce função estrutural semelhante à da famosa proporção áurea (1,168) que os gregos também identificaram e que, além de estar sempre presente na natureza, foi usada no Parthenon e também está ou deveria estar presente no retângulo básico que formata os templos maçônicos. Essa razão áurea pode ser expressa nos seguintes termos: “O Sol está para o mundo visível assim como o bem em si está para o mundo inteligível” (PLATÃO, 2012, 508c).
Sócrates explica aos seus ouvintes, mais ou menos, nos seguintes termos: no mundo visível, o olho vê porque possui a propriedade de ver, e o objeto e as cores são vistos porque possuem a propriedade de se mostrarem (Ibid., 507c a 509c). Nada disso pode ocorrer na ausência de luz e, no nosso planeta, a fonte da luz é o Sol. Quando começa a escurecer, a visão também vai se perdendo, até que, em plena escuridão, o olho não consegue ver mais nada.
Quando amanhece, o processo se inverte, as visões vão ficando cada vez mais claras, até que, à plena luz do Sol, tudo torna-se nítido outra vez. Ocorre, porém, afirma Sócrates, que o Sol não apenas fornece a luz que possibilita a visão, mas também é a fonte geradora tanto do olho como do objeto visto.
Atualmente, na modernidade, não se tem mais dúvida disso. O Sol é a fonte criadora não apenas da luz, mas igualmente de todos os planetas do Sistema Solar e também os mantém em órbitas estáveis, o que possibilitou o surgimento da água e de toda a vida presente na Terra e, ainda, moldou todos os sentidos de percepção dos animais e, evidentemente, também tornou os olhos capacitados para ver. Além disso, continua fornecendo a energia que sustenta toda a vida.
O mesmo processo ocorre no mundo inteligível, afirma, ainda, Sócrates. O bem em si não apenas gera a mente e a inteligência organizativa ou ideias que moldam os objetos, mas também fornece a “iluminação” que permite à mente entender essa inteligência organizativa. A diferença é que, em lugar de luz, o bem em si fornece o ser e a verdade que são os elementos com os quais esse entendimento torna-se possível. Pode-se, então, também dizer que a luz está para o ato de ver, assim como o ser e a verdade estão para o ato de entender.
Sobre o mundo visível descrito por Platão, não restam dúvidas. A ciência moderna sanciona, em termos próprios, todas as explicações dadas. Sobre o mundo inteligível, cabem algumas explicações:
A presença do ser, na mente, constitui um fato que apenas cada um pode constatar ao examinar os seus próprios pensamentos. Ao pensar, percebe-se nitidamente que, na raiz de nossos pensamentos, encontra-se o ser que somos e que constitui o operador inteligente que pensa. A presença da inteligência organizativa nos fenômenos, também, não oferece dificuldades. É evidente que um computador resulta da confecção e reunião de peças projetadas pelo homem e registradas, inicialmente, de forma escrita, em documentos/projetos. As peças que integram o computador foram construídas a partir de especificações contidas nesses projetos, e a montagem do computador deu-se em obediência à inteligência organizativa que os engenheiros registraram no projeto. À medida que a montagem realizava-se, essa inteligência organizativa foi sendo incorporada à máquina em construção e, no final, o computador tornou-se uma unidade funcional determinada por essa inteligência organizativa (RODRIGUES; RODRIGUES, 2012), a qual Platão chamaria de a ideia ou a forma do computador.
De outro lado, o bem em si é o uno, o princípio criador, o Deus das religiões e o princípio necessário da metafísica. Na Maçonaria, corresponde ao Grande Arquiteto do Universo que é aceito, aprioristicamente, como princípio (GOB, 2001), de sorte que a demonstração de sua existência, embora possível (SANTOS, 2001), fica aqui dispensada. Resta, então, falar sobre a verdade que tanto imprime inteligência às ideias quanto permite à mente entender essa inteligência organizativa.
O conceito de verdade de Platão está ligado ao conceito de beleza grego e, consequentemente, ao conceito de bem em si e belo em si. O grego entende que nem mesmo Deus poderia criar o mundo de qualquer maneira, pois tinha de obedecer às matemáticas (ARISTÓTELES, 2006), posto ser essa a única maneira da criação configurar um cosmos e não um caos. Ou seja, para os gregos, as leis da forma, do movimento e da quantidade, que correspondem em linhas gerais às ciências hoje designadas de Geometria, Lógica e Matemática, constituíam estruturas inescapáveis da existência, de modo que a criação somente pode ocorrer em âmbito de possibilidades demarcado por essas leis. Nesses termos, tanto a construção da mente e de sua faculdade de pensar como a construção da inteligência organizativa e sua faculdade de ser pensada resultam frutos do ser e da verdade (PLATÃO, 2012, 508e e 509ª). Consequentemente, o ato de entender implica reconhecimento da verdade por parte do ser, isto é, a verdade presente no ser encontra correspondência na verdade presente na inteligência organizativa do objeto e, assim, torna-se compreensão e conhecimento.
Platão ainda esclarece que o ser surge do bem em si ou do uno por transbordamento (Ibid., 508b/c), querendo, com isso, dizer que o ser não se origina do bem em si em virtude de um movimento deste, posto que o bem em si, desde Pitágoras, é concebido como ilimitado (REALE, 2004) e, portanto, necessariamente estático, já que qualquer movimento implica determinação e limitação. Hoje, seria mais adequado dizer que o ser emana do bem em si por transcendência, uma vez que o movimento transcendental encontra-se formalizado (SAMPAIO, 2001) e explica como um fenômeno pode surgir e desaparecer de um dado plano existencial, fato que constitui ocorrência comum na natureza.
Caso o leitor possa reunir um átomo de oxigênio com dois átomos de hidrogênio em condições adequadas, terá criado uma molécula de água que, antes, não existia no plano existencial das moléculas e, fazendo o inverso, fará essa molécula desaparecer da existência. Designar esse movimento de transcendência revela-se perfeitamente adequado, porque a molécula de água apresenta propriedades que não estão presentes nos seus átomos constitutivos, de sorte que a molécula de água constitui uma totalidade que se situa para além da mera soma das partes. Portanto, a ideia básica de surgimento de algo, no âmbito da existência, por transcendência, afigura-se pertinente, razoável e adequada.
Assim, constatam-se perfeitamente justificados todos os elementos usados por Platão para caracterizar e distinguir, na realidade, um mundo visível de um mundo inteligível. Apesar disso, o modelo de mundo inteligível de Platão não está fechado e completo, faltando um elemento-chave para dar-lhe consistência interna.
Platão tinha plena consciência dessa carência, embora não tenha conseguido supri-la. Esse elemento faltante constitui justamente o núcleo central das chamadas “doutrinas não escritas” de Platão, assunto do qual apenas tratou na oralidade. Observe-se que o projeto de computador acima mencionado contempla a inteligência organizativa que faz daquela máquina um computador dotado de certas propriedades e de certas funcionalidades, mas não contempla a inteligência criativa que os engenheiros utilizaram para criar o projeto, isto é, não contempla o conhecimento usado pelos engenheiros para projetar a inteligência organizativa do computador.
Da mesma forma, em se tratando da natureza, uma árvore constitui um fenômeno bem determinado por certa inteligência organizativa. Essa inteligência organizativa da árvore é muito mais sofisticada do que aquela do computador, tanto assim que possui a propriedade de reproduzir-se. Entretanto, por mais sofisticada que essa inteligência organizativa seja, não contempla o conhecimento demandado para a criação da primeira árvore.
Portanto, está faltando, no esquema de mundo inteligível retratado na figura, a indicação de uma inteligência criativa capaz de explicar como é que o ser emanado do uno, contando apenas com o apoio da verdade, consegue criar as inteligências organizativas que moldam os fenômenos existentes. Pode-se também formular essa pergunta nos seguintes termos: como é que o ser que transcende do uno consegue criar fenômenos na existência, contando apenas com as leis naturais da Lógica, da Geometria e da Matemática?
A RAZÃO DE TODAS AS ESCOLAS DE MISTÉRIO
Conseguir uma descrição formal, racional e lógica dessa inteligência criativa foi o sonho acalentado pelos mestres maiores de quase todas as Escolas de Mistério, e perceber o seu potencial enquanto ferramenta referencial ampliadora do discernimento humano, a fonte motivadora da sua construção.
Ao que tudo indica, no Egito Imperial, a percepção disponível dessa inteligência criativa, ao menos em algumas épocas, foi suficiente para gerar uma tecnologia avançada que possibilitou as obras faraônicas conhecidas. Pitágoras recolheu esse conhecimento em expressão simbólica e tentou traduzi-lo e formalizá-lo em termos matemáticos próprios da cultura grega. O resultado foi a famosa dédaca sagrada, expressa na equação 1 + 2 + 3 + 4 = 10, que constituía o cerne da doutrina pitagórica e, sobre a qual, os iniciados da escola místico-filosófica, criada por Pitágoras, juravam fidelidade à Ordem e lealdade aos demais irmãos (SANTOS, 2002; MARTÍN, 2009).
Embora essa equação constituísse um avanço sobre uma descrição meramente simbólica e expressasse o sentido geral do modelo criativo usado pela natureza na geração dos fenômenos, representava uma formalização precária e problemática, tanto assim que esses números foram definidos como números ideais (KLEIN, 1992; ARISTÓTELES, 2006) distintos dos números quantitativos. Esses números ideais não podiam ser operados uns contra os outros, tal como na matemática ordinária, mas cada um inaugurava uma série quantitativa distinta que não se misturava com as demais.
Essa descrição pitagórica da inteligência criativa foi a que Platão recebeu e não conseguiu formalizar de modo mais preciso e racional. Por esse motivo, não escreveu a respeito e tratou do assunto exclusivamente na oralidade. Supõe-se que isso se dava no âmbito privativo de uma Escola de Mistério de orientação pitagórica, que Platão operava na residência que tinha construído no jardim de Academos, onde funcionava a Academia. Nesta, tratava-se de todos os assuntos contidos nos diálogos, no entanto, quando a conversa exigia tratar da inteligência criativa, que, em termos platônicos, seria designada de forma das formas, ele desconversava e transferia para outra ocasião, a qual, supõe-se, ocorria na sua residência, para convidados criteriosamente selecionados, dentre os quais, curiosamente, ao que tudo indica, não constava Aristóteles.
Possivelmente, as descrições que Platão podia apresentar a respeito dessa inteligência criativa consistiam de menções simbólicas, de algum modo, relacionadas à dédaca sagrada em contextos que exigiam a presença de um princípio criador. Provavelmente, a liturgia praticada nessa escola, em virtude da sua orientação pitagórica, derivava fortemente da mitologia egípcia que, em pontos relevantes, confrontava a mitologia grega.
Dado que um ambiente de confraria afastava o risco de denúncia por “heresia”, tal como experimentado por Sócrates, justifica-se, em parte, tratar dessas questões apenas na intimidade. As razões fundamentais eram, porém, segundo entendemos, de ordem técnica. Faltavam conhecimentos e conceitos necessários para viabilizar a formalização desse modelo criativo, tanto assim que Platão chegou a denominá-lo de díada do grande e do pequeno, expressão que menos indicava o que ele era, indicava mais o seu alcance universal: respondia pela existência de todos os fenômenos, independentemente do tamanho e da complexidade.
Apesar dessa carência, o modo platônico de ver o mundo sintetizado na figura apresentada imprimia, nos espíritos, a certeza de que deveria existir solução. Depois de Platão, os esforços de compreensão persistem e caracterizam o movimento filosófico do Neoplatonismo; acomodam-se durante a Idade Média, virtualmente porque a Igreja Católica mantém a perspectiva como Verbo, “que era no princípio”; e, apenas na Modernidade, o despertar de uma perspectiva materialista vai gerar o movimento Rosa Cruz e a Maçonaria. Esta vai designar esse princípio criador de palavra perdida, uma palavra que deve ser buscada e denominar os seus templos de Lojas de São João, razões pelas quais se percebe mantido, na Ordem maçônica, o propósito milenar de todas as Escolas Filosóficas de Mistério: achar a palavra perdida, visando a libertar o espírito do homem preso no mundo visível da matéria.
AS DESCOBERTAS DA MODERNIDADE
O conhecimento hoje disponível permite-nos, finalmente, compreender o que a dédaca sagrada queria dizer.
A equação 1 + 2 + 3 + 4 = 10 indica o modelo matemático segundo o qual toda e qualquer existência estabelece-se como fenômeno presente neste universo. Os números 1, 2, 3 e 4 (a tétrada) indicam, respectivamente, a 1ª dimensão, a 2ª dimensão, a 3ª dimensão e a 4ª dimensão da existência. O número 10 indica a instância da totalidade dos fenômenos, a qual corresponde uma determinada inteligência organizativa.
Desde 1999, esse modelo criativo encontra-se especificado e formalizado com a denominação de logos normativo (RODRIGUES, 2011) e, na condição de estrutura ontológica, de cuja constituição apenas participam as leis naturais do movimento, da forma e da quantidade que, no geral, correspondem às ciências modernas – Lógica, Geometria e Matemática –, conforme já indicado. O título de logos normativo decorre do fato de a estrutura normatizar a existência, e a condição ontológica quer dizer que os fenômenos apenas ganham assento na existência como totalidades, o que implica afirmar que, no universo, não existe um fenômeno de segunda classe chamado parte, mas apenas totalidades (RODRIGUES; RODRIGUES, 2012).
Com isso, a complexidade, nesse modelo, resulta não da reunião de partes, mas da inteligente articulação de totalidades bem constituídas. Tratando-se de um modelo único gerador de toda existência, este possui a propriedade de se replicar ao infinito e, assim, responder pela edificação ordenada do universo em camadas de crescente complexidade, a partir de energias quânticas, passando por partículas atômicas, átomos, moléculas, organismos, sistemas planetários, galáxias até o próprio universo, sempre dentro de espaços de possibilidades determinados pelas matemáticas.
Não cabe, neste trabalho, entrar em detalhes dessa versão moderna da dédaca, pois existem livros tratando disso (RODRIGUES, 1999). Cabe, porém, ressaltar que essa solução torna-se, hoje, viável por ser possível admitir uma geometria dimensional (uma métrica da amplitude?), situada para além das geometrias não euclidianas.
Pode-se igualmente pensar uma ciência de múltiplas lógicas, situada para além da lógica clássica única de Aristóteles e, ainda, ser defensável a possibilidade de uma matemática de múltiplos graus de infinidade demandada pelo modelo. Além disso, a Mecânica Quântica, ao constatar a presença de fenômenos que desobedecem às leis do tempo e do espaço – 4ª e 3ª dimensão, respectivamente –, abre espaço para uma retomada da Metafísica e para a reutilização do conceito de transcendência. A própria Astrofísica, com o convencimento de que o universo teve um começo, enseja modos de pensar impossíveis de serem alcançados na antiguidade grega.
Há, ainda, outras conquistas conceituais que facilitam o entendimento e a formalização dessa inteligência criativa, mas as citadas parecem suficientes para justificar por que Pitágoras e Platão não conseguiram realizá-lo.
CONCLUSÃO
Com o advento do logos normativo formalizando a inteligência criativa, superam-se as críticas de Aristóteles sobre a Teoria das Ideias de Platão (ARISTÓTELES, 2006), e o modo platônico de ver o mundo estabelece-se como modelo completo dotado de rigorosa consistência interna. Basta substituir, no esquema platônico de mundo inteligível, a palavra verdade pela expressão logos normativo, e o modo platônico de ver o mundo torna-se referência adequada para orientar o trabalho maçônico de libertar os espíritos da materialidade. Com essa conquista conceitual, a Maçonaria do século XXI completa a transição do simbólico para o racional que todas as escolas da tradição almejaram, disponibiliza para os homens um método capaz de superar as ilusões do mundo visível e um modo formalizado de pensar a totalidade que, no caso da totalidade da espécie, potencializa um novo padrão civilizatório.
A missão permanente da Maçonaria consiste, sim, como afirmam os rituais, em projeto de libertação da humanidade do mundo ilusório da materialidade. Um espírito preso na matéria significa uma mente estreita cuja visão não ultrapassa o mundo sensível e acredita que o universo está contido no âmbito do espaço tridimensional. Uma mente presa no mundo visível debate-se em uma missão impossível de pensar um visível que não é pensável. Na verdade, esse homem comunga da visão de mundo que todos os demais animais possuem e vive no devir espaço-temporal em constante sobressalto, em face dos conflitos dialéticos com suas circunstâncias. Para esse homem, a civilização é selvagem, os problemas sociais são insolúveis, e a paz e a fraternidade, impossibilidades, em razão do egoísmo estrutural.
Dado que uma sociedade de homens presos ao mundo visível não tem futuro, além daquela pós-modernidade possibilitada pela animalidade, a Maçonaria dedica-se a formar Mestres Maçons, desafiando-os a libertar o seu espírito da matéria, desafiando-os a superar o mundo visível, a abrir os olhos para o mundo inteligível e a descortinar as superiores potencialidades da espécie, o que fez, até o presente momento, invocando imagens simbólicas e argumentos alegóricos. Com os legados da tradição e as descobertas em curso na modernidade, passa a oferecer recursos metódicos e racionais como apoio para essa travessia. A partir de agora, libertar o espírito da matéria constitui procedimento racional plenamente normalizado. Seu pré-requisito: entender e saber operar a inteligência criativa geradora dos fenômenos manifestos na existência. Em outros termos: compreender os axiomas e os modos da existência.
A missão permanente da Maçonaria e de todas as Escolas de Mistério da tradição perante a humanidade implica verdadeiro sacerdócio, na medida em que procura resgatar os homens do mundo das ilusões – da caverna metafórica de Platão – e os colocar no mundo inteligível, em presença do princípio criador e do ser atemporal que edifica o mundo. Constitui um sacerdócio legítimo porque, apesar dos contextos adversos, empenha-se em instrumentalizar os homens e suas mentes para um entendimento superior do mundo e da sua própria existência e, assim, perceber o poder construtivo que despertaria uma humanidade que trabalhasse harmônica e cooperativamente. Para cumprir essa missão – que poderia e deveria ser compartilhada por todos os sacerdotes do mundo –, a Maçonaria exige do Mestre Maçom que se dedique ao estudo e se habilite para esse sacerdócio, o qual se revela superior na medida em que, ao invés de submeter os homens a qualquer doutrina que lhe seja exterior, quer mesmo é que cada um seja capaz de, por si mesmo, encontrar, no seu interior, as leis permanentes do universo e que decida o que é conveniente para si e para a espécie.
A missão da Academia e, em particular, das Faculdades de Filosofia empenhadas na formação de verdadeiros filósofos – segundo a concepção platônica – não é diferente: também objetivam facultar aos homens a saída das cavernas e colocá-los frente do mundo inteligível. Certamente, um Platão iniciado, metafísico e pitagórico enseja estranheza e conflitos em mentes educadas sob princípios científicos que sub-repticiamente criam também preconceitos de linguagem. Superados estes, conclui-se que a tese apresentada retira parte do véu que encobria a teoria dos princípios de Platão, a qual acompanhava Pitágoras na percepção de que os princípios primeiros eram constituídos do ilimitado e do limitante: indicações normativas das naturezas absoluta e relativa que, segundo a razão e a lógica, recepcionam a existência. Nessas condições, resulta que a dédaca pitagórica indica a estrutura dimensional segundo a qual o limitante, condicionando o movimento existencial do ser, constitui e molda toda a existência relativa. A fundamentação última dessa interpretação demanda certamente um exame ontológico que não cabe no plano de um artigo, mas, apesar disso, contabiliza-se uma hipótese de solução teorética para as “doutrinas não escritas” de Platão, em contribuição que se soma às justificativas histórico-hermenêuticas ofertadas pelas escolas de Tübingen e de Milão.
Atendida a racionalidade, conceda-se espaço ao delírio que enriquece a humanidade. Este planeta é um paraíso. É uma ilha-paraíso em meio a uma vastidão galáctica hostil à forma humana de vida. Pensar este planeta como uma maçã cósmica sendo devorada por vermes constitui apenas uma alternativa superável. O homem pode superar o casulo animal e se transformar em jardineiro cioso e orgulhoso de seu jardim. Empenhar-se metodicamente para que isso aconteça constitui oportunidade que se oferece a professores e maçons do século XXI. A estes, a história reservou, como missão ou oportunidade, completar os esforços das escolas de sabedoria de todos os tempos e concluir um projeto virtualmente surgido na mente dos sábios que formularam a mitologia egípcia há mais de cinco mil anos, qual seja, o de preservar, na cultura humana, perspectiva metafísica e ontológica que faculta e conduz naturalmente ao desvelamento dos axiomas da existência.
Por quê? Porque o seu conhecimento permite superar a animalidade estrutural da espécie, amadurece as mentes ao revelar as leis constitutivas do universo e, com isso, potencializa uma civilização centrada no ser que, verdadeiramente, constitui-nos. Pode-se, é claro, enquanto espécie, continuar sendo apenas um acidente cósmico, mas pode-se, também, converter a humanidade em caso de sucesso do ser que edifica o universo.
Autor: Rubi Rodrigues
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