CRONOS E KAIROS: OS MATIZES DO TEMPO
ARTIGO 4
Extraido do Blog O ponto dentro do Círculo
O KRONOS DEVORA! A INTRIGANTE RELAÇÃO ENTRE TEMPO E TRABALHO NA MODERNIDADE
Vivemos em momentos, pelo menos nos centros urbanos, em que a corrida contra o tempo, na busca da realização dos afazeres cotidianos, tornou-se práxis na vida do homem moderno. A impressão que temos é que, o tempo é pouco para realização de tantas tarefas que nos cabe no dia a dia, mas, nem sempre foi assim. A relação que o homem moderno estabelece com o seu tempo e suas tarefas, atividades, trabalho, tem um histórico precedente, característico de inúmeras questões relacionadas a Modernidade, e hoje, ainda que este não perceba, a intrigante relação entre tempo e trabalho, continua sendo um desafio, que nos leva a considerar que o Kronos (tempo), de fato devora!
No panteão de divindades greco-romanas o Kronos era uma divindade grega, o Saturno dos romanos. Era senhor do universo, mas, com medo de um de seus filhos destroná-lo, assim que nasciam, os devorava. Nesse caso, o único filho a escapar foi Zeus. A mitologia acrescenta que Zeus não foi devorado por Kronos, pois sua mãe teria colocado no lugar dele uma pedra. Quando ele cresce, obriga seu pai a vomitar os seus irmãos, e então, prende todos eles. 2 Conforme Martins, Aquinoll, Sabóiall e Pinheiro (2012, p. 220, 221), o “Kronos representa esse tempo que todos conhecemos, contado em 24 horas para um dia. O passado sucedido pelo presente, que será ultrapassado pelo futuro.” Consideramos que, assim como o Kronos devorava seus filhos, o tempo tem devorado o homem na Modernidade.
Ao longo da história, o homem tem se adaptado de forma diferente ao tempo e ao seu trabalho, e na Modernidade, essa relação se torna ainda mais curiosa.
Denomina-se Modernidade, o período que configura a modificação na cosmovisão do homem em relação ao mundo desde o século XV até os dias atuais. Essa compreensão diferencia-se de classificações histórico-antropológicas, pois estas, dividem a existência do homem “em períodos (Pré-história, Idade Antiga, Média, Moderna, Contemporânea) a partir de mudanças naturais (geológicas ou biológicas), sociais ou fatos políticos relevantes” (HANSEN, 2000, p. 51 e 52). A sociedade moderna nasceu com a ruptura da ordem de um mundo sagrado, dando lugar a separação, e a interdependência da ação racional instrumental do sujeito pessoal (TOURAINE, 1998, p. 228). Com os tempos modernos, o homem se tornou o centro do universo, e todo conhecimento passou a relacionar -se estritamente com a razão. Posteriormente, a ideia de progresso ocuparia um lugar intermediário, central, entre a racionalização e o desenvolvimento, relacionando a crença no progresso, ao amor pelo futuro (TOURAINE, 1998, p. 72). Coelho (2005, p.65), a partir da concepção de Augusto Comte, observa que a ideia de progresso, era uma concepção fundamental para o desenvolvimento, e o progresso era entendido, sobretudo, para além dos limites de melhoria de condições materiais, servindo como um promotor de excitação da intelectualidade no predomínio da razão. O agir do homem não seria mais definido por uma vontade divina, mas pelo próprio sujeito que passava a dar significado à sua existência, tornando-se responsável por seus próprios progressos e fracassos (CRUZ, 2011, p. 34).
A modernidade trouxe em sua configuração inúmeras mudanças para a vida do homem, e entre elas, a mudança relacionada ao tempo e trabalho, profundamente marcada a partir da revolução industrial. Antes disso, o tempo de produção de um trabalho, era determinado pelo próprio trabalhador, e sua recompensa estava vinculada a produção de um determinado serviço. O que estava em foco era a tarefa e não o tempo que ela consumia (MARTINS; AQUINOLL; SABÓIALL; PINHEIRO, 2012, p. 222).
Linhares e Siqueira (2014, p. 106 e 107), ao considerar a posição de Bauman (2001), Cugini (2008), e Basílio (2010), explicam que:
O conjunto de transformações que marcaram a história da humanidade, principalmente pós revolução industrial contribuiu para a fecundação de um novo mundo, um mundo líquido, caracterizado por contínuas transformações do mundo do trabalho, que à luz da metáfora baumaniana, revelou-se líquido, já que caracterizado pela incerteza, fluidez e demanda por agilidade, elementos que contribuíram para a precarização das condições laborais impostas aos trabalhadores.
Esse novo modelo de sociedade (industrial), gerou uma mobilização, que caracterizou a classe operária como um exército do trabalho, tornando-os, servidores do lucro (TOURAINE, 1998, p, 270). Com o mundo moderno veio também as profundas rupturas e transformações na ordem das coisas, e a promessa de um novo mundo, que seria admirável. A demanda por força de trabalho, e o tempo gastos com este, foram priorizados, de forma que a produção em larga escala passou a ser necessária. O tempo tornou-se impessoal, veloz e devorador. Os rastros de um tempo múltiplo, litúrgico e eterno expresso por catedrais e obadias medievais, foram apagados, e em seu lugar surgiram as chaminés das fabricas, o relógio, e o trabalho industrial e produtivo (CARVALHO, 1996, p. 128).
Touraine (1998, p.87), ao retratar a postura de Marx frente a industrialização, expõe que:
[Marx] observa um mundo industrial onde os homens são reduzidos a um estado de mercado, onde o salário tende a baixar ao nível da simples reprodução biológica da força de trabalho, onde o “ser genérico” do homem é destruído pela dominação do dinheiro, dos objetos e das ideologias individualistas. […] Ora, esta prática consiste antes de tudo nas relações sociais de produção.
A monetarização da economia e o crescimento do mercado consumidor, que tornou-se o alicerce no surgimento do capitalismo, acabou adotando duras mudanças na produção e relações de trabalho (MARTINS; AQUINOLL; SABÓIALL; PINHEIRO, 2012, p. 224), submetendo trabalhadores em uma organzação que violaram sua autonomia profissional. Fez do trabalhador, apenas instrumentos do lucro, ignorando totalmente suas questões fisiológicas, psicológicas e sociais (TOURAINE, 1998, p. 99). Como consequência, essa força de trabalho instaurada em um mercado competitivo e impessoal, ocasionou inúmeras mudanças na vida das pessoas (BERTAMONI, 2009, p. 22).
Linhares e Siqueira (2014, p. 107) referindo-se a concepção de Antunes (2011) sobre a liquidez da modernidade, retratam ainda outras adaptações e transformações que foram ocorrendo, concernentes ao trabalho. Essas mudanças englobam:
[…] redução do proletariado fabril, industrial e manual; desemprego estrutural; surgimento da sociedade de serviços (setor terciário) e da era da informatização do trabalho; enorme ampliação do assalariamento no setor de serviços; flexibilização da jornada e do local de trabalho; fim da estabilidade no emprego; maior demanda por profissionais mais qualificados (administradores, especialistas, técnicos, funcionários administrativos e de vendas); significativa heterogeneização do trabalho; crescente incorporação do contingente feminino no mundo operário; expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e terceirizado, além da complexificação da classe trabalhadora.
Essa Modernidade, que muda radicalmente as questões relacionadas ao trabalho, vai interferir diretamente na vida do homem, e nesse cenário, continuará alterando os seus costumes de vida, tradições e hábitos. A produção e consumo, bem como a circulação de mercadorias vão ocorrer sem pudor, e marcados pelo utilitarismo, o homem será desafiado a acompanhar as transformações atribuídas à ele (LINHARES e SIQUEIRA, 2014, p. 107).
Hansen (2000, p.54) expõe que, o homem moderno, tem sido atropelado por informações que chegam a todo momento e ao mesmo tempo, interferindo na maneira que este lida com o tempo. Vive apressado, com a impressão de que o tempo lhe foge diante das inúmeras exigências por metas e prazos a cumprir. Além disso, os seus espaços físicos foram reduzidos, e as pessoas, que apesar de estarem aparentemente próximas, passaram a interagir socialmente de forma superficial.
Touraine (1998, p. 216), aborda:
[nos] nossos dias, a imagem mais vivível da modernidade é a do vazio, de uma economia fluida, de um poder sem centro, sociedade muito mais de troca que de produção. Resumindo, a imagem da sociedade moderna é a de sociedade sem atores.
O homem, que antes era sujeito e ator do seu tempo, utilizando-o de forma participativa e compartilhada, passa a ser submisso a ele, realizando os seus afazeres de forma individual e impessoal, na tentativa de dar conta das muitas tarefas que lhes são atribuídas.
A solução para essa questão parece torna-se possível, mas, apenas por meio da reapropriação da consciência perdida, da fala, do desejo, e do resgate a autonomia, promovendo a capacidade de pensar e agir de forma crítica sobre a organização do seu próprio trabalho (LINHARES e SIQUEIRA, 2014, p. 110).
Por fim, entendemos que o tempo e o trabalho, radicalmente alterados com a modernidade, devem promover reflexões, na tentativa de não permitir que estes nos escravize ou devore, mas, contribua ao nosso favor.
Autora: Bernadete Alves de Medeiros Marcelino
*Bernadete é aluna do programa de pós-graduação em ciências da Religião (Mestrado), Universidade Mackenzie
Fonte: Revista Pandora Brasil
Referências bibliográficas
BERTAMONI, Hélia Fraga Gomes. Entre Cronos e Kaerós: a auto-percepção da idade na velhice. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 13 Nov. 2015. COELHO, Ruy. Individuo e Sociedade na Teoria de A. Comte. São Paulo: Perspectiva: Cesa – Sociedade Científica de Estudos da Arte, 2005. CRUZ, Daniel Nery da. CARDOSO, João Santos. A discussão Filosófica da Modernidade e da Pós – Modernidade. Revista Eletrônica Print by, nº.13, p. 33-46, São João Del-Rei, 2011. Disponível em: . Acesso em: 16, Non. 2015. HANSEN, Gilvan Luiz. Espaço e Tempo na Universidade. Geographia. Ano. II nº. 3, p. 51-67, Londrina, 2000. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015. LINHARES, Roziano Linhares; SIQUEIRA, Marcus Vinícius Soares. Um diálogo entre a psicodinâmica do trabalho e a sociologia clínica no universo da modernidade líquida. Revista Interinstitucional de Psicologia, v. 7 nº1, p. 106-118, jan – jun, 2014. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015. MARTINS, José Clerton de Oliveira; AQUINOLL, Cássio Adriano Braz de; SABÓIALL, Iratan Bezerra de; PINHEIRO, Adriana de Alencar Gomes. De Kairós a Kronos: metamorfoses do trabalho na linha do tempo. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 15, nº. 2, p. 219-228, 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 Nov. 2015. SABÓIA, Iratan Bezerra de. Cronos e Kairós: reflexões sobre temporalidade laboral e solvência social. Dissertação de Mestrado. Universidade do Ceará, 2007. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Petropólis: Editora Vozes, 1998. SITE: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mitologia_grega
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