A GEOMETRIA SAGRADA
“Platão considerava a geometria e os números como o mais conciso e essencial, e, portanto, o ideal da linguagem filosófica”.
Por Victor Manuel Guzman Villena
Revista Hiran Abif – janeiro de 2008 – Edição 95
Tradução: Pedreiro de Cantaria.
A Geometria é uma das ciências que mais aparece nas cerimônias e no simbolismo das escolas iniciáticas e a mais importante dentre elas. Geometria quer dizer “medida da terra”.
No Antigo Egito, de quem a Grécia herdou este estudo, o Nilo transbordava suas margens a cada ano, inundando a terra e alterando o metódico traçado das áreas de cultivo. Essa inundação anual simbolizava para os egípcios o retorno cíclico do caos aquoso original e, quando as águas se retiravam começava a tarefa de redefinir e restabelecer os limites adubados para o plantio.
Este trabalho se chamou geometria e era considerado como o restabelecimento do princípio da ordem e da lei sobre a terra. Cada ano, cada zona medida era um pouco diferente.O conhecimento humano estava mudando e isso refletia no ordenamento da terra. O astrônomo do templo podia dizer que certas configurações celestes haviam mudado e, portanto, a orientação ou localização de um templo tinha que ajustar-se a essa mudança. Assim, pois, o traçado das parcelas de terra tinha, para os egípcios, uma dimensão metafísica bem como física e social. Essa atividade de “medir a terra” se converteu na base de uma ciência das leis naturais tais e como são incorporadas nas formas arquetípicas do círculo, do quadrado e do triângulo.
A geometria é o estudo da ordem espacial mediante a medição das relações entre as formas. A geometria e a aritmética, juntas com a astronomia, a ciência da ordem temporal através da observação dos movimentos cíclicos, constituíam as principais disciplinas intelectuais da educação clássica. O quarto elemento desse importante programa composto de quatro partes - o “quadrivium” – era o estudo da harmonia, ou da música.
Eram as leis universais que definiam a relação e o intercâmbio entre os movimentos temporais e acontecimentos celestes, por uma parte, e a ordem espacial e o desenvolvimento sobre, por outra. Logo se agregaram outras artes, tais como a gramática, que ensinava a expressar as ideias com as próprias regras; a retórica que era considerado o adorno e a beleza do estilo falado; a lógica para formar juízos exatos das coisas. Com esses três elementos a mais se formou as Artes Liberais que são sete e que estão representadas nos sete mestres necessários para formar uma Loja justa, regular e perfeita[1].
O objetivo principal dessa forma de educar era o de permitir que a mente se convertesse em um canal através do qual a “terra” (o nível da forma manifestada) pudesse receber o abstrato, a vida cósmica dos céus. A prática da geometria era uma aproximação da maneira em que o universo se ordenava e se sustentava. Os diagramas geométricos podem ser contemplados como momentos de imobilidade que revelam uma contínua e intemporal ação universal geralmente oculta à nossa percepção sensorial. Dessa maneira, uma atividade matemática aparentemente tão comum pode converter-se em uma disciplina para o desenvolvimento da intuição intelectual e espiritual.
Platão considerava a geometria e os números como o mais conciso e essencial e, portanto, a forma ideal da linguagem filosófica. Porém, não é senão, em virtude do seu funcionamento a certo “nível” de realidade que a geometria e os números podem converter-se em um veículo para a contemplação filosófica. A filosofia grega definia essa noção de “níveis” tão útil em nosso pensamento, distinguindo o “tipo” do “arquétipo”. Segundo indicações que vemos nos relevos murais egípcios, dispostos em três registros: o superior, o médio e o inferior, podemos definir um terceiro nível, o “ecotipo”, situado entre o arquétipo e o tipo.
Para ver como funciona cada um deles tomemos um exemplo de algo tangível, como uma brida (freio) que se utiliza para controlar um cavalo. Esse freio pode ter certo número de formas, materiais, tamanhos, cores, utilidades e todas elas são freio.
O freio assim considerado é um tipo: existe, é diverso e variável. Mas em outro nível está a ideia ou a forma do freio, o modelo de todos os freios. Esta é uma ideia não manifestada, pura e formal, e esse é o “ecotipo”. E por cima desse está, todavia, o nível arquetípico, que é o princípio ou poder-atividade, ou seja, um processo que a forma ecotípica e o exemplo de tipo representa. O arquétipo tem que ver com os processos universais ou modelos dinâmicos que podem considerar-se independentes de qualquer estrutura ou forma material.
O pensamento moderno tem difícil acesso ao conceito de arquétipo porque as línguas europeias requerem que os verbos e a ação se associem com os substantivos. Portanto, não temos formas linguísticas com que imaginar um processo ou uma atividade que tenha um veículo material. As culturas antigas simbolizavam esses processos puros e eternos como deuses, ou seja, poderes ou linhas de ação através das quais o espírito se concretizava em energia e matéria.
O freio se relaciona, pois, com a atividade arquetípica mediante a função de alavanca: o princípio de que as energias são controladas, especificadas e modificadas mediante os efeitos da angulação.
Assim, pois, vemos que com frequência o ângulo – que é fundamentalmente uma relação entre dois números – havia sido utilizado no mesmo simbolismo antigo para designar um grupo de relações fixas que controlam complexos ou modelos interativos. Dessa maneira, os arquétipos, ou deuses, representavam funções dinâmicas que vinculam entre si os mundos superiores da interação e o processo constante, e o mundo real dos objetos concretos.
Vejamos, por exemplo, que um ângulo de 90º ou de 45º, da mesma forma, a ótica geométrica revela que cada substância reflete a luz na forma característica em seu próprio ângulo particular, e é esse ângulo o que nos dá a definição mais precisa da substância. Ademais, os ângulos dos padrões de união entre as moléculas determinam em grande parte as qualidades da substância.
No caso do freio, essa relação ou jogo angular se manifesta na relação entre o bocado e a correia do freio ou entre o bocado (boca do cavalo) e a inclinação do pescoço ou a mandíbula e o bíceps do cavaleiro. Partindo do nível do arquétipo ou ideia ativa, o princípio do freio pode aplicar-se metaforicamente a muitos campos da experiência humana.Funcionando, pois, a nível arquetípico, a geometria e os números descrevem energias fundamentais e causais em sua entrelaçada e eterna dança. É este modo de ver que está subjacente à expressão de sistemas cosmológicos e configurações geométricas.
Por exemplo, o mais reverenciado de todos os diagramas tantricos, o Sri Yantra, representa as funções necessárias ativas no univrso mediante nove triângulos entrelaçados. Submergir em tal diagrama geométrico dessa índole é entrar em uma espécie de contemplação filosófica.
Para Platão, a realidade consistia em essências puras ou ideias arquetípicas das quais os fenômenos que percebemos são apenas reflexos (a palavra grega "Idea" também se traduz como "Forma"). Essas ideias não podem ser percebidas pelos sentidos, mas somente pela razão pura. A geometria era a linguagem que Platão recomendava como o modelo mais claro para descrever esse reino metafísico.
"Acaso não sabeis que os geometras usam formas visíveis e falam delas, embora não se trate delas, mas dessas coisas que são reflexo e estudam o quadrado e a diagonal em si e não a imagem que eles desenham? E assim por diante em todo o caos. O que eles realmente procuram é poder vislumbrar as realidades que só podem ser contempladas pela mente ". Platão, República, VII.
O Platônico considera nosso conhecimento da geometria como sendo inato a todos nós, adquirido antes de nascermos, quando nossas almas estavam ainda em contato com o reino do ser ideal.
“Todas as formas matemáticas têm uma permanência primeira na alma; de tal modo que antes da sensível, esta contém números com sua própria dinâmica. Figuras vitais antes das aparentes; razões harmônicas antes das coisas harmônicas, e círculos invisíveis antes dos corpos que se movem no círculo”. (Thomas Taylor)
Platão o demonstra no Menon, onde faz com que um jovem servente sem instrução resolva instintivamente o problema geométrico de duplicar o quadrado.
Para o espírito humano, preso em um universo em movimento, na confusão de um perpétuo fluxo de acontecimentos, circunstâncias e desconcerto interno, buscar a verdade sempre consiste em buscar o invariável, chame-se ideias, formas, arquétipos, números ou deuses. Entrar em um templo construído em sua totalidade conforme as proporções geométricas invariáveis é entrar no reino da verdade eterna.
Thomaz Taylor diz: “a geometria permite que seu devoto, como uma ponte, atravesse a escuridão da natureza material, como se fosse um mar escuro para as regiões luminosas da realidade perfeita”. No entanto, não se trata de um absoluto sucesso de um evento que ocorre apenas tomando um livro de geometria. Como disse Platão, o fogo da alma deve ser gradualmente reavivado pelo esforço:
"Que graça você me faz aqueles que parecem preocupados porque lhes imponho estudos pouco práticos? Não é próprio apenas dos espíritos medíocres, mas todos os homens têm dificuldades para persuadir a si mesmo de que é através desses estudos, utilizados como instrumentos, que se purifica o olho da alma propiciando que um novo fogo arda nesse órgão que estava obscurecido e extinto pelas sombras de outras ciências, um órgão mais importante para preservar que dez mil olhos, pois é o único com o qual podemos contemplar a verdade”, Não são apenas os espíritos medíocres, mas todos os homens têm dificuldade em persuadir-se de que é através desses estudos, usados como instrumentos como o olho da alma é purificado e como um novo incêndio queima nesse órgão O que foi escurecido e extinto pelas sombras de outras ciências, um órgão mais importante para preservar que dez mil olhos, pois é o único com o qual podemos contemplar a verdade ". (A República, VII (citada por Teón de Izmir (2º século) em sua Matemática útil para entender Platão.)
A Geometria propriamente dita trata da forma pura e a geometria filosófica reconstrói o desenvolvimento de cada forma a partir de outra anterior. É uma maneira de tornar visível o mistério criativo essencial. O passo da criação para a procriação, da ideia pura, formal e não manifestada ao mundo que surge desse ato divino original para traçar mediante a geometria a ser experimentada, mediante sua prática.
Inseparável deste processo é o conceito do número e para os pitagóricos, o número e a forma a nível de ideia eram um só. Mas neste contexto o número deve ser entendido de maneira especial. Quando Pitágoras dizia: “Tudo está ordenado em torno do número”, não pensava nos números no sentido numerativo ordinário. Além do mais, na quantidade simples no nível ideal, os números são impregnados por uma qualidade de modo que a “dualidade”, a “trindade” ou “Tríade”, por exemplo, não são compostos simples de 2, 3 ou 4 unidades, mas são um todo ou uma unidade de si mesmas, cada uma delas com suas correspondentes propriedades. O “dois” por exemplo, se considera como a essência original a partir da qual o poder da dualidade vem e na qual se baseia sua realidade.
R.A Schwaller de Lubiez propõe uma analogia pela qual este senso de número universal e arquetípico pode ser entendido. Uma esfera rotativa é apresentada a nós com a noção de um eixo. Pense nesse eixo como em uma linha ideal ou imaginária que cruza a esfera. Não tem existência objetiva, e, no entanto, não podemos deixar de nos convencer de sua realidade. E para determinar qualquer coisa relacionada à esfera, como sua inclinação ou sua velocidade de rotação, devemos nos referir a esse eixo imaginário. O número em seu sentido enumerativo corresponde às medidas e movimentos da superfície externa da esfera, enquanto o aspecto universal do número é análogo ao princípio imobilizado, não manifestado e funcional de seu eixo.
Vamos agora, em nossa analogia, ao plano bidimensional. Se tomarmos um círculo e um quadrado e lhe dermos o valor 1 ao diâmetro do círculo e também ao lado do quadrado, então a diagonal do quadrado sempre será (e esta é uma lei invariável) um número “incomensurável”, “irracional”. Dizemos que esse número se pode prolongar em um número infinito de decimais sem chegar nunca a uma resolução. No caso da diagonal do quadrado, esse decimal é 1,4142... e se chama raiz quadrada de 2. Com o círculo, se damos ao diâmetro o valor 1, a circunferência sempre será de tipo incomensurável, 3,14,15, 9....que conhecemos como o símbolo grego Pi.
O princípio permanece o mesmo no caso inverso, se lhe darmos o valor fixo e aquela transação única na qual a vibração ouvida se converte em forma visível e sua geometria explora as relações da harmonia musical. Embora inter-relacionadas em sua função, nossos dois principais sentidos intelectuais, a visão e a audição, utilizam nossa inteligência em duas formas completamente diferentes.
Por exemplo, com nossa inteligência ótica, para formar um pensamento, criamos uma imagem de nossa mente. Por outro lado, o ouvido usa a mente em uma resposta imediata e sem imaginação, cuja ação é expansiva e evoca uma resposta de experiências associadas com experiências subjetivas, emocionais, estéticas ou espirituais. Tendemos a esquecer que, também, intervém quando a razão percebe relações invariáveis. Portanto, quando focamos nossa experiência sensorial em nossa capacidade auditiva, podemos perceber que é possível ouvir uma cor ou um movimento.
Esta capacidade intelectual é muito diferente da “visual”, analítica ou sequencial que normalmente utilizamos. É esta capacidade, associada com o hemisfério direito do cérebro, que reconhece padrões no espaço ou conjuntos de qualquer tipo. Pode perceber simultaneamente os opostos e captar funções que ante a faculdade analítica parecem irracionais. É de fato o complemento perfeito da capacidade visual e analítica do hemisfério esquerdo, já que absorve ordens espaciais e simultâneas. Essa qualidade intelectual inata se assemelha muito a que os gregos chamavam “razão pura” e que na Índia chamam de “coração-mente”
Os antigos egípcios tinham para ela um belo nome, “a inteligência do coração” e alcançar essa qualidade de entendimento era a meta implícita da vida. A prática da geometria, embora tenha uso também da faculdade analítica, usa e cultiva esse aspecto auditivo e intuitivo da mente. Por exemplo: um experimenta o fato do crescimento geométrico através da imagem do quadrado cuja diagonal forma o lado de um segundo quadrado. Se trata de uma certeza não fundamentada captada pela mente a partir da experiência real de executar um desenho. A lógica está contida traços no papel, que não se podem desenhar de outra forma.
Como geômetras equipados unicamente com compasso e réguas, entramos no mundo bidimensional da representação da forma. Se estabelece um vínculo entre os reinos do pensamento mais concreto (forma e medida) e os mais abstratos. Na busca das relações invariáveis que governam e inter-relacionam as formas nos colocamos em ressonância com a ordem universal. Ao reproduzir os princípios da evolução. E dessa maneira, a elevar nossos próprios padrões de pensamento a esses níveis arquetípicos, propiciamos que a força desses níveis penetre nossa mente e nosso pensamento. Nossa intuição se anima, e quiçá, como disse Platão, o olho da alma possa ser purificado e acesso de novo, “pois só através dele podemos contemplar a verdade”.
Um dos pressupostos fundamentais das filosofias tradicionais é que o propósito das faculdades intelectuais humanas é acelerar nossa própria evolução ao superar as limitações do determinismo biológico que restringem todos os outros organismos vivos. Métodos como ioga, meditação, concentração, artes, artesanato são técnicas psicofísicas para abordar esse objetivo fundamental. A prática da geometria é uma das técnicas esse
[1] Para uma Loja ser considerada justa e perfeita necessário é que três a governem (as luzes), cinco a componham e sete a completem.
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