quinta-feira, 11 de junho de 2020


A ARQUITETURA DO UNIVERSO

O SANTUÁRIO DA TRADIÇÃO


Sabemos que a Cabala vê no desenho do universo uma forma projectada pela mente de Deus. Neste sentido ele é como se fosse um plano de arquitectura pré-concebido e estruturado com extrema precisão. Este plano é demonstrado admiravelmente na extraordinária simbologia dos Quatro

Mundos e no desenho da Árvore da Vida. Nestas duas concepções simbólicas, onde a intuição dos mestres cabalistas superou seus próprios conhecimentos positivos à respeito do mundo, encontramos um projecto extremamente sugestivo da evolução do todo universal, com as suas visões passadas, presentes e futuras, com todas as suas especificações e finalidades.

Nesta visão estrutural do plano cósmico fica mais simples encontrar um lugar para o complexo das intuições humanas, que a nossa mente, por falta de uma linguagem apropriada, não consegue explicar. Os pressupostos da metafísica, que tanta perplexidade causa aos estudiosos quando são comprovadas em testes de laboratório, assumem contornos mais visíveis, mais inteligíveis e mais belos até, porque nesse caso eles vêm vestidos de uma simbologia que nos enche os olhos e uma poesia que nos alegra a alma.

Não é, pois, sem razão, que a Maçonaria — aos nossos olhos uma experiência social e espiritual com um pé firmemente apoiado na tradição cabalística — chama Deus de Grande Arquitecto do Universo. E o porquê de o Templo onde se reúnem os maçons ter sido concebido como um simulacro do Cosmo, adoptando uma estrutura semelhante ao desenho da Árvore da Vida.

Isto ocorre porque nessa visão mística do processo de construção do edifício universal, a Divindade é comparada a um arquitecto que projecta o edifício e depois os seus mestres de obras, os arcanjos (arcontes), e os seus pedreiros, os homens, o constroem. É neste mesmo sentido que a planta do Templo maçónico é desenhada como se fosse uma espécie de mandala mágica, e construído de forma a captar a energia criadora, para que o psiquismo dos Irmãos ali reunidos seja carregado com as melhores virtudes, e os vícios porventura existentes sejam dissolvidos. Esta é a ciência maçónica por excelência, que é sintetizada na chamada “egrégora”, palavra que designa a energia cósmica captada pela mente das pessoas reunidas no Templo, em estreita união, e convergentes para a consecução de um mesmo objectivo.

Este também, diga-se de passagem, é o elo simbólico que justifica a tradição maçónica de considerar o templo onde os Irmãos se reúnem uma cópia do Templo de Jerusalém, na forma como ele foi projectado pelo arquitecto Hiram Abiff e construído pelos arquitectos do rei Salomão [1]. Todo iniciado na tradição maçónica sabe que o Templo de Jerusalém foi erigido segundo instruções místicas, que visavam reproduzir nesse edifício o próprio desenho do Cosmo, e que, segundo acreditavam os israelitas, era a “morada de Deus ” [2].

Esta visão justifica-se plenamente, pois na construção de um edifício, quanto mais sofisticado ele for, mais encontraremos noções de ciência aplicada. Nele aplicam-se conhecimentos de física, química, geologia, sociologia, matemática, astronomia e muitas outras disciplinas, necessárias à perfeita construção e adequação do logradouro às necessidades que ele visa atender. E o que dizia Fulcanelli, por exemplo, quando se referia à catedral gótica, que no seu entender, era um verdadeiro santuário de tradição e aplicação das ciências físicas e sociais [3].
O segredo do Tabernáculo

A Cabala chama Sod aos enigmas que estão ligados ao desenho estrutural do universo, os quais foram reproduzidos na planta do primeiro Templo de Jerusalém. Por isso ele era originalmente chamado de Santuário da Solidão, pois ali reinava o Único, o Santo dos Santos, que não tinha par entre todas as divindades do universo.

Como se sabe, o Templo de Jerusalém foi desenhado a partir das instruções que Deus deu a Moisés para a construção do Tabernáculo. Todos os utensílios, os adereços, as vestes dos sacerdotes e as próprias medidas do Templo tinham uma função específica e um significado arcano de grande importância.

O Tabernáculo tinha três divisões representando o céu (o altar onde ficava o Santo dos Santos), o mar (onde ficava o Lavatório, a grande bacia de bronze) e a terra (o Átrio, onde ficava o povo e altar do holocausto). Os quatro tipos de tecido usados na confecção do Tabernáculo simbolizavam os quatro elementos; a sobrepeliz do Sacerdote Supremo (Cohen gadol) com as suas variações cromáticas era a imagem do universo nascente, que na sua origem apresentava uma profusão fantástica de cores [4].

As campainhas significavam a harmonia do som, já que um dos elementos com os quais Deus faz o universo é o som; as doze pedras preciosas no peitoral do sacerdote e os doze pães da preposição simbolizavam, no plano cósmico, os doze signos do zodíaco e no sociológico as doze tribos de Israel, maquete da Humanidade Autêntica. As duas esmeraldas nas ombreiras do sacerdote eram o sol e a lua. Na mitra do sacerdote as quatro letras do Nome de Deus (IHVH), diziam que todo o universo era construído a partir das letras do Nome Sagrado. O candelabro de sete braços (menorah) significava os sete planetas conhecidos na época. A mesa arrumada na direcção norte, com os pães da preposição e o sal, todos arranjados na forma de uma mandala mágica, homenageavam a chuva e o vento, forças necessárias à produção da terra. A grande bacia de bronze que os sacerdotes usavam para lavar os pés e as mãos simbolizavam a limpeza de carácter que o homem devia mostrar frente à divindade.

Assim, na simbologia do Templo de Jerusalém e de seus utensílios estava descrita toda a estrutura de constituição física do universo e, além disso, um vigoroso código de moral para guiar os seus construtores. Esta também seria a formulação simbólica que viria a inspirar, na Idade Média, os maçons operativos na mística da sua arte. Por isto é que eles mostravam, na execução do trabalho puramente operativo, o desvelo próprio de um artista que sente estar copiando a própria obra de Deus; e na alma que assim se consagra a esse trabalho havia um sentimento de ascese que transcendia o plano físico para levá-lo ao arrebatamento próprio daqueles que se dedicam à uma prática de natureza sagrada. Estava, assim, nascida a mística operativa que deu origem à Maçonaria [5].
O templo e o homem

Por outro lado, são muitas as tradições que sustentam ser o organismo humano, integrado na sua parte espiritual, um desenho do próprio universo, do qual reflecte a sua formulação mecânica e as suas leis de formação e desenvolvimento. Esta analogia entre o homem e o universo se revela no postulado, tão caro aos hermetistas e já bem aceito por cientistas de renome, de que no microcosmo (o homem) se repetem as mesmas leis que formatam o macrocosmo (o universo) [6].

Se tudo isto é verdade provada ou mera especulação, só Deus poderia dizer. Nós só podemos deduzir e acreditar ou não. Mas há algumas coisas que não podem ser ignoradas. Uma delas é o que diz a teoria da evolução. Segundo essa teoria, todas as espécies vivas são “fabricadas” pela natureza com um “programa” específico que as submete a um processo evolutivo inexorável. Este “programa” é necessário tendo em vista as constantes mudanças ambientais a que o universo está sujeito. A espécie que não consegue adaptar-se a essas mudanças acaba sendo substituída por outras mais competentes.

Esta é uma lei existente na natureza, chamada pelos antropólogos, de lei dos revezamentos [7]. Ela existe para promover uma necessária evolução nas espécies por ela produzidas por meio do aperfeiçoamento das suas habilidades e capacidades. Não se aplica somente às espécies vivas, mas à toda a realidade universal, inclusive aos elementos químicos e a matéria bruta em geral. Pois todos os elementos químicos também são obtidos por interacção de seus componentes, da mesma forma que os organismos moleculares. Quer dizer, repetem-se na matéria bruta os mesmos processos que formatam a matéria orgânica e tanto uma quanto a outra estão sujeitas às mesmas leis de nascimento, formação, desenvolvimento e desaparecimento, o qual se dá pelo fenómeno da transformação selectiva.

Por isso, a teoria da evolução encontra mais paralelos na doutrina da Cabala do que nas outras tradições religiosas. Aqui ela é figurada através de um desenho mágico — filosófico, chamado Arvore Sefirótica, ou Arvore da Vida, esquema místico que representa as manifestações da divindade no mundo das realidades sensíveis. Neste desenho, cada sefirá é uma fase de construção do universo e reflecte um processo de evolução perene, constante e ordenado, que serve tanto para explicar o processo de construção das realidades do mundo material, como das realidades do mundo espiritual.

A Árvore da Vida mostra o mundo (e o homem) sendo construído como se ele fosse um lago que transborda e vaza para outro lago, até formar o grande mar universal, onde todas as formas de existência, físicas e espirituais, podem ser encontradas. Esta visão não deve ser considerada urna alucinação mística nem apenas uma especulação metafísica. Sabemos que quando dois elementos químicos se juntam eles formam um composto. Conservam as suas características particulares, mas também formam um terceiro elemento com diferentes propriedades. O composto, que é o filho nascido dessa união, possui as propriedades dos elementos que o formaram e agrega aquelas que são desenvolvidas por ele próprio. Nesta fórmula está o segredo da teoria da evolução. Dois átomos de hidrogénio combinados com um de oxigénio formam uma molécula de água. A água é um composto, “filho de H20,” que tem H (hidrogénio) e O (oxigénio) na sua composição, mas também tem outras propriedades que seus “pais”, individualmente, não possuem. Ela tem a propriedade de incubar a vida. A água é necessária à vida. E o leito onde ela nasce. E nesse sentido que Teilhard de Chardin vê o homem como sendo um “complexo-consciência”, ou seja, um composto feito por elementos orgânicos, obtidos por sínteses naturais (selecção natural) e elementos psíquicos, produzidos por sínteses mentais cada vez mais elaboradas, que resultam num espírito individual, e estes, num ser pluralístico, que no final comporão um ser espiritual colectivo que ele chama de Ponto Ómega [8].

Assim também acontece com o restante do universo. Cada fase da evolução é uma combinação de elementos. Cada nova fase desenvolve as suas próprias particularidades, que são as propriedades com as quais ela contribui para o desenvolvimento do universo como um todo. Por isto cada fase constitui um passo a mais no processo de evolução porque o composto que nasce da união dos elementos é sempre um resultado mais complexo dos que os elementos que o formam. Nada se perde do que já foi conquistado, apenas se transforma em algo novo, com diferentes propriedades, sempre num estágio mais avançado de evolução.

Por isto o novo é sempre maior que a soma das suas partes. Novas propriedades são adicionadas ao universo a partir de cada interacção praticada por seus elementos. E assim ele supera-se em cada momento da sua constituição.
Criacionismo e evolucionismo

Um plano de evolução do mundo físico e da vida nos seus aspectos material e espiritual é o que nos proporciona a doutrina da Cabala. Ela oferece uma explicação de como o universo se forma, como se desenvolve e a que finalidade se presta. Da mesma forma, a vida que se cria e evolui dentro dele. E uma evolução que se desenha num processo iniciado no mais ínfimo grão de matéria (um quanta de energia) tornando-se matéria que se complexifica, evolui tornando-se vida, em vida que se espiritualiza, em espírito que se diviniza, sempre num sentido ascendente, através de sínteses químicas e mentais cada vez mais complexas, seguindo o mesmo rumo: a flecha da evolução. A nossa missão, neste esquema, toma-se clara e insofismável, pois sendo uma presença indispensável neste processo, o homem torna-se o centro da perspectiva universal, já que é a partir da sua mente que o universo se organiza e adquire uma identidade.

Assim, não podemos compartilhar dos receios daqueles que temem pelo futuro da humanidade. A humanidade jamais perecerá: ela apenas se transformará. Os adeptos da teoria da evolução dizem que o ser humano evoluiu de uma matriz animal até a configuração que temos agora. Já aqueles que acreditam no criacionismo dizem que nós nascemos perfeitos, mas tornamo-nos imperfeitos por força de uma série de quedas e ascensões no nosso processo evolutivo [9].

São duas teorias diametral mente opostas. Uns dizendo que já fomos piores do que somos hoje e outros sustentando que já fomos melhores. Mas no fundo elas completam-se, pois ambas sustentam que a vida está submetida à um processo de evolução que é inexorável. Se nascemos rastejantes como répteis e através de um processo de evolução alçamo-nos até a altura do céu, ou se nascemos no céu e por um motivo qualquer descemos à terra e agora estamos a esforçar-nos para voltar ao céu, são apenas formas diferentes de ler o mesmo processo. Uma vai do pé para a cabeça, outra da cabeça para o pé. Acreditar numa ou noutra depende da sensibilidade de cada um.
Só se Deus não existisse

Para nós não importa saber quem tem razão. Na verdade, o que nos parece tão assustador com os rumos que a humanidade vem tomando é resultado apenas da nossa ignorância. Não temos como saber o que poderá acontecer a cada nova experiência interactiva que os elementos do universo promovem. Isto porque o Criador colocou neste processo uma lei chamada “principio da incerteza” (deduzido pelo físico alemão Werner Heisenberg). Segundo este princípio é impossível prever o que acontecerá no futuro porque não temos como saber qual a posição e a velocidade que as partículas de energia que formam a massa física do universo assumirão no momento seguinte da sua aceleração. Só podemos estudar as tendências que ele tem de acontecer de certo modo, mas nunca uma certeza de que será exactamente assim. Isto porque a tendência de uma partícula se comportar desta ou daquela maneira só pode ser deduzida a partir dos seus comportamentos no momento em que são observadas. Mas a própria observação do movimento da partícula já concorre para modificar esse movimento. Portanto, ao aplicar aos elementos do universo o nosso pensamento nós já o estamos modificando. Assim, é impossível saber como ele será no futuro porque o mundo sempre poderá será diferente em função da própria observação que dele fazemos [10].

Isto é válido para o mundo da física quântica e também para a nossa vida em geral. Esta é uma boa sabedoria que a moderna observação científica nos dá, e a Cabala também.

O que se deduz disso tudo é que, se o universo futuro será bom ou ruim para nós, isso só depende do nosso comportamento no presente. Mas isso não nos será dado saber à nível de consciência individual. E depois, bem e mal são conceitos puramente humanos. Quando não formos mais o que somos hoje, talvez não precisemos mais destes conceitos para justificar os nossos sentimentos a respeito. Desta forma, o que podemos dizer com certeza é que o mundo só não teria futuro se Deus não existisse. Mas Ele simplesmente (e felizmente) existe.

João Anatalino Rodrigues
Notas

[1] Este pressuposto é colocado tendo em vista a tradição maçónica e não a história propriamente dita, pois historicamente, conforme relata a Bíblia e também o historiador Flavio Josefo, Hiram não era arquitecto, mais sim um metalúrgico que fundiu as colunas de bronze do Templo e os utensílios de culto neles usados. Segundo algumas tradições maçónicas o verdadeiro arquitecto do Templo de Jerusalém foi Adonhiram (Hiram, filho de Adon). Esta tradição é cultivada no Rito Adonhiramita, cuja organização é atribuída ao Barão Theodore Tschoudy (1727- 1769), nobre francês, reformador da Maçonaria francesa. Ver, a este respeito, Jean Palou – Maçonaria Simbólica e Iniciática – Ed. Pensamento, 1986.

[2] Alex Horne- O Templo do Rei Salomão na Tradição Maçónica. São Paulo. Ed. Pensamento, 1998.

[3] S. Fulcanelli. O Mistério das Catedrais. Lisboa, Ed. Esfinge, 1964.

[4] Ver, neste sentido, a imagem apresentada por Stephen Hawkings sobre a coloração inicial do universo saído do Big-Bang. O Universo numa Casca de Noz- citado. Sobre este assunto ver ainda a concepção de Gershon Scholem sobre a experiência mística, onde ele diz que “quase todos os místicos do nosso conhecimento retratam essas estruturas como configurações de luzes e cores”. Não seria esta uma indicação de que o nosso inconsciente tem, de facto, uma ligação mística com o início de todas as coisas?

[5] lusão à crença dos antigos maçons que construíam os templos religiosos na Idade Média, de que eles eram os “operários do Bom Deus”, pois estavam construindo na terra as moradas da divindade. Por isto o carácter sacro da sua arte. Na Imagem, reconstituição do Templo de Jerusalém: Fonte: Alex Horne: O Templo de Salomão na Tradição Maçónica.

[6] Em linguagem hermética, “o que está em cima é igual ao que está em baixo”.

[7] Lei dos revezamentos, em antropologia, é a lei segundo a qual os organismos que não desenvolvem uma estrutura capaz de sobreviver em ambientes desfavoráveis e diferentes daqueles nos quais vivem, fatalmente serão substituídos por outros mais competentes. Com isto a natureza mantém o processo da vida sempre activo e com claro sentido evolutivo. Ver, nesse sentido, Teilhard de Chardin – O Fenómeno Humano, citado.

[8] Teilhard de Chardin- O Fenómeno Humano, Ed. Cultrix, 1990.

[9] Evolucionistas são aqueles que acreditam que as espécies vivas, e por consequência, os seres humanos, são produto de uma selecção natural (teoria de Charles Darwin). Os criacionistas são aqueles que acreditam que a espécie humana já nasceu do jeito que ela é hoje: a fórmula bíblica literal.

[10] O princípio da incerteza é um enunciado da mecânica quântica, feito em 1927 pelo físico Werner Heisenberg, que diz ser impossível medir com precisão a velocidade de deslocamento de partículas atómicas, porque a própria interacção entre o movimento delas e o acto de medir a sua velocidade interfere nessa medida.

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