terça-feira, 3 de novembro de 2015


A TORRE DE BABEL

Autor: João Anatalino

“ E por isso lhes foi posto o nome de Babel, porque aí foi confundida a linguagem de toda a terra, e daí os espalhou o Senhor por todas as regiões.”Gênesis, 11;9.


Nenrod foi um famoso rei dos caldeus
Que construiu a grande torre de Babel.
Há quem diga que ele queria ir ao céu,
E disputar poder com o próprio Deus.

O mundo ainda era jovem naquele dia, 
Poucas tribos naquela terra habitavam,
E uma só era a linguagem que falavam
Por isso é que todo mundo se entendia.

Mas Deus, entrevendo o grande perigo,
Que a torre ia trazer para aquela gente,
Pois ali o que havia era só superstição,

Para aquele povo enviou como castigo,
Para cada pessoa uma língua diferente;
Babel se tornou sinônimo da confusão.

Comentário:

A Bíblia informa em Gênesis 11: 1;9, que a diversidade de línguas existente na terra tem origem numa malfadada obra de construção civil intentada pelos descendentes de Noé, após o dilúvio. Essa obra, que teria sido iniciada num lugar chamado Senaar, supostamente no sítio onde hoje se localizam as ruínas da antiga cidade da Babilônia, foi idealizada por um rei chama-do Nenrod, referido na Bíblia como o “grande caçador perante o Eterno” (Gênesis 10;9). Essa construção, identificada como sendo uma cidade com uma enorme torre no meio dela, feita de tijolos de barro cozidos, ligados com betume por argamassa, revelaria, segundo os cronistas bíblicos, uma intenção vaidosa dos seres humanos, pois estes queriam “tornar célebres seus nomes”. 


Historicamente, não se nega que a Torre de Babel pode ter, de fato, existido. Restos de construção do tipo citado pela Bíblia e pelos historiadores antigos que trataram desse assunto têm sido, amiúde, desenterrados em vários sítios arqueológicos do Oriente Médio. Especialmente nos lugares onde se supõe que o modelo que teria servido para a história bíblica foi erguido.
Afinal, anteriormente aos tempos em que a Bíblia começou a ser compilada (provavelmente no século VII a.C, no reinado do Rei Josias, de Judá)[1] os povos habitantes da Mesopotâmea, região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, já ostentavam uma adiantada civilização, bastante urbanizada, com grandes cidades, tais como Ur, Eridu, Uruk e a famosa Babilônia, que já nos tempos de Heródoto era considerada a maior e mais bela cidade do mundo. Segundo esse historiador, em 440 a C, ele viu em Babilônia os restos de “uma torre de compostería sólida, de 201 metros de comprimento por 50 de largura, sobre a qual estava erguida uma segunda torre, e nessa uma terceira, e assim até oito. A ascensão até ao topo está do lado de fora, por um caminho que rodeia todas as torres. Quando se está a meio do caminho, há um lugar para descansar e assentos, onde as pessoas podem sentar por algum tempo no seu caminho até ao topo. Na torre do topo há um templo espaçoso, e dentro do templo está um sofá de tamanho invulgar, ricamente adornado, com uma mesa dourada ao seu lado” .[2] 

De uma forma geral, os historiadores concordam que a inspiração bíblica para a história da Torre de Babel deve estar nos famosos “zigurats”, enormes torres que os povos mesopo-tâmicos construiam para servir de templos e observatórios astrológicos, e que ainda estavam em voga nos tempos de Heródoto. Na literatura encontrada na famosa Biblioteca de Assurbanipal, rei assírio do século VII a C., que sitiou e destruiu o reino de Israel, já se encontram muitas referências a esse tipo de construção e sua utilização. Ali estão registradas várias lendas da literatura suméria que se referem a esse assunto. Uma delas, por exemplo, diz que Amar-Sin (2046-2037 a.C.), o terceiro monarca da Terceira dinastia de Ur, tentou construir um zigurate na cidade de Eridu, o qual nunca foi terminado. Ali se encontra também outra informação que pode ter servido de inspiração para os cronistas bíblicos, não só para o episódio da Torre de Babel, como também para a criação do personagem chamado Nenrod, que por suposto teria sido o idelaizador dessa obra. É a história do rei Enmerkar (i.e. Enmer, o Caçador) rei de Uruk, que teria construído um grande “zigurat” naquela cidade. Essa história também se refere á briga entre dois deuses rivais, Enki e Enlil, que disputavam as honras desse templo construído por Enmerkar, o Senhor de Aratta, e em razão disso acabam por confundir a linguas dos povos que trabalharam nessa construção. 

Outros registros há na literatura suméria e babilônica sobre esse assunto, que levam os estudiosos a pensar que a inspiração bíblica vem dessas fontes. O rei Nabopolassar, por exemplo, também citado na Bíblia pelas incursões que realizou contra os judeus, é referido como sendo um grande construtor e um dos principais reis a fazer da Babilônia a cidade mais importante do mundo em seus dias. Ruínas do magnífico palácio residencial que ele construiu e do suntuoso templo para o deus Ninurta, podem ser vistas ainda hoje. Porém o seu mais ambicioso empreendimento arquitetônico foi a reconstrução do zigurat Etemenanki, conhecido como “Fundação do Céu e da Terra”, gigantesca torre escalonada que servia de templo e observatório astrológico. 

Linguisticamente, o nome Babel é o corrrespondente grego do termo acadiano Bãb-ilu, que significa o “Portal de Deus”. Assim temos a conotação luciferina dessa obra, adotada pelos cronistas bíblicos e aceita pelos comentadores da Bíblia, espe-cialmente os compiladores da Mishná, conjunto de comentários rabínicos à Biblia, que viam na Torre de Babel uma rebelião contra Deus. Em alguns desses mishnás (comentários) encon-tramos inclusive a idéia de que a construção da Torre foi feita para desafiar Deus, mas principalmente para contrariar Abraão, um dos principais sacerdotes da Caldéia, na época, que vivia criticando seus pares e concitando-os a reverenciar Jeová, ao invés de desafiá-lo. Uma passagem da literatura rabínica que se refere a esse assunto diz que os construtores falavam palavras afiadas contra o Senhor, palavras essas não registradas na Bíblia, informando, inclusive, que uma vez em cada 1656 anos, o céu era sacudido por Ele para que chovesse um dilúvio sobre os ingratos filhos de Adão. Por isso eles iram construir essa torre e suportá-la com colunas firmes o suficiente, para que pudesse resistir a qualquer outra inundação que Deus viesse a mandar sobre a terra. Os comentários do Talmud e o historiador Flávio Josefo também se referem a essas tradições em seus comentários à Bíblia, se referindo a Nenrod como o principal articulador dessa obra. [3]. 

A Torre de Babel também é referida no terceiro livro de Baruque, chamado Apocalipse de Baruque, onde esse visionário profeta, á semelhança de Dante em sua Divina Comédia, vê os construtores da Torre de Babel na forma de cães, sofrendo o castigo que Deus lhes inflingiu.[4] 

Para os antigos sacerdotes caldeus os zigurats eram vistos como portais pelos quais os deuses poderiam entrar na terra. Eles ligavam a terra ao céu, e da mesma forma que os habitantes do céu poderiam vir á terra através desses portões, os homens poderiam também entrar no céu por eles. Daí o temor dos Elhoins (e não de Deus), de que o céu fosse invadido por essa raça degenerada, que eram os humanos gerados pelos anjos caídos. Por isso se diz na Bíblia “vinde pois e confundamos de tal sorte sua linguagem, para que um não compreenda o outro”, assim mesmo, no plural, como a mostrar que não foi Deus quem fez essa obra, de confusão de línguas, mas sim um grupo (de anjos, os Elhoins), como sugerem os comentadores do Talmud e principalmente os cultores da Cabala mística.[5] 

A ideía da existência de uma língua única na terra nos tempos em que a Bíblia identifica a construção da Torre de Babel não é aceita pela maioria dos estudiosos. A tendência é ver esse mito como memória de um processo de organização dos reinos mesopotâmeos, os quais passaram por uma série de ascensões e quedas de diversos povos se sucedendo no poder e as dinastias reais, cada uma procurando superar as anteriores em faustosidade e poder. Daí a construção de grandes obras, que aliás eram comuns entre todas as grandes civilizações do passado. Assim um mega projeto de construção na Mesopotâmea pode ter usado trabalho forçado de diversas populações escravizadas, pois a Babilônia, no apogeu da sua história de conquistas, dominava a maioria dos povos do Oriente médio, com suas diferentes linguas. Algumas delas eram, inclusive, não semitas, tais como a Hurrita, a Cassita, o Sumeriano e o Elamita, que eram línguas cananéias. Provavelmente foi o desmoronamento do grande império babilônico, conquistado pelo persa Ciro, o Grande, em 525 a.C. que proporcionou a derrocada da “Torre”(a Babilônia) e a dispersão dos povos que a constituiam. Dessa forma, a história da Torre de Babel teria sido inserida na Bíblia após a volta dos judeus do cativeiro da Babilônia e o Etemenanki, o zigurat dos reis babilônicos, principal santuário da “abominável religião de Babel”, foi estigmatizada como sendo a responsável pela grande confusão de línguas existente sobre a terra. 

A Bíblia não menciona o que aconteceu á Torre de Babel depois da dispérsão, mas escritores antigos, de várias procedências, informam que Deus a teria destruído. Relatos contidos no Livro dos Jubileus, em obras de Cornelius Alexandre, do grego Abydenus, de Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 1.4.3), e os Oráculos Sibilinos (iii. 117-129) informam que Deus teria derrubado a torre com um grande vento. 

Isso mostra o quanto esse relato foi apropriado pelos cronistas judeus para justificar a sua teologia e a sua ideologia racial, sendo a primeira consubstanciada na idéia da existência de um único Deus e que seria Israel o único povo a adorá-lo. E a segunda para afirmar a supremacia do povo de Israel sobre seus vizinhos. Pois segundo os cultores dessa tradição, a lingua de Israel e seu alfabeto, o hebraico, foram criados no céu. É a língua falada pelos Elohins, os arcanjos que fizeram o homem á sua imagem e semelhança. Todas as outras línguas seriam bárbaras, nascidas da “confusão” provocada pela derrocada pela Torre de Babel. 

Cabe, por fim, lembrar, que a história da Torre de Babel, como as demais lendas e tradições referidas na Bíblia não é exclusiva dos povos mesopotâmicos, nem é a literatura bíblica a única a se referir a ela. Entre os povos da América Central existem várias histórias similares. Entre os astecas temos a história de Xelhua, um dos sete gigantes que se salvaram do dilúvio, construindo a Grande Pirâmide de Cholula para desafiar o Rei do Céu. Os deuses a destruíram com fogo e confundiram a linguagem dos construtores. Também os toltecas, povo anterior aos astecas no rol das civilizações que povoaram o antigo México, tinham uma lenda similar que dizia que os homens se multiplicaram após o grande dilúvio e começaram a eguer um alto zacuali (torre), para se abrigar caso os deuses mandassem outro dilúvio. Dizem também que a torre não foi acabada porque suas línguas foram confundidas e eles foram espalhados para diferentes partes da terra. 

Também na Índia, no Nepal, entre os habitantes da Estônia e os aborígenes da Austrália e da Nova Zelândia já foram recen-seadas histórias similares, que mostram ser a Torre de Babel um arquétipo compartilhado pela memória comum da huma-nidade. 

E como tudo que se refere á Bíblia essa história também se tornou um artigo de fé. Não são poucos o que defendem a literalidade do episódio da Torre de Babel como origem das diversas línguas faladas na terra. E como se diz, a história pode ser discutida, mas a fé não. 

Cabe, por fim, lembrar que algumas Lojas de maçons operativos, antes da introdução do Drama de Hiram Abiff, costumavam trabalhar com o tema da Torre de Babel e tinham em Nenrod uma espécie de Grande Mestre Arquiteto. O tema tinha um desenvolvimento esotérico de alta significação, buscando mostrar aos Irmãos o resultado catastrófico do orgulho e da desunião entre os Obreiros de uma Loja quando eles começam a falar" línguas diferentes dentro da Loja".Geralmente essa confusão de línguas( diga-se egos) é que acabam levando uma Loja a "abater colunas". [6] 


[1] Veja-se a Bíblia não Tinha Razão- Finkerman e Asher, Ed. Girafa, 2003 

[2] Heródoto- História- Editora Edições 70-São Paulo, 1976 

[3] Talmude Sanhedrin 109a. Sefer ha-Yashar, Noah, ed. Leghorn, 12b 

[4] Apocalipse grego de Baruque, 3:5-8 

[5] Já nos referimos, em outros trabalhos publicados, á tese do escritor e historiador azerbaijano, Zecharias Sitchin, que sustenta serem os Elohins, criadores do homem, seres extraterrestres que vieram do planeta Nibiru.


[6] Manuscrito Cooke, +- 1645- Cf Jean Palou –Maçonaria Simbólica e Iniciática Ed. Pensamento, 1982


O CÓDIGO SAGRADO

 Autor: João Anatalino


A Kabbalah é um sistema de pensamento desenvolvido pelos estudiosos da religião judaica para interpretar a Bíblia e desvendar os grandes segredos contidos na palavra de Deus, que no entender dos mestres dessa religião, esse formidável monumento literário que os judeus legaram ao mundo encerra. Para esses estudiosos da religião de Moisés, a Bíblia teria sido escrito em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de combinar letras e números para criar novas palavras, apresentando a cada combinação feita, um significado diferente. 

Assim, a Kabbalah se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem de um mundo superior ao nosso, pois foi desenvolvida no próprio ceu para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, os construtores do universo, que são as dez Ordens angélicas, criadas em cada uma das dez manifestações que Ele emanou em sua ação criadora. Essas dez manifestações são aquelas que estão representadas na Árvore da Vida.[1]

Os membros dessas fraternidades, os arcanjos, ensinaram a Kabbalah a alguns homens na terra, escolhidos especialmente para receber essa sabedoria, com a qual a própria humanidade pode contribuir para a tarefa de construção do mundo planejado pelo Criador. Daí a palavra Kabbalah significar, literalmente, “tradição recebida”, pois o seu contéudo, inacessível ao vulgo, só pode ser comunicada a alguns iniciados. Nesse sentido ela seria uma espécie de código secreto, de craráter sagrado, cujo conteúdo seria interdito aos profanos.

Diz-se que os sons e os valores numéricos desse alfabeto, devidamente combinados, formam palavras e signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas suas partes, sejam elas materiais ou espirituais. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição.

Tradicionalmente, há dois tipos de Kabbalah. Uma é aquela que nasceu da necessidade de os judeus criarem para si uma forma de defesa contra o acirrado anti-semitismo que se desenvolveu contra o povo de Israel desde as suas origens, derivado do fato de os israelitas terem se afastado do convívio com outros povos em razão das suas crenças, bastante diferentes dos demais. Esse tipo de Kabbalah, que pode ser chamado de prática, ou operativa, segundo acreditavam seus praticantes, hospedava, em princípio, um sistema de alta magia, que tinha por objetivo a invocação de poderes do mundo sobrenatural para realizar os desejos do operador. É nesse contexto que se situam os milagres, as visões e profecias realizadas pelos antigos profetas do Velho Testamento e as famosas lendas cabalistas que atravessaram séculos e que ainda hoje povoam a imaginação das pessoas, servindo inclusive de fonte para formidáveis trabalhos literários.[2]

Mais tarde surgiu outro tipo de Kabbalah, que podemos chamar de filosófico. Este constitui um sistema de pensamento e disciplina de conduta moral que foi desenvolvido por um grupo de filósofos, a maioria de origem judaica, a partir do século XII da era cristã, provavelmente na região do Languedoc francês. Embora a temática desse tipo de Kabbalah tenha surgido somente na Idade Média, e seu conteúdo tenha sofrido uma larga influência da Gnose, as raízes dessa doutrina estão fincadas em uma antiga tradição já encontrada entre os rabinos dos tempos bíblicos, e utilizada principalmente por grupos sectários judeus, nos séculos anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. 

Pode também ser recenseada em obras de escritores esotéricos cristãos nos primeiros séculos do cristianismo, que a usaram para disfarçar a pregação da doutrina de Jesus, então posta na clandestinidade pelas autoridades romanas. Um exemplo dessa literatura cristã clandestina, escrita em linguagem simbólica, usando o método cabalístico, é o Apocalipse de São João. Esse curiosa obra, que visa divulgar a doutrina cristã ás sete igrejas da Ásia, até hoje desafia a curiosidade dos estudiosos, em face da estranha simbologia usada pelo autor. Nesas obra, um dos mais significativos exemplos da técnica cabalística é a que o autor usa para designar a enigmática figura da Besta. “ E aqui está a sabedoria. Quem tem inteligência calcule o número da Besta. Porque é número de homem. 

E número dela é seicentos e sessenta e seis”, escreve o autor. Esse número (666), correspondia, usando-se a técnica da gematria, ao nome do imperador romano Nero, que justamente na época em que o autor escrevia o Apocapipse, havia desencadeado uma grande perseguição aos cristãos em todo o território dominado por Roma[3]

Entretanto, parece que o uso da Kabbalah como linguagem de código foi popularizada mesmo pelos essênios, seita judaica radical, que entre os séculos I e II antes do nascimento de Jesus se afastou do convívio social para viver a sua crença em um final apocalíptico para este mundo e a construção de um mundo novo, liderado pelo Messias. Essa seita, cujos documentos foram recentemente recuperados em cavernas situadas ás margens do Mar Morto, é tida como a verdadeira inspiradora do cristianismo, pois suas doutrinas muito se aproximam daquelas pregadas por Jesus e principalmente, por aquele que é tido como seu verdadeiro mentor, o profeta João Batista.[4]

Alguns dos precursores da Kabbalah, segundo os estudiosos desse sistema, foram os profetas Ezequiel e Daniel, cujas visões, extremamente difíceis de serem explicadas em linguagem vernacular, só podem ser estudadas e entendidas por quem domina o arsenal do simbolismo cabalístico. É fato que tais vi- sões guardam relação com os momentos históricos vividos pelo povo de Israel e refletem os próprios sentimentos, temores e esperanças vividas por esse povo, em sua extraordinária saga. Mostram também a existência de uma tradição muito em voga entre os povos antigos, de retratar os seus estados interiores através de complicadas visões gestaltianas. Como explica Northrop Frye “há, no Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal.[5]

Destarte, muitas palavras, que na linguagem comum significam uma coisa, na linguagem usada pelos autores desses antigos textos significam coisas muito diferentes, que só podem ser devidamente decoficadas se postas no exato contexto em que viveram os seus autores e recenseadas as suas relações de sentimento e interação com o ambiente e os acontecimentos que fizeram parte da experiência que eles relatam. Referindo-se ainda ao estudo do autor acima citado, verifica-se que nas sociedades antigas há uma interação mais estreita entre o sujeito e o objeto, no sentido de que a ênfase do sentimento experimentado pela pessoa recai mais sobre a relação que a liga ao ambiente do que na própria observação do sentimento em si, coisa que só começou a acontecer depois da experiência grega. Essa característica também foi explorada por Sir James Fraser, em seu estudo sobre as tradições dos antigos povos, quando se refere ao sentimento do homem primitivo em relação aos seus deuses. É uma relação de simbiose, no sentido de que o homem primitivo não possui um “self” ou seja, um sentimento de si mesmo, independente da divindade que ele cultua. Essa noção, como bem viu esse autor, só seria desenvolvida mais tarde, já nos tempos históricos, pelos gregos com a cultura do pensamento filosofico. [6]

É nesse sentido Frye explica o fato de que “muitas sociedades primitivas possuem palavras que expressam essa energia comum á personalidade humana e á natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias e correntes de pensamento.(...) A articulação das palavras pode dar corpo à este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como fórmulas de “feitiço” ou encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário desse princípio é o que pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tal contexto, as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.[7]

O autor em questão cita, á guisa de exemplo, a palavra maná, ou mana, que em Êxodo, 16, aparece como sendo uma espécie de farinha que Jeová faz cair do céu para alimentar o faminto povo de Israel no deserto. Essa palavra (man, maná, manes, em várias línguas antigas), refere-se á uma força, ou energia, que se encontra concentrada em objetos ou pessoas e que pode ser adquirida, conferida ou herdada. Na mitologia romana, por exemplo, esse termo conecta-se com o termo “manes”, palavra que designa a influência que os ancestrais mortos podiam exercer sobre os vivos. Criam-se, dessas forma, insuspeitadas relações simbólicas, que se hospedam no inconsciente coletivo da humanidade e são passadas de geração á geração, dando formato á crenças, valores e costumes, os quais, no contexto geral da cultura humana podem explicar muita coisa que de outra maneira ficariam para sempre catalogadas como meras superstições.[8]
(Continua)


[1] Cf. Knor Von Rosenroth- A Kabbalah Revelada, op, citado, pg. 50
[2] Exemplos de temas cabalísticos em obras literárias famosas são as lendas do Golém, que inspiraram a escritora inglesa Mary Shelley na composição do seu clássico romance Frankeinsten. Outras obras, como o Aleph, famoso conto de Jorge Luís Borges, o Golém de Gustav Meirink, e mais recentemente, As Aventuras de Pi, filme vencedor do Oscar em 2012, baseado no romance de Yann Martel, também são inspirados em temas cabalísticos.
[3] Ver, a esse respeito Hugh Schonfield- A Bíblia Estava Certa- Ibrasa, São Paulo, 1958
[4] Para maiores referências sobre essa seita e sua influência na história do pensamento maçônico, ver nossa obra “Conhecendo a Arte Real”, publicada pela Ed. Madras, São Paulo, 2009. Ver também Laperroussaz, Ernest- Marie. Os Pergaminhos do Mar Morto, São Paulo, Círculo do Livro, 1990.
[5] Northrop Frye- O Código dos Códigos, Ed. Boittempo, São Paulo, 2004
[6]Sir James Fraser, “ O Ramo de Ouro” publicado pela Zahar Editores, São Paulo, 1982.
[7] Northrop Frye, op citado, pg. 27
[8] O Código dos Códigos, op citado, pg. 28.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015


 O SEGREDO DO ARCO REAL

Autor: João Anatalino.

A origem da lenda

No rito do Arco Real os graus do Capítulo e extensivamente, nos graus filosóficos do REAA, uma das alegorias mais peculiares é a chamada Palavra Perdida. Essa palavra, que segundo a tradição, aparecia dentro de um triângulo emoldurado por um olho onisciente, era um símbolo de poder, que encerrava o mistério da criação. Para os israelitas que escreveram a Bíblia e detinham o segredo da sua verdadeira interpretação, essa palavra era o nome verdadeiro de Deus, que muitos poucos conheciam e menos ainda eram os que sabiam pronunciá-lo corretamente. Esse nome conferia um extraordinário poder ao seu detentor, e quem detivesse esse conhecimento seria capaz de construir civilizações, mas também poderiam desafiar o próprio Deus.

A maçonaria do Arco Real trabalha esse tema através de uma interessante lenda envolvendo os antigos patriarcas antediluvianos. Essa lenda diz que Jubal, Jabel e Tubal – Cain, haviam inscrito em duas colunas, uma de pedra, outra de tijolos queimados, todas as antigas ciências que os Irmãos da Fraternidade da Luz haviam ensinado aos primeiros homens. Essa ciência foi perdida por ocasião do grande dilúvio que afogou a antiga civilização, mas foi recuperada por um grande sábio egípcio chamado Thot, o qual a ensinou aos sacerdotes daquele país, razão pela qual os egípcios eram tão sábios nesses conhecimentos arcanos. [1]

A Fraternidade da Luz aqui referida é a Confraria dos anjos rebeldes, formada pela rebelião de Lúcifer, o anjo da Luz que se rebelou contra o Criador e foi expulso do céu com um grande contingente de seguidores, sendo arrojados na terra para cumprir uma pena de exílio. Seriam esses anjos rebeldes que teriam desencaminhado o homem, revelando-lhe o conhecimento do bem e do mal, referido na Bíblia.[2]

Na verdade, o conhecimento do bem e do mal, conforme referido no livro sagrado, seria de fato, as ciências que proporcionaram ao homem o desenvolvimento da sua civilização. Por isso, em todas as tradições dos povos antigos, existem lendas a esse respeito, atribuindo aos deuses (ou seres extraterrestres), a iniciação do homem na ciências que fazem uma civilização. No Egito essa iniciação era atribuída a Osíris, na Pérsia a Mitra, na Índia a Indra, na Mesopotâmea a Enlil, na Grécia a Hermes.[3]

A utilização maçônica da lenda

Jubal, Jabel e Tubal – Cain eram descendentes de Cain, o amaldiçoado filho de Adão. Eles detinham esses conhecimentos, por isso diz-se que eles foram rebeldes contra o Grande Arquiteto do Universo, já que os repassaram aos homens, semeando também entre eles a rebelião.[4]

Os homens, tendo aprendido essa ciência, contra a vontade do Grande Arquiteto do Universo se tornaram maus e arrogantes. Por isso Ele fez cair o pavoroso dilúvio que cobriu de águas toda a face da terra por mais de cento e cinquenta dias. [5]

A rebelião desses três homens, que representavam as artes, a técnica e a ciência daquele tempo, ficou conhecida nessa tradição como a rebelião dos companheiros, pois Jabel era perito nas artes da agricultura e pastoreio, Jubal era hábil em música e nas artes mais refinadas do espírito, e Tubal – Cain um competente artífice em obras de ferro e bronze.[6]

Simbolicamente, essa lenda reflete uma interpretação cabalística da Bíblia, feita por alguns autores, que veem nesse episódio um reflexo do conflito ocorrido nos céus entre o Mestre do Conhecimento (Aquele que pensa o universo, o seu Grande Arquiteto) e aqueles que o aplicam (os anjos construtores, os Demiurgos), que eram aqueles Anjos da Fraternidade da Luz, a quem o Grande Arquiteto do Universo constituiu mestres universais, para construírem o mundo que Ele havia concebido. Essa concepção é fundamentalmente maçônica, mas sua inspiração vem do Zhoar, o Livro do Esplendor, que introduz a Cabala judaica.

A saga de Noé, com sua arca, e depois com o trabalho de reconstrução da humanidade destruída pelo dilúvio, é vista neste simbolismo como uma espécie de reconstrução do edifício universal, obra que o Grande Arquiteto do Universo confiou á família do piedoso patriarca. 

Essa lenda explica também o episodio da Torre de Babel, onde o Grande Arquiteto do Universo precisou confundir as línguas faladas pelos homens, pois segundo essa lenda, Ninrode, o “poderoso caçador perante o Eterno”, rei dos acadianos, havia encontrado as colunas gravadas e estaria tentando aplicar os conhecimentos nelas contido para construir edifícios que tinham por meta pesquisar os segredos do céu, desafiando assim o poder do Grande Arquiteto do Universo.[7] 
Por isso é que antigos maçons, antes que a Arte Real se tornasse uma instituição identificada por um nome, costumavam dizer sempre que a maçonaria havia sido aprendida diretamente dessas colunas erguidas pelos três descendentes de Cain, sendo a torre de Babel uma aplicação prática dessa arte.
Todavia, com a confusão das línguas, a antiga sabedoria se perdeu e deixou de ser comunicada à humanidade em geral. Apenas alguns homens de mérito, a critério do Grande Arquiteto do Universo, podiam deter esse conhecimento. Era como se fosse uma palavra que havia sido perdida, por isso cunhou-se a Lenda da Palavra Perdida. Esse tema continua a ser desenvolvido na Lenda de Enoque, que é o tema de um dos capítulos do Arco Real e também do REAA. [8]

A filosofia da lenda

Aquele a quem a Palavra Perdida era comunicada assumia o compromisso de trans-miti-la somente a outra pessoa cujo mérito fosse reconhecido pelo Grande Arquiteto do Universo. Porque essa era a sabedoria com a qual o mundo fora construído e todas as coisas podiam ser feitas. Por isso os homens perversos, e aqueles que não a conseguiam obter pelo mérito de suas obras intentavam obtê-la à força, destruindo povos e nações e cometendo toda sorte de crimes e violência para obter esse poder.[9]

E esse é (segundo a filosofia do grau), o motivo de todas as guerras e conflitos que existem no mundo, porque quem não consegue obter por sua própria inteligência e trabalho as coisas que deseja ter, procura tomar de quem tem, usando a força ou a prática ardilosa, que geralmente degenera em crime.

Assim, a boa maçonaria foi desenvolvida justamente para ensinar aos homens puros e de bons costumes essa antiga sabedoria que nos capacita a obtê-las com verdadeiro mérito. 

Daí a razão de a maçonaria se inspirar nos princípios e na prática dos antigos israelitas. Porque, segundo a lenda, a Israel bíblica foi a herdeira desses conhecimentos contidos nas colunas de bronze, as quais, segundo informa a Lenda de Enoque, essa sabedoria teria sido transmitida a Abraão e depois a Moisés, para que estes pudessem desenvolver a “maquete humana” do grande edifício cósmico que o Grande Arquiteto do Universo se propôs a construir. [10]

Mais tarde essa sabedoria, simbolizado pelo Nome Sagrado e chamado de Palavra Perdida, teria sido ensinada a Salomão e Adonhiram (o mestre Hiram do REAA), para que estes inscrevessem na estrutura de um edifício esses conhecimentos arcanos para que estes fossem registrados para a posteridade. Resulta daí o simbolismo do Templo de Salomão, que na maçonaria passou a ser o seu principal ícone. 

Esse é o simbolismo desenvolvido pelo ensinamento dado nos Capítulos do Arco Real, cujo paralelo também se encontra nos graus filosóficos do Rito Escocês. O que aí se propõe é que os maçons que frequentarem esses capítulos encontrem a “Palavra Perdida”, pois esta está oculta em seus corações, já que o próprio homem é um templo vivo do Criador. E essa palavra é a sabedoria que ensina os homens a construir povos e nações, sustentados por colunas semelhantes á que suportavam o Templo de Salomão. Estabilidade e Força, refletidos na estrutura das colunas Boaz e Jakin. As grandes realizações maçônicas do passado tiveram nesse simbolismo a sua maior inspiração. Talvez fosse o momento de os maçons de hoje começarem a procurar novamente essa Palavra, pois ao que parece, ela atualmente ela já se perdeu ha algum tempo e precisa ser reencontrada.

[1] O deus egípcio Thot também era identificado com o Osíris, que antes de sua morte tinha sido um grande rei, a quem o Egito devia os princípios de sua civilização. Na Grécia esse personagem ficou conhecido como Hermes Trismegistus, o deus das artes e das ciências, que teria nascido anteriormente por três vezes no Egito, legando àquele povo, em cada encarnação, um ciclo de civilização. Segundo essa tradição Pitágoras, o grande matemático e filósofo grego, também teria aprendido a sua ciência diretamente dessa fonte.
[2] Gênesis, 3:1. Esse tema foi desenvolvido por John Milton em seu poema clássico “O Paraíso Perdido”.
[3] Veja-se, a propósito, a s curiosas teses de Zecarias Sitchin, em seu livro “Décimo Segundo Planeta”, na qual ele interpreta os mitos sumerianos da criação (que inspiraram os cronistas bíblicos) como resultados de uma expedição realizada por seres extraterrestes.

[4] Simbolicamente, essa lenda está conectada ao Drama de Hiram, representado na elevação do maçom ao grau de Mestre, no Rito Escocês. Ela simboliza a “traição dos companheiros”, que se voltam contra seu Mestre, exigindo dele um reconhecimento por um mérito não conquistado. Ressalte-se que o nome de Tubal – Cain foi adotado como senha para o grau de companheiro maçom justamente pelo fato de ser ele o “patrono” dos companheiros, ou seja, um prático que não detinha o grau de Mestre e quis, á força, obter o segredo do mestrado, (a palavra de passe) que lhe daria esse título.
[5] Gênesis, 6;9
[6] Gênesis, 4:17
[7] Ninrode era descendente de Cam, o amaldiçoado filho de Noé. Os edifícios em questão eram os famosos “zigurats”, templos construídos em forma de torre escalonada, que serviam de serviam para observações astronômicas. A propósito, o rei Ninrode era um importante personagem na maçonaria operativa, tendo sido apontado, inclusive, como “pai da maçonaria antiga”, conforme uma antiga Old Charge (o manuscrito Cooke, +- 1410).
[8)Vejam-se as nossas obras “Conhecendo a Arte Real” publicada pela Ed. Madras e Mestres do Universo, publicada pela Ed. Biblioteca 24x7.
[9] Esse é centro do simbolismo desenvolvido pelo curioso Drama de Hiram. O poder deve ser conquistado pelo mérito, através do trabalho constante e do estudo meticuloso. Os que o procuram obter pela violência e pela força terão sempre o destino dos Jubelos da lenda.
[10] Essa “maquete” foi a Israel bíblica, que tornou-se um povo com Abraão e uma nação com Moisés. O simbolismo arcano do Templo de Salomão reflete essa sabedoria e na sua constituição revela-se a Palavra Perdida, que foi perdida novamente após a destruição daquele edifício e só é reencontrada nos mistérios da paixão de Cristo. Esse é o segredo revelado no simbolismo dos graus superiores do Arco Real e nos graus filosóficos do REAA.
João Anatalino

MAÇONS, MANIQUEÍSTAS E CÁTAROS

Autor: João Anatalino.

Os Gnósticos

Grande parte da literatura religiosa cristã foi produzida pelos filósofos gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo. Embora a Igreja Católica tivesse expurgado o Novo Testamento das ideias que guardavam alguma relação com cultos pagãos da antiguidade, práticas mágicas e outras tradições esotéricas, não muito de acordo com os cânones adotados pelo catecismo católico, os evangelhos canônicos não estão livres da influência gnóstica. O Evangelho de São João, principalmente, é francamente inspirado naquela escola, bem como o livro do Apocalipse e certas concepções do Apóstolo Paulo. 
O Concílio de Nicéia, realizado nessa cidade em 325 da era cristã, fez uma revisão dos todos os textos religiosos existentes naquela época e decidiu quais eram aqueles que serviam á verdadeira fé e quais eram perniciosos. A grande maioria dos escritos gnósticos e principalmente os chamados Evangelhos produzidos por escritores que professavam essa corrente filosófica, foram colocados na categoria de apócrifos, e dessa forma proibidos de serem divulgados na comunidade cristã. Com a vitória do cristianismo como religião oficial do Império Romano, esses textos foram colocados definitivamente na clandestinidade e oficialmente banidos, por força de lei, de qualquer tipo de mídia da época. Assim, por volta do século V, os praticantes das doutrinas gnósticas se refugiavam em círculos muito restritos, principalmente em razão da perseguição que lhes movia o clero e as autoridades seculares. Foi nessa época que nasceram as chamadas heresias, pois as ideias contrárias ás doutrinas professadas pela Igreja, que antes eram discutidas á luz do debate meramente filosófico, passaram a ser consideradas como perigosas para a ordem pública. 
Mas a Gnose, enquanto disciplina filosófica não desapareceu, como queriam os doutrinadores do cristianismo ortodoxo e influenciou alguns dos maiores pensadores da cristandade. Um de seus ramos, o chamadomaniqueísmo, doutrina fundada por um sacerdote de nome Mani, nascido na Babilônia em 216 da era cristã, teve como discípulo nada menos que o célebre Santo Agostinho, um dos luminares do pensamento católico medieval.

O Maniqueísmo

Os maniqueístas, diferente dos demais gnósticos, que admitiam três princípios atuantes na criação do cosmo, acreditavam que esses princípios eram apenas dois: a Luz e as Trevas. Desse eterno embate entre o principio luminoso (o Pai da Luz), e o principio das trevas (O Rei da Escuridão), surgiu tudo que existe no mundo. O “Rei das Trevas” já foi um dia habitante do “país da luz”, mas dele partiu, com um inumerável séquito, após “desentender-se com o Pai da Luz”. Nessa doutrina está inserta a antiga ideia, esposada pela teologia judaica, de que houve um dia uma revolução no céu e uma horda de entidades celestes, chefiada por um arcanjo de nome Lúcifer (Anjo de Luz, o luminoso) se indispôs com o Criador e se tornou o seu opositor.

Na doutrina desenvolvida por Mani, um verdadeiro enredo histórico foi elaborado. Uma grande guerra travou-se no céu onde duas fações lutaram. De um lado os partidários da Luz e do outro os partidários das Trevas. Na luta que então se travou pela posse do universo, o exército do “Pai da Luz” foi comandado pelo Homem Primordial, uma entidade criada por ele na sua primeira manifestação. Foi esse “Homem Primordial” que liderou as forças do Pai da Luz. Todavia, capturado em uma batalha pelos partidários das trevas, o Homem Primordial foi por eles devorado. Para salvá-lo, o “Pai da Luz” evocou uma nova força, o “Espírito Vivo”. Este, tendo gerado cinco filhos, derrotou os “Filhos das Trevas” e construiu a matéria universal com a substância dos seus cadáveres. 

Quando o Homem Primordial foi afinal liberado das trevas, deixou que lá ficasse uma réstea da sua luz. Com ela o ‘Rei das Trevas” engendrou Adão e Eva, onde encerrou a réstea de luz do Homem Primordial. Será essa réstea de luz, no entanto, que permitirá, quando liberada, a volta do homem ao seio do “Pai da Luz”. Daí porque a vida do homem, e toda a sua longa história de sucessivas mortes e reencarnações, ser nada mais que uma “jornada em busca dessa luz”, que nele habita e constitui o único elo entre ele e o Criador. 

Esse imaginativo enredo elaborado por Mani é, na verdade, uma curiosa metáfora inspirada por antigas tradições cultivadas por egípcios, babilônios e judeus, nas suas tentativas de explicar o universo. Na verdade, no fundo, o que se expressa nessas estranhas escatologias é nada mais, nada menos, do que o mito solar. De uma forma ou de outra, todas as antigas religiões tinham no sol o seu símbolo maior de divindade, denotando já a velha intuição taumatúrgica de que a vida na terra só era possível graças á ação desse astro que ilumina a nossa galáxia. O sol era a representação da luz. Quando ele se ausentava, reinava a escuridão no mundo. A luz, que era o dia, era boa. A treva, que era a noite, a escuridão, era má. Essa noção informou a maioria das religiões da antiguidade.
No Egito, a luz do sol era simbolizada pela divindade maior do panteão egípcio, o deus Rá. Já a escuridão era a essência de Seth, o deus das trevas. Na Pérsia e Mesopotâmea, a luz era a qualidade do deus Aura-Mazda, e as trevas do deus Arimã. Para os israelitas, Jeová era o deus que fez o mundo tirando a luz das trevas e Satanáz o deus do mal, que perverte a criação. 
E todas essas tradições religiosas, com algumas variantes, usavam o mesmo enredo escatológico na concepção das suas cosmogonias. Os egípcios tinham o seu Homem Primordial na pessoa do deus Osíris, que veio á terra para civilizar os homens e foi “morto” pelo seu invejoso irmão Seth. Os persas e babilônios tinham em Mitra o seu “homem primordial”, e os israelitas centralizaram no seu Messias essa figura. Com as variações que cada cultura deu a esse mito, todas estavam se referindo ao mesmo arquétipo. 

O maniqueísmo, embora seja considerada uma doutrina cristã, a influência que mais se faz presente nela é persa, como se pode notar. É uma doutrina profundamente influenciada pelo mitraísmo. Como geralmente se pensa, ela não é uma doutrina baseada na luta entre o bem e o mal. Pelo fato de considerar o mundo material, e o próprio ser humano como produto do deus das trevas, todo o universo maniqueísta é fundamentalmente mau. Porque a humanidade não foi criada pelo Deus da Luz (o deus bom), mas sim pelo Deus das Trevas (o deus mau). A “centelha de luz” que existe no homem é a sua alma. Somente essa ínfima parte da essência humana pertence ao mundo da Luz. E ela está presa na matéria, que é nosso corpo. Somente através de uma vida ascética, na qual todos os desejos do mundo sejam sublimados, os homens poderão expulsar de si as trevas da qual são feitos e isolar a “réstea” de luz, (único elemento divino que há dentro dele). E somente como pura luz poderá voltar ao seio do seu criador, o “Pai da Luz”.

Essa era também uma crença compartilhada pelos essênios, uma seita de judeus fundamentalistas que se retiraram para o deserto em princípios do século II a. C. para viver uma vida ascética, capaz de purificar seus espíritos. A ideia de um reino messiânico, comandado por um príncipe-sacerdote teve nos essênios a sua mais perfeita modelagem. Eles criaram uma verdadeira Irmandade para viver esses princípios porque realmente acreditavam que um dia a Luz venceria as Trevas e esse reino seria estendido para toda a humanidade. E foram os essênios os principais inspiradores do cristianismo primitivo, aquele pregado por Jesus e seus discípulos originais.

Mas não só na semelhança de ideias e uso comum de símbolos, os maniqueístas se assemelhavam aos essênios. Na austeridade de conduta, na vida monástica, no ascetismo da vida diária, na ideia da necessidade de iniciação nos “mistérios” da seita, no desapego pelos bens materiais etc. fazem dos seguidores de Mani os herdeiros das tradições inauguradas por aqueles “eleitos de Israel”.
Por seu turno, a influência dos maniqueístas se fez sentir em várias seitas que causaram muita preocupação na Igreja durante toda a Idade Média. Uma delas foi a seita dos Bogomilos, uma comunidade que se desenvolveu nos Balcãs e se espalhou por toda a Europa central nos séculos X e XI. Os Bogomilos foram violentamente perseguidos pela Igreja Católica e praticamente exterminados nas regiões de influência da Igreja Romana. Não obstante deram origem a outro grupo de ideías e práticas semelhantes, conhecido como Cátaros. 

Os Cátaros

Os grupos Cátaros mais célebres habitaram regiões da França, Alemanha e norte da Itália. Mas o local de maior concentração e influência desses grupos foi a região conhecida como Provença, no sul da França, onde se falava o provençal, a chamada lang’doc, como era conhecida o provençal. Daí essa região ser conhecida como Languedoc. 

No começo do século XIII a região conhecida como Languedoc não fazia parte do território francês. Era constituída por um conjunto de principados independentes governados por várias famílias nobres, entre as quais os condes de Toulouse e Trancavel. Incluía importantes cidades como Toulose, Montpellier, Avignon, Narbonne e Marselha. A cultura nessa região era a mais avançada que se podia encontrar na Europa medieval. Mantinha estreitas ligações com os árabes, e seus príncipes eram largamente tolerantes com judeus e mouros, em cuja população eram bastante representativos. A região do Languedoc constituía uma exceção numa Europa dominada pelo barbarismo e pelo obscurantismo religioso. Foi em Lunel e Narbonne, por exemplo, que se desenvolveram as escolas cristãs dedicadas ao estudo da Cabala. Lá, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo conviviam em paz, sendo mais objeto de estudo do que de disputas. Logo, a Igreja de Roma, com sua intolerância dogmática, não podia ser mesmo admirada na região. Por outro lado, a florescente economia do Languedoc, não raro, era objeto da cobiça dos potentados do norte da França, da Alemanha e da Espanha, dominados por reis católicos.

As doutrinas Cátaras

Os Cátaros, tais como os Bogomilos e os Paulicianos baseavam sua doutrina no embate entre a luz e as trevas. Como vimos, essa doutrina havia sido proposta originalmente por Mani, sacerdote de origem persa, que no século II da era cristã sintetizou as várias doutrinas gnósticas existentes na época, criando um sistema de pensamento que ficou conhecido como maniqueísmo. Esse sistema fundia elementos de cristianismo, judaísmo, zoroastrismo, taoísmo e hinduísmo, a partir de uma idéia básica que está na raiz de todas essas religiões, ou seja, a de que o mundo se equilibra entre duas forças fundamentais, que ele definiu como sendo a luz e as trevas. No desenvolvimento dessa concepção, Mani elencava os vários fundadores de religiões, como Buda, Zoroastro, Moisés, Jesus, como “mensageiros da luz”, pessoas escolhidas pelo Pai da Luz, o Deus bom, para ensinar as pessoas a libertar seus espíritos da prisão da matéria e encontrar a iluminação. Assim, os Cataros desenvolveram a concepção de que o universo material era um mundo essencialmente mau porque tinha sido feito pelo Deus das trevas. Dessa forma, a idéia de que Deus tenha mandado ao mundo seu próprio filho para salvar uma criação má era contraditória. A humanidade nunca se perdera, como ensinava a doutrina católica. Ela já nascera perdida porque era cria do Deus das trevas. Só podia ser salva pela constante e metódica depuração de seus elementos materiais, transformando-se, toda ela, numa entidade espiritual, liberta de todos os sentidos carnais e impurezas mentais que a experiência humana acumula sobre o espírito. O espírito humano deveria buscar a perfeição. Daí os sacerdotes Cátaros serem chamados de parfeits. Justifica-se também a vida rigorosamente ascética que os seguidores dessa doutrina recomendavam aos seus adeptos. Entre outras coisas, essas crenças afastaram completamente os Cátaros da Igreja de Roma, pois esta, para eles, era a própria encarnação desse mundo materialista, mau e dissoluto. Jesus, para os Cátaros, fora um grande profeta, que como Buda e Zoroastro, ensinou aos homens um caminho baseado no amor e no desapego pelos bens materiais (como pregavam também os franciscanos) para se chegar á iluminação. O clero católico era a antítese desse caminho, pois incentivava a violência, a guerra, a cobiça e o apego aos bens materiais. O próprio nome Roma era o contrário do nome de Deus, que para eles era Amor.

Em 1208, o assassinato de um bispo católico, supostamente cometido pelos Cátaros, desencadeou a chamada Cruzada Albigense. O papa Celestino III mobilizou um enorme exército no norte da França, composto principalmente por senhores feudais, interessados nas riquezas das cidades do Languedoc. Uma força armada, comandada pelo líder cruzado Simão de Montfort, invadiu e sitiou a maioria das cidades da região, chacinando grande parte da população, simpática á doutrina Cátara. Para subsidiar a cruzada e erradicar o que a Igreja de Roma chamava de heresia Albigense, o papa encarregou o monge dominicano espanhol, chamado Domingos de Guzman, de fundar uma instituição para descobrir e punir todo e qualquer tipo de pensamento ou comportamento que contrariasse a doutrina católica. Assim nasceu a infame organização conhecida como a Irmandade da Santa Inquisição, da qual a Igreja e muitos reis iriam se aproveitar para eliminar seus opositores. 
Durante a cruzada albigense o exército cruzado praticamente dizimou metade da população do Languedoc. Mas não conseguiu eliminar a doutrina Cátara da mente das pessoas. Elas sobreviveram principalmente entre os Templários e mais tarde, foram adotadas por muitos pensadores que viriam a influir sobremaneira as ideias que desembocaram na Reforma religiosa do século XVI, encabeçada por Martinho Lutero. 

Influência na Maçonaria

Os Cátaros legaram á Arte Real algumas inspirações litúrgicas. Seus sacerdotes eram considerados mestres perfeitos (parfaits), que conduziam suas assembleias á maneira das reuniões maçônicas das antigas Lojas operativas. Sua postura antidogmática tem sido constantemente invocada como análoga áquela que existe na Maçonaria moderna. 
Muito provavelmente, certas posições da Igreja Católica em relação aos maçons estão, de certa forma, ligadas á associação que alguns padres de orientação fundamentalista fazem entre a Maçonaria e seitas heréticas como a dos Cátaros. Evidentemente esses sacerdotes desconhecem tudo o que se relaciona com a Arte Real. A Maçonaria não adota as doutrinas Cátaras, nem se guia pelos seus catecismos, embora, na sua organização secular algumas influências possam ser notadas, tais como a simbologia arcana, o segredo corporativo, a prática da filantropia e a sua formulação iniciática. Registre-se, principalmente, que o Catarismo era uma seita religiosa e a Maçonaria é, antes de tudo, um movimento que reclama influência na vida social e política das nações, mas não nas crenças religiosas das pessoas. A Maçonaria respeita todas as crenças e não orienta seus adeptos em relação a nenhuma delas. No repertório da consciência humana cabem todas as orientações desde que elas tenham por objetivo conduzi-la a um aperfeiçoamento das virtudes que fazem um homem justo, ético e virtuoso em suas ações. 
Malgrado suas posições doutrinárias, que são discutíveis, como aliás, todas são, o maniqueísmo e o catarismo têm seus momentos de beleza estética, que encanta a mente do homem que busca o conhecimento. E como disse Ramsay, o maçom é o homem de espírito esclarecido, maneiras gentis e humor agradável, que se guia pelo amor às belas artes, e pelos grandes princípios de virtude, ciência e religião. Por isso encontraremos, nos rituais maçônicos, muitas referências a essas disciplinas.

João Anatalino

segunda-feira, 3 de agosto de 2015


MAÇONARIA- A CADEIA DA UNIÃO

Autor: João Anatalino

" As pessoas formam famílias, tribos, sociedades, nações. Todas essas entidades, - das moléculas dos seres humanos e destes aos sistemas sociais ─ podem ser considerados "todos" no sentido de serem estruturas integradas e também "partes" de "todos" maiores, em níveis superiores de complexidade. De fato, veremos que "partes" e "todos", num sentido absoluto, não existem."
Fritjof Capra


Para desenhar a composição estrutural do cosmo, o Grande Arquiteto do Universo se vale de duas estratégias fundamentais: a pluralidade e singularidade. Isso significa que tudo, no mundo, tem uma estrutura singular e coletiva ao mesmo tempo, sendo que uma depende da outra para existir. Dessa forma, indivíduo e sociedade se completam, e o que acontece com um repercute na outra, o que nos torna todos responsáveis pelo que acontece no mundo. 
  
Segundo alguns estudiosos[1] o universo em que vivemos se manifesta aos nossos olhos sob três faces: pluralidade, unidade e energia. Sob um rosto multiforme e variado, ele é um organismo que esconde uma indissolúvel unidade, mantido pela energia contida no núcleo de cada um dos seus elementos. Essa energia é a informação inicial que neles se hospeda, e os faz procurar, no ambiente em que se manifestam, os elementos que necessitam para realizar a necessária complementaridade.

A atomização é o processo pelo qual os constituintes básicos da matéria universal se dividem, se qualificam e depois se reúnem novamente, formatando as realidades do mundo real. E em cada átomo da matéria decomposta, reflete glorioso, esse indefinível sentido de unidade, que se manifesta, pela manutenção, em todas as partes pelas quais ela se multiplica, das propriedades observadas no todo. 
Por isso se diz que o universo inteiro está contido em cada grão de poeira existente no cosmo, e também em cada célula dos organismos que a natureza criou. E o universo reflete a estrutura de cada organismo que o compõe.[2]

Na intimidade do ínfimo se encontram as propriedades do imenso com todas as suas intenções e qualidades. É como se todo o real existente fosse derivado de uma substância única, que subsiste exatamente por causa dessa sua propriedade essencial, que é a identidade entre todas as suas partes.
Pelo fato de ser homogênea, a essencialidade da matéria consegue projetar-se, como uma vontade que une, sobre todos os múltiplos de sua substância, conferindo à todas as coisas a unidade que se observa entre os elementos materiais. Essa unidade é uma força que faz com que todos os elementos do universo, e particularmente os seres vivos, pratiquem uma necessária interação, como função das relações que necessitam para realizarem suas finalidades de existência. Essa relação de complementaridade não precisa integrar, necessariamente, um ideal humanístico para ser natural. Nesse sentido, o predador que abate e consome a sua presa, na ação natural de preservar a própria vida, não comete nenhum ato antinatural. É uma interação útil e necessária, da qual a natureza se vale para realizar a sua função. Portanto, não há conflito na luta entre o leão e o antílope, ou entre a pomba e o gavião, mas sim, uma estratégia da natureza na sua tarefa de seleção e preservação da vida. . 
É diferente da luta que se trava meramente pela superação ambiciosa e arrogante do adversário, que ultrapassa os limites da necessidade de sobrevivência e aperfeiçoamento da espécie, que se observa no seio da sociedade humana. Aqui a função natural da luta ultrapassa os limites da estratégia útil e necessária para se tornar uma atividade predatória sem sentido nem finalidade, praticada única e exclusivamente para atender a um desejo egocêntrico de dominação. Se a natureza inventou a luta pela sobrevivência, a arrogância e a estupidez humana criaram o conflito e a guerra pela supremacia. E se um dia a natureza, ou Quem, o Que a controla, optar pela sua supressão, será exatamente essa especificidade do ser humano que justificará a sua extinção.

A energia resultante de uma interação entre dois elementos se mede pelo grau de transformação que cada um dos elementos dessa relação sofre. Esse resultado é também a medida da evolução individual de cada um e dos seus resultantes em termos coletivos. A energia que transmitimos uns aos outros, a energia que transmitimos às coisas com as quais interagimos, a energia que deles recebemos, eis o motor de todas as transformações; e a potencialidade do quanto "somos" em cada momento da nossa vida é o resultado desse processo. Quando me relaciono com uma pessoa, ela se modifica em consequência da informação que recebe de mim. Da mesma forma, sou modificado pela informação que dela recebo. Informação é energia e nós somos produtos de relações. E a nossa sociedade vive de relações entre relações. Por isso nada pode ser descartado. E nenhum argumento justifica a exclusão, seja do que for que a natureza um dia produziu. Esse é o melhor argumento contra qualquer tipo de racismo, ou de doutrina que defenda qualquer forma de exclusão, fundamentada na diferença. No desenho do universo que Deus projetou, a falta do mais insignificante elemento implica em torná-lo incompleto. E torná-lo incompleto é mutilá-lo. E tudo que é mutilado é feio.

Maçonaria é, acima de qualquer outra finalidade, o sentimento de união. União dos Irmãos em uma cadeia onde a energia de cada um é canalizada para a “egrégora” que se forma e a todos beneficia, Por isso o simbolismo do salmo 133: “ó quão bom e quão suave é que os Irmãos vivam em união. É como bálsamo precioso que desce sobre a barda de Aarão e molha a orla dos seus vestidos; é como o orvalho de Hermon, que desce sobre os montes de Sion, porque ali o Senhor ordena a benção e a vida para sempre.”

Assim se fundamenta este que é o mais importante de todos os conceitos trabalhados pela Maçonaria, enquanto Ordem ecumênica, de âmbito mundial. A Cadeia da União é o símbolo dessa unidade atômica onde as energias individuais se congregam para formar um tecido único, de substância indestrutível, ao qual a humanidade inteira pode recorrer nos seus momentos de maior angústia existencial. Essa é uma visão que não pode ser ser perdida pelos Irmãos.



[1] Ver Teilhard de Chardin- O Fenômeno Humano, Cultrix, São Paulo, 1968
[2] Fórmula admiravelmente deduzida pelo preceito hermético, constante da Tábua de Esmeralda, atribuída a Hermes Trismegisto, que diz que “o dentro é igual ao fora e que está em baixo é igual ao que está em cima.”
João Anatalino





O CÍRCULO DA LUZ

Autor: João Anatalino

A alquimia como exemplo


Os adeptos da arte de Hermes (a alquimia) acreditavam que na matéria bruta, sobre a qual deveriam trabalhar existia um caos, uma treva espessa, um depósito de energias desorganizadas que deveriam ser recompostas em sua estrutura através de um processo de manipulação química que tinha um sentido ascético que se podia chamar de quase religioso. 
Isso porque no núcleo de todo grão de matéria residia a glória de Deus. Assim, no interior da “matéria prima da obra” habitava a chama divina, a luz interdita, o raio, que liberto das suas amarras físicas, daria ao seu libertador o controle sobre todas as forças da natureza. Para os alquimistas, era também essa energia, que uma vez liberada, conferia a todos os corpos, minerais, vegetais ou animais, suas conformações físicas, fazendo deles um elemento químico, uma planta ou um animal, sendo também responsável pelos graus em que se organizavam seus elementos internos, dividindo-os em espécies.[1]
Essa energia era a matéria prima do espírito. O espírito, que é luz, habitava em meio á trevas. Ao ser libertado precisava ser convenientemente dirigido. Pois assim como os núcleos atômicos de materiais pesados que são rompidos sem medidas de controle podem causar explosões imensas, com danos irreversíveis para o operador e para o ambiente em que ele opera, também o espírito liberado sem direcionamento, sem “magistério” próprio, pode causar terríveis perturbações.


A alquimia entrou na maçonaria pelas mãos dos chamados “maçons aceitos” do grupo rosacruciano, ali pelo início do século XVII. Ganhou adeptos em todas as Lojas maçônicas da época, provavelmente pela analogia que as tradições alquímicas guardavam com a idéia maçônica, de aprimoramento do espírito através do trabalho manual.
Para os alquimistas, o trabalho de manipulação da matéria no laboratório provocava no espírito do operador o mesmo resultado que o trabalho de edificação trazia para o construtor de edifícios sacros. Ambas eram práticas sacralizadas, que levavam ao êxtase aqueles que nelas eram iniciados. Além disso, a esperança alquímica de revelação divina, através da manipulação da matéria, estava no mesmo nível da esperança maçônica, de obtenção da Gnose através do simbolismo da construção de um edifício sagrado, como eram as igrejas medievais. Daí tanto se pode dizer que a alquimia era uma espécie de maçonaria praticada operativamente nos laboratórios por filósofos químicos, da mesma forma que a maçonaria era uma alquimia espiritual praticada num canteiro de obras de um laboratório. Ambas eram derivações de artes operativas: a alquimia provinha da prática da antiga metalurgia, a maçonaria da prática da arquitetura.
Que tais tradições fossem associadas a uma disciplina espiritual, visando o mesmo resultado, não causa nenhuma perplexidade. Afinal, o que pregavam as crenças religiosas e as tradições iniciáticas de todos os tempos, senão a idéia de que o espírito humano é um elemento que deve ser expurgado de suas impurezas, para tornar-se uma entidade “luminosa”, limpa, pura, capaz de alçar-se ao território das divindades e com elas conviver num nível de igualdade? E não era essa também a finalidade da religião, a meta da filosofia, a esperança gnóstica e a realização derradeira de toda experiência mística?
Foi nesse passo que a Alquimia deixou de ser apenas a Arte de Hermes, destinada a apreender os segredos da natureza e aplicá-los na transmutação dos metais, para transformar-se em verdadeira ciência do espírito, capaz de realizar a iluminação do próprio operador, levando-o a um estado de consciência superior, que só um verdadeiro iniciado conseguia atingir. Essa era, pelo menos, a esperança da grande maioria dos praticantes da chamada Art d’Amour, como ficou conhecida entre os românticos adeptos da literatura espagírica, a alquimia. Pawels e Bergier descrevem bem esse processo: “ Finalmente pensamos o seguinte: o alquimista no fim do seu trabalho sobre a matéria vê, segundo a lenda, operar-se em si mesmo uma espécie de transmutação. Aquilo que se passa no seu crisol passa-se igualmente na sua consciência ou na sua alma. Há uma mudança de estado. Todos os textos tradicionais insistem nesse ponto, evocam o momento em que a “ Grande Obra” se realiza e em que o alquimista se transforma “ num homem desperto”’. Parece-nos que esses velhos textos descrevem deste modo o termo de todo o conhecimento real das leis da matéria e da energia, incluindo o conhecimento técnico”.[2] 
Eis, portanto, realizada a ascese espiritual, a iluminação buscada pelos místicos de todos os tempos, a Gnose dos antigos filósofos e o “insight “ do cientista. O operador alquímico é agora um Homem Novo, renascido das próprias cinzas, como a fênix da lenda, como a matéria prima mineral que durante anos a fio triturou, dissolveu, aqueceu no crisol e cozeu no seu forno, “matando-a e ressuscitando-a” inúmeras vezes, até que, por um fenômeno de interação entre suas moléculas modificadas e recombinadas infinitas vezes, produz-se o fenômeno. 
E ao mesmo tempo, enquanto a matéria prima se purifica no decorrer do processo, o operador alquímico torna-se também “purificado”, como o metal grudado no fundo do crisol. Ele é, agora, detentor de todo saber, todo conhecimento, todos os segredos da natureza e senhor do seu próprio psiquismo. É o Homem da Terra, feito á semelhança do Homem do Céu, o Homem Desperto das crenças teosóficas, o Homem Universal da esperança maçônica.[3]
Eis enfim, realizado o grande sonho da humanidade. Enquanto o alquimista possui agora um artefato (a Pedra Filosofal) capaz de introduzi-lo no mais íntimo dos segredos da natureza, ou seja, o processo pelo qual ela fabrica os elementos naturais, ele é também, como homem desperto, um verdadeiro eleito na sociedade em que vive, pois possui a Gnose, a verdadeira sabedoria que tudo transforma. 

Alquimistas e maçons

Essa também é a simbologia que se aplica ao maçom, homem regenerado pela iniciação no oficio, possuidor de uma consciência superior, que lhe permite “ver” e agir num domínio ampliado pelo mundo interior que a prática da Arte Real finalmente lhe assegura.
Não é sem motivo que muitos autores sustentam que o objetivo da maçonaria é a realização de uma obra espiritual comparável á grande obra dos alquimistas, representada pela Pedra Filosofal. Não é também irracional a comparação que se faz entre a construção simbólica do Templo de Salomão e a obtenção dessa “pedra”, capaz de transformar minerais impuros no mais puro ouro. E não é também por acaso que a iniciação maçônica, e o seu próprio catecismo, são pródigos de evocações a símbolos alquímicos. Pode dizer que a maçonaria é uma forma de alquimia praticada simbolicamente em uma Loja, ao invés de um laboratório, como faz um alquimista, tendo como matéria prima o psiquismo do praticante, e como finalidade a transmutação do seu próprio caráter. 
Bernard Rogers resume bem essa questão: “O objetivo que os franco-maçons perseguiam é a construção do Homem, isto é, da Humanidade Autêntica, concebida como projeto, a partir da construção do individuo”,escreve aquele autor. “Não causará surpresa”, prossegue ele, “o fato de que o eixo em torno do qual eles estabeleceram seu simbolismo seja a construção do Templo de Salomão, sendo o ser humano considerado como a morada da divindade. A quem venha opor esse propósito a afirmação de que há franco-maçons ateus, respondamos que nenhum desses, a menos que não mereça sua qualificação, poderia pelo menos negar sua fé na perfectibilidade do homem, cuja natureza divina- isto é - luminosa- não pode deixar de ser reconhecida por quem não tem medo das palavras e se recusa a tornar-se escravo do que esta ou aquela religião possa exigir dele”. [4]


Por acaso também não é que a disposição dos símbolos, numa Loja Maçônica, assemelhe-se, de forma notável, à quarta prancha do Mutus Líber dos alquimistas.[5] Ambas são visões simbólicas do universo. Nelas se representa a “energia dos princípios”, responsável pelas transformações internas e externas que se realizam na natureza e no homem. É na Loja que a mística da Palavra Perdida, o Verbo Divino, o Número Único, que na cabala representa o Principio Criador de todas as coisas, e na alquimia a ” flos coeli (flor celeste) “, “o dom de Deus” é captada pela alma humana no momento da iniciação. É essa energia que age, á medida que a cerimônia avança, para a realização da transmutação do neófito, conferindo-lhe um status que o eleva de sua condição anterior de profano á condição superior de iniciado.

O simbolismo do piso e dos painéis

Em tudo e por tudo o magistério alquímico guarda a mais estreita relação com a tradição maçônica. Tanto é que as cinco telas do Mutus Líber ocupam, na iconografia alquímica, a mesma posição que os painéis (quadros) na Loja Maçônica, onde se realizam as transmutações dos Irmãos, na passagem sucessiva das fases de iniciação nas Lojas Simbólicas.[6] Da mesma forma, observa-se que o mosaico do piso, que é obrigatório em todas as Lojas maçônicas, também seja largamente utilizado na simbologia alquímica. É que, em ambas as tradições, esse piso, formado por ladrilhos pretos e brancos, dispostos como uma mesa de xadrez, tem a função específica de “receber e filtrar a luz” que vem do Oriente, a “ Luz de Rá” das iniciações egípcias, Principio Criador de tudo que há no mundo. E as cores desse piso, em preto e branco, repetem as mesmas cores do mercúrio dos filósofos alquimistas.
Diz-se que o mosaico, na Loja Maçônica, é uma representação do piso que ornava o Templo de Salomão. Mas essa referência histórica é uma informação que não reflete o seu verdadeiro significado místico. Na verdade, desde o tempo de Moisés, ou até antes disso, esse traçado geométrico já representava ideias de alto conteúdo esotérico. Era utilizado nos templos egípcios, nos antigos templos fenícios e sírios, e nos templos greco-romanos como forma de captar e filtrar a luz solar, orientando-a para um fim determinado. Dessa forma, não é estranho que os alquimistas tenham utilizado semelhante disposição geométrica para preparar o seu “filtro”, fundamentados na mesma sensibilidade que orientou os profetas e hierofantes das religiões solares.
Como já referido, as mais antigas tradições maçônicas dizem que o Templo de Salomão era ornamentado por um piso mosaico formado por quadrados pretos e brancos, orientados em uma certa disposição geométrica, cujo significado esotérico está hoje perdido. Essa informação consta de diversos manuscritos antigos, pertencentes ao conjunto conhecido como Old Charges (As Velhas Instruções).[7] É bom lembrar, entretanto, que essa informação não consta da Bíblia nem em qualquer outro documento histórico, o que nos leva a pensar que o simbolismo do piso da Loja maçônica tenha, efetivamente, mais relação com o simbolismo alquímico do que, propriamente com as antigas tradições maçônicas herdadas da arquitetura salomônica.


A analogia entre o magistério alquímico e a prática maçônica, no entanto, é notável. Há uma similitude de objetivos em ambas as tradições e no processo de obtenção de resultados, que muito se assemelham entre si. Da mesma forma que na prática alquímica o “metal” se regenera a partir de uma conjunção entre a luz e as trevas, na maçonaria essa regeneração é operada a partir do sol e da lua. Eles estão representados no Oriente da Loja, atrás do trono do Venerável Mestre. No meio deles, no centro do triângulo, o “olho onisciente”, reina absoluto. 

O Círculo da Luz

Essa simbologia, inspirada em tradições egípcias, é representativa da crença de que tudo no universo emana da conjunção de dois princípios, resultando num terceiro, que se propaga por todo o real existente. O sol ali representado é Osíris, ou Rá, o Princípio Criador de tudo que existe no universo. Em Alquimia esse princípio é o fogo, cujo calor dilui os corpos submetidos á sua ação. A lua representa Isis, a deusa-mãe em cujo ventre se opera o milagre da regeneração (em alquimia é o athanor, o “ovo cósmico” onde a matéria prima se recompõe e recombina seus átomos), e o “olho onisciente” é o olho de Hórus, o filho que nasce da união de Ísis e Osíris, após a ressurreição daquele deus (o próprio alquimista, organizador e realizador desse processo).
A trindade egípcia, nos trabalhos de Loja, é representativa do “mistério maçônico” que se nela se opera. Através desse processo o maçom alcança a regeneração psíquica que fará dele o “o homem universal”, típico arquétipo de todas as doutrinas esotéricas. É da luz que vem do Oriente, a partir da consagração dada pelo Venerável, que o iniciado atinge a qualidade de homem renascido, após ter sofrido a morte psíquica, simbolizada por sua passagem pelos subterrâneos e sua descida ao ventre da terra. 
Por isso é que após ter passado um período perdido nas trevas, realizando diversas provas e viagens, o neófito maçom “vê” a luz, no momento em que lhe é retirada a vendas dos olhos. Momento limite de sua iniciação, ele percebe que essa luz lhe é conferida pelos astros ali representados, simbolizando que ele, finalmente, superou a primeira fase de sua jornada iniciática e sabe agora da existência de uma verdade maior que precisará ser descoberta aos poucos, subindo uma escada elevatória que o levará ao cume desses mistérios. Exatamente como fazia a prática alquímica com seus adeptos.
Aqui a correspondência entre a maçonaria e a tradição alquímica se torna ainda mais evidente: o Aprendiz, que durante longo tempo permaneceu num estado de semente, lançada num profundo negro, evolui para o branco da regeneração, quando se torna Companheiro e conhece o vermelho da ressurreição ao tornar-se Mestre. O Mestre que renasce a partir de Hiram morto, eis o apogeu do processo que simboliza o nascimento de um maçom na sua plenitude iniciática, pois ao iniciar-se Aprendiz, e ao elevar-se a Companheiro, ele ainda está em processo de gestação. Será preciso um longo processo de manipulação e aprimoramento do seu caráter até que ele se torne, enfim, o Homem Universal, alicerce da nova sociedade, justa e perfeita, que a Maçonaria se propôs a construir.
Essa é a alquimia que se processa no interior de uma Loja Maçônica, que, nesse mister repete o trabalho feito no laboratório do adepto da Art d’ Amour. Assim, o neófito que busca a realização maçônica carrega na sua alma o mesmo anseio do adepto que se iniciava na Arte de Hermes. O que ele busca, de fato, é entrar naquele “Circulo da Luz” que confere aos iniciados uma nova visão do mundo. E tanto nos laboratórios dos artistas da Grande Obra, como nos templos maçônicos de hoje, quando um Irmão é iniciado ouve-se dizer que A LUZ FOI FEITA , A LUZ SEJA DADA AO NEÓFITO.


[1] Aristóteles chamava essa energia de Enteléquia, principio que orienta a conformação final de todas as realidades universais.
[2] O Despertar dos Mágicos- Cultrix, São Paulo, 1968. Uma das mais imaginativas aplicações desse princípio foi utilizado pelo escritor escocês Robert Louis Stevenson para compor o seu clássico conto “The Strange Case of Dr. Jekil and Ms. Hyde”, que em português recebeu o título de “O Médico e O Monstro”.
[3] Todos esses arquétipos cultivados pelas tradições esotéricas tem a mesma base de fundamentação: a de que o homem, na sua origem, era perfeito e que por algum motivo perdeu essa condição. Mas através de um processo de purificação do seu espírito (ou mente) pode voltar a sê-lo.
[4] Bernard Rogers- Descobrindo a Alquimia-Círculo do Livro, 1986
[5] O Mutus Liber (em latim, "livro mudo") é um tratado de alquimia publicado na França, na segunda metade do século XVII. É composto apenas por uma coleção ordenada de ilustrações místicas, que para os conhecedores dessa arte tem a finalidade de transmitir o segredo da fabricação da Pedra Filosofal, objetivo final de todo alquimista.
[6] Nas Lojas Maçônicas, cada grau é simbolizado por um painel, que representa aquela fase de passagem por aquele grau de iniciação. É uma iconografia semelhante ao trabalho alquímico representado na admirável coleção de painéis do Mutus Liber. Ali se pode perceber diversos símbolos iconográficos muito caros aos maçons, como escadas (Escada de Jacó), elevações espirituais, trabalhadores manuais (trabalho com pedra bruta), etc. Tudo leva a crer que a própria simbologia maçônica, expressa nos painéis dos diversos graus, tenha sido inspirada pelo processo de obtenção da Pedra Filosofal, conforme descrito no Mutus Liber.
[7] Alex Horne - O Templo do Rei Salomão na Tradição Maçônica. São Paulo. Ed. Pensamento, 1998.
João Anatalino

SIMBOLISMO MAÇÔNICO- O ORVALHO DO MONTE HERMON

Autor: João Anatalino

A tradição dos “lugares altos”


Os chamados “lugares altos” sempre exerceram uma atração quase magnética sobre o espírito dos povos antigos. Eles eram considerados como altares naturais onde as divindades se apresentavam para exercer seu domínio sobre os homens. Não é pois, sem razão, que a grande maioria dos templos da antiguidade eram erguidos sobre elevações montanhosas, e que as grandes manifestações de fé e espirito religioso fossem feitas nos lugares altos.[1]
A história religiosa dos hebreus, e depois dos judeus, herdeiros desse antigo povo também está umbilicalmente ligado á esse simbolismo. Com efeito, uma das mais sagradas tradições de Israel é a de construir altares nos lugares altos e situar as manifestações da divindade nesses lugares. Mesmo antes de Moisés ter o seu encontro com Jeová no Monte Horeb, e depois levar o povo hebreu para um encontro com a sua divindade nos pés do Monte Sinai, onde receberia as Tábuas da Lei, várias outras elevações terrestres eram consideradas sagradas pelos israelitas e adoradas como locais sagrados. Eram sempre nos lugares altos que deviam ser realizados os sacrifícios; também nesses lugares a espiritualidade devia ser buscada.[2]
Historicamente o povo de Israel dividiu sua devoção entre dois lugares altos. O Monte Moriá, onde foi construído o Templo de Jerusalém, e o Monte Gerizim, que após a cisão do reino israelita, ocorrida após a morte de Salomão, tornou-se a montanha sagrada dos israelitas do norte, em oposição aos judeus, que fizeram de Jerusalém e do templo de Salomão, o seu lugar sagrado.[3] Essa divisão devocional perdurou por muitos séculos e ainda era um forte elemento de discórdia entre os israelitas nos dias de Jesus, pois enquanto os judeus só aceitavam o Templo de Jerusalém como único lugar de adoração de Jeová, os samaritanos, como então eram conhecidos os descendentes dos rebeldes israelitas do norte, o faziam no Monte Gerizim.[4]

O Monte Hermon

Mas a tradição bíblica consagra a devoção dos israelitas pelos lugares altos muito antes das disputas políticas que destruiram o reino unificado de Israel. Um desses lugares santificado era o Monte Hermon (em hebraico, Har Hermon, que se traduz por "montanha sagrada", também conhecida pelo nome de Djabal el-Sheikh, " a montanha do sheik” ou "montanha nevada". 
O Monte Hermon está localizado na parte sul da fronteira do Líbano com a Síria.Tem 2814 metros de altitude, e o seu pico está sempre coberto de neve, oferecendo um vistoso contraste com as terras ao seu redor, desérticas e sempre expostas ao sol inclemente.
Na encosta sul do Monte Hermon situam-se as Colinas de Golã, área capturada por Israel em 1967, na famosa Guerra dos Seis Dias. Posteriormente, em 1973, na chamada Guerra do Yom Kippur, o Monte Hermon foi palco novamente de encarniçadas batalhas entre Israel e seus vizinhos. Com a vitória israelense esses disputados territórios sagrados, tanto para judeus como para seus vizinhos, foram definitivamente ocupados por Israel e fazem hoje parte do seu território, embora isso jamais tenha sido reconhecido pelos adversários, nem pela ONU, pois este organismo internacional não reconhece a legitimidade de territórios adquiridos pela força. Não obstante, Israel continua ocupando até hoje esses lugares.
A Bíblia, no livro dos Juízes, chama o Monte Hermon de Baal-Hermon, e diz que ali habitava a tribo dos heveus, povo cananeu que aceitou de bom grado a ascensão de Israel, e ao que parece, adotou o culto israelense, pois não foram exterminados comos os demais povos cananeus e até forneceram esposas para os homens de Israel.[5] Assim, a história do povo de Deus está bastante ligada a esse monte sagrado, que fica nas montanhas do Líbano, de onde, segundo a tradição, de “o Senhor derramava a benção” para as terras do sul, onde os israelitas assentariam definitivamente suas tendas e depois fundariam a sua nação. 

O simbolismo do Salmo 133

Na verdade, essa tradição está conectada a um fator geopolítico de fundamental importância para essa região e que, até hoje, fundamenta a encarniçada disputa que se trava entre os povos que nela habitam. É que nessas montanhas nascem os cursos de água que alimentam o principal rio da região, o Jordão, única fonte de abastecimento de água ali existente. É pois, um território de excepcional importância estratégica para todos os países que ali tem seus interesses: Israel, Jordânia, Síria, Líbano e autoridade palestina. 
O Monte Hermon seria o local da benção, de onde o Senhor derramaria o seu “orvalho precioso”, representado pela neve que se derrete e alimenta os cursos de água que fertilizam todo o Vale do Jordão, que na tradição de Israel, é o centro nevrálgico da chamada “Terra Prometida.” 
Justifica-se, portanto, o simbolismo presente no salmo 133, que consagra a tradição da união fraterna. Nesse simbolismo está presente a ideia de que Israel representa a realização prática dessa união, fundada em um pacto sagrado, firmado para uma convivência fraterna entre os Irmãos e na estrita obediência á uma única divindade. Uma verdadeira confraria social e política, que se regia pelos fundamentos que viriam a ser, mais tarde, consagrada por todos os povos livres do mundo: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. 

O orvalho de Hermon


Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! É como o óleo precioso sobre a cabeça, o qual desce para a barba, a barba de Arão, e desce para a gola de suas vestes.
É como o orvalho do Hermon, que desce sobre os montes de Sião. Ali, ordena o Senhor a sua bênção e a vida para sempre.”

O “orvalho do Hermon” é, portanto, a benção do Senhor, que é derramada sobre todos os povos que seguem a sua lei. Pois a obediência á lei de Deus é a verdadeira argamassa que une os povos em todo o mundo. Sua comparação ao óleo que desce sobre a barba de Aarão é uma preciosa analogia que identifica elementos de grande significado na crença dos israelitas. Primeiro, por que Aarão foi o primeiro sacerdote consagrado por Moisés, e ele representa, para o povo de Israel, o iniciador oficial do culto á Jeová. Por outro lado sabe-se que a barba, entre os antigos povos era um elemento simbólico de magna importância para identificar os eleitos da divindade. Assim, a Barba de Aarão simboliza, na verdade, todo o povo de Israel, que por seu intermédio era abençoado quando o óleo sagrado descia sobre a barba do sacerdote e molhava a orla das suas vestes sacerdotais.
Como se sabe, esse simbolismo tem uma correspondência muito significativa nos ensinamentos da Cabala. De acordo com essa antiga tradição judaica, a barba é o influxo que nasce na primeira Séfora e percorre toda a Árvore da Vida unificando a totalidade das realidades existentes no universo. 
 

A ÁRVORE SEFIRÓTICA

A Árvore Sefirótica, na tradição cabalística, é uma representação simbólica do Cosmo como realidade macro, que na sua manifestação energética, transmite o seu reflexo no homem como realidade micro. Por outro lado, a palavra barba, em hebraico, (Hachad) significa unidade, e por aplicação da técnica da gematria essa soma resulta no número 13. A=1, CH=8, D=4. Esses valores, segundo a numerologia da Cabala, correspondem às partes da barba do Macroprosopo, o Andrógino Superior ou Vasto Semblante, como a Cabala chama essa representação simbólica da energia que Deus manifesta no mundo. Essa manifestação gera o Microprosopo, que é a representação do universo material e do Andrógino Inferior, cuja proporção numérica e geométrica (o homem vitruviano) deu origem ao modelo do homem da terra. Daí o salmo 133 ser considerado um salmo cabalístico.[6]
Nesse sentido, o Monte Hermon seria a “cabeça” geográfica da Irmandade de Israel, de onde o orvalho santificado (óleo) escorre para o todo o corpo (o próprio território e povo de Israel), molhando a orla dos seus vestidos (os povos vizinhos que adotarem o culto israelense, os quais podem ser admitidos na Irmandade). Esse é o sentido da união fraternal contido no salmo 133 e do simbolismo do orvalho do Monte Hermon.[7] 
 

 O HOMEM VITRUVIANO

[1] Mesmo entre os gregos esse arquétipo era cultivado. Os mais famosos templos gregos foram erguidos sobre altas colinas. O mais famoso deles, o templo da deusa Atena, em Atenas, mais conhecido como Partenon, é um exemplo desse simbolismo. Foi construído no ponto mais alto da Acrópole, montanha situada nos arredores da capital grega no século V a. C. Outro exemplo desse simbolismo entre os gregos era a tradição de situar a morada dos deuses no famoso monte Olimpo, a mais alta montanha da Grécia. Essa montanha está situada a cerca de 100 km da cidade de Salônica, na região da Tessália.
[2] Abraão, por exemplo, subiu a uma montanha para sacrificar seu filho Isaque. Elias costumava subir ao Monte Carmelo para fazer suas orações.
[3] Referência á rebelião das dez tribos do norte, chefiada por Jereboão, por ocasião da sucessão de Salomão, que escolheu seu filho Roboão para sucedê-lo. A Bíblia relata esse episódio em Reis 12: 16.
[4] Por isso Jesus diz aos samaritanos: “crê-me que 
a hora vem, em que nem neste monte (Gerizim) nem em Jerusalém adorareis o Pai”. Pois os samaritanos se dirigiam ao Monte Gerizim para adorar a Jeová, enquanto os judeus diziam que isso só podia ser feito em Jerusalém. Na base do Monte Gerizim foi construída a cidade de Samaria, de quem os samaritanos tiraram o nome.
[5] Juízes, 3:3. O nome Baal-Hermon sugere que ali os antigos cananeus mantinham um santuário dedicado ao seu deus Baal, e que essa religião teria sido substituída pelo culto a Jeová.
[6] Macroprosopo, Vasto Semblante, Ancião dos Dias, são expressões simbólicas usadas pela Cabala para designar a Suprema Divindade. Microprosopo é a expressão simbólica para designar o “homem primordial”, que serviu de modelo para a criação do ser humano. Ver, a esse respeito, Knorr Von Rosenroth, Cabala Revelada, Madras, 2011. Na imagem 1, a Árvore Sefirótica, na imagem 2, o Homem Vitruviano, desenho de Leonardo da Vinci, representando o “homem universal” o microprosopo cabalístico.
[7] Outra prova do significado sagrado do Monte Hermon é o fato de Jesus ter escolhido esse monte para ser transfigurado. O significado simbólico dessa passagem é a de que, sendo o Monte Hermon “a cabeça” de onde a benção do Senhor escorre para Israel, nada estranho que ali fosse o lugar onde ele deveria ser “reconhecido” como o Messias das profecias. Por analogia, o altar do Venerável Mestre na Maçonaria, especialmente no rito Adoniramita, onde esse simbolismo é invocado com mais força, é chamado de Monte Hermon.
João Anatalino


LOJA DE MESA NO RITUAL BRITÂNICO

JBNews

A Loja de Mesa ou Jantar Ritualístico do ritual britânico tem atributos diferentes do Jantar Ritualístico do REAA. O do REAA teve origem em França, nas Lojas Militares, em torno de 1780. Seu ritual foi desenvolvido, em Lojas militares, durante o 1º Império de Napoleão (1804-1814). Daí porque, seu ritual é rico em símbolos militares. Bem ao gosto francês há, nos Jantares Ritualístico do REAA, ornatos inseridos nos sinais, como por exemplo fazer sinais com facas (espadas ou alfanjes) e uso de guardanapos (bandeiras).

A Loja de Mesa no ritual britânico teve origem no século XVI, nos ágapes (boards) realizados após uma sessão maçônica. Herdou influências da realeza britânica após a Revolução Gloriosa (1689)1, com William III2, da casa de Orange-Nassau. Teve sua ritualística desenvolvida após 1717, com marcantes influências hebraicas e celtas. As primeiras regras escritas do Jantar Ritualístico apareceram em 1721, em Londres.

Chama-se Banquete Ritualístico, Jantar Ritualístico ou Loja de Mesa. Banquete é derivado do italiano banchetto que significa “banquinho”, onde os primeiros cristãos sentavam durante ceias comunitárias (ágapes) nas catacumbas. Jantar Ritualístico – jantar do latim vulgar jantare significa comer numa refeição noturna; ritualístico do latim ritualis, -e significa cerimônia.

Até hoje, em todas as sessões na Grã-Bretanha, obrigatoriamente, realizam-se ágapes (boards). Mas, Jantares Ritualísticos (Festive Boards), somente em sessões comemorativas. O Royal Festive Board se realiza dias 24 de junho (fundação da Grande Loja de Londres e Westminster, em 1717, e próximo ao solstício de verão no hemisfério Norte) ou 27 de dezembro (fundação da Grande Loja Unida da Inglaterra, em 1813, e próximo ao solstício de inverno).

No ritual britânico, o banquete ritualístico é feito em loja fechada, isto é, não se abre a loja. Isto ocorre desde 1854, quando a rainha Victoria foi convidada e participou de um Festive Board. Desde então, usa-se o termo Royal Festive Board. Eventualmente, profanos podem participar do Jantar Ritualístico. É tradição, na Grã-Bretanha, a participação da Rainha no Jantar Ritualístico de Londres. Hoje, dia 24 de junho de 2014, dia de São João Batista e evocação do solstício de verão no hemisfério norte, comemorando 297 anos de fundação da Grande Loja de Londres e Westminster, a rainha Elizabeth II, o Príncipe Consorte Philip, duque de Edimburgo, o Duque de Kent, Príncipe Edward George Nicholas (Grão Mestre Geral da Grande Loja Unida da Inglaterra) e vários membros da casa real britânica participaram de uma Loja de Mesa, em Londres, sessão presidida pelo Duque de Kent. Na verdade, o solstício ocorreu, em 2014, dia 21 de junho às 10:51 h.

A mesa do banquete deve ser disposta em forma de U, com a colocação do Venerável Mestre no Leste (chamada mesa do candelabro de sete braços, não é chamado de Oriente); o 1º Vigilante no Oeste (lado Norte) – chamada mesa do candelabro de cinco braços; o 2º Vigilante no Oeste (lado Sul) – chamada mesa do candelabro de três braços – e, os demais irmãos distribuídos nos braços da mesa, sendo os aprendizes dispostos no lado central dos braços. O Oeste não é chamado de Ocidente.

Existe uma homenagem ao último aprendiz iniciado, o único que no Ritual de Emulação tem levantada a abeta de seu avental. Este aprendiz senta-se à mesa do candelabro de sete braços, ao lado das autoridades presentes.

Nos banquetes ritualísticos maçônicos, come-se carneiros, chamados em hebraico de Korban (significa “sacrifício “ – ן ר ק) termo que se encontra na Torá e significa um sacrifício de um animal ofertado a YHWH. O significado de se comer cordeiro é um sacrifício simbólico ofertado ao GADU. Come-se pão ázimo ou matzá ( ) um pão assado sem fermento, feito somente de farinha de trigo e água. De acordo com a tradição hebraica, o pão ázimo foi feito pelos hebreus antes da fuga do Antigo Egito, porque não houve tempo para esperar até a massa fermentar (Êxodo 12: 39). O significado simbólico é: assim como a massa sem levedura não sofre um efeito corruptor, ao preparar a levedura de nosso corpo (1 Coríntios 5: 8), também demonstra-se o desejo de pureza, quando se deseja comemorar a liberdade em relação à escravidão. Na maçonaria, portanto, comer pão ázimo significa a liberdade dos vícios, ou “cavar masmorras ao vício e erguer templos à virtude”. Bebe-se vinho – yayin (יין ) que significa uma simbólica santificação – Kiddush ou Kadosh – קדוש – significa “sagrado” ou “santificado”. Aos que não podem beber, oferece-se, hoje, suco de uva. Há várias justificativas bíblicas para se beber vinho. A primeira, em Juízes 9: 13: “… meu vinho, que alegra a Deus e aos homens…”. Também no Salmo 104: 15: “…o vinho, que alegra o coração do homem…”.

Nas cerimônias judaicas, usa-se o Shofar ( ), um chifre tradicionalmente de carneiro que era utilizado como instrumento musical nos tempos da construção do Templo de Salomão. O shofar é considerado sagrado, quase como uma voz celestial. Estes sons característicos do shofar, que nas cerimônias hebraicas ecoa por 3 vezes (shefarim ou sh’varim) como 3 soluços, significa o chamamento à ordem sobre as necessidades da alma. Geraram, na maçonaria, as batidas dos malhetes nos pedestais (ou nos altares) e em outros ritos, nas diversas baterias dos graus. Na maçonaria, usam-se malhetes que é o chamamento à ordem e à atenção.

O candelabro de sete braços, na mesa do Venerável Mestre, é, na tradição hebraica, a menorá (מְנוֹרָה – מנורת שבעה קנים ) um dos símbolos do antigo Templo de Jerusalém. A Menorá representa a divindade e, para os maçons, a Sabedoria. Por isso na mesa do V.M..

O 1º Vigilante senta à mesa do candelabro de cinco braços. A menorá de cinco braços, chamada Menorot (תטןנםמ – נברשת חמש זרוע ), representa a criação do mundo em 5 etapas. Diz a lenda hebraica que Deus ficou tão encantado com a criação, que achou falta de alguém para louvá-Lo. Criou o Homem na 6º etapa e descansou na 7º etapa. A Menorot simboliza o espírito e, para os maçons, a Força (espiritual).

O 2º Vigilante senta à mesa do candelabro de três braços. O candelabro de três braços chama-se Tzerin (עטץצ – נברשת עם שלוש זרועות ) e representa a criação do mundo por Deus que o constituiu em três reinos: vegetal, mineral e animal. Simboliza a matéria e, para os maçons, a Beleza, a natureza.

Quem administra o cerimonial, no Jantar Ritualístico, é o Diretor de Cerimônias, comandando por um bastão, a vara de ofício. O bastão representa os cajados dos hebreus, usados na fuga do Egito. O Diretor de Cerimônias lembra a administração do comando dos retirantes do Egito. No ritual britânico, o V.M. faz, apenas, um brinde, dividido em quatro etapas. Isto, também, tem origem hebraica. Os quatro brindes representam as quatro expressões de libertação prometidas por Deus, em Exodus, 6: 6-7. Os quatro brindes do Sêder de Páscoa (סֵדֶר ), o Jantar da Páscoa Judaica, representando as quatro vezes que os hebreus foram escravos: 1º – “tirei da escravidão”, uma redenção, quando os hebreus fugiram do Egito; 2º – “salvei dos impostos e autoritarismos do governo”, quando os hebreus se libertaram do domínio da Babilônia; 3º – “redenção com punho forte”, quando os hebreus se libertaram das autoridades gregas; e 4º – “resgatarei”: Deus pegou o povo hebreu como seu povo e lhe deu a Torá. O Mestre da Loja levantará um só brinde, dividido em quatro etapas. Os quatro brindes serão em homenagem: 1. aos chefes executivos federais (chefe de Estado Brasileiro — não se brinda o chefe de governo —, e chefe do Estado Maçônico, o Grão Mestre Geral do GOB) — no Brasil os chefes de Estado e chefes de governo são as mesmas pessoas; 2. aos chefes executivos estaduais (chefe do estado — Governador do Estado, Grão Mestre do GOB-SC e Grão Mestre de Obediências regulares, se presentes); 3. às autoridades maçônicas (Grão Mestre Adjunto, Secretários, Veneráveis Mestres e autoridades presentes de outras Obediências regulares); 4. aos maçons.

Dos celtas, a Maçonaria adotou a recomendação de se realizar o jantar ritualístico no solstício de verão (em junho, no hemisfério norte), o dia mais longo do ano, por ser o dia de maior Luz, maior Sabedoria. Isto é um costume celta muito antigo que se comemora, até hoje, em Stonehenge4.

Por fim: o objetivo do Jantar Ritualístico é a confraternização, isto é, reunirmos em confraternidade, comungarmos nossos estados de espírito, darmos demonstrações conviviais de ser fraternos. Então (cf. regras de 1721): “comamos e bebamos e façamos votos de que nos tornaremos melhores amigos.”


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