quarta-feira, 19 de julho de 2017



A ORIGEM DAS FRATERNIDADES

Por João Anatalino


MAAT – O EQUILÍBRIO UNIVERSAL


A tradição hermética sustenta que houve uma época na vida da humanidade em que todos os homens tinham consciência da unidade do Universo e sabiam que o céu e a terra eram complementos um do outro. Ambos refletiam a consciência maior que os havia pensado. Era um mundo unificado por dentro e por fora, onde tudo estava em tudo, o que estava dentro era igual ao que estava fora, o que estava embaixo era igual ao que estava em cima, e dessa forma o Universo se mantinha em equilíbrio constante.

Essa concepção, cosmológica em sua origem, religiosa em sua prática, evoluiu mais tarde para o plano social e ético, dando fundamento a elementos culturais importantes que moldaram comportamentos e inspiraram crenças que ainda longe informam boa parte de nossa vida espiritual.

Esse equilíbrio era mantido por uma relação de estreita reciprocidade entre homens e deuses. Os primeiros lhes prestavam culto e os segundos controlavam a Natureza para que esta sempre lhes aparecesse sob uma forma amigável. Daí a religião animista dos povos antigos, com sua profusão de deuses identificados com as forças da Natureza.

Já antes dos tempos históricos essa noção podia ser observada na cultura religiosa dos povos do Nilo. Bem do antigo Egito, anterior aos Faraós, a noção de que esse equilíbrio era realizado pela deusa Maat, a qual agia como uma intermediária entre os homens e os deuses, recolhendo na terra os influxos das boas ações praticadas pela humanidade e levando-as para o céu, como alimento para as divindades; e deles ela trazia para a terra as benesses concedidas, como contraprestação das ações humanas realizadas em sua homenagem.

Assim, o equilíbrio universal era mantido pela prática da maaty, ou seja, o viver de forma virtuosa, praticando a verdadeira justiça. Desse modo, a ética, a ecologia e a responsabilidade social estavam solidamente vinculadas ao espírito religioso e este, por sua vez, se refletia no sistema jurídico, formando um todo harmonioso que dava vida à sociedade, regulando as relações do homem para com a divindade e entre eles mesmos.

Destarte, a pátria e o povo eram a noção ampliada da família do rei-sacerdote, aquém incumbia a mediação dessa relação entre o profano e o sagrado, que se realizava por meio dos ritos apropriados, instituídos pelos próprios deuses.[1]


AS CIDADES ANTIGAS



Entre os gregos a noção de estabilidade social estava estreitamente ligada à ideia de fraternidade. Os grupos familiares eram chamados de frátrias. Esses grupos congregavam as pessoas da família e todos os agregados que de alguma forma tivessem relação de parentesco com o chefe da família, ou qualquer ligação profissional, social ou legal, com o núcleo familiar. Dessa conformação, em princípio moldada por vínculos de sangue e depois por interesses sociais, religiosos, políticos e econômicos, evoluiu a noção de clã – a família ampliada – e da reunião de clãs formou-se, mais tarde, a pólis, que era a comunidade circunscrita a uma urbe.

Foi esta última que deu origem às cidades-estados da Grécia antiga e da Península Itálica. Praticamente, todas as cidades do Ocidente clássico evoluíram a partir desses núcleos familiares. Iremos encontra-los também em Roma, na estrutura do patriciado, assim chamados os núcleos familiares que deram origem ao Estado romano e foram responsáveis por uma estrutura social que sobreviveu por muitos séculos.

Fustel de Coulanges, em sua obra clássica, conta como essa evolução se procedeu: “Assim a cidade-estado surgiu, como resultado desse tipo de organização familiar. A cidade em uma grande família. Família, frátria, tribo, cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma série de federações. No mundo antigo era o culto que constituía o vínculo unificador de toda e qualquer sociedade. Cada cidade tinha seus deuses, assim como a família. O sacerdote máximo da cidade era chamado rei, como era o pai dentro da família. E, aqueles que era da família, chamada cidade, era o cidadão; portanto era cidadão todo homem que tomava parte no culto da cidade e estrangeiro aqueles que não compartilhava do mesmo culto. A cidade em seus primeiros tempos nada mais era do que a reunião dos chefes de família”, escreve aquele autor.[2]

A própria fundação de Roma não escapou a essa conformação. Nesse sentido, a chamada Cúria Hostilia (reunião dos chefes tribais italianos), sob o comando de Rômulo, é tida como sendo o núcleo histórico do Senado romano e mais tarde o alicerce da República. Sua sede foi construída originalmente como um templo etrusco sobre o local onde as diversas facções tribais depuseram suas armas, após elegerem Rômulo para seu rei (771-717-a. C.).

Isso nos mostra como a organização social se constrói e se apoia na perenidade de certos arquétipos[3] cultivados pela mente humana e nos permite deduzir que, quando essas estruturas arquetípicas são esquecidas e relegadas a um segundo plano na vida das sociedades, elas declinam e acabam por desaparecer, como registra Gibbons em sua obra clássica.[4]

Por esse prisma se pode perceber também que a liga que mantinha a unidade primordial das antigas sociedades estava principalmente no compartilhamento da religião. Esse era o principal elemento constitutivo da família antiga. E a família, como vimos, não se constituía só por conta de ligações afetivas ou condições de nascimento, mas tinha como principal fundamento o poder do pai como sacerdote do lar. Ele, como patriarca, era o centro no qual girava todo o núcleo familiar. Destarte, a família não era formada apenas pelos ascendentes e descendentes do núcleo principal – o pater famílias, o patriarca -, mas por todo o grupo de pessoas a quem a religião permitia partilhar o mesmo lar e oferecer respaldo fúnebre aos antepassados comuns. Em razão dessa tradição, a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi o casamento, pois este erra considerado praticamente um novo nascimento, já que por ele se instituía um lar, onde se mantinha o vínculo dos descendentes com seus ancestrais e o culto aos mesmos deuses lares, assim como se compartilhava a terra onde os túmulos dos antepassados se encontravam. É aqui que se identificam também a origem da sacralidade do casamento e a instituição da monogamia como arquétipos garantidores da perenidade da família.[5]

Da mesma forma, a instituição da propriedade privada como direito de família também teria origem na crença de que os mortos precisam ter um pedaço de terra para continuar suas vidas após a morte. 

A pessoa sem túmulo conhecido, além de ser uma alma sem direito a repouso no mundo dos desencarnados, era também um fracassado que não legara aos seus descendentes uma base de continuidade para seu núcleo familiar. Foi dessa forma que os povos da Grécia e da Itália desenvolveram o instinto da propriedade privada, derivando-a da própria tradição religiosa, pois o solo onde repousavam os mortos constituía, por força dessa crença, uma propriedade inalienável e imprescritível que não podia ser perdida sob pena de destruição do próprio núcleo familiar. Assim, o direito de propriedade, fundamentado na prática de um culto hereditário, não acabava com a morte de um único indivíduo, porque a propriedade não pertencia a ele, mas à família.[6] Essa tradição foi observada também entre os hebreus, como nos mostra o episódio descrito em Gênesis, 23, em que Abraão, peregrino em terra estrangeira, compra de um homem chamado Efron um campo para fazer uma tumba para sua esposa Sara.

Com essa prática se mantinha a estreita ligação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, representada pelo respeito que as frátrias dedicavam às suas divindades e na tradição mantida por elas, de honrar seus ancestrais falecidos como intermediários entre os vivos e os mortos. Em Roma, esses ancestrais eram conhecidos como manes ou deuses lares, de quem se faziam pequenos bonecos de madeira que eram colocados nas aras (altares) domésticos. Na Ilíada e na Odisseia também se percebem traços distintivos dessa tradição na forma peculiar de os gregos honrarem seus ancestrais.


A FRATENIDADE MAÇÔNICA



Assim, o termo “fraternidade”, que na origem era aplicado a um grupo de tradições comuns, vem do grego frátria, que na antiga Atenas designava uma associação de cidadãos, unidos pela mesma cultura religiosa e compartilhante dos mesmos arquétipos. Cada frátria formava uma unidade política e religiosa. A legislação de Sólon legitimou essas associações, determinando sua composição em 30 frátrias.

O desenvolvimento ulterior das sociedades, que de famílias se tornaram tribos, de tribos passaram a povos, de povos a nações, nações a Estados, forçou a incorporação de elementos culturais estranhos à sua estrutura nuclear. A tradição antiga da frátria como núcleo fundamental da comunidade se perdeu, mas essa noção jamais deixou de existir no inconsciente coletivo da humanidade. Ela seria conservada na tradição de todos os povos, por meio dos grupos que então se formaram para o compartilhamento de tradições e defesa de interesses comuns. Esses grupos, nos quais identificamos os iniciados nos Antigos Mistérios e também as corporações obreiras da Antiguidade, antecessoras das guildas medievais, estão na origem de todas as sociedades, religiosas ou laicas, que buscam preservar, manter, divulgar ou cultuar determinados elementos arquetípicos próprios de suas culturas.

Foi dessa tradição e do que ela representa, em termos de compartilhamento de uma tradição feita de arquétipos comuns, que evoluiu a ideia que nutre a vida corporativa. De uma de suas vertentes fluiu a noção que informa a moderna Maçonaria, que por definição é uma sociedade universal de homens de boa vontade, cujo objetivo é defender a liberdade de pensamento, a igualdade entre as pessoas e a fraternidade entre os povos da terra.

Essa definição é colocada tendo em vista a Maçonaria Especulativa, ou seja, a organização que se tornou conhecida por esse nome em algum momento no fim da Idade Média, formada pela associação entre os profissionais da construção civil – conhecida como Maçonaria Operativa – e membros da sociedade (militares, intelectuais, artistas, comerciantes, cientistas, etc.), transformando as antigas corporações dos pedreiros livres em verdadeiros clubes de pessoas ilustres, com o objetivo de defender um ideal de progresso e liberdade.

É com essa noção que trabalhamos hoje o conceito de Maçonaria e é com ela que desenvolveremos os temas expostos neste livro.

(Texto extraído do livro “O Tesouro Arcano, a Maçonaria e seu Simbolismo Iniciático – João Anatalino Rodrigues – Editora Madras)


[1] Daí o desenvolvimento dos chamados Mistérios, rituais religiosos que visavam honrar os deuses e imitá-los em seus processos de criação das realidades universais. 

[2] Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, p. 23. 

[3] Arquétipo (grego ἀρχή - arché: principal ou princípio e τύπος - tipos: impressão, marca) é o primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, antigas impressões sobre algo. É um conceito explorado em diversos campos de estudo, como a Filosofia, Psicologia e a Narratologia
Modelo, tipo, paradigma. 

[4] Edward Gibbons, Ascensão e Queda do Império romano, 1986. Esse arquétipo é construído em cima da hierarquia existente no poder do pater famílias, que, em sentido amplo foi depois estendido para a figura do rei 

[5] É aqui, também, que se identifica o surgimento do costume de considerar a pessoa que compartilha da mesma cultura simbólica como “iniciado, Irmão” e o que não compartilha como “profano, estrangeiro”. 

[6] Ibidem, Fustel de Coulanges, op. Cit.p. 25

Nenhum comentário:

Postar um comentário