terça-feira, 3 de novembro de 2015



O CÓDIGO SAGRADO

 Autor: João Anatalino


A Kabbalah é um sistema de pensamento desenvolvido pelos estudiosos da religião judaica para interpretar a Bíblia e desvendar os grandes segredos contidos na palavra de Deus, que no entender dos mestres dessa religião, esse formidável monumento literário que os judeus legaram ao mundo encerra. Para esses estudiosos da religião de Moisés, a Bíblia teria sido escrito em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de combinar letras e números para criar novas palavras, apresentando a cada combinação feita, um significado diferente. 

Assim, a Kabbalah se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem de um mundo superior ao nosso, pois foi desenvolvida no próprio ceu para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, os construtores do universo, que são as dez Ordens angélicas, criadas em cada uma das dez manifestações que Ele emanou em sua ação criadora. Essas dez manifestações são aquelas que estão representadas na Árvore da Vida.[1]

Os membros dessas fraternidades, os arcanjos, ensinaram a Kabbalah a alguns homens na terra, escolhidos especialmente para receber essa sabedoria, com a qual a própria humanidade pode contribuir para a tarefa de construção do mundo planejado pelo Criador. Daí a palavra Kabbalah significar, literalmente, “tradição recebida”, pois o seu contéudo, inacessível ao vulgo, só pode ser comunicada a alguns iniciados. Nesse sentido ela seria uma espécie de código secreto, de craráter sagrado, cujo conteúdo seria interdito aos profanos.

Diz-se que os sons e os valores numéricos desse alfabeto, devidamente combinados, formam palavras e signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas suas partes, sejam elas materiais ou espirituais. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição.

Tradicionalmente, há dois tipos de Kabbalah. Uma é aquela que nasceu da necessidade de os judeus criarem para si uma forma de defesa contra o acirrado anti-semitismo que se desenvolveu contra o povo de Israel desde as suas origens, derivado do fato de os israelitas terem se afastado do convívio com outros povos em razão das suas crenças, bastante diferentes dos demais. Esse tipo de Kabbalah, que pode ser chamado de prática, ou operativa, segundo acreditavam seus praticantes, hospedava, em princípio, um sistema de alta magia, que tinha por objetivo a invocação de poderes do mundo sobrenatural para realizar os desejos do operador. É nesse contexto que se situam os milagres, as visões e profecias realizadas pelos antigos profetas do Velho Testamento e as famosas lendas cabalistas que atravessaram séculos e que ainda hoje povoam a imaginação das pessoas, servindo inclusive de fonte para formidáveis trabalhos literários.[2]

Mais tarde surgiu outro tipo de Kabbalah, que podemos chamar de filosófico. Este constitui um sistema de pensamento e disciplina de conduta moral que foi desenvolvido por um grupo de filósofos, a maioria de origem judaica, a partir do século XII da era cristã, provavelmente na região do Languedoc francês. Embora a temática desse tipo de Kabbalah tenha surgido somente na Idade Média, e seu conteúdo tenha sofrido uma larga influência da Gnose, as raízes dessa doutrina estão fincadas em uma antiga tradição já encontrada entre os rabinos dos tempos bíblicos, e utilizada principalmente por grupos sectários judeus, nos séculos anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. 

Pode também ser recenseada em obras de escritores esotéricos cristãos nos primeiros séculos do cristianismo, que a usaram para disfarçar a pregação da doutrina de Jesus, então posta na clandestinidade pelas autoridades romanas. Um exemplo dessa literatura cristã clandestina, escrita em linguagem simbólica, usando o método cabalístico, é o Apocalipse de São João. Esse curiosa obra, que visa divulgar a doutrina cristã ás sete igrejas da Ásia, até hoje desafia a curiosidade dos estudiosos, em face da estranha simbologia usada pelo autor. Nesas obra, um dos mais significativos exemplos da técnica cabalística é a que o autor usa para designar a enigmática figura da Besta. “ E aqui está a sabedoria. Quem tem inteligência calcule o número da Besta. Porque é número de homem. 

E número dela é seicentos e sessenta e seis”, escreve o autor. Esse número (666), correspondia, usando-se a técnica da gematria, ao nome do imperador romano Nero, que justamente na época em que o autor escrevia o Apocapipse, havia desencadeado uma grande perseguição aos cristãos em todo o território dominado por Roma[3]

Entretanto, parece que o uso da Kabbalah como linguagem de código foi popularizada mesmo pelos essênios, seita judaica radical, que entre os séculos I e II antes do nascimento de Jesus se afastou do convívio social para viver a sua crença em um final apocalíptico para este mundo e a construção de um mundo novo, liderado pelo Messias. Essa seita, cujos documentos foram recentemente recuperados em cavernas situadas ás margens do Mar Morto, é tida como a verdadeira inspiradora do cristianismo, pois suas doutrinas muito se aproximam daquelas pregadas por Jesus e principalmente, por aquele que é tido como seu verdadeiro mentor, o profeta João Batista.[4]

Alguns dos precursores da Kabbalah, segundo os estudiosos desse sistema, foram os profetas Ezequiel e Daniel, cujas visões, extremamente difíceis de serem explicadas em linguagem vernacular, só podem ser estudadas e entendidas por quem domina o arsenal do simbolismo cabalístico. É fato que tais vi- sões guardam relação com os momentos históricos vividos pelo povo de Israel e refletem os próprios sentimentos, temores e esperanças vividas por esse povo, em sua extraordinária saga. Mostram também a existência de uma tradição muito em voga entre os povos antigos, de retratar os seus estados interiores através de complicadas visões gestaltianas. Como explica Northrop Frye “há, no Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal.[5]

Destarte, muitas palavras, que na linguagem comum significam uma coisa, na linguagem usada pelos autores desses antigos textos significam coisas muito diferentes, que só podem ser devidamente decoficadas se postas no exato contexto em que viveram os seus autores e recenseadas as suas relações de sentimento e interação com o ambiente e os acontecimentos que fizeram parte da experiência que eles relatam. Referindo-se ainda ao estudo do autor acima citado, verifica-se que nas sociedades antigas há uma interação mais estreita entre o sujeito e o objeto, no sentido de que a ênfase do sentimento experimentado pela pessoa recai mais sobre a relação que a liga ao ambiente do que na própria observação do sentimento em si, coisa que só começou a acontecer depois da experiência grega. Essa característica também foi explorada por Sir James Fraser, em seu estudo sobre as tradições dos antigos povos, quando se refere ao sentimento do homem primitivo em relação aos seus deuses. É uma relação de simbiose, no sentido de que o homem primitivo não possui um “self” ou seja, um sentimento de si mesmo, independente da divindade que ele cultua. Essa noção, como bem viu esse autor, só seria desenvolvida mais tarde, já nos tempos históricos, pelos gregos com a cultura do pensamento filosofico. [6]

É nesse sentido Frye explica o fato de que “muitas sociedades primitivas possuem palavras que expressam essa energia comum á personalidade humana e á natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias e correntes de pensamento.(...) A articulação das palavras pode dar corpo à este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como fórmulas de “feitiço” ou encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário desse princípio é o que pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tal contexto, as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.[7]

O autor em questão cita, á guisa de exemplo, a palavra maná, ou mana, que em Êxodo, 16, aparece como sendo uma espécie de farinha que Jeová faz cair do céu para alimentar o faminto povo de Israel no deserto. Essa palavra (man, maná, manes, em várias línguas antigas), refere-se á uma força, ou energia, que se encontra concentrada em objetos ou pessoas e que pode ser adquirida, conferida ou herdada. Na mitologia romana, por exemplo, esse termo conecta-se com o termo “manes”, palavra que designa a influência que os ancestrais mortos podiam exercer sobre os vivos. Criam-se, dessas forma, insuspeitadas relações simbólicas, que se hospedam no inconsciente coletivo da humanidade e são passadas de geração á geração, dando formato á crenças, valores e costumes, os quais, no contexto geral da cultura humana podem explicar muita coisa que de outra maneira ficariam para sempre catalogadas como meras superstições.[8]
(Continua)


[1] Cf. Knor Von Rosenroth- A Kabbalah Revelada, op, citado, pg. 50
[2] Exemplos de temas cabalísticos em obras literárias famosas são as lendas do Golém, que inspiraram a escritora inglesa Mary Shelley na composição do seu clássico romance Frankeinsten. Outras obras, como o Aleph, famoso conto de Jorge Luís Borges, o Golém de Gustav Meirink, e mais recentemente, As Aventuras de Pi, filme vencedor do Oscar em 2012, baseado no romance de Yann Martel, também são inspirados em temas cabalísticos.
[3] Ver, a esse respeito Hugh Schonfield- A Bíblia Estava Certa- Ibrasa, São Paulo, 1958
[4] Para maiores referências sobre essa seita e sua influência na história do pensamento maçônico, ver nossa obra “Conhecendo a Arte Real”, publicada pela Ed. Madras, São Paulo, 2009. Ver também Laperroussaz, Ernest- Marie. Os Pergaminhos do Mar Morto, São Paulo, Círculo do Livro, 1990.
[5] Northrop Frye- O Código dos Códigos, Ed. Boittempo, São Paulo, 2004
[6]Sir James Fraser, “ O Ramo de Ouro” publicado pela Zahar Editores, São Paulo, 1982.
[7] Northrop Frye, op citado, pg. 27
[8] O Código dos Códigos, op citado, pg. 28.

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