sábado, 4 de julho de 2020


A INDELÉVEL PRESENÇA DO HEBRAICO NO RITO ESCOCÊS ANTIGO E ACEITO


Por Rui Samarcos Lora




INTRODUÇÃO

Neste ensaio é apresentada a utilização do idioma hebraico pelo Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA), sua aplicação e transliteração equivocada quanto a algumas palavras e a cabal necessidade de utilizá-lo de forma correta, a fim de dar sentido às palavras e significado no uso, fortalecendo o simbolismo e a essência do grau e do rito. No primeiro momento, é demonstrado um breve histórico do hebraico, destacando sua ascensão e queda como idioma no Oriente Médio até seu esplendor com a formação do Estado de Israel. Posteriormente, faz-se uma comparação com o aramaico e, subsequentemente, com o surgimento dos sinais massoréticos. Por fim, apresenta-se breve resumo sobre o surgimento do hebraico no rito e atual uso de algumas palavras, bem como seus significados, demonstrando a necessidade de se empregar a forma correta de utilização dos termos hebraicos do REAA.

HEBRAICO:  UM BREVE HISTÓRICO


Acredita-se que a palavra “hebraico” tenha sua origem remota no ancestral israelita Éber, descendente dos patriarcas bíblicos Noé e Sem (GOROVITS; FRIDLIN, 2006). Na tradição judaica, Éber se recusou a ajudar seu povo na construção da Torre de Babel, então sua língua/idioma não foi confundida como a de todos os outros povos. Ele e sua família mantiveram o idioma original da época e por esta razão o idioma levou o nome de hebraico, uma alusão ao seu nome, Éber (Heber). De toda forma, há outras posições religiosas diferentes quanto a esta questão, mas para o estudo ora em apreço, manteremos essa versão dos fatos, uma vez que o Rito não só coaduna como está embasado na tradição judaico-cristã.

Ademais da palavra “hebraico”, cabe citar outra palavra derivada do mesmo nome que é “hebreu”, referência ao povo que tem o hebraico como idioma. Alguns acadêmicos afirmam que os hebreus também receberam este nome por conta de seu ancestral remoto, ou seja, Éber. Outros já preferem utilizar o significado do nome, isto é, “aquele que atravessa”, fazendo referência à raiz e possível tradução do nome, isto é, “aquele que passa”, “atravessa para o outro lado”, característica marcante daquele povo durante a época migratória na região.

Ainda utilizando das fontes e relatos bíblicos, podemos afirmar que o hebraico é um idioma oriental pertencente ao tronco/família semítica de línguas. Sobre este tronco, devemos dizer que a palavra “semita” também tem sua origem atribuída a um personagem bíblico, neste caso, Sem, isto é, como já visto, um dos filhos de Noé, ancestral dos assírios e de muitos outros povos falantes de idiomas semelhantes provenientes da região do Crescente Fértil. Por esta razão e muitas outras, o hebraico é considerado Língua Sagrada pelo povo judeu, ou, em hebraico transliterado, Lashon HaKodesh, já que os próprios judeus acreditam ter sido a língua escolhida para transmitir a mensagem de Deus à humanidade.

Dito isto, cabe destacar que, passado os milhares de anos desde o estabelecimento do hebraico, pode-se afirmar que o mesmo continua vivo e presente não só como idioma oficial do Estado de Israel, mas, também, como língua litúrgica para toda a comunidade judaica no mundo e, especialmente neste estudo, presente no Rito Escocês Antigo e Aceito. Por esta razão, considera-se essencial estudar sua inserção nos rituais maçônicos do referido Rito, bem como seu correto emprego, face a conexão direta do idioma com a moral filosófica apresentada em cada grau que permeia o rito mais utilizado pela Maçonaria brasileira.

Assim, autores renomados dentro da Maçonaria têm escrito a respeito do idioma e sua presença na Ordem, como é o caso de José Castellani (1993):

“(…) a esmagadora maioria das palavras utilizadas na ritualística maçônica é hebraica, no tocante às palavras Sagradas e de Passe, que servem de reconhecimento entre os maçons e para quilatar a perfeição da Loja composta.” (A Maçonaria e sua Herança Hebraica, CASTELANI, 1993.)

Portanto, nas linhas subsequentes deste artigo, serão abordados alguns pontos chaves para que se possa não só entender o uso do idioma no Rito Escocês Antigo e Aceito, mas, também, para que seja demonstrado como é importante que se use o idioma de forma correta, face aos equívocos correntes que muito tem se perpetuado ao longo dos anos. É exatamente pela falta de pesquisa e estudo a respeito do idioma e de sua utilização no seio da Maçonaria que o entendimento e significado do rito têm sido prejudicados e, até mesmo, alterados, sobremaneira, a verdadeira pronúncia das palavras. O uso correto do idioma e a correta transliteração das palavras empregadas pelo ritual podem abrilhantar e conferir ao rito o verdadeiro objetivo almejado pelos seus criadores, tornando-o solene, alinhado com os princípios maçônicos e devidamente formulado para a construção do edifício social de cada maçom.
Hebraico e Aramaico

Quando se fala a respeito do idioma hebraico, logo vem à mente das pessoas também o aramaico. Isso tem gerado muita confusão a respeito dos dois idiomas. Muitos confundem o hebraico com o aramaico e vice-versa. Ademais, poucos realmente se dedicam a conhecer a origem de cada idioma ou saber qual dos dois surgiu primeiro. Por esta razão, antes de se abordar especificamente o uso das palavras no rito, é importante esclarecer alguns aspectos referentes às duas línguas, bem como sua utilização e em que contexto histórico um substituiu o outro. De igual forma, para entender a diferença e a história dos mencionados idiomas, necessário abordar aspectos históricos e, quiçá, geográficos relacionados ao Oriente Médio. Só assim será possível extrair a essência de cada um e pontuar as similaridades e diferenças entre os dois idiomas semíticos da região em apreço.

Do ponto de vista maçônico, este estudo e pesquisa também se tornam necessários, a fim de demonstrar que a herança hebraica, como já citado anteriormente, está indelevelmente presente no Rito Escocês Antigo e Aceito, influenciando mormente o simbolismo e a ritualística de cada grau. Portanto, não é possível compreender plenamente o significado e alegoria de cada “estágio” dentro da Maçonaria sem uma mínima noção do idioma, do contexto e até mesmo do significado de cada palavra empregada. Por outro lado, compreender não só a tradução das palavras hebraicas utilizadas no rito, mas, também, entender o enredo e a forma com que são empregadas, dão ao simbolismo e ao aprendizado do maçom uma visão completa do ensinamento filosófico dos trinta e três graus do Rito Escocês Antigo e Aceito.

Passando para uma análise mais histórica a respeito da diferença entre hebraico e aramaico e deixando o relato bíblico neste momento, acadêmicos têm discutido até que ponto o hebraico era uma língua vernácula falada nos tempos antigos, após o exílio dos judeus na Babilônia, quando a língua internacional predominante na região era o aramaico antigo. Sabe-se que por volta do século VI a.C., o Império Neo-Babilônico conquistou o antigo Reino de Judá, destruindo boa parte de Jerusalém e exilando sua população. Durante a captura babilônica muitos israelitas foram escravizados pelo Império Babilônico e tiveram que apreender o idioma de seus captores: o aramaico (OSTLER, 2006).

Depois que Ciro, o Grande, Rei da Pérsia, conquistou a Babilônia, ele libertou os israelitas do cativeiro. Com o regresso do povo para sua terra, uma versão local do aramaico passou a ser falada na região juntamente com o hebraico. Este idioma passou a ser utilizado como língua comercial e aos poucos foi se misturando a outros idiomas da região. Assim, aos poucos, o hebraico foi perdendo espaço para o aramaico. Por volta do século III d.C., a sociedade utilizava o aramaico como língua oficial e o hebraico ficou restrito ao uso em cerimonias religiosas, liturgia judaica e canções (SPOLSKY; SHOHAMY, 1999).

De toda forma, há muita discussão entre os teóricos, linguistas e arqueólogos com relação ao uso dos idiomas na região, especialmente com relação à substituição de um pelo outro e a adoção de outros idiomas. Aliás, não é pretensão deste artigo colocar um “ponto final” nas teorias ou discussões sobre a origem e formação dos dois idiomas. Entretanto, importante notar que pesquisas recentes demonstram que ambas as línguas coexistiram, simultaneamente, logo após o exílio dos israelitas na Babilônia, levando-nos a acreditar que o hebraico deixou de ser falado por vota de 200 d.C (BORRÁS, 1999).

Com este cenário, passamos a observar um “país” com três idiomas, a saber: o hebraico; então ligado à liturgia, à religião, às origens e história da época de ouro; o aramaico, que funcionava como a língua internacional que possibilitava o contato com o restante do Oriente Médio; e, eventualmente, o grego, que era uma segunda língua internacional para comunicação com o Império Romano juntamente com o latim. Em resumo, temos: o grego como língua do governo, o hebraico como língua religiosa, e o aramaico como sendo língua comercial (SPOLKY, 1985).

Com o passar dos anos, especialmente durante a época do Novo Testamento, o hebraico foi praticamente extinto como língua falada na região, mas continuou a ser usado como língua litúrgica e cerimonial para o povo judeu até o seu renascimento no século XIX. Cabe dizer, ainda, que o hebraico foi utilizado para escrever o Pentateuco, a Torá, que os judeus religiosos consideram ter sido escrita na época de Moisés, cerca de 3.300 anos atrás.

Com relação ao aramaico, cabe mencionar que este foi o idioma falado por Jesus, o Cristo, Yeshua, em hebraico, e ainda hoje é a língua materna de algumas pequenas comunidades no Oriente Médio, especialmente no interior da Síria. Importante mencionar que o aramaico também serviu como língua para diversos impérios e administrações ao longo dos tempos na referida região. Também foi idioma utilizado para religião, como foi o caso dos primórdios da religião cristã, naquela época ainda considerada uma espécie de judaísmo reformado pregado por Jesus durante suas andanças na Galileia. Com este uso do aramaico, percebe-se que vários dialetos foram formados a partir do idioma e, como eram distintos entre si, alguns passaram até a ser considerado um novo idioma (SMART, 2013). A fim de distinguir de maneira mais clara o uso do idioma, pode-se dizer, ainda, que, no caso do aramaico, o mesmo serviu como língua comercial durante a época da escritura do Novo Testamento.

Atualmente é um idioma muito pouco falado, correndo risco de ser considerado idioma morto. Não obstante, ainda podem ser encontrados falantes do idioma no interior da Síria, nos vilarejos cristãos de Maalula e Yabrud. Isso talvez esteja associado a relatos de que Jesus tenha se hospedado por três dias em Yabrud e, também, em outras aldeias da Mesopotâmia, como, por exemplo, Tur’Abdin no sul da Turquia, por isso a influência do idioma até hoje é notada nessas comunidades (OKA, 2007).

Com o passar dos anos, o aramaico foi substituído, nos países muçulmanos, pelo árabe, com exceção de Israel que viu o hebraico renascer no final do século XIX e começo do século XX. O hebraico é hoje o idioma oficial do Estado de Israel e falado por mais de dez milhões de pessoas no mundo inteiro. Com o ressurgimento do hebraico foram adotados alguns elementos dos idiomas árabe, latino, iídiche, e outras línguas que acompanharam a Diáspora Judaica como língua falada pela maioria dos habitantes do Estado de Israel.
A solução massoreta e o problema maçônico

Sobre o uso errôneo do hebraico, possíveis dificuldades de interpretação e mau emprego das palavras, traduções e transliterações do idioma no REAA, importante conhecer o surgimento dos sinais massoréticos no hebraico, uma vez que, sem o prévio conhecimento deles, dificilmente seria possível ler o hebraico de maneira correta. É por esta razão que muitas palavras do REAA podem ter mais de uma pronuncia, gerando confusão quanto ao emprego. Assim, na medida em que os referidos sinais foram a solução para a perpetuidade do hebraico, hoje sem o seu estudo e conhecimento pode vir a ser um problema para o entendimento das palavras na Maçonaria.

Antes de discutir as dificuldades encontradas pela Maçonaria com relação ao emprego correto do hebraico, é mister esclarecer que a escrita hebraica antiga não possuía vogais. A vocalização das palavras era transmitida pela tradição, isto é, de pai para filho, de geração em geração, como os costumes e tradições do povo judeu. Dessa forma, quando uma palavra era escrita ou dita, ela era feita somente com o uso de consoantes, mas por conta da tradição que era passada, sabia-se a verdadeira pronúncia da palavra, sem a necessidade do emprego de vogais e assim funcionou por muitas gerações.

Com o passar do tempo e com a migração do povo judeu para outras regiões, inclusive com alteração do idioma, surgiu o receio de que o idioma desaparecesse, assim como a pronúncia correta das palavras fosse perdida, especialmente pela mudança do uso do hebraico para o aramaico na região. Isso aconteceu não só com o idioma, como também ocorreu com a própria tradição oral, ou seja, com receio de que toda a tradição oral um dia fosse perdida, resolveu-se escrever a tradução oral, o que foi reunido em vários volumes chamados de Talmud, a fim de que os comentários e detalhes bíblicos não fossem perdidos e esquecidos pelo povo judeu. No que diz respeito ao idioma hebraico, as primeiras experiências com o uso de sinais vocálicos foram aplicadas, exatamente, no texto do Talmud.

A comunidade judaica exilada, no século V, desenvolveu pontos que ficavam acima das consoantes e estes pontos passaram a ser “vogais”, ao menos davam o som e facilitavam a leitura do idioma. Com o passar do tempo estes pontos foram alterados e passaram a vigorar debaixo das consoantes. Ademais, uma série de comentários e anotações passou-se a ser feitas, a fim de que fosse possível preservar não só o idioma, mas, também sua pronúncia correta. Essas notas eram chamadas de Massorá e os responsáveis pelas notas passaram a ser chamados de Massoretas. Com isso, os sinais e acentos ficaram conhecidos como sinais massoréticos. A padronização dos sinais e pontuação criados pelos massoretas se deu por volta do século X com o trabalho das famílias ben Asher e ben Naphtali. A título de esclarecimento, interessante notar que o texto do Antigo Testamento que consta atualmente em nossas Bíblias é baseado nos textos massoréticos.

Para a Maçonaria, a importância em se estudar este tópico reside no fato de muitas palavras hebraicas usadas pelo REAA causarem questionamentos, dúvidas e formas diferentes de uso e aplicação, variando conforme região, país e, até mesmo, Lojas. Uma das hipóteses que justifica o mau uso das palavras ou pronúncias equivocadas de cada uma delas pode estar intimamente associada à falta da utilização dos sinais massoréticos, causando duplicidade de interpretação nas palavras com relação ao uso de vogais, mesmo sabendo ser possível ler as palavras sem os sinais. Um exemplo muito comum de divergências de pronúncia é com relação à palavra Boaz. Em algumas Lojas a palavra em apreço é utilizada como Booz. Isto pode acontecer por ausência dos sinais massoréticos, causando uma versão paralela, confusão ou uma transliteração errônea da palavra do hebraico para outro idioma, chegando ao português de forma errada.

Outro exemplo muito comum é o próprio uso do tetragrama sagrado, isto é, o nome de Deus (Yud-Hey-Vav-Hey). Com a diversidade de traduções, passou-se a adotar várias formas de se ler o nome sagrado de Deus, isto é: Yave, Jeová, Yafé, Javé, Jehová, dentre muitas outras. Como se pode perceber, a divergência no nome se dá basicamente pela alteração das vogais, permanecendo as consoantes as mesmas do nome. Neste ponto, recorda-se que as letras “y” e “j” assumem papéis diferentes dependendo do idioma que faz a transliteração, por isso a letra hebraica “yud” torna-se “j” ou “y” na transliteração do idioma. Assim, entender o uso correto das vogais empregadas pelos massoretas é fundamental para evitar erro de pronuncia ou grafia. No caso do nome de Deus, acredita-se, ainda, na teoria de que, como ele é impronunciável e religiosamente substituído por outros nomes, pode ser que propositadamente os massoretas tenham retirado as vogais, evitando, assim, que o nome de Deus fosse pronunciado em vão.
O Hebraico no REAA

Como visto no tópico anterior, a linguagem simbólica do REAA está repleta de palavras hebraicas como Boaz, Jachin, Adonai, Yud, BenShorim, Jabulon, dentre muitas outras. Alguns autores acreditam que estas palavras tenham surgido por meio de comentários e influência de leituras do Velho Testamento. Outros afirmam que ilustres maçons judeus, no ato de criação do rito, aproveitaram para inserir elementos e palavras comuns de influência hebraica, especialmente por conta da Kabalá, muito em voga em ordens como a Maçonaria.

Boa parte destas citações e influência do idioma e tradição hebraica e até mesmo das palavras empregadas no ritual maçônico estão relacionadas à construção do Templo de Salomão. Ademais, cabe destacar que um dos maiores símbolos dos templos maçônicos é a presença física predominante dos pilares/colunas “J” e “B”. Além disso, recorda-se que, como referência e registro maçônico de documentos e datas, a ordem maçônica se utiliza muitas vezes do calendário lunar/hebraico, empregando não só a data como os meses hebraicos, muitas vezes, diga-se de passagem, de forma equivocada.

A fim de evitar especulações a respeito do tema, importante analisar alguns comentários de conhecidos estudiosos do assunto para que se possa tirar algumas conclusões. No que diz respeito à presença do hebraico no REAA, o antigo e renomado Soberano Grande Comendador, Albert Pike, afirma em sua famosa obra, Moral e Dogma, o seguinte:

“Fed by the biblical roots of early Masonic rituals and encouraged by the wealth of material to be found in the Scriptures, the early rituals of the Rite of Perfection were heavily laden with biblical stories. Consistente with the theme of religious tolerance manifested early in Freemasonry, the majority of the ritual outlines emphasized Old Testament stories. As these rituals wended their way into the Scottish Rite, this emphasis was maintained, and Pike dared not make significant changes in it. Further, encouraged by the mystical speculations of the Kabbalah, both the Pike Ritual and the lectures in Moral and Dogma are heavily laden with Jewish symbolism and folk narratives.” (Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry, PIKE, 2011, p. 1003)

Isto é, o REAA teria sido criado a partir de análises e estudo das escrituras sagradas, especialmente influenciado pelo Velho Testamento. De fato, há uma profunda relação com o contexto bíblico, principalmente no que diz respeito à construção do Templo de Salomão, como já dito, e, também, pela influência e esoterismo presente na Kabalá. Assim, coube aos doutrinadores e elaboradores do rito dar sentido e aderir diversos elementos e significados. Por sua vez, o hebraico não poderia ser deixado de lado e a utilização de “palavras-chaves” no ritual foi uma forma de aproximar o ritual com o contexto original do Livro da Lei. Dessa forma, adotou-se palavras e símbolos alusivos à tradição judaica e preencheu -se o ritual com este significado que tanto diz respeito ao judaísmo.

Ainda sobre o tema, cabe dizer que Pike era fluente em dezesseis idiomas, inclusive o hebraico, o que pode ter, de alguma forma, contribuído para a utilização de várias palavras. Ele também foi o responsável por consolidar e unificar o REAA, conforme consta em sua biografia, a saber:

Mesmo antes de ser eleito Soberano Grande Comendador, Pike assumiu uma das lideranças intelectuais do Rito Escocês Antigo e Aceito, ao lado de outro eminente estudioso, Albert G. Mackey, sendo que este último dedicou uma de suas maiores obras, o Léxico da Franco-Maçonaria, de 1869, a Albert Pike, em seu prefácio.

Ao unir-se ao Supremo Conselho da Jurisdição Meridional, Albert Pike encontrou uma situação caótica: os Rituais encontravam-se tão desorganizados que muitas Lojas adotaram procedimentos ritualísticos próprios; a estrutura administrativa do Supremo Conselho não possuía qualquer controle sobre seus membros e os serviços de benemerência inexistiam.

Pike, nesta tarefa hercúlea a que se propôs, fortaleceu os ensinamentos do Rito Escocês Antigo e Aceito, expurgando todo o sectarismo e adversidade política do conteúdo dos Rituais, estabelecendo uma rota de desenvolvimento intelectual, o que colocou o Supremo Conselho da Jurisdição Meridional na posição de mais influente e atuante de todo o mundo. Ele engrandeceu o conteúdo das Instruções aos diversos Graus com um amplo conhecimento das culturas antigas – conhecia fluentemente sânscrito, hebraico, grego e latim – fundamentando e comprovando o que antes era apenas perceptível em nossos Rituais.

Assim como Pike, outro ilustre membro da Ordem, Albert Mackey, grande escritor e maçom de origem alemã, foi um grande estudioso e linguista, também Oficial do Supremo Conselho e profundo estudioso do simbolismo e tradições do oriente, como a filosofia judaica, por exemplo, e, especialmente leitor de obras como o Talmude relacionadas à Kabalá, o que só reforça a ideia de que esta influência poderia ter contribuído de forma crucial para a inserção e delineamento da indelével presença do hebraico no REAA.

Importante notar que muita especulação e confusão existem na criação e concepção dos ritos, especialmente com relação à influência cabalista, como foi citado. De acordo com Cortez (2009), muitas dessas citações podem ter surgido por meio de aproveitadores e charlatões que tinham interesses particulares, causando controvérsias no que diz respeito à origem e, até mesmo, às influências que o Rito Escocês sofreu ao longo dos anos. Uma das figuras que muito se fala a respeito dessas influências é o controverso Conde Cagliostro, dando margem a informações e versões dos fatos que atrapalham uma pesquisa mais séria e voltada para o real uso das palavras hebraicas, comprometendo assim, a interpretação das alegorias e simbolismos, principalmente no que diz respeito ao uso do idioma hebraico no rito.

Há, ainda, alguns estudiosos que afirmam que o rito teria sido criado por judeus e, por esta razão, existem tantos elementos judaicos ao rito, mormente o idioma hebraico em suas diversas palavras de passe, sagrada e de reconhecimento da Ordem. Sobre este aspecto, esta vertente está alinhada com o pensamento de que o judeu Stephen Morin, um dos fundadores do REAA na América, teria incorporado elementos judaicos ao rito durante sua criação. Entretanto, não há evidência comprovada a este respeito, mas é provável que outros judeus maçons da época, como M. M. Hays e Isaac da Costa, por exemplo, tenham, também, inserido elementos hebraicos ao rito (CORTEZ, 2009).

A respeito dessas tendências e especulações, uma das possíveis hipóteses no que tange a influência judaica no rito consiste no fato de que a Maçonaria, ao ser introduzida na Carolina do Sul, teria sido levada por um seleto grupo de judeus e isso pode ter gerado parte dos boatos e teorias que justificam a influência do hebraico no REAA. Ainda assim, há controvérsias sobre a veracidade dessa informação (MACKEY, 1879). Isto porque a Maçonaria teria sido introduzida na Carolina do Sul por volta do ano de 1736 (DE SAUSSURE , 1878). Já o REAA, com seu sistema de trinta e três graus, parece ter sido instituído somente em 1786, em Charleston, alguns anos depois. De toda forma, a atual organização do Supremo Conselho do REAA não estava concluída até 1801, isto é, mais de cinquenta anos depois. Sendo assim, os judeus que receberam seus graus diretamente ou indiretamente de Morin nunca atingiram qualquer grau maior do que o 25º do Rito de Perfeição (STEVENS, 1899).

Dificilmente será possível precisar a forma com a qual o hebraico foi introduzido no rito, mas há pontos e tendências que nos ajudam a interpretar e desenvolver leituras e pesquisas que apresentam traços mais claros a respeito dessa influência. Seja por maçons que tinham origem judaica, sejam por maçons que vislumbravam em estudos como a Kabalá e a história contida no Antigo Testamento, o importante neste momento é dar o devido reconhecimento a marcante presença do hebraico no REAA, assim como seguir com seu estudo e significado para cada etapa do ritual, assegurando o objetivo daqueles que instituíram o que seria o manual de procedimentos para a conduta e o ensino dos princípios e moral maçônicos dentro da Ordem.
“O Hebraico Maçônico”

Neste ponto, a fim de preservar e não quebrar o sigilo maçônico do ritual, a exemplo do que José Castellani fez em seus livros, a saber: “A Maçonaria e sua Herança Hebraica” e “Shemá Israel”, será citada neste item as palavras sem mencionar o grau e a ocasião em que se usam, apenas a título de esclarecimento. Assim, inicialmente, pode-se mencionar como o que talvez seja uma das palavras hebraica que mais se “visita” no REAA, isto é, o tetragrama sagrado Yud-Hei-Vav-Hei. A palavra em apreço, impronunciável tanto no hebraico – pelo fato de nem sempre ser escrita com os sinais massoréticos – como na Maçonaria, faz parte dos estudos e de muita discussão no seio do REAA. A este respeito, devemos, ainda, lembrar que alguns rituais escrevem de maneira errada a transliteração do referido nome, além de traduzir a letra “yud” como “yod”, perpetuando o erro em diversos rituais brasileiros.

Uma das hipóteses aventadas para o emprego ou uso incorreto do hebraico e sua transliteração e, por sua vez, pronúncia das palavras hebraicas, é o fato de os rituais não terem sido originalmente traduzidos diretamente para o português ou, ainda, ter passado por diversas versões até chegar à forma que conhecemos hoje. Dessa forma, as palavras hebraicas não sofreram alteração de transliteração para o idioma. Como bem sabemos, o hebraico se utiliza de outro alfabeto e para aqueles que não dominam a leitura é utilizada uma transliteração no idioma pátrio de como se deveria ler a palavra. Assim, por exemplo, a letra yud, hoje utilizada como yod, poderia ter sido trazida de ritual americano onde a pronuncia hebraica correta da letra seria grafada como yod e lida em inglês, pronunciada como yud.

Outro exemplo curioso e que gera discussões longas e até mesmo de cunho filosófico é a palavra Boaz, como já mencionado. Muitos acreditam ser grafada como Booz, entretanto, talvez por razões e emprego dos sinais massoréticos, dúvidas possam ter sido criadas quanto à correta pronúncia da palavra que, buscando na versão original em hebraico, percebemos que a forma correta é Boaz.

Ao continuar com a análise, pode-se citar a curiosa palavra shibolet que por erro de acentuação muitos a pronunciam como shibolé quando, na verdade, o acento é no “o”, isto é, shibólet, lembrando que há um “t” no final pronunciado. Esta palavra, que nos concita estudar um pouco um “fenômeno linguístico” muito interessante, demonstra a peculiaridade da letra hebraica shin, isto é, acrescida de um simples “ponto”, ou seja, um sinal massorético similar ao “pingo do i”, assume a pronúncia sin. Daí temos duas pronúncias no ritual: shibólet ou sibólet, sendo explicada a diferença por meio de uma lenda atribuída ao grau em que ela é utilizada.

Esta peculiaridade da língua também pode ser percebida no uso da palavra “Palestina”, por exemplo. Sem entrar no mérito político ou religioso, apenas levantando questões relacionadas à curiosidade da língua, sabe-se que a palavra “Palestina” foi empregada pelos romanos para determinar o local onde os filisteus habitavam. Em 638 d.C, um califa árabe muçulmano tomou a Palestina das mãos dos bizantinos e a anexou ao império árabe-muçulmano. Os árabes adotaram o nome dado pelos romanos, pronunciando-o como “Falastina”, ao invés de “Palestina”, pois na língua árabe não há o som de “p”. Isto nos leva a refletir se a lenda atribuída à palavra sibólet também não está relacionada a esse fenômeno linguístico.

Estes são alguns dos inúmeros exemplos de palavras hebraicas que encontramos no REAA. Fora o emprego filosófico e moral delas, pode-se, ainda, atribuir estudos numerológicos por meio da guemátria, arte milenar de decodificar letras em números, entretanto, este seria tema para outro artigo, tendo em vista que envolveria questões esotéricas e numerológicas a respeito do simbolismo e decodificação de palavras associando à moral e detalhamento dos graus.
Conclusão

A presença do idioma hebraico no Rito Escocês Antigo e Aceito é uma realidade. A influência de judeus, estudiosos esotéricos, religiosos, herméticos, dentre muitos outros autores maçons contribuíram sobremaneira para que o idioma fosse inserido em cada grau e lenda do rito, atribuindo significado, conteúdo e alegoria cabal para interpretação e entendimento do sistema de graus criado.

Desafortunadamente, não será possível atribuir uma única história ou um único autor e motivo para o uso do hebraico no rito. Como visto neste artigo, especulações, teorias mal explicadas e até mesmo charlatões tentaram ao longo dos anos explicar a utilização e dar certa autoria para a criação e significado ao uso do idioma. Pode-se afirmar, ainda, que será muito difícil comprovar como e onde surgiu a influência do idioma hebraico, de onde surgiram e como surgiram as palavras hebraicas dos trinta e três graus no REAA. Entretanto, a influência do relato bíblico do Antigo Testamento, em especial no que diz respeito à construção do Templo de Salomão, é fonte primária para qualquer pesquisa a respeito do tema.

Não obstante, a importância deste artigo é a de chamar a atenção para a necessidade de se estudar e procurar a forma correta, bem como a tradução de cada palavra apresentada pelo nosso rito. A palavra hebraica de cada grau é parte essencial para o entendimento completo do estudo a ser ministrado em cada etapa do REAA. Não só as palavras, mas, também o simbolismo e alegoria de cada elemento influenciado pela cultura hebraica. Com o passar do tempo e com a forma “automática” com que muitas Lojas têm “atropelado” o ritual, esses pontos podem passar a cair no esquecimento, deixando de lado uma das partes mais repletas de significado para a Ordem. Por esta razão, estudar o idioma, seu uso e sua influência, é elemento fundamental para se entender o REAA e, por sua vez, a Maçonaria de uma forma concatenada.

Autor: Rui Samarcos Lora

Rui é Mestre Instalado da ‘Loja Atlântida nº 06’ – Grande Loja Maçônica do Distrito Federal, membro ativo da Loja ‘Holy Land nº 50’, jurisdicionada pela Grande Loja do Estado de Israel, especialista em Ciências Políticas pela UnB (Universidade de Brasilia, 2006), bacharel em Relações Internacionais pelo UniCEUB (Centro Universitário de Brasília, 2004), coordenador de Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Fonte: Revista Ciência e Maçonaria

Referências Bibliográficas
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