ENSAIO SOBRE A SIMBOLOGIA DO GALO
Por João Fábio Bratga.
O senhor se voltou e olhou para Pedro; este recordou o que lhe havia tido o Senhor: “Antes que o galo cante, me negará três vezes”. (São Lucas, 22:61).
O símbolo do Galo aparece em muitas tradições religiosas e iniciáticas. Nas culturas antigas e herméticas, ele aparece como uma criatura celestial e anuncia a ressurreição solar. A sua simbologia está associada à moralidade e à consciência de vigília, e também com a morte e a ressurreição.
O estudo dos símbolos requer uma profunda análise comparativa tanto de estruturas analógicas cientificamente utilizadas quanto analogias iniciaticamente usadas para se compreender os mistérios. Segundo o psicanalista Carl Jung, o conceito de arquétipo[1] está relacionado à estruturas que servem de matriz para a expressão e desenvolvimento da psique. O arquétipo é uma espécie de imagem apriorística[2] que está ligada profundamente no inconsciente coletivo[3] da humanidade, projetando-se imagens primordiais em diversos aspectos da vida humana, ou seja, imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos.
As imagens primordiais, outro nome para arquétipos, surgem da constante repetição de uma mesma experiência durante gerações. Eles são as tendências estruturantes e invisíveis dos símbolos; criam imagens ou visões que balanceiam alguns aspectos da atitude consciente dos sujeitos. Em outras palavras, esses arquétipos se associam ao amor fraternal, o ritual do casamento, o medo do escuro, a crença de que o movimento dos astros no céu influencia a vida na terra, o respeito para com os mortos, a crença na existência de seres sobrenaturais, etc.
Se é verdade que Jung elabora na sua psicologia analítica, o arquétipo do Galo, que estrutura o símbolo, encontra-se no inconsciente coletivo como unidade psíquica de muitas tradições religiosas e esotéricas. A mesma explicação sustenta afirmação de que os mitos e lendas serem muito similares e parecidos. O antropólogo Claude Lévi-Strauss afirmava que a função estrutural dos mitos é dá sentido a vida e pôr ordem no mundo, por isso dizia “os mitos conversam entre si”, é uma maneira lógica de compreender as contradições reais impossíveis de serem superadas. Segundo Papus[4], numa visão da tradição iniciática, compreende o símbolo como imagem material de um princípio a que um símbolo se liga analogicamente, ou seja, numa escala de correspondências analógicas que varia dos mais elevados aos mais inferiores. As correspondências e correlações dos símbolos se encontram nas mais remotas tradições, mitos, culturas e mistérios.
Considerando essas estruturas teóricas, o simbolismo do Galo tem inspiração nos cultos solares da antiguidade. O sol é símbolo universalmente adotado como divindade e está ligado as outras estruturas de significados: esperança, pureza e perfeição. Na tradição japonesa, a mitologia xintoísta divulgava a crença de que o canto do Galo era responsável para que o Sol brilhasse, caso contrário não nasceria. O sol é o ícone principal do país e ornamenta até hoje a bandeira japonesa. Até hoje existe um festival tradicional dedicado exclusivamente a ele.
Na tradição cristã, os cristãos adotaram o Galo como símbolo do arauto anunciador das boas novas. Não há dúvidas de que o cristianismo foi influenciado pelos cultos solares da antiguidade. Segundo uma tradição divulgada pelos cultos mitraístas, o galo cantou no momento do nascimento de Mitra[5]. Por essa razão, o mito viria a ser incorporado pelos Bispos de Roma, dando origem à conhecida Missa do Galo, realizada na passagem do dia 24 para o 25 de dezembro, marcando o nascimento de Jesus. Não há comprovação histórica de que Jesus tenha nascido nessa data, mas nessa data se comemorava o nascimento de Mitra, e foi adotado pela Igreja Romana para fundir os dois cultos, já que esse culto à esse deus persa era muito forte entre os romanos. As datas também correspondem o início do solstício de inverno (hemisfério norte) que os mitraístas costumavam celebrar o culto ao Deus Sol.
A simbologia mitraísta serviu para os propósitos cristãos, o nascimento de Jesus significava para o cristianismo surgimento de uma nova luz para o mundo, o renascimento da humanidade mergulhada na ignorância espiritual. Conta a lenda, em alusão à Missa do Galo, conhecida como a missa da luz, a única vez que o Galo cantou foi à meia-noite anunciando a natalidade do menino Jesus. Entre os católicos, o galo lembra a Penitência e São Pedro que negou Cristo antes do galo cantar três vezes. O galo também aparece em muitas torres de Igrejas. Os cristãos primitivos se reuniam ao primeiro canto do galo. Na antiguidade cristã, o canto do galo era ouvido com alegria durante a noite, pois espantava os supostos demônios, dissipando o terror da noite.
Na cultura dos povos africanos, o galo é visto como cooperador do deus Olurum. Ele foi numa missão à terra junto com o seu primogênito Obotala para organizar o caos primordial[6]. Os ciganos, por sua vez, enxergavam o galo como o anunciador do dia e da luz. Para os gregos, o galo simbolizava Alectrion[7], a sentinela celeste que avisava o mundo sobre a chegada do sol.
Alguns países adotam o galo como símbolos nacionais. França e Portugal são os países mais conhecidos. Para os franceses, ele representa a luz e a inteligência, pois está conectado com a ação de despertar. A palavra Gália, nome antigo do país, derivaria do gallus[8], palavra latina, significando galo. O símbolo do Galo desempenhou um papel importante na República Francesa. Desde 1848, o Galo aparece na cota de armas da República Francesa, em que a Liberdade está sentada num leme decorado com um galo.
Em Portugal, essa tradição está ligada com a lenda do galo de Barcelos. Conta a lenda, um habitante do burgo de Barcelos, sendo acusado de um crime, alegava inocência. Todos os indícios eram contra ele e o mesmo não tinha capacidade de se defender. Então ele viu um galo morto dentro de um cesto e disse ao juiz: “se esse galo cantar significa que eu sou inocente”. O galo cantou e ele foi absolvido. Era costume também nas aldeias portuguesas como a espanhola, as pessoas levarem o galo para a igreja para vê-lo cantar durante a missa. Caso cantasse, todos ficariam felizes, pois representava o prenúncio de boas colheitas.
Nas tradições esotéricas e iniciáticas, o galo é visto como símbolo da vigilância e da mente perpetuamente desperta. Na alquimia era usado para simbolizar o mercúrio filosófico, isto é, o princípio em que desperta a “alma para Grande Obra”, possibilitando sua transmutação e exaltando o princípio da pureza, da inteligência e da sabedoria. Na astrologia, o planeta mercúrio rege a expressão da verdade, pois é o enviado de Deus. Representa Apolo, deus do sol e simboliza a luz. No mesmo sentido, usando as correspondências e analogias, o Galo é o gerador da esperança, o anunciador da Ressurreição, pois o seu canto marca a hora sagrada do alvorecer, ou seja, o triunfo da Luz sobre as Trevas. Na maçonaria, o Galo está associado à transformação do candidato profano ao iniciado; representando o alvorecer de sua nova existência, ou seja, simbolicamente o neófito morre como profano e renasce num plano de espiritualidade mais completo e elevado.
Portanto, o Galo é mais do que um arquétipo que fundamenta uma ordem moral e social. Ele é o símbolo da Verdade, da Vida e da Sabedoria; o galo é a própria Luz. O Galo é o arauto de si mesmo, no movimento constante de meditar e despertar a consciência, exercitando – a vigilância dos defeitos e dos erros; e a perseverança na busca do conhecimento e da verdade como norteadores no aprimoramento espiritual, intelectual, moral e social. Por essas razões, não deixe de alimentar o Galo.
[1] Um dos principais estudos de Jung se refere à simbologia. Ele entende de que o inconsciente se expressa primariamente por meio de símbolos. Os símbolos são a linguagem do inconsciente, que retrata, por analogias, aproximações e outras relações menos inteligíveis, conteúdo de uma determinada sensibilidade, que a mente racional ainda não consegue classificar. Os arquétipos são elementos estruturais formadores do inconsciente coletivo da humanidade e dão origem tanto às fantasias individuais quanto à mitologia de um povo em geral. Exemplos como Adão, Hércules, Cristo, Osíris, Prometeu, bem como duendes, magos e feiticeiros, todas as entidades do bem e do mal, são elementos comuns a toda a raça humana.
[2] A priori é o conhecimento ou justificação independente da experiência.
[3]Segundo o conceito de psicologia analítica criado pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, é a camada mais profunda da psique. Ele é constituído pelos materiais que foram herdados, e é nele que residem os traços funcionais, tais como imagens virtuais, que seriam comuns a todos os seres humanos. O inconsciente coletivo também tem sido compreendido como um arcabouço de arquétipos cujas influências se expandem para além da psique humana. Em outras palavras, a humanidade compartilha um inconsciente coletivo, ou seja, um conjunto de institutos culturais simbólicos, que se tornam estruturas psíquicas comuns a todos os grupos humanos, em todos os tempos.
[4] Gérard Anaclet Vincent Encausse (Corunha, Espanha, 13 de Julho de 1865 — Paris, França, 25 de Outubro de 1916), mais conhecido pelo pseudônimo de Papus, foi um médico, escritor, ocultista, rosacrucianista, cabalista e maçom
[5] Mitra é o deus da Luz, cuja função na sociedade humana é proteger a verdade e manter as pessoas afastadas da falsidade e do erro.
[6] Esse mito ainda é cultuado no candomblé brasileiro.
[7] Segundo narrativa grega Áries (Marte) passava as noites com Afrodite durante a ausência do esposo Hefaistes (Vulcano) e havia incumbido Alektraon de ficar vigiando a chegada do marido. Mas Alektraon dormiu e o marido surpreendeu os amantes. Áries para castigar o falso vigilante transformou em um galo. Alektraon que em grego antigo quer dizer galo, uma ave castigada a eterna vigilância.
[8] Esse era o nome pelo qual os romanos denominavam os habitantes da região, por causa do culto que os gauleses prestavam ao Pássaro da Manhã.
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