A Deusa Ísis
Texto: João Anatalino
Ísis era tida por irmã e esposa de Osíris. Esse costume de casamento entre irmãos consangüíneos era comum no Antigo Egito. Tinha como função preservar o poder da dinastia, mantendo sempre no trono um descendente do mesmo sangue.
A deusa Ísis é, juntamente com Osíris e Mitra, os arquétipos religiosos mais importantes que as antigas religiões solares Le-garam à humanidade. Cultuada como modelo de mãe e esposa ideal, ela era também vista como protetora da natureza, símbo-lo da magia e da ressurreição, deusa da maternidade e da fecun-didade e da família.
Como esposa de Osíris e mãe de Hórus, Ísis faz parte da trindade egípcia, sobre a qual se assenta o equilíbrio do mundo.
Os primeiros registros do culto a Ísis aparecem em documentos egípcios datados por volta de 2500 a.C., mas acredita-se que esse culto é bem mais antigo, tendo derivado de uma época em que os povos do Nilo formavam clãs governados por princípios centrados mais no poder matriarcal do que no patriarcal. Essa noção vem do fato de que, historicamente, o poder político no Antigo Egito, até épocas mais recentes, far-tamente documentadas, sempre foi composto através da linha-gem feminina e não da masculina. O Egito, como revela Wales Budge e nos confirma Bachofen (O Matriarcado, 1861), sempre teve em Ísis o símbolo do poder matriarcal, o que prova a enorme influência da mulher na composição do poder político no país.
Ísis foi a única deidade do Antigo Egito que resistiu á helenização do país após a conquista por Alexandre Magno. Sobreviveu também à posterior cristianização do pais, ocorrida após a sua incorporação ao Império Romano e forneceu aos teóricos do Cristianismo o arquétipo modelar para a composição da figura de Maria, mãe de Jesus, a parte feminina do Logos cristão.
O culto à Ísis não só resistiu às repetidas tentativas de aculturação do Egito pelas potências que o ocuparam, como também irradiou sua influência por toda a cultura do Oriente Médio e se tornou uma das mais importantes divindades do Império Romano.
Durante os primeiros séculos de implantação do Cristianismo nos territórios governados por Roma, o culto à Ísis se espalhou por todo o mundo romano. Na Itália e na própria Roma, Ísis era uma das principais divindades do panteão romano, e nessa condição permaneceu até a vitória final do Cristianismo, quando muitas de suas estátuas foram revestidas com trajes cristãos e adorados como se fosse Maria, a mãe de Jesus .
A tradição esotérica ligada ao nome de Ísis é simplesmente fabulosa. Nenhuma outra lenda se desenvolveu com tanta riqueza em interesse espiritual, salvo o Mistério da morte e ressurreição de Cristo. Ao longo de milênios, sacerdotes e sacerdotizas se ocuparam em desenvolver uma rica tradição que envolveu elementos de história, religião, sociologia, astrologia, medicina, política e outros conhecimentos, tudo tratado com uma aura de misticismo e mistério que excita o espírito humano até os dias de hoje.
Isis e a astrologia
Como a estrela Spica (Alpha Virginis), era a mais brilhante da constelação de Virgem, e sendo essa a constelação que segundo os egípcios, correspondia ao país no desenho cósmico, Ísis foi relacionada à essa estrela. E como a constelação de Virgem surgia no firmamento acima da linha do horizonte justamente numa época do ano em que a colheita do trigo e outros grãos era feita em todo o Vale do Nilo, Ísis também foi associada a divindades gestoras da fertilidade e passou a presidir às colheitas. Daí a sua associação com Démeter, a deusa grega da agricultura e o consequente paralelo entre os Mistérios de Ísis e Osíris, e os Mistérios de Elêusis, como bem observou Plutarco em sua obra clássica.
Ísis também foi associada á estrela Sirius (Sept em egípcio). O surgimento dessa estrêla no firmamento simbolizava o advento de um novo ano. Daí Ísis ser também considerada a deusa do renascimento e da reencarnação; e como protetora das almas dos mortos ela presidia o renascimento do tempo e dos astros no céu. Dessa forma, Ísis exercia um papel primordial nos rituais do Livro dos Mortos, no sentido de proteger e guiar as almas dos defuntos pelo mundo subterrâneo (a terra intermediária das sombras, a Tuat). Vários hinos desse estranho e famoso hinário são dedicados a ela.
Ísis e a política
Ísis era vista como a deificação do poder matriarcal no sentido que ela representava, na hierarquia da corte egípcia, a esposa do faraó. Sua representação como aquela que devolve a vida ao rei morto conferia à esposa do faraó um papel de extraordinária relevância nos ritos funerários, de tal forma que seu nome é o mais citado nos chamados Textos das Pirâmides, escritos que descrevem os ritos funerários aplicados aos diver-sos faraós que os mandaram escrever. Daí o grande poder e influência que as rainhas egípcias exerciam na hierarquia de poder no país. À época do Novo Império. entre os reinados das XVIII, XIX e XX dinastias, ( +-1570 a 1070 a.C.) Ísis era considerada mãe e protetora do faraó. Durante este período, desenhos e estátuas dessa deusa amamentando o faraó foram esculpidas e reverenciadas por todo o Egito.
Tão forte era a associação de Ísis com o poder, que ela con-siderada a mãe-trono. Essa, aliás, teria sido a sua primitiva função, razão, pela qual muitos estudiosos acreditam ter sido o primitivo Egito uma sociedade matriarcal, onde Ísis teria sido sua mais importante matriarca. No entanto, uma corrente mais moderna afirma que aspectos desse papel vieram mais tarde, por associação. Em muitas tribos africanas, o trono real ainda é conhecido como "a mãe do rei".
Influência no cristianismo
Embora a Igreja Católica sempre tenha negado veeemente-mente que o culto à Virgem Maria é uma adaptação ao culto da deusa Ísis, não parece haver dúvida que existe uma grande in-fluência da tradição egípcia nesse culto. Quando o Cristianismo começou a ganhar popularidade no Império Romano, muitos templos de Ísis foram transformados em santuários cristãos, e para evitar os conflitos que naturalmente adviriam com os adoradores da deusa egípcia, os primitivos cristãos associaram-na com a mãe de Jesus. Foi dessa curiosa metonímia que nasceu o culto à Mãe de Deus, a Virgem Maria, que a muitos cristãos puristas pareceu verdadeira heresia, pois estes não podiam admitir que seu Deus − por princípio um ser incriado – pudesse ter nascido de uma mulher. Essa idéia era defendida principalmente pelos cristãos gnósticos que negavam a nature-za humana de Jesus, vendo-o como um ser angélico que viera a terra através de uma manifestação divina e não por concepção carnal. Essa tese viria a ser retomada pelos evangélicos, os quais tem em Maria apenas o canal humano pelo qual Deus manifestou-se em carne, mas não como “mãe de Deus”, como a reverenciam os católicos.
Conteúdo iniciático do Mistérios
Os Mistérios de Ísis e Osíris, base do famoso drama iniciá-tico que leva esse nome, talvez seja a corruptela de um evento político ocorrido em tempos pré-históricos, quando ao Egito ainda era uma nação governada pelo princípio do matriarcado. Como bem nos mostra Bachofen em seu magnífico ensaio sobre esse tema, nesses remotos tempos, a rainha era a deusa-mãe e encarnava os poderes da terra. Assim foi no Egito com Ísis, entre os povos mesopotâmeos com a deusa Ishtar, Lakshmi para os Hindús, a Ixchel dos Maias, e outros povos. Daí a associação que se faz entre os poderes regeneradores dessa deusa e a capacidade da terra em renovar a vida do planeta.
Os Mistérios de Ísis e Osíris, também conhecidos como Mistérios Egípcios, se baseiam no drama da ressurreição desse deus, morto e esquartejado por Seth, seu invejoso irmão. Como já aventado, esse drama pode estar na origem de um fato histórico onde um possível conflito de natureza política tenha originado o assassinato do rei por um irmão que lhe pretendia tomar o trono. Isso era muito comum na antiguidade, sendo um dos principais motivos das antigas tragédias gregas, cujos enredos geralmente se fundamentam em histórias desse tipo, onde reis são mortos e seus assassinos se casam com a rainha viúva para legitimar suas conquistas. No caso da lenda de Ísis e Osíris há uma reação da rainha, que juntamente com seu filho Hórus reagem ao assassinato do marido e pai e vencem o tirano regicida.
A versão mais acreditada dessa lenda, entretanto, é a de que na origem os Mistérios de Ísis e Osíris eram tradições religio-sas muito antigas, nas quais se celebrava o poder de regenera-ção que Ísis, a Mãe-Terra, possuía para dar vida à semente que nela era lançada. Daí foram desenvolvidos rituais que visavam reproduzir o processo segundo o qual esse evento mágico se realizava. Então, talvez por um processo metonímico de adaptação, cunhou-se a lenda de que Ísis, a Mãe Sacerdotisa, teria recomposto o corpo morto do seu marido e restituído a sua vida, da mesma forma que a terra transforma em planta viva uma semente considerada morta e o útero de uma mulher em-gendra a vida do novo ser a partir de uma semente nela lançada.
Foi Plutarco, escritor grego do século V a. C. que popularizou no Ocidente esse mito ao escrever um longo trabalho explicando o seu verdadeiro significado. Para ele, os Mistérios Egípcios eram semelhantes em conteúdo aos Mistérios Gregos (representados no santuário de Elêusis), onde também se cultuavam os poderes regeneradores da terra.
Ísis e Minerva
Em Roma Ísis foi associada a uma das deusas do panteão grego, a famosa Palas Atena. Conhecida entre os latinos pelo nome de Minerva, ela era tida como sendo filha de Zeus, o pai dos deuses (Júpiter, para os romanos). Após uma briga com sua esposa Métis, Zeus a engoliu e logo começou a sentir uma insuportável dor de cabeça. Então pediu ao deus Vulcano que abrisse sua cabeça com um machado. Dessa estranha operação cesariana, saiu da cabeça aberta de Zeus a deusa Palas Atena, ou Minerva, já adulta, portando escudo, lança e armadura.
Minerva permaneceu sempre virgem e presidiu a sabedoria, a arte e a coragem. Essas eram as três grandes qualidades do homem da época clássica, cuja vida se dividia entre a procura pela sabedoria, a realização da beleza e as conquistas militares. Daí o fato de os atenienses a adotarem como deusa patrona e os romanos como protetora de sua cidade.
Ela era representada com um capacete na cabeça, escudo no braço e lança na mão. Sendo a deusa da guerra, e que também patrocinava a sabedoria e as ciências, ela mantinha junto de si um mocho e vários instrumentos matemáticos. Em conseqüência, os engenheiros e construtores a adotaram como sua deusa padroeira, razão pela qual os maçons, dada a sua tradição de pedreiros-livres, a cultuavam como uma de suas patronas.
Assim, Ísis, Minerva, Palas Atena, são representações do mesmo arquétipo, ou seja, a mulher considerada mãe da humanidade. E na tradição cristã ela é Maria, a mãe do Salvador. Os cristãos gnósticos a reverenciavam com o nome de Pistis Sofia, a mãe da sabedoria.
Essas correlações são, evidentemente, simbólicas, e evocam a origem arquetípica da raça humana, nascida de um elemento feminino, no caso a terra, fecundada por um elemento masculino, o sol. Essa tradição associa também o mito bíblico de Eva, a mãe da espécie humana. Todos esses arquétipos se fundem numa figura feminina, da qual a humanidade emergiu. Dessa forma, Ísis se tornou um arquétipo que foi adotado por quase todos os povos antigos como símbolo da Grande Mãe, que pare, educa e protege a sua cria, no caso, a própria humanidade.
Segundo a lenda foi ela quem fez nascer na mente humana o anelo pela busca do conhecimento. Assim, a vontade de saber, a ciência, a busca da sabedoria, tão cara aos gregos da época clássica, não é uma virtude masculina, mas sim feminina, e está conectada mais com a sensibilidade do que com a razão. Por isso as primeiras civilizações, ou aquelas que atingiram o mais alto grau de sabedoria e desenvolvimento nos primeiros tempos da história humana foram fundadas sobre o princípio do ma-triarcado. O Egito, presidido pela deusa Ísis, a civilização pales-tina, presidida pela deusa Astarte, os gregos com Palas Atena, foram exemplos desses matriarcados, e essas deusas, historicamente, foram rainhas de deram a esses povos seus primeiros estágios de civilização.
Ísis e a Maçonaria
A Maçonaria, não obstante ser condiderada uma sociedade de caráter patriarcal, presta as devidas homenagens a Ísis de várias formas. Uma delas está patente no grau 26, denominado Príncipe das Mercês. Ali se vê um pedestal oco, com um livro dentro, em cima do qual repousa uma estátua da deusa Minerva. Esse símbolo insinua que ali se cultua a Justiça, já que essa Deusa também é representante dessa qualidade, que só pode ser alcançada quando o povo atinge um alto grau de civilização. A escada de três lances representa os três degraus da iniciação: simbolismo, perfeição e filosofismo, ou ainda, aprendiz, companheiro e mestre, que são as três etapas a serem cumpridas por um maçom para que ele atinja a plenitude da sua condição iniciática.
Como vimos, a Deusa Minerva (Ísis, Eva, a Virgem Maria, a Sofia dos gnósticos, Palas Atena dos gregos, etc.) representa o mesmo arquétipo, existente em todas as tradições religiosas dos povos antigos. Ela é a “mãe” da humanidade, a deusa da mater-nidade, a patrona dos valores que formatam uma civilização. Sua função primordial é sempre “parir” o princípio salvador do mundo. Por ser um símbolo da Terra, como mãe natural de toda a vida, a iconografia gnóstica acostumou-se a representá-la segurando junto ao seio um feixe de trigo que simboliza o renascimento da vida. Por isso que ela é o arquétipo representativo da terra, em sujo seio o grão deposto se transforma em vida.
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Notas
1. Muitos historiadores acreditam que o mito de Osíris está fundado em verdadeiros acontecimentos históricos. Nesse sentido, Osíris é visto como sendo um chefe nômade, que teria sido responsável pela introdução da agricultura na região do Delta. Com isso teria entrado em conflito com Seth, líder das populações do Delta. Em consequência, Osíris teria sido morto por Seth e depois vingado pelo seu filho Hórus.
2. Veja-se a esse respeito E.Wallis Budge. The Gods of Egipcians, Vol I e II. New York, Ed. Dover, 1969.
3. Cf.Plutarco- De Iside et Osíride, De Iside et Osiride". Encyclopædia Britannica Inc., 2012. Web. 14 Jun. 2012
4. Essa tarefa, de guiar a alma dos mortos pela terra intermediária, também era atribição de Osíris.
5. Na Cabala, a parte feminina de Deus é chamada de Shekinah
6. Cf. Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887) - Myth, religion, and mother right- London, 1912.
6. Essa tese também é defendida por James Fraser em seu famoso estudo antropológico “O Ramo de Ouro”.
7. Sobre a Lenda de Ísis e Osris, veja-se a nossa obra, já citada, “Conhecendo a Arte Real.
João Anatalin
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