quinta-feira, 11 de junho de 2020



A HIPÓTESE DE DEUS


Não faz muito tempo que os cosmologistas começaram a aceitar a possibilidade de que o universo pode ser uma estrutura perfeitamente planejada e que ele está sendo construído de certo modo. A crença de que ele era estático e igual em toda a parte passou a ser substituída pela ideia de um “ser” em constante evolução, onde as leis naturais funcionam como uma espécie de “constituição” reguladora desse processo.

Neste sentido, esses cientistas começaram até a considerar a possibilidade de uma chamada ‘Hipótese Deus”, admitindo finalmente a existência de uma Mente Universal na origem desse planeamento. Estas constatações têm sido facilitadas pelos próprios métodos científicos utilizados por esses estudiosos nas suas investigações, que mostram, na organização estrutural da matéria física, uma perturbadora semelhança com a organização do próprio universo na sua estrutura cósmica. Com estas coincidências, perfeitamente prováveis por medições científicas, já não é mais possível admitir, de pleno, que o universo seja regido unicamente por leis mecânicas, sem uma Vontade a organizar esse processo, como antes se admitia no meio científico.

Simon Laplace, o famoso matemático, por exemplo, dizia que Deus era uma hipótese perfeitamente desnecessária. Mas quando se olha a estrutura de um átomo e a estrutura de um sistema planetário, não podemos deixar de perceber a estreita semelhança existente entre as duas. É nesse sentido que a pesquisa da estrutura da íntimo da matéria tem revelado aos cientistas o segredo da constituição do universo, e nele cada vez mais se nota a presença de uma “Vontade” que o governa.

Hoje sabe-se que o universo é constituído de tal modo que é difícil, se não impossível, não pensar numa ordem natural a gerir o processo da sua formação. Esta constatação é sugerida pelo facto de que se pode reconhecer, no processo de geração da matéria universal, a existência de três funções que seriam impossíveis de ser encontradas numa ordem puramente mecanicista: a complexidade, que permite aos elementos componentes da matéria física organizar-se em graus de complexidade cada vez maiores; a mutabilidade, que permite a mudança gradativa das suas composições e a perenidade, que admite a mudança da sua estrutura sem, no entanto, eliminar as propriedades particulares dos seus componentes.

Tudo isto só é possível na existência de um Sistema perfeitamente planeado, como bem o definiu Mallowe [1].

Num dos seus mais interessantes trabalhos, o físico Stephen Hawking situa o início do tempo no momento de nascimento do universo conhecido, momento esse chamado de big-bang [2].

Assim, o tempo, para os cientistas, começou junto com o espaço, e por isso ele sempre é representado por duas linhas que começam num ponto zero e se alongam na mesma proporção, em setas orientadas em duas dimensões: a dimensão do tempo, que nos faz pensar em eternidade e a dimensão do espaço, que nos faz pensar em infinidade.

Quando se começa a especular sobre este tema, surge a intrigante pergunta: Se foi Deus que fez o universo, o que Ele era e o que fazia antes de começar a fazê-lo? Ele já existia antes disto? Ou Ele “nasceu” junto com o universo?


“Há cerca de 15 bilhões de anos”, escreve Hawking, “todas (as galáxias) teriam estado umas sobre as outras, e a densidade teria sido enorme. Este estado foi denominado átomo primordial pelo sacerdote católico Georges Lemaiter, o primeiro a investigar a origem do universo que agora chamamos de big-bang.”

A partir deste momento, segundo esta tese, o universo, que estava contido nessa região extremamente carregada de energia, tornou-se uma imensa bolha de gás que nunca mais deixou de se expandir [3].

A Bíblia, ao registar este facto não é menos metafórica e misteriosa do que os compêndios científicos que procuram explicar como o universo nasceu. Ela fala que “no início Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia e as trevas cobriam a face do abismo.” E então, do meio às trevas Deus fez sair a luz. E Deus viu que a luz era boa e por isso a separou das trevas [4].

O texto bíblico parece sugerir que Deus já existia antes de começar a fazer o universo. Assim, Ele não pode ser o universo, como sustentam os adeptos do panteísmo, que identificam Deus com a sua própria criação, como se esta fosse algo capaz de existir por si própria [5].

A Bíblia identifica Deus como “o Espírito que se movia sobre as águas.” Expressão enigmática que nunca pode ser explicada a contento dentro da lógica comum, já que, se o mundo ainda era puro trevas e a terra era informe e vazia, que “águas” eram essas sobre as quais o Espírito de Deus se movia? Pois, ao que parece, elas já existiam antes de Deus separar a luz das trevas. No entanto, a luz das modernas especulações, juntamente com as inspirações trazidas pelo estudo da Cabala, a Bíblia, na verdade, dá-nos uma identificação e uma ideia do que era Deus antes de começar o mundo: Ele era “Espírito”, seja qual for o significado que o cronista bíblico quisesse dar a essa expressão. Ou seja, ele era a energia dos começos, “que girava sobre si mesma” compactando-se e gerando pressão sobre um centro, que a certo momento, teve de se romper.

Mas uma pergunta ficou sem resposta: O que Deus fazia antes de começar o mundo?

Estas especulações tornaram-se tão intrigantes que os próprios rabinos, produtores e comentadores dos textos bíblicos, tiveram de quebrar a cabeça para responder à multiplicidade de perguntas que surgiram a esse respeito. Foi então que nasceu, entre os mestres cabalistas, a chamada Grande Assembleia Sagrada, que se refere a um grupo de rabinos dedicados ao estudo da personalidade do Ser Supremo, a sua natureza e os seus atributos. Das especulações produzidas por esse grupo surgiu a chamada Siphra Dtzenioutha, conhecido como o “Livro do Mistério Oculto”, parte mais misteriosa do Sepher há Zhoar, a bíblia cabalista [6].

Para responder á intrigante pergunta de quem (ou o que) era Deus e o que fazia antes de começar a fazer o universo físico, estes estudiosos criaram os conceitos de “Existência Negativa” e “Existência Positiva” termos utilizados pelos cultores da Kabbalah mística para designar Deus “antes” e “depois” de fazer o mundo. Neste sistema, Deus (Ain em hebraico), é visto como uma forma de “energia” que em dado momento se expandiu para fora de si mesmo, tornando-se o universo material (Ain Sof Aur- איןוף). Este termo, na Kabbalah, significa Luz Ilimitada. É a luz que se espalhou pelo nada cósmico, dando origem a tudo que existe. Esta visão mística do nascimento do universo, expressa no Livro do Mistério Oculto (Siphra Dtzenioutha), é definida com a misteriosa frase “antes que o equilíbrio se consolidasse, o semblante não tinha semblante” [7].

Aqui está inserta a estranha ideia de que antes de fazer o mundo, ou seja, antes de Deus manifestar-se como existência no mundo das realidades sensíveis, Ele já existia como potência, que embora não manifesta, já continha todos os atributos do universo manifestado. Ele já era todas as coisas, que viviam uma “existência negativa”, na qual a mente humana não pode penetrar justamente porque ela só pode conceber um plano de existência positiva, onde as acções podem ser identificadas e as suas causas recenseadas.

Agora, como capturar uma realidade que está além da nossa capacidade de mentalização? Sabemos que ela existe porque as suas manifestações emanam para o plano da realidade sensível e é causa de fenómenos observáveis e mensuráveis. Quem sabe definir o que é a electrónica, por exemplo? Sabemos como ela se manifesta, como actua e até já aprendemos a usá-la para as nossas finalidades, mas o que ela é nenhum cientista, ou filósofo, até agora, ousou afirmar [8].

“Antes que o equilíbrio se manifestasse, o semblante não tinha semblante” é uma forma metafórica de explicar aquilo que a nossa linguagem não consegue articular num discurso lógico. Então os cabalistas recorrem à uma figura de linguagem, ou a um símbolo, para dizer que a criação divina já existia antes de existir. Ou seja, antes que o universo adquirisse uma forma, ele já estava na Mente de Deus, como presença sem forma, sem nome, impossível de ser pensado pela mente humana. Era o próprio Caos primordial, no dizer dos filósofos gnósticos, que ao “vazar” para além de si mesmo adquiriu uma certa organização.

Deus já era antes de ser o universo. Ou como diz Rosenroth “o universo inteiro é a vestimenta da Divindade: Ele não apenas contém tudo, mas também Ele mesmo é tudo e existe em tudo”. Essa é outra maneira de dizer que Deus, na sua Existência Negativa, é o “Espírito que se move sobre as águas” e na sua “Existência Positiva”, ele é o próprio universo [9].

Outra visão desta realidade pode ser posta em forma de analogia, seguida de um símbolo mediato. Os cultores da Cabala mística dizem que “Deus é pressão”, e que a sua manifestação no mundo das realidades fenoménicas tem a forma de um círculo cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência está em parte alguma. Sabemos que todo círculo tem um centro e uma circunferência. O centro é o ponto de onde ele emana e a circunferência uma corda que o limita. Dizer que o centro do círculo está em toda a parte e que a sua circunferência está em parte alguma é falar de um espaço que não começa em ponto algum e não acaba em lugar nenhum, uma dimensão sem início nem fim.

Ou como diz MacGregor Mathers,


“O oceano sem limites da luz negativa não procede de um centro, pois não o possui. Ao contrário, é esta luz negativa que concentra um centro, a qual é a primeira das sefiroths, manifestas, Kether, a Coroa.” [10].

Assim, esta ideia da divindade supre a necessidade que a mente humana tem de situar um início para o universo e imaginar, não um fim para ele, mas uma finalidade. Destarte, a dimensão da Existência Negativa é um momento anterior a qualquer manifestação da Divindade no terreno das realidades positivas, ou seja, um estado latente de potência concentrada em si mesma, que em dado momento cedeu á “pressão” interna da sua própria potencialidade e “gerou a si mesmo”. Figurativamente, o big-bang seria o “parto de Deus”, o qual, simbolicamente, poderia ser representado por um ponto dentro do círculo, como o faz Madame Blavatsky na sua cosmogonia da Criação.

Em analogia ao conceito bíblico de criação, poderíamos dizer que o big-bang dos cientistas equivale ao momento em que Deus “separou a luz das trevas”, ou seja, o momento em que o Grande Arquitecto do Universo “pensou” o universo, na tradição maçónica.

Esta é a base da formidável arquitectura universal que a inteligência dos sábios rabinos de Israel conceberam e que a sensibilidade mística dos espíritos que não se contentam em viver no estreito território que a linguagem lógica nos obriga a permanecer adoptou. Entre estes estão os maçons espiritualistas, que vêem na sua Arte muito mais do uma mera prática social e política, derivada de uma tradição que incorpora ideias esotéricas.

O conceito de que Deus é o Grande Arquitecto do Universo tem sido empregado em muitos sistemas de pensamento e o cristianismo místico o tem adoptado em várias das suas manifestações. Ilustrações de Deus como o arquitecto do universo podem ser encontradas nas nossas Bíblias desde os primeiros séculos da Idade Média e tem sido regularmente empregues pelos doutrinadores cristãos de todas as tendências.

São Tomás de Aquino, por exemplo, um dos mais respeitados filósofos da Igreja Católica, sustentou a existência de um Grande Arquitecto do Universo, que seria a Primeira Causa de todas as coisas. Por seu turno, João Calvino, um dos mais influentes divulgadores da Reforma Protestante, também se refere à Deus como sendo uma espécie de Arquitecto, pois o seu trabalho de construção do universo material, o cosmo, e do universo espiritual (a humanidade na sua história moral) assemelha-se á construção de um grande edifício [11].

Na Maçonaria, o termo Grande Arquitecto do Universo é uma metáfora que, na sua origem, tem inspiração cabalística. Era um termo aplicado á divindade pelos maçons operativos, construtores de catedrais e grandes obras públicas, que viam em Deus o autor dos planos estruturais do edifício cósmico e por analogia, da humanidade. Neste sentido, o mundo físico e mundo espiritual eram construídos a partir de uma estratégia desenvolvida por Deus, que operava como se fosse um arquitecto, pensando os planos do universo e os seus mestres (os anjos) e pedreiros (os homens) o construíam.

Esta era uma ideia extraída da interpretação cabalística da Bíblia, pois a Cabala vê o universo como se fosse um edifício sendo construído em dez etapas de manifestação da potência divina, que é simbolizada na chamada Árvore da Vida, ou Árvore Sefirótica, símbolo de extraordinário conteúdo esotérico, que se presta às mais diversas analogias e ilações, unindo a mística das antigas religiões do oriente com as modernas descobertas da física atómica.

O termo “Grande Arquitecto do Universo” também foi apropriado pela filosofia gnóstica, sistema de pensamento onde o Criador “gera” um casal real (Cristo e Sofia, o primeiro par de eons), a partir do qual a sabedoria (gnosis) é trazida para o mundo.

Através da actuação deste “casal cósmico”, nascem os “eons” (anjos para uns, arquétipos para outros) que orientam os homens nas suas acções. Constrói-se assim, o mundo e o homem, com o Grande Arquitecto traçando os planos estruturais e os seus agentes trabalhando para executá-los.

Assim, o Grande Arquitecto do Universo, que os maçons, na sua linguagem simbólica, abreviam para G∴ A∴ D∴ U∴, é o termo utilizado para representar Deus no seu trabalho de arquitectura cósmica. Os anjos são os seus mestres supervisores e os homens os seus pedreiros. Fecha-se, desta forma, o círculo místico que explica a forma maçónica de pensar um começo do universo e abre-se, para todos os temas do seu catecismo, uma justificativa do porque a Arte Real os trata deste modo.

O G∴ A∴ D∴ U∴, portanto, é um símbolo que representa a “Hipótese Deus” dos cientistas, pois somente através desta ferramenta linguística a mente humana pode conceber realidades que estão fora do alcance da sua capacidade de logicizar os fenómenos naturais.

Qualquer coisa, para ser entendida, precisa ter um começo. Deus é o começo. Não satisfaz ao maçon pensar nele como um ancião de barbas brancas, semelhante a um velho patriarca bíblico, que procura criar e manter a sua família confinada ás tradições de um clã, nem se comunga, na Maçonaria, com a visão – por muitos chamada de científica – que vê a Divindade orientando um processo de criação que se assemelha ao trabalho de um pecuarista seleccionando crias para melhorar a sua espécie. Ao contrário, a ideia é a de que aqui estamos como funcionários Dele, construindo alguma coisa que Ele arquitectou. Por isso o maçon é o pedreiro da obra universal, e Deus é o Grande Arquitecto do Universo.

Desta forma, para a Maçonaria, a Hipótese Deus já está suficientemente provada.

João Anatalino Rodrigues

(Condensado da nossa obra “Cabala e Maçonaria- A Influência da Cabala nos Ritos Maçónicos”- publicada pela Editora Madras, 2018.)
Notas

[1] Eugene Franklin Mallove (1947 – 2004) The Quickening Universe –St Martins Pr; 1º edition, 1987.

[2] Stephen Hawking – Uma Breve História do Tempo- Círculo do Livro, 1988

[3] O universo numa casca de noz, citado, pg. 22

[4] Génesis, 1: 3

[5] O panteísmo é a crença de que Deus é a própria natureza e não se distingue dela como entidade. Neste sentido, Deus (theos) é o “tudo”(pan), e só existe como um princípio, uma energia, que dá geração a tudo que existe, mas não existe independente desse tudo. Nesse sentido, Deus seria o próprio universo, com as suas leis físicas e morais.

[6] Knor Von Rosenroth – A Kabbalah Revelada- Madras, 2010

[7] Idem, pg. 65

[8] Ou como definem Léon Brillouin e Robert Andrews Mullikan, “ a electrónica é uma torção do nada negativamente carregado”. cf. Pawels e Bergier, O Despertar dos Mágicos- Ed. Bertrand Brasil Lda., 2001.

[9] A Kabbalah Revelada, op citado, pág. 63

[10] Citado por Dion Fortune – Cabala Mística, pág. 36.

[11] Institutos da Religião Cristã , 1536.

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