terça-feira, 23 de maio de 2017

Os “obreiros de Salomão”

Autor: João Anatalino


Sinopse


Poucos acontecimentos na história da humanidade provocaram tantos desdobramentos na vida dos povos quanto a extraordinária experiência deixada pelos Cavaleiros Templários. Uma verdadeira cultura de lendas, mitos e tradições, derivadas da estranha saga vivida por esses monges guerreiros continua, ainda hoje, a despertar o interesse e a excitar a imaginação das pessoas. Quem eram esses bravos defensores da fé cristã que acabaram sendo sacrificados justamente pela suspeita de profanarem essa mesma fé? Possuiam mesmo segredos históricos e científicos que poderiam subverter todo o curso da história da civilização ocidental? Eram realmente hereges e conspiradores, que por estarem muito adiantes do seu tempo, se tornaram perigosos demais para o sistema e por isso tiveram que ser eliminados? Os Templários foram os inspiradores da Maçonaria e da Companhia de Jesus? Qual o fundamento histórico dessa tradição? Porque eram chamados de Filhos de Viúva? Quem era a misteriosa Virgem que eles adoravam? Quem, ou que, era o ídolo conhecido como Baphometh? Os Templários foram vítimas de uma conspiração, ou eles mesmos eram conspiradores?
Usando a forma literária do romance, o autor penetra a fundo na história dos Cavaleiros Templários, abordando esses e outros assuntos relativos á fantástica experiência vivida por esses famosos monges guerreiros, ao mesmo tempo santificados e amaldiçoados. Fundamentando-se nas crônicas escritas por autores antigos e modernos, e especialmente nas atas do processo que os condenou, a estranha e misteriosa saga dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão é reconstruída e mostrada em toda sua dramaticidade épica, com especial destaque para as influências e tradições que ela inspirou e ainda estão presentes na imaginação e no comportamento popular. Um misto de romance e história que leva ao leitor a uma fascinante viagem ao mundo do mistério e das sociedades secretas, que ainda hoje influenciam o comportamento das pessoas.


Depois da primeira oitiva, Jacques de Molay voltou para sua cela, muito preocupado. Primeiro porque, até aquele momento, o papa não havia se pronunciado acerca da prisão dos membros da Ordem e nem da sua própria detenção. Talvez não tivesse ainda sido informado disso. Afinal, Poitier, onde ele agora estava enclausurado, ficava a mais de trezentos quilômetros de Paris. 

Tinha certeza que Clemente V não concordaria com aquela violência praticada por Filipe, mas sabia também que o pontífice era politicamente fraco e o rei tinha muita ascendência sobre ele. 

Pelas perguntas do inquisidor-mor e pela amostra que dera no interrogatório, ele sabia o que o esperava. Tortura. Tortura moral e física. Horas sendo esticado no cavalete, fatiado na roda de esviceramento, humilhado e martirizado no “berço de Judas”, submetido ao suplício da forquilha ou do garrote, com os pés untados com gordura de porco e assados em fogo brando. Ele imaginava o que estava por vir e já antecipava as dores que sentiria. Estava velho, mas era ainda um soldado rijo e valente. Não cederia aos desejos de Nogaret, não diria para onde mandara o tesouro do Templo, nem confessaria os crimes que estavam sendo imputados á irmandade que ele chefiava. Ele estava pronto a morrer pelos segredos da Ordem e pelos seus objetivos. 

Jurara isso quando fora elevado a grão-mestre geral e se fizera guardião desses segredos. Mas esse, agora, se revelava ser um grande problema. Jacques de Molay sempre se ocupara dos assuntos militares, políticos e administrativos do Templo, porém jamais se preocupara com questões doutrinárias. A Ordem, desde que se tornara uma grande potência econômica, multiplicara suas atividades, se tornando, ela mesma, uma igreja dentro da Igreja e um estado dentro dos estados onde se instalara. 

Ele sabia que dentro da complexa organização que comandava, existiam vários grupos de interesses, cada qual se ocupando de seus proprios assuntos, nos quais a Ordem havia se envolvido nos últimos dois séculos. O Templo mantinha uma organização militar que cuidava das campanhas nas quais a irmandade estava envolvida; essa organização estava agora desmobilizada, com o fim das cruzadas, e isso o preocupava, pois soldados sem atividade, confinados em seus claustos, estão mais afeitos a influências ruins; havia um organismo burocrático, constituido por monges juristas, contabilistas e advogados, que cuidava dos interesses econômicos da Ordem, que eram muitos; isso, pensava de Molay, também era um perigo, pois a riqueza, tanto quanto o poder, era um poderoso elemento corruptor. 

Havia também um corpo eclesiástico, que cuidava da parte espiritual. Esse era o canal por onde as ideias estranhas á ortodoxia da Igreja havia penetrado na Ordem, e ali estava a maior de suas preocupações, pois ele pouco entendia sobre o cerne daquelas doutrinas, embora as repetisse para os seus irmãos e até nelas acreditasse, pois as recebera de seus antecessores e nunca lhe passara pela cabeça contestá-las. Jacques de Molay era um bravo soldado e um exímio administrador, mas em política e principalmente em questões filosóficas, que compunham a doutrina divulgada intramuros na Ordem que presidia, ele era tão despreparado quanto era iletrado. 

Havia dentro da Ordem um grande contingente de artesãos e mestres em construção civil, que cuidava das construções templárias, atividade essa que era uma das mais importantes dentro da organização que ele comandava. Desde os primórdios de sua origem, os templários haviam aprendido a construir seus próprios edifícios, arquitetonicamente projetados e erguidos de acordo com os seus propósitos, fossem eles militares ou religiosos. Dessa forma, espalharam pela Europa e pelo Oriente Médio um sem número de capelas, preceptorias, fortalezas e castelos, que causavam inveja nos nobres senhores feudais e no próprio clero. Pierre de Montreil, o famoso arquiteto, mestre dos maçons franceses, dizia-se, era um afiliado da Ordem. Nesse mesmo instante, seu primo, o cavaleiro Jean de Longwy, mestre eleito da Compagnonnage, estava comandando uma associação de compagnons, trabalhadores em construção civil, na construção de mais um transepto na Catedral de Notre Dame de Paris. 

Molay tinha conhecimento de que os chamados pedreiros-livres, conhecidos como maçons, formavam uma poderosa confraria, a qual tinha a sua própria liturgia e usavam, em sua cultura interna, uma estranha simbologia que ele não entendia nem fizera muita questão de conhecer. Tratava-se de símbolos ligados á geometria, á astrologia e á estranha ciência cultivada pelos judeus, que eles chamavam de Cabala. Ele sabia que tudo isso revelava um universo místico e transcendental, feito de conhecimentos muito profundos que a simplicidade do seu espírito não lograva alcançar. E isso, ele sabia, também despertava bastante desconfiança entre as autoridades eclesiásticas, sempre muito ciosas em relação á qualquer tipo de prática litúrgica que escapasse ao seu controle.

Algumas vezes conversara com seu primo, Jean de Longwy, sobre esses assuntos, tentando entender um pouco da complicada ciência que os maçons aplicavam em suas obras. Longwy lhe dissera, por exemplo, que a arte dos compagnons mantinha profundas ligações com conhecimentos do passado, conhecimentos esses que remontavam ás antigas civilizações como os egípcios, os caldeus, os gregos e os romanos. E que essa arte era uma forma de transcendência do espírito através do trabalho das mãos.

─ Como nosso mestre Vitrúvio ensinou ─ explicou-lhe Longwy─ a arte de construir edifícios, arquitetura, como a chamamos, possui duas faces. Uma, que é profana, consiste na aplicação da ciência para a obtenção da obra, e a outra, sagrada, que pr

Jacques de Molay, um rústico monge-soldado, não tinha a chave intelectual para entrar nesse estranho mundo da simbologia usada pelos maçons. Por isso pediu uma explicação mais simples.

─ Deus é como se fosse um arquiteto ─ disse Longwy. Ele constroi o mundo com as energias que tranforma em coisas sólidas, usando os princípios da Geometria. Por isso nós o chamamos de Grande Arquiteto do Universo.

─ Ainda não dissestes nada que me seja inteligível ─ queixou-se Jacques de Molay.

─ Pensai no seguinte ─ disse Longwy. Um artesão pega uma pedra e esculpe nela uma forma. Ao fazer isso ele está imitando o gesto criador de Deus. Ele está colocando sobre a matéria bruta a força do seu espírito, como Deus faz com o mundo. É a energia divina, transformada em formas físicas, que constitui este mundo em que vivemos. Quanto mais perfeita for a obra obtida, mais se revela a perfeição do espírito criador. No trabalho na pedra o espírito do artesão se realiza. É a mesma coisa quando construímos um edifício. Nele se revela o espírito do seu idealizador. Prestando culto aos seus deuses ou perpetuando as virtudes da pessoa ou do povo que os construiu, os edifícios revelam o verdadeiro espírito do homem e do tempo em que ele viveu. É o espírito humano que flui, pela habilidade de suas mãos. Por isso a arte do maçom é sagrada e precisa ser tratada como se fosse uma verdadeira religião.

─ É por isso então que vossas reuniões são secretas e vossos conhecimentos não podem ser transmitidos a não ser aos aprendizes de vossa própria escolha? ─ perguntou de Molay.
─ Exatamente ─ respondeu Longwy. Nossa ciência se assemelha aos segredos que nos são transmitidos no Círculo Superior da nossa Ordem eclesiástica. Da mesma forma que eles só podem ser compartilhados pelos irmãos que detém o mesmo grau de conhecimento, na nossa confraria dos pedreiros-livres essa estratégia também é usada.

─ No nosso caso eu posso entender a razão ─ disse de Molay. ─ Imaginai se os noviços, os capelães, os sargentos e todos os membros da Ordem viessem a conhecer os nossos mais altos segredos. O que aconteceria se todo o conhecimento acumulado pela nossa irmandade viesse a público e fosse compartilhado por pessoas sem caráter, ambiciosas, maldosas? Que mal isso não faria ao mundo?

─ Tocastes no ponto sensível da questão ─ disse Longwy. ─ Pois o segredo dos maçons também exige o mesmo cuidado. Porque só verdadeiros iniciados na nossa arte sabem que o movimento giratório da terra emite forças que seguem uma trajetória horizontal. Essas forças são as correntes que fazem movimentar os mares, os ventos, os assentamentos da crosta terrestre, a direção dos vapores que se formam no interior do planeta, enfim, tudo que constitui a força telúrica que dá vida á terra. Essas correntes percorrem o interior do planeta numa trajetória sinuosa que parece uma serpente no seu movimento. Por sua vez, os astros no firmamento despejam sobre a terra forças que se projetam nela numa trajetória vertical. No cruza-mento dessas linhas energéticas, horizontais e verticais, situam-se os pontos telúricos do planeta, que os orientais chamam de “chacras” da terra. É nesses pontos que devem ser construídos os edíficios que estão destinados a se tornar símbolos da passagem do homem sobre o nosso planeta. Edifícios que ligam o espírito humano com a divindade. A ciência para fazer esses cálculos e determinar o local e a estrutura do edifício a ser construído, só um mestre maçom possui. E esse é um segredo que só pode ser compartilhado com um iniciado. Assim como os marinheiros do Templo utilizam o conhecimento que têm das correntes marítimas para velejar para continentes distantes, nós também usamos nosso conhecimento das correntes telúricas para construir esses centros de captação dessa energia. Pois se um dia os “pontos de encontro” entre Deus e o homem forem construídos em qualquer lugar, sem a devida técnica, então a própria espiritualidade do homem estará comprometida.

─ Estais a dizer que alguns edifícios realizam um propósito divino só conhecido pelos maçons? ─ perguntou, incrédulo, de Molay.
─ Isso mesmo ─ respondeu Longwy. ─ Os antigos mestres sabiam identificar esses pontos de cruzamento das forças cósmicas. A Bíblia está cheia desses exemplos. O lugar onde Jacó viu uma escada, pela qual anjos subiam e desciam, é um deles. As pirâmides do Egito, os menires de Stonehenge, o templo da deusa Athena, que vós conheceis como Partenon, também. E o próprio Templo de Salomão, que como sabeis, foi construido sobre a Rocha do Domo e por mais que seja destruído, sempre é reconstruído no mesmo lugar. Várias catedrais e outros templos, em todo o mundo, também são construídos segundo essa ciência. Aqui mesmo em Paris, temos a nossa Notre Dame, que como sabeis, foi construída no local onde havia um Templo dedicado á Isis, nossa mãe viúva. Sobre essas coisas, só os mestres maçons sabem...

Jacques de Molay nem estava ouvindo mais a bizarra arenga do seu sobrinho e irmão de armas. Pensava na estranha concidência de os templários terem sido alojados exatamente nas ruínas do antigo Templo de Jerusalém, que fora erguido por Herodes, sobre as ruínas do antigo Templo de Salomão. Teria alguma coisa a ver com essas crenças que Longwy professava?

─ E nós, irmão grão-mestre ─ disse Longwy, sem se dar conta de que pensamento do monge comandante havia se evadido para longe ─ somos o Templo do Senhor. Ele nos constroi com a mesma fórmula com que faz o universo. Cada um de nós é uma composição numérica e geométrica que resulta em uma forma específica. O nosso grande mestre Vitrúvio nos ensinou isso. “Estudai a estrutura do corpo humano, e encontrareis a fórmula pela qual Deus constrói o universo” ─ completou ele.

Jacques de Molay não respondeu. Limitou-se a olhar para Longwy com olhos de quem estava tentado concatenar, em sua cabeça, algumas informações que tinha, mas nunca entendera. A terra e o homem. Forças que se cruzam no interior da terra em movimentos ondulatórios, que parecem o rastejar de uma serpente. O ritual de iniciação templário. O beijo no umbigo, o beijo na boca, o beijo na base da espinha dorsal. Algumas conexões, ainda muito tênues para fazer sentido, começaram a surgir na sua mente. Aquilo que sempre lhe pareceu uma perversão do ritual de iniciação templário, talvez tivesse, afinal, alguma razão de ser...

O grão-mestre do Templo ficou sabendo então a razão de os maçons manterem aquela estranha tradição que os remetia aos construtores do Templo de Salomão, a quem se diziam ligados por laços de conhecimento e transmissão iniciática, que eram compartilhados entre eles através de sinais, símbolos e palavras de passe. 

Não via nada de estranho nisso, porquanto a própria Ordem que ele comandava também tinha seus segredos ritualísticos, seus sinais de reconhecimento e suas palavras de passe, que foram desenvolvidos na Terra Santa para que os irmãos se reconhecessem e conservassem as regras da irmandade dentro dos círculos restritos a que cada capítulo se circunscrevia. Toda confraria, fosse ela religiosa ou laica, tinha sua própria linguagem simbólica, que lhes servia de meio de comunicação. Na própria Ordem do Templo, palavras como Montjoie, Beauséant, Shibbolet, Moabon, Huzah, eram palavras de passe ou de reconhecimento, usadas pelos templários na Terra Santa para se identificarem em um ambiente infiltrado de espiões dos inimi-gos.

A guilda dos pedreiros-livres, associação conhecida como Compagnonnage, formada pelos profissionais da construção civil era uma confraria laica, mas se comportava como se fosse uma seita religiosa. E como tal já havia chamado a atenção da Igreja, por causa dos seus “segredos iniciáticos.” Esses segredos incorporavam uma simbologia e uma linguagem própria, que lhes permitia comunicar entre si os conhecimentos da profissão de uma forma que quem fosse estranho ao metier não os pudesse entender. Era um conhecimento que passava de mestre para aprendiz, em uma cadeia iniciática feita de símbolos, diagramas, lendas, palavras de passe e ritos de passagem, que se assemelhavam ás antigas práticas dos hierofantes egípcios e gregos. Destarte, a tradição dos pedreiros-livres, incorporava antigas tradições egípcias, fenícias, persas, gregas e principalmente judaicas, sempre relacionadas com o mistério da construção do Templo de Salomão. Nisso estava a sua ligação simbólica com a Ordem do Templo, pois os compangnons, também chamados de “Pedreiros do Bom Deus”, eram, como os monges-cavaleiros do Templo, ‘obreiros’ do Templo do Rei Salomão ─ símbolo da construção da humanidade autêntica ─ guiada pelo verdadeiro e único Deus. Nessa identidade mística e simbólica estava o elo que os ligava.

(síntese do capítulo VIII do livro Os Monges Malditos, São Paulo, 2014)


João Anatalino

Nenhum comentário:

Postar um comentário