sexta-feira, 27 de outubro de 2017


CRONOS E KAIROS: OS MATIZES DO TEMPO
ARTIGO 2

Extraído do Blog  O ponto dentro do Círculo


KAIRÓS X CHRONOS: O TEMPO DE TODAS AS COISAS

Mark Freier, em seu artigo sobre o tempo, Chronos and Kairos (2006), reflete sobre a ironia da tecnologia que proporciona rapidez quanto ao fluxo de informações e, ao mesmo tempo, nos brinda com uma sensação de que não há tempo suficiente. Freier prossegue introduzindo uma explicação deste fenômeno oferecida por Christie e Bruun (2003), que elencaram quatro aspectos sobre a atual percepção de tempo:

1) o tempo está padronizado e mecanizado, ao invés de estar baseado nos sinais da natureza, como a maré e a lua;

2) o tempo está segmentado – anteriormente, a divisão entre manhã e tarde seriam suficientes, mas, hoje, os dias precisam ser meticulosamente medidos em horas, minutos e segundos;

3) o tempo tornou-se perturbador – no século XVI havia um único relógio para lembrar toda a comunidade do horário de despertar, ir à igreja e dormir – hoje, é impossível escapar do tempo, pois o “tique-taque” de tantos relógios não pára;

4) houve uma mudança no caráter do tempo: de subjetivo, sutil e com fluxo sazonal, tornou-se onipresente, objetivo e linear, com uma construção cronológica, diminuindo a cada segundo que passa.

Para abordar a origem da palavra tempo, Freier reporta-se à pesquisa chronos (xρόνος) e kairós (καιρός): a primeira (chronos) refere-se ao tempo cronológico e sequencial, como aquele medido pelo calendário. Implica em ordem, ritmo, previsibilidade. A outra (kairós) é mais vaga, complexa e dependente da cultura, sem equivalente preciso em nosso idioma, algo parecido com “tempo oportuno” – o momento de um período indeterminado de tempo no qual “algo” especial acontece. Os mais pragmáticos poderiam dizer que chronos é tempo quantitativo, ao passo que kairós é qualitativo e não pode ser medido. Freier recorda a distinção de tempo adotada pelo filósofo francês Henri Bergson: tempo verdadeiro (real) x falso – “la durée pure” (duração pura do tempo) não medido pelo relógio.

Elisabete Sofia Lepera (2004, p. 18) conta que, na mitologia grega, o deus Kairós possuía pés alados, permitindo-lhe andar em muitos níveis de consciência. Era o deus que representava o princípio da sincronicidade. Na mesma obra, reportando-se a Joseph Campbell (2004, p. 18), faz uma reflexão sobre o momento em que um ser humano olha para o passado e reflete sobre sua própria história, os acontecimentos e as pessoas que cruzaram seu caminho e como esse “refletir” sobre o tempo que passou parece transmitir a sensação de que havia uma ordem e um plano consistentes, e que aquilo (pessoas e acontecimentos que influenciaram sua vida e vice-versa) que parecia ser acaso tornou-se posteriormente fundamental na composição do enredo da história. Isso se movimenta e se ajusta em todas as pessoas e em todos os lugares de forma sincronizada, como em uma sinfonia, estruturando o sistema.

O autor do livro de Eclesiastes também discorre sobre o tempo e reflete: há tempo de guerra e tempo de paz, tempo de rir e tempo de chorar, tempo de plantar e tempo de colher o que se plantou. Isso implica em que, enquanto uns estão no seu tempo de guerra, outros, simultaneamente, estão em tempo de paz e assim sucessivamente. Enquanto uns estão no seu tempo de rir, outros, ao mesmo tempo, estão em tempo de chorar. Enquanto uns estão no seu tempo de plantar, outros, concomitantemente, estão em tempo de colher. Enfim, sugere incoerência ou incompatibilidade entre o kairós e o chronos de uns e outros.

Independente de onde alguém possa estar hoje, no hemisfério norte ou sul, no oriente ou ocidente, é impossível (aos humanos sadios) não lamentar o terror experimentado na capital francesa: uns estão em tempo de paz (os que viviam despreocupadamente) e outros, em tempo de guerra (homicidas e suicidas).

Houve um tempo em que os cristãos entendiam que era tempo de evangelizar o mundo e para isso, os militantes invadiam povoados e impunham sua concepção de verdade porque entendiam que era tempo daquelas pessoas aderirem ao cristianismo. Aqueles eram os tempos das Cruzadas (os militantes que compunham aqueles exércitos se percebiam como soldados de Cristo).

Após um longo tempo, os líderes do cristianismo reconheceram que aquele tempo, quando tentavam impor sua cosmovisão, foi um tempo de erros.

O tempo das Cruzadas passou. Estamos em tempos de Isistadas e Alcaetadas (desculpe o neologismo): militantes de um exército radical que, argumentando estar agindo em nome de Maomé, seguem os modelos e os passos dos militantes das Cruzadas.

Nunca será tempo de conquistar nada com violência. O cristianismo parece ter aprendido esta lição. Gandhi e Mandela provaram isso ao mundo.

Mas é tempo de fazer uma confissão: sou cristã. Aderi ao cristianismo. Em principio, por exclusiva racionalidade, pois uma vez que estamos no ano 2015 depois de Cristo, é incontestável que Cristo viveu há 2015 anos e sua mensagem tinha como foco o amor (a Deus e ao próximo). Isso já bastaria para ser seu seguidor. Mas C.S. Lewis pondera sobre um aspecto que leva à fé racional: “um simples homem que ensinou as coisas que Jesus ensinou e se posicionou da forma como o fez não poderia ser considerado meramente um mestre especial. Ou Jesus é quem afirmou ser ou então deve ser encarado como um lunático – aquele tipo de pessoa que afirma ser uma omelete – ou o demônio. Decida.” (tradução livre, Book II, ch. 3).

Enfim, por ser cristã, não creio em reencarnação. Mas diante da tragédia na França, pondero da mesma forma como fez o homem citado em Lucas 16 (aquele que pediu para que Lázaro voltasse à terra e conversasse com sua família de modo que não tivessem o mesmo destino que ele): será que o profeta Maomé não poderia deixar o lugar onde está, voltar para esta terra e repetir em voz audível: “A verdadeira riqueza do homem é o bem que ele faz neste mundo”; “Não é forte quem derruba os outros; forte é quem domina a sua ira (Maomé, 82)”; “A pior forma de covardia é testar o poder na fraqueza do outro”; “Uma boa ação é aquela que faz aparecer um sorriso no rosto do outro”; “Retribui o mal com o bem, e eis, aquele entre o qual e vós houvesse inimizade, se tornaria vosso sincero amigo. Corão 41,34”.

Não conheço o Corão. Essas são apenas algumas frases colhidas na internet, mas apontam um padrão completamente incompatível com aqueles que os radicais têm adotado. A esses, fica nossa mensagem: é tempo de refletir qual é o sentido em não comer esse ou aquele alimento para não se contaminar, mas sujar as mãos com tanto sangue. O que contamina mais? Tocar um alimento que depois de digerido é excretado ou pegar em armas e infectar-se com o sangue alheio ao tirar a vida do seu próximo?

É tempo de refletir sobre a incoerência de investir bastante tempo rezando e depois gastar outro tanto de tempo planejando como destruir a vida dos semelhantes.

Os cristãos há muito concluíram que proporcionar liberdade de escolha é uma forma de propagar sua fé. Jesus fez isso.

É tempo de refletir: se os cristãos propagassem essa mensagem com mais vigor talvez pudessem fazer os radicais muçulmanos perceberem que copiam o equivocado modelo dos militantes das Cruzadas e da Inquisição.

É tempo de refletir: quem vai dar o primeiro passo em relação aos seus pecados: os cristãos, proclamando em todos os lugares e em voz mais audível o quanto seu passado os condena por tentar impor sua religião? Ou os radicais muçulmanos, que pensando estar defendendo a mensagem de Maomé, seguem precisamente os passos dos cristãos das Cruzadas e da Inquisição?

Talvez o primeiro passo seja daqueles mais fieis e coerentes com suas crenças.

É tempo de rever a história. Deus, ou Allah, permitiu, conforme o relato do livro de Ester, que o império persa, na época de Xerxes, subjugasse os judeus. O livro descreve as condições da Pérsia, a sofisticação e a generosidade daquele imperador para com seus súditos e sua tolerância em relação à religião: sob o domínio Persa, os judeus podiam exercer sua fé e praticar seus ritos. E havia prosperidade na Pérsia. Era tempo de prosperidade. Até que um elemento, apenas um (Haman), decidiu que sua intolerância religiosa deveria se tornar uma questão de Estado. Quase conseguiu. Mas Xerxes tomou as providências necessárias para garantir liberdade religiosa dentro de seu domínio.

As Cruzadas provaram ser batalhas insanas.

Há um provérbio que diz: errar sobre a mesma questão implica em voltar a comer o próprio vômito. Os radicais estão fazendo pior do que comer seu próprio vômito: estão comendo o vômito dos cristãos.

Os cristãos atacaram não cristãos. Os nazistas, os judeus. Os radicais muçulmanos, os não muçulmanos. Os países atacados, atacam. É um círculo vicioso que não tem fim. É assim que o mundo tem gerenciado seus conflitos e não há uma proposta diferente. É um antigo paradigma, como ensinou Thomaz Khun. Mas está esgotado. É tempo de adotar outro, com novos meios, instrumentos e abordagens.

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, em seu artigo sobre comunidades muçulmanas no Brasil, aborda a quase incrível participação do shaykh Mahdi na conciliação dos interesses desde sempre conflitantes entre sunitas e xiitas, fazendo-os conviver pacificamente, em Curitiba, após criar um consenso e adotar doutrinas comuns do Islã, incorporando valores e práticas do universo cultural árabe.

É por essa razão que eu, cristã, com todo o respeito, honra e dignidade devidos ao shaykh Mahdi, proponho a um muçulmano: ajude a encontrar uma solução para esses conflitos. Os resultados obtidos em Curitiba lhe credenciam para interferir nesse processo e sugerir um novo paradigma.

Que Deus, ou Allah, nos abençoe.

Autora: Nadir Chagas Ribeiro dos Santo

*Nadir é aluna do Programa de Pós-Graduação, Mestrado, em Ciências da Religião da Universidade Mackenzie.


Referências bibliográficas

Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo e Barueri. Editora Cultura Cristã. 1999. LEPERA, Elisabete Sofia. Sincronicidade: o tempo de Kairós na psicoterapia. Contribuições da abordagem sistêmico-simbólica. 1ª edição. São Paulo. Vetor. 2004 PEREIRA, João Baptista Borges. Religiosidade no Brasil. São Paulo. Edusp. 2012.

Internet:

Freier, Mark. Chronos and Kairos: Intoxication and the quest for transcendence. 2006. Disponível em www. academia.edu . Acesso em 14/11/15. Lewis, C.S. Mere christianity. Book II, ch. 3. Disponível em http://www.churchleaders.com . Acesso em 14/11/15

Websites:

www. academia.edu . Acesso em 14/11/15


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