quarta-feira, 8 de novembro de 2017


OS ARQUIVOS QUE VIERAM DO FRIO


Tradução J. Filardo

–por Pierre Mollier


Aqueles não familiarizados com elas, muitas vezes pensam que as bibliotecas são lugares entediantes e empoeirados. Eles ignoram quanto a história de alguns livros ou manuscritos pode, às vezes, ser extraordinária. Assim, entre 1940 e 1945, os arquivos maçônicos franceses vão conhecer uma verdadeira epopeia. Uma epopeia que vai levar uma parte deles a atravessar a Europa no meio de bombas, e a desaparecer no turbilhão da história. Depois de serem considerado, por muito tempo, perdidos para sempre, meio século mais tarde, para a surpresa de arquivistas e historiadores, os redescobrimos conservados cuidadosamente em um edifício do antigo da KGB em Moscou. Depois de negociações arriscadas, eles finalmente voltariam para a França no início dos anos 2000. Hoje, depois de anos de investigação, conhece-se melhor a saga dos “Arquivos russos”.

Na véspera da II Guerra Mundial, tudo indica que os arquivos da Maçonaria desde o século XVIII estavam quase completos faltando apenas serem bem inventariados ou explorados. A derrota da França, que colocou o país sob o jugo nazista e permitiu aos seguidores de Maurras liquidar a República e tomar as rédeas do poder abre um período de perseguição à Maçonaria. Desde o Segundo Império e especialmente a partir dos anos 1880, a Maçonaria aparece aos olhos do público francês como “a igreja da República,” a ponta de lança da democracia e dos direitos humanos. Ela é considerada por todos os opositores do regime – esta extrema direita que assume o poder em Vichy – como o inimigo a ser derrotado. Da mesma forma, para Alfred Rosenberg e os teóricos do nacional-socialismo alemão, a Maçonaria é o poder oculto que dirige nos bastidores a vida política das democracias europeias.


1940 a Maçonaria sob sequestro

No dia 14 de junho de 1940, os alemães entraram em Paris. A polícia militar e os “serviços” ocupam imediatamente os lugares de poder da França derrotada: a presidência do Conselho, os ministérios e partidos políticos. Convencidos do papel essencial da Maçonaria no funcionamento da Terceira República, eles também tomam posse – naquele mesmo dia! – da sede do Grande Oriente. Eles instalam na Rue Cadet o serviço Sicherheitsdienst, a contraespionagem, liderado pelo tenente-Moritz. Em outros lugares, na esteira do exército alemão, a polícia de campo – a Feldpolizei – investe sistematicamente contra instalações maçônicas, que aparecem imediatamente como uma prioridade para o ocupante e abrem uma série de inquéritos sobre os dignitários da Ordem.

A partir de 1 de julho, Alfred Rosenberg – o ideólogo do partido nazista (e ex-membro da Sociedade Thule) – pode informar Martin Bormann – o secretário de Hitler – que “imensos tesouros” foram descobertos nas instalações maçônicas ocupadas e que a Feldpolizei assume a guarda desses importantes espólios de guerra até sua requisição.

A espoliação também afetará o interior do país; assim, em meados de dezembro a Loja de Caen, Themis foi saqueada e todos os seus arquivos roubados pelo serviço IV / 5 da equipe de Rosenberg. As lojas de Lille, La Rochelle, Bordeaux … entre outras sofreriam as mesmas humilhações. O “Marechal do Reich do Grande Reich Alemão”, Goering, pode declarar em 01 de maio de 1942: “A luta contra os judeus, maçons e outros poderes ideológicos que lutam contra nós é uma tarefa urgente do nacional-socialismo […] e é por isso que me congratulo com a decisão do Reichsleiter Rosenberg de criar Einsatzstäbe (equipes especiais) em todos os territórios ocupados, cuja tarefa será a de implantar um lugar seguro e de transportar para a Alemanha todos os bens culturais e material documental das zonas designadas acima. ”

As lojas tentam, com mais ou menos sucesso preservar seus arquivos enterrando-os, ocultando atrás de paredes ou escondendo-os em diferentes esconderijos (para a loja de Auxerre, um túmulo no cemitério!). Muitos arquivos serão destruídos por este tempo mais longo que o esperado sob a terra ou pela umidade de depósitos improvisados ​​insalubres. Além disso, em certos casos, em que os maçons que supervisionavam as operações desapareceram nos eventos, devido à Resistência ou deportação, eles nunca serão encontrados.


Os alemães, Vichy e a luta contra os maçons

Do lado de Vichy, o governo colaboracionista do marechal Petain vai ser implantado gradualmente durante o verão e outono de 1940. Sob os auspícios da “Revolução Nacional”, ele impõe uma política ultraconservadora para destruir a sociedade democrática e liberal da Terceira República. Em meados de agosto de 1940, as potências maçônicas, que já não funcionam mais desde junho, são proibidas oficialmente. As medidas anti-maçônicas também precedem as leis anti-judaicas.

No outono de 1940, as autoridades alemãs de ocupação são confrontadas com um dilema. Por um lado, eles pretendem manter o controle dos negócios na França ocupada. Mas, por outro lado, eles também devem mostrar que eles são leais ao seu aliado Vichy, e jogar a carta dessa “Colaboração” que deveria deixar uma parte da soberania para o governo Pétain-Laval. Quais assuntos eles poderiam transmitir a Vichy sem risco para lhe dar a ilusão de autonomia? É neste contexto que eles, eventualmente, confiarão a Vichy a responsabilidade oficial pela luta contra a Maçonaria. Os alemães o fazem com relutância, porque a luta contra os “poderes ideológicos” opostos ao nazismo continua a ser a prioridade deles. Vichy se empenhava também em transmitir todas as informações de que as autoridades alemãs pudessem precisar nesta área. Como um sinal ostensivo desse acordo, os alemães evacuam a sede do Grande Oriente e permitem que representantes de Vichy se instalem na Rue Cadet.

Em 12 de novembro, o chefe de Estado encarrega Bernard Faÿ – recém-nomeado Diretor Geral da Biblioteca Nacional, no lugar de Julien Caïn brutalmente destituído – de centralizar e inventariar os arquivos maçônicos em nome da Revolução Nacional. Em 11 março de 1941, uma lei ordena a transmissão de todas as apreensões de arquivos maçônicos à Biblioteca Nacional. Em maio, Vichy cria um “serviço de Sociedades Secretas” encarregado de liquidar a Maçonaria.


Os Arquivos “Secretos” dos anos 1940

Mas os Antimaçons de Vichy ignoravam que antes de lhes deixar as chaves da Rue Cadet, ou da rue Puteaux, os serviços alemães tinham se apoderado dos arquivos que achavam ser mais interessantes. Durante os cinco anos sombrios, haverá também uma rivalidade incessante entre alemães e agentes de Vichy para recuperar os arquivos maçônicos confiscados. Eles deviam desvendar os segredos da Ordem e revelar os meandros da conspiração maçônica que durante três séculos, levaram a França e a Europa à decadência do liberalismo e da democracia. Esta parte subtraída à curiosidade de Vichy – que só seria recuperada na Libertação dos “fundos maçônicos” da Biblioteca Nacional – iria, depois de muitas aventuras, constituir o que a história registraria como os “Arquivos russos ” da Maçonaria.

No maior segredo, especialmente às barbas de Vichy, que era roubada de uma parte de seus despojos, as autoridades alemãs transferem, portanto, a Berlim os arquivos relacionados com o funcionamento do Grande Oriente e da Grande Loja dos anos 1930, na véspera da guerra, todos eles relacionados com relações externas das potências desde o século XIX, bem como preciosas coleções de preciosos documentos históricos. Estes arquivos maçônicos “estratégicos” iriam principalmente para o Centro de Estudos da Maçonaria criado pelo chefe da SS, Reichsführer Heinrich Himmler, no antigo edifício das Lojas de Berlim, em Emserstrasse, 12. Desde 1933, este vasto centro de documentação – anti-maçônica já tinha sido alimentado por bibliotecas de Lojas ocupadas na Alemanha e, depois, em toda a Europa seguindo o avanço do exército alemão.

Mas, a partir de 1943, os bombardeios cada vez mais intensos de Berlim pelos aliados levam os gestores da biblioteca maçônica de Himmler a transferir as coleções para regiões menos afetadas, como o Norte da Bohemia ou da Silesia. Por exemplo, cerca de 150.000 livros foram transportados para Sława Śląska em um pequeno castelo, propriedade anteriormente dos Condes Haugwitz. Os volumes permaneceriam ali, um pouco esquecidos, até o fim da guerra. Enquanto a Alemanha estava em colapso em todas as frentes, Rosenberg e seus serviços dedicam até o último minuto toda a sua energia à consolidação e proteção dos arquivos judeus e maçons roubados. Os nazistas finalmente conseguiram colocar em segurança a maior parte dos arquivos roubados em lugares seguros, tais como as minas de sal ou castelos isolados. Outra parte dos documentos maçônicos é assim transferida, com os arquivos socialistas ou judeus para um castelo isolado na Silésia, em Wölfelsdorf (hoje Wilkanow, na Polônia).


De Berlim a Moscou

É nesses diferentes “esconderijos” que o Exército Vermelho descobriria os arquivos roubados pelos nazistas à media que ele avançava sobre o território do Reich. Assim, em maio de 1945, um batalhão ucraniano descobriu um depósito da Gestapo na antiga região dos Sudetos do Reich – hoje a poucos quilômetros da cidade checa de Ceska-Lipa, – em um castelo rural, longe de tudo. Eles foram rápidos em identificar o interesse das 140 toneladas de materiais franceses quel encontraram ali. Tratava-se especialmente de arquivos dos serviços de inteligência e contra-espionagem (o “Deuxième Bureau” e a “Sûreté Nationale”). Em 8 de agosto, um comboio de 25 vagões selados chegou a Moscou. A partir desse momento, oficialmente, os arquivos não existiriam mais.

Em 1945, e durante os anos cinquenta, os arquivos dos partidos políticos, dos sindicatos … ou da Maçonaria durante o período do período entre as duas guerras tinha um interesse político para os soviéticos. Foi principalmente a partir dos arquivos franceses que Beria defendeu a criação de um departamento de “Arquivos especiais centrais do Estado” para gerenciar esses recursos no maior segredo. Além da dimensão política, por exemplo, para os documentos que só tinham interesse histórico, havia também certamente em Stalin aquela satisfação de quem sabe ter elementos que ninguém conhece sobre o lado escuro da história. Ainda é que uma vez chegados a Moscou, os arquivos franceses – incluindo aqueles da Maçonaria – serão conservados por um ramo dos serviços secretos. Sua própria existência era um segredo de Estado. É verdade que, em paralelo, na emoção da vitória, Stalin assinou acordos internacionais com os Aliados, estipulando à restituição de bens culturais saqueados pelos nazistas.


De volta da União Soviética

Foi necessário esperar o colapso do império soviético, e o período bastante caótico que se seguiu, para que se encontrassem vestígios dos arquivos cuja existência tinha sido até esquecida. A partir de 1990, uma pesquisadora veterana trabalhando há anos nas bibliotecas de Moscou, Patricia Kennedy Grimsted, tropeçou em documentos que não deveriam estar ali … Intrigada, ela discretamente investigou e gradualmente descobriu um filão de arquivos oriundos claramente de apreensões durante a guerra. Rapidamente, o filão tornou-se uma verdadeira jazida e a questão dos arquivos saqueados e não devolvidos chegou à imprensa e ao debate público. Patricia Kennedy Grimsted sofre então uma agressiva campanha na imprensa russa que a denuncia como “espiã dos arquivos Grimsted”. É preciso dizer que, só para a França, além dos arquivos maçônicos são quase sete quilômetros de arquivos franceses preciosamente conservados durante cinquenta anos, nos “Arquivos Especiais Centrais do Estado” em Moscou. A partir desse momento, os governos afetados por esta espoliação – França, Bélgica, Holanda, Noruega … – assumiram o caso e iniciam negociações com o governo russo visando sua restituição, prevista desde 1945 nos tratados internacionais do pós-guerra. Um acordo foi assinado com a França em novembro de 1992. As autoridades russas se comprometeram a entregar os acervos franceses. Paris ofereceu, em troca, um acordo de cooperação no domínio dos arquivos, acompanhado de uma ajuda de cerca de 4 milhões de francos, bem como a restituição de acervos russos que os azares da história tinham conservado na França (principalmente acervos consulares). Entre janeiro e maio de 1994, quase três quartos de sete quilômetros de arquivos franceses voltaram a Paris por comboios especiais …, mas não os arquivos maçônicos. Após uma onda nacionalista nas eleições, o parlamento decidiu levar em consideração esses arquivos saqueados como despojos de guerra que compensam o sofrimento do povo russo durante a “Grande Guerra Patriótica”. Tudo foi bloqueado e foi preciso aguardar até o final dos anos 1990 para que as negociações fossem retomadas.

Em 1998, o Grão-Mestre Philippe Guglielmi apelou ao Presidente Jacques Chirac para lembrá-lo da importância que os maçons franceses atribuem à questão da restituição dos seus arquivos. Isso reativou as negociações e, em dezembro de 1999, comboios de arquivos partem novamente de Moscou. Na véspera de Natal, a Direção de Arquivos do Ministério das Relações Exteriores devolveu 750 caixas de arquivo ao Grande Oriente da França, 350 caixas à Grande Loja da França e cinquenta caixas ao Droit Humain. Estas centenas de milhares de documentos maçônicos iriam certamente apaixonar os historiadores. Mas, em outro nível, as potências maçônicas francesas viram, sobretudo, voltar a elas uma parte de seus “documentos de família” que lhes haviam sido despojados em circunstâncias dramáticas. A Segunda Guerra Mundial estava – finalmente – terminada.


Benjamin Franklin nos “Arquivos russos”

Em 23 de dezembro de 1999, a árvore de Natal organizada pelo Grande Oriente para os filhos de seus funcionários. Dia engraçado onde a Rue Cadet é invadida por trinta crianças rindo e onde os paramentos maçônicos foram substituídos por guirlandas! O Grande Secretário para Assuntos Internos veste paramentos … de Papai Noel. Vai demorar mais de uma hora para descarregar o caminhão cheio de centenas de caixas de arquivo pesados. Primeira surpresa, o “acervo 112-2” não inclui 30 …, mas 300 caixas. Feliz erro de digitação, que geralmente provoca problema, e o espaço previsto se reveou estreito demais! Depois que as crianças partiram com seus presentes e a poeira baixou, os funcionários da biblioteca fecharam as portas, contemplaram os 300 metros de arquivos meticulosamente enfileirados sobres as novas prateleiras recentemente instaladas. Chegara a hora de abrir a primeira caixa. Ao azar, a caixa … 113-1-3. Com um golpe seco, rompe-se o pequeno selo que a fechava, retira-se a primeira pasta … Trata-se de uma loja famosa do século XVIII da qual, precisamente, não se tinha mais qualquer arquivo: As Nove Irmãs. A pasta contém maravilhas aos olhos do historiador maçônico: a placa de fundação da Loja, em 1776, uma lista de oficiais tendo como Venerável Mestre Benjamin Franklin, várias correspondências com o Grande Oriente, das quais uma, famosa, sobre a controvérsia sobre o nome da oficina …


A “Ordem Escocesa” em 1742

O aparecimento dos altos graus, sua origem, seu funcionamento e seu papel antes da década de 1750 estão entre os problemas mais obscuros da história maçônica. Antes de 1745, os testemunhos são raros e muitas vezes elusivos. Algumas linhas sobre os “Mestres Escoceses” na Inglaterra em meados da década de 1730. Dois parágrafos curtos na França no início dos anos 1740 … são quase tudo. Ou pelo menos era tudo até que se descobriu nos “Arquivos russos” devolvidos ao Grande Oriente da França, as atas da “Respeitabilíssima Sociedade de Mestres Escoceses da Venerabilíssima e Respeitabilíssima Loja da União, desde a sua fundação em trinta de novembro de 1742.” Trata-se apenas de algumas linhas, mas de um volume de 140 páginas em perfeito estado. Ali se descobre nada menos que muitos itens sobre as circunstâncias da primeira prática do rito escocês, o aparecimento do mais antigo grau de cavalaria praticado na Maçonaria – o Cavaleiro Escocês atestado aqui em 1743 – e a criação por essa verdadeira “Loja-Mãe” de várias outras lojas escocesas em diferentes cidades europeias.


Um relatório sobre Martinez de Pasqually

Grande iniciado para alguns, charlatão para outros, Don Joaquin Martinès de Pasqually, “Grande Soberano” da “Ordem dos Cavaleiros Maçons Eleitos Cohens do Universo” ainda hoje é uma personagem muito misteriosa. Os “Arquivos russos” trazem vários elementos para uma melhor compreensão da Maçonaria Teosófica e teúrgica do Iluminismo e de seu líder. Eles mostram, em particular, que sua influência sobre a Maçonaria na década de 1760 foi maior que pensavam os historiadores que viam nos “Eleitos Cohens” um movimento, certamente singular e interessante, mas marginal. As Lojas que contavam com discípulos de Martinès eram realmente muito numerosas, especialmente no sul da França. A tal ponto que em 1766, a direção da Primeira Grande Loja da França se perguntava se Martinez possuía as chaves da verdadeira Maçonaria e se era preciso aceitá-lo com reconhecimento, ou se, ao invés, ele devia ser condenado como um vigarista. Ela enviou um de seus dignitários, o Irmão Zambault, para investigar. Este se encontra com Don Martinez de Pasqually e relata suas entrevistas nos jardins do Palácio Real como uma história reportagem. Este testemunho tão vivo e rico de informações sobre o Mestre de Willermoz é uma das peças mais extraordinárias dos Arquivos russos.

Publicado 06 de setembro de 2017 em Revista da Franc-Maçonnerie

Nenhum comentário:

Postar um comentário