sábado, 24 de dezembro de 2016



Godofredo de Bouillón, Duque de Lorena


Senhor das Ardenas, Defensor do Santo Sepulcro.

Por: Eduardo R. Callaey
Tradução: José Roberto Cardoso (Pedreiro de Cantaria)

Aproximando o herói da Cavalaria Cristã. O papel de Cluny[1] na estratégia da reconquista de Jerusalém.

1. A história que supera o mito.

Quando no final do século XI o papa Urbano II convocou os barões cristão para que liberarem os lugares Santos, o mundo europeu ingressou em um novo ciclo histórico marcado pelas “Cruzadas”. A primeira peregrinação armada a Jerusalém, no período medieval constituiu um dos fatos mais importantes daquela época, visto que, segundo indica uma série de indícios que analisaremos, a ideia de recuperar a Terra Santa estava na cabeça dos Cluniacenses muito tempo antes. Só havia que esperar que as condições amadurecessem.

A decisão de convocar a Cruzada foi elaborada por um grupo de prelados e senhores durante o ano de 1095. Entre os atores daqueles acontecimentos se destacam claramente três pessoas: o abade Hugo de Cluny, o papa Urbano II e um seleto grupo de nobres entre os que ressalta a figura de Godofredo de Bouillón, comandante do exército lorenês e um dos chefes da expedição.

Os quatro exércitos principais da cruzada partiram entre 1096 e 1087. Godofredo abandonou seu castelo de Bouillón em 15 de agosto de 1096. Bhermundo de Tarento e os normandos da Sicília partiram do porto de Brindisi em outubro. Raimundo de Saint Gilles, a mando dos provençais partiu com o maior dos quatro exércitos sobre os quais coincidem as informações dos historiadores. O quarto exército, comandado pelo duque Roberto da Normandia, Estevam de Blois e Roberto de Flandes embarcou em Brindisi em abril de 1097.

Em Júlio de 1099, depois de enormes esforços e sofrimentos, Jerusalém foi conquistada. Godofredo foi eleito, então, em circunstâncias pouco claras, governador do Reino Cristão de Jerusalém.

Chama a atenção que foi o único dos grandes barões que empenhou tudo aquilo que tinha para armar sua expedição. Não deixou nada sem vender, ou alienar. Com seus exércitos moveu grandes contingentes de monges cluniacenses e, com eles, um verdadeiro exército paralelo de construtores. De outra maneira não se pode explicar a imediata reconstrução simultânea dos santuários mais importantes da Terra Santa e a edificação de numerosas igrejas e fortificações. Este desenvolvimento logístico que soube prever é por demais interessante e faz pensar que tinha uma ideia mais clara que os demais sobre sua missão e seu destino. Mas, não é essa a única questão sobre sua vida enigmática, contraditória e emocionante.

Godofredo foi o protótipo do cavaleiro cruzado. Descendia dos imperadores carolíngeos por linha materna e paterna e alguns historiadores afirma que por suas veias também corria o sangue dos reis merovíngios. A raiz destas teorias se atribui a fundação de uma Ordem sobre o Monte Sião, uma suposta organização que tinha como objetivo a restauração da dinastia merovíngia. Alguns estudiosos afirmam que Godofredo era legítimo descendente dos últimos reis daquela dinastia. Segundo estas suposições, para poder cumprir com esse objetivo, os conspiradores haviam criado a Ordem dos Cavaleiros Templários que tinha um duplo propósito: recuperar um tesouro oculto nos túneis subterrâneos sob o Templo de Salomão e constituir-se em exército da dinastia restaurada.

Sua figura tem estado no centro destas especulações vinculadas com supostas Ordens e Confrarias. Aparecidas nas últimas décadas, carecem por agora de rigor histórico e só contribuem para agregar confusão sobre um tema por si só confuso. Tal é o caso do “Priorado de Sião”, cujos membros asseguram a existência de uma linhagem de Jesus de Nazareth estendida pela Europa e da história complementar das famílias “Rex Deus”, supostos descendentes de judeus emigrados na Europa no tempo de Jesus.

Muito antes que se publicassem estas revelações modernas, Godofredo foi resgatado pelo maçom escocês Michel de Ramsay ao remontar aos cruzados a origem da francomaçonaria cristã, teoria na qual se sustenta grande parte da origem histórica de importantes ritos maçônicos, entre eles o Escocês Antigo e Aceito. Quando Ramsay pronunciou seu “discurso” em 1737, ante a elite da francomaçonaria francesa, fixou suas origens em “nossos ancestrais, os Cruzados”. Esse seria o modelo sobre o qual se construiu a restauração templária do século XVIII.

Desde aquele famoso discurso até esta data, esta relação tem sido defendida e rechaçada com igual afinco dentro e fora da maçonaria e permanece no campo das questões não resolvidas.

Todavia, como se sucedeu, os fatos que envolveram a Godofredo de Bouillón resultaram mais assombrosos que as fantasia mais elaboradas. Sua vida durou apenas quarenta danos, mas foram anos frenéticos. Muitos dos fatos ocorridos em tão breve lapso de tempo indicam o momento crucial que vivia o dividido império franco: a cristandade se dividiu em dois mundos: Roma e Bizâncio. A Igreja Romana empreendeu sua primeira reforma e seus príncipes se declararam infalíveis e absolutos. Guilherme da Normandia conquistou a Inglaterra. Seus descendentes normandos navegaram o Mediterrâneo a partir de Tarento até a Antióquia. O império, por sua vez, se pretendeu soberano pela graça divina e repudiou os pontífices. Foram construídas milhares de magníficas igrejas e os infiéis foram expulsos do Santo Sepulcro.

Godofredo foi um ativo protagonista de muitos destes fatos, mas apenas conhecemos o papel que desempenhou como ator da história e muito pouco de sua vida por trás das cenas.

Teve uma importante participação na Guerra das Investiduras, combatendo o papado como chefe dos exércitos do imperador Enrique IV. Anos mais tarde não hesitou em responder ao chamado do papa Urbano II e marchou à Palestina sob o comando do poderoso exército lorenês. Junto ao conde Raimundo de Tolosa sitiou Jerusalém no ano de 1.099 e a conquistou, convertendo-se em seu primeiro chefe político com o título de “Defensor do Santo Sepulcro”. Seu irmão Balduino I, o sucedeu no trono de Jerusalém e seu sobrinho Balduino do Burgo, que reinou como Balduíno II, foi um entusiasta impulsionador da Ordem dos Cavaleiros Templários. Godofredo foi um notório protetor da ordem cluniacense, o qual explica o número de beneditinos que o acompanhara na cruzada.

Há em sua história alguns sinais, muito poucos, que deixa aberta a porta a um profundo mistério; um mistério que está na base do mito da Europa e que ainda preocupa Roma: a suspeita de outra Igreja, de outro cristianismo, ou melhor dizendo, de outra espiritualidade. Por afinidade, diríamos por “vibração”, se nos permite o excesso, sua figura assimilou a estranha sequência que envolve os monges de Cluny, do Cister e do Templo com seus irmãos laicos, os maçons. Todas estas instituições formaram a coluna vertebral de um cristianismo paralelo, cujo poder cresceu até o ponto de condicionar as políticas dos papas.

2. O SENHOR DAS ARDENHAS

A figura de Godofredo brilhou entre as antigas dinastias herdeiras de Carlos Magno. Eram os tempos sulcados pelas guerras entre “senhores duques” que pugnavam pelo mais precioso bem a que podia aspirar um homem de berço: as terras.

O ano de 1.069 trouxe consigo uma grande desgraça para a Lotaríngia, antigo nome com que se designava a Lorena. Seu senhor, o duque Gothelón – ao qual chamavam de “duque do castelo de Bouillon” porque era senhor daqueles alódios[2] [1], declarou guerra à Oto de Champanha e reunindo um grande exército marchou para pôr fim às velhas disputas com o barão franco. Ambos príncipes representavam a mais pura nobreza carolíngia. Gothelón, senhor de um vasto território entre a França e o Reno – que abarcava os domínios de Brabante, Hainaut, Limbourg, Namurois, Luxemburgo e uma parte de Flandes – descendia de Carlos o Grande e era irmão do Papa Estevam II. Por sua parte Oteon, seu adversário, era um fiel expoente da poderosa nobreza franca.

Dispostos em ordem de batalha chocaram suas armas com grande violência. Oton – a quem sua juventude outorgava considerável vantagem sobre o duque – matou naquele dia o duque lotaríngio, assumindo o ducado com profunda pena.

Gothelón – que passaria a história como “Godofredo o Barbudo” – tinha um único filho varão do mesmo nome, a quem apelidavam de “o corcunda”. O jovem herdou os bens de seu pai: o ducado da baixa Lorena, numerosos feudos estendidos em Verdun e outros senhorios como Stenay e Mosay, mas nada tão impressionante como o mítico castelo de Bouillón, encravado no sopé das Ardenhas, sobre uma altura que domina sobre o curso do Semois e que por então se erguia sobre numerosos povos e aldeias cujos habitantes davam graças a Deus por aquela fortaleza temida aos olhos das ambições vizinhas.

Godofredo, o corcunda, tinha duas irmãs: Regelinda, condessa de Namur por estar casada com o conde Alberto e Ida, casada com Eustáquio II, conde de Bolonha. Ao morrer seu irmão, em 1076, Ida reclamou os privilégios do ducado da Baixa Lorena para seu segundo filho, também chamado Godofredo.

Ida de Lorena e Eustáquio de Bolonha tinham outros dois filhos; Eustáquio, herdeiro do grande condado de seu pai e Balduino, que foi tonsurado[3] desde a tenra idade como ocorria com aqueles barões que não herdariam terras. Pois então nada fazia prever que aqueles três irmãos marchariam um dia até Jerusalém e que dois deles se converteriam em reis da Cidade Santa.

Godofredo, que havia nascido em Baysy no ano de 1.060, tinha 17 anos quando herdou os domínios de seu tio. Sem dúvida, de imediato compreendeu as graves dificuldades que lhe implicaria mantê-los. O imperador Alemão Enrique IV não estava disposto a ceder ao sobrinho do “corcunda” o feudo imperial da Baixa Lorena e o confiscou de imediato anexando-o aos domínios da coroa, ao mesmo tempo em que confirmava a Godofredo o condado de Amberes ao norte e o senhorio de Bouillón, nas Ardenhas.

Porém, os problemas do novo conde de Bouillón não se esgotavam com o imperador. A princesa Matilde, viúva de Godofredo, o corcunda, não estava disposta a resignar seus direitos sobre Mosay, Stenay e Verdun. Dois bispos complicavam ainda mais o panorama: Teodoro, o bispo de Verdun reclamava uma dezena de castelos em sua diocese, embora Enrique, o bispo de Leija = que havia sido seu tutor – era contra, apoiando o abade de Saint Huber, a que acusava Godofredo de ter tomado por assalto o castelo de Bouillón a mando de um grupo de cavaleiros, propiciando-lhe um brutal castigo aos seus castelões. Por esta ação precoce e impiedosa, mas reivindicatório de seus direitos, seria conhecido no futuro como o “conde de Bouillón”, mais que por seus títulos sobre o ducado da baixa Lorena.

Estas convulsões nos senhorios do jovem Godofredo não eram mais que uma gota em meio da imensa tormenta que se abatia sobre o império alemão.

A reforma cluniacense, com a qual a Igreja tratava de afastar-se de uma decadência lacerante, ganhava defensores na Alemanha e os próprios papas entendiam que deviam colocar-se no comando do movimento reformista. Leão IX havia dado um passo importante estabelecendo a instituição do Colégio Cardinalício como autoridade eclesiástica universal, com o qual tentava evitar a contínua intervenção dos imperadores do Sacro Império na eleição dos papas. Era só o começo de um duro conflito que, poucos anos mais tarde, estouraria sob o papado de Gregório VII disposto a estabelecer sua autoridade absoluta e acabar com o problema das investiduras de feudos eclesiásticos que o imperador concedia aos laicos. O problema fundamental se suscitava pelo direito dos soberanos a nomear os bispos em seus respectivos territórios. Isto acarretava uma grave corrupção política, incentivada a simonía[4] e impedia a Roma um verdadeiro controle sobre as dioceses.

Em março de 1.075, Gregório promulgou a “Dictatus Papae” na qual reafirmava seu poder absoluto sobre a cristandade. Entre muitas outras disposições estabelecia: “que só o pontífice romano pode ser chamado em justiça universal; que só ele pode depor os bispos ou reconduzi-los; que só ele pode utilizar as insígnias imperiais; que todos os príncipes devem beijar apenas os pés dos papas; que só seu nome deveria ser pronunciado nas igrejas; que é o único nome no mundo; que a ele é lícito depor imperadores; que a ele é lícito, de sede a sede, por conta da necessidade, trocar os bispos; que qualquer igreja onde ele queira, pode ordenar clérigos; que nenhum sínodo pode chamar-se geral sem seu mandato; que nenhum capítulo ou libro podem ser tidos como canônicos sem sua autoridade; que suas sentenças não podem ser retratadas por nada, e só ele pode retratá-las; que o mesmo por nada pode ser julgado; que a Igreja Romana nunca erra e no futuro não errará...” [2]

O imperador Enrique IV havia reagido com dureza contra esta decisão enfrentando a Gregório, embora este estivesse disposto a impedir que o imperador continuasse com sua política de disposição de investiduras eclesiásticas. Na realidade, Henrique reclamava a ampliação do mesmo direito de seus antecessores; em todo caso, o que se tinha modificado era a vontade do pontífice romano quanto a elevar seu poder a termos absolutos.

Aquele ano de 1.076, embora o neto do legendário Gothelón recuperasse o castelo inexpugnável de seu avô, o papa Gregório VII fulminava o imperador alemão com estas palavras:

“...em nome de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, por seu poder e autoridade, privo ao rei Enrique, filho do imperador Enrique, que se tem revelado contra tua Igreja com audácia, nunca ouvida, do governo de todo o reino da Alemanha e Itália, e livro a todos os cristãos do juramento de fidelidade que tenham dado ou podem lhe dar e proíbo a todos que lhe sirvam como rei. [3]

No entanto, o imperador respondeu:

..Tu pois, que tens sido golpeado pelo anátema e condenado pelo juízo de todos nossos bispos e por nós próprios, desça e abandona a Sede Apostólica que tens usurpado; que algum outro ocupe a cadeira de Pedro, outro que não oculte a violência com o véu da religião, mas que proponha a santa doutrina do apóstolo. Eu, Enrique, rei pela graça de Deus, te digo com todos os meus bispos: desça, desça, homem, condenado pelos séculos [4].

A antiga aliança entre o trono e o altar já se havia rompido definitivamente. A partir de então os reis faria valer seu direito divino mais além da unção dos pontífices. Naquele primeiro enfrentamento que desatou “a querela das investiduras” Godofredo de Bouillón tomou partido do imperador e participou ativamente em suas campanhas. Primeiro contra os príncipes alemães alinhados com Roma e logo contra a própria cidade dos papas. Estes acontecimentos, que tiveram consequências históricas muito profundas, colocaram ao Senhor de Bouillón no centro do tabuleiro político da Europa. Cesare Cantú, em sua história das cruzadas, o coloca a frente dos exércitos imperiais e lhe atribui a morte de Rodolfo de Suabia.

Rodolfo encabeçava a oposição a Enrique IV e contava, para ele, com o apoio dos cluniacences que havia introduzido sua regra na Alemanha através dos monastérios alinhados à celebre Abadia de Hirschau, a primeira em regulamentar – segundo a tradição cluniacense – as Lojas de Maçons, “irmãos convertidos” – no solo alemão.

Se sabe que em 1077, Rodolfo de Suabia tratou de coordenar com o abade Wilhelm de Hirschau uma frente opositora a Enrique IV. O encontro teve lugar na mesma abadia que trocava um conjunto de importantes centros monásticos disseminados em território alemão, nas regiões de Richenbach, Turungia, Bavaria, Suavia e outras localidades.

Morto Rodolvo pelo exército liderado por Godofredo, os alemães avançaram sobre Roma. Gregório VII se viu obrigado a buscar refúgio e para isto solicitou a ajuda dos normandos da Sicília que foram em seu auxílio. Sem dúvida, os homens do duque normando Roberto Guiscardo fizeram tal confusão com o que restava de Roma que seus habitantes, presos de ira, obrigaram o papa a abandonar a cidade e exilar-se em terras normandas da Sicília, onde morreria pouco depois. Curiosamente, Bohemundo de Tarento, filho de Roberto, formaria anos mais tarde um dos exércitos cristãos que marchou à Palestina na primeira cruzada, junto aos Lorenenses de Godofredo.

Em que pese a morte de Rodolfo e a derrota do partido papal, os esforços cluniacenses contra o imperador continuaram. Até 1.081, o já citado abade Wilhelm trabalhou junto ao bispo Altmann de Passau na falida eleição de um novo rei que fosse aliado da Sede Apostólica.

As ações de Godofredo mereceram a reconsideração do imperado em torno da Questão do ducado da Baixa Lorena que, finalmente, lhe foi restituído, mas só com uma condição, sem direito a sucessão, posto que reservava o cargo para seu filho corado. Em que pese esta legitimação pela metade, Godofredo seguiu sendo chamado pelo resto de sua vida como “conde de Bouillón”, mais que duque de Lorena.

O verdadeiro enigma na vida de Godofredo foi a mudança radical que se produziu em sua posição logo na campanha da Itália e a queda de Gregório VII. Em poucos anos, aquele homem que havia dado morte ao duque Rodolfo de Suabia na Batalha de Hohenmolsen e que logo abateria a Itália com seus exércitos assediando Roma, se distanciou da postura do imperador, acercando-se paulatinamente ao monaticismo cluniacense, fortemente estabelecido em seu território.

Paradoxalmente, foi o primeiro a responder a Urbano II, um papa – sem se quer e tal como veremos, herdeiro do pensamento de Gretório VII - quando este o chamou para organizar uma expedição armada para libertar os Santos Lugares.

O que aconteceu em tão poucos anos para que se produzisse uma mudança tão profunda em Godofredo? Em 1.091, apenas quatro anos depois de ser investido como duque da Baixa Lorena, se opôs tenazmente a decisão do imperador que, em um ato de força, havia imposto como bispo de Lieja, a Gotberto, um eclesiástico adito à corte. Repudiado e combatido pelos grandes abades da região, Gotberto encontrou em Godofredo um inimigo implacável.

Paulatinamente, o conde de Bouillón se alinhou com a reforma gregoriana que antes havia combatido, opondo-se às investiduras imperiais. Steven Runciman – entre outros – acredita que esta mudança foi a consequência da forte influência de Cluny ocorrida em sua mente, em um momento em que o monasticismo se encontrava na cabeça da profunda reforma espiritual iniciada por Gregório Magno, que havia logrado arrancar a Igreja do descrédito. O ascendente de Cluny sobre as ideias de Godofredo parece verossímil se se tem em conta – como temos visto – a profunda influência cluniacense em Lorena e Alemanha e a ativa participação da ordem no apoio e organização da primeira cruzada.

3. OS BENEDITINOS E A RECONQUISTA DA TERRA SANTA

Afirma Runciman que no final do século VIII parece ter existido uma intenção de organizar as cada vez mais frequentes peregrinações à Terra Santa, cujo principal promotor era o próprio Carlos Magno. Dado o papel preponderante que teve a Ordem Beneditina na estrutura do império carolíngio, não resulta estranho o fato de que o imperador havia sustentado um esforço penoso para estabelecer monastério e hospícios latinos nos Lugares Santos e que esta tarefa havia sido encomendada aos Monges Beneditinos.

A importância destes estabelecimentos foi descrita pelos cronistas e viajantes da época. Entre eles, o mais significativo parece ter sido o monastério de “São João de Jerusalém”, construído junto com um importante hospital nas proximidades do Santo Sepulcro, cuja principal atividade era a de receber e dar albergue aos peregrinos latinos que chegavam a Cidade Santa. Sua construção, assim como sua atenção, ficou a cargo dos beneditinos. Ali encontraram hospitalidade, conforme o peregrino Bernardo, o sábio, no ano de 870, escreveu em seu “itinerário”; “... Fu recebido no hospício do glorioso imperador Carlos, no qual encontraram acolhida quantos visitassem com devoção esta terra e falavam a língua romana. A ele está unida uma igreja dedicada a Santa Maria, a qual possui uma rica biblioteca, devida a munificência do imperador, com mais doze habitações, campos vinhedos e um horto no vale de Josaphat. Diante do hospício está o mercado...”[5]

Acredita-se que a fundação destes estabelecimentos latinos em Jerusalém foi possível pela boa relação que Carlos Magno havia estabelecido com o Califa de Bagdad Harun al Raschid, embora o seu verdadeiro alcance forme parte dos mistérios ainda não resolvidos sobre a vida de Carlos Magno. O certo é que no princípio do século IX, o patriarca de Jerusalém teve que recorrer ao imperador para solicitar-lhe ajuda, pois os peregrinos cristãos sofriam permanente assédio e vexames por parte dos piratas beduínos. Na mensagem do patriarca se fez referência a que...”o Monte de Sión e o Monte das Oliveiras estão alegres com as doações do muito generoso monarca...”.

Carlos Magno se sentiu profundamente ofendido pela situação que atravessavam os cristãos na Terra Santa e decidiu enviar uma embaixada a Al Raschid a fim de colocar fim a esta questão. Ocorre então um fato que divide a opinião dos historiadores, mas que constitui um antecedente valioso sobre as pretensões e os direitos latinos sobre os lugares Santos. Al Raschid responde outorgando proteção sobre as igrejas e peregrinos e faz doações do Santo Sepulcro ao imperador na pessoa de seu representante e embaixador. Há quem sustenta que tal coisa era absolutamente impossível, pois – e tal como o assinala Harold Lamb – “ resulta inconcebível que um califa do Islam, guardião dos santuários de sua religião, cedesse a um cristão desconhecido a autoridade sobre parte alguma de Jerusalém”[6].

Sem dúvida, as crônicas associam a esta embaixada com a cessão a Carlos Magno – embora sob forma temporária – da autoridade sobre uma parte de Jerusalém. As fontes relatam que o patriarca de Jerusalém transferiu ao imperador as chaves do Santo Sepulcro e do Calvário junto ao estandarte (vexillum) e as chaves da cidade Santa e do Monte Sião. Um clérigo de nome “Zechariah” trouxe o estandarte e as chaves a Roma só dois dias antes da coroação de Carlos Magno como Imperador. Ao menos nominalmente, Carlos Magno esteve na posse do Santo Sepulcro [7].

Einhardo – um monge do monastério de Saint Gall – deixou testemunho escrito desta circunstância: “... O Califa, informado dos desejos de Carlos Magno, não só lhe concedeu o que pedia, mas que colocou em seu poder a própria tumba sagrada do Salvador e o lugar de sua ressurreição...” Al Raschid, admirado pelos presentes que enviava ao imperador cristão, disse: “como poderíamos responder de maneira adequada a honra que tem feito? Se lhe damos a terra que foi prometida a Abraão, está tão longe do teu reino que não poderá defende-la, por nobre e elevado que seja seu espírito. Se dúvida lhe demonstraremos nossa gratidão entregando a sua majestade dita terra, que governaremos na qualidade de Vice-Rei...”[8].

Mas além do alcance real destas crônicas, os fatos demonstram que, já nos tempos carolíngios o cristianismo ocidental considerava a Terra Santa – e em particular a Jerusalém – como o lugar mais venerado, ponto de contato com o outro mundo, simbolizado na imagem da Jerusalém Celeste e que esta consciência se desenvolve até sentir como um imperativo a ocupação efetiva dessa terra.

Já temos dito que os cluniacenses se haviam convertido nos principais organizadores dos movimentos de peregrinação à Terra Santa. Desde a fundação de Cluny, em 910, se assumiram como os guardiães da consciência da cristandande ocidental e como tais, se impuseram uma missão concreta com respeito a Palestina. Disse Runciman:

“...A doutrina dos cluniacenses aprovou a peregrinação. Desejavam dar-lhe assistência prática. No princípio do século seguinte (XI), as peregrinações aos grandes santuários de espanhóis estavam quase totalmente controladas por eles. Pela mesma época eles começaram a preparar e organizar viagens a Jerusalém... Sua influência confirma o grande incremento dos peregrinos procedentes de Lorena e França, de zonas que estavam próximas a Cluny e suas casas filiais. Embora houvesse muitos alemães entre os peregrinos do século XI... os peregrinos franceses e loreneses eram muito mais numerosos... [9].

Surpreendente o êxito desta política. A regra beneditina era a mais praticada entre os clérigos latinos que viviam na Palestina, incluídos os membros da pequena ordem fundada em 1075 por italianos de Amalfi e consagrada a São João o Compassivo, que haviam reconstruído o “hospital” findado pelos monges enviados por Carlos Magno para atender as necessidades dos peregrinos cristãos, destruído em 1010 pelos sarracenos. Esta ordem se converteria logo na dos Cavaleiros Hospitalários, cujo prestígio rivalizou com a dos próprios Templários e se converteu, posteriormente, na Ordem Militar de Malta.

Basta ler a imensa quantidade de nomes notáveis que empreenderam tão arriscada empresa para compreender a magnitude do movimento dos peregrinos e da influência que Cluny imprimiu na construção de uma consciência viva da transcendência dos Santos Lugares. Godofredo de Boullón, duque da Baixa Lorena naqueles anos, de modo algum pode permanecer ausente a um fenômeno que, como acabamos de ver, afetava diretamente a seus domínios.

Outra questão verdadeiramente significativa é que, embora haja sido Urbano II quem passou para a história como o grande convocador da primeira cruzada, o chamado a libertar os Santos Lugares tem um antecedente direto em Gregório VII, autor de um documento do ano de 1.076 cujo texto pode ser encontrado nos anexos documentais [10]

Gregório VII era um produto surgido de Cluny. Ali havia professado seus votos e sua eleição como papa modificou sensivelmente a marcha da Igreja. Seu poder estava diretamente relacionado com o apoio que recebia do movimento cluniacense, que atuava como seu verdadeiro braço político contra o imperador Enrique IV.

Tendo em conta este antecedente, resulta natural pensar que a ideia de uma recuperação de Jerusalém estivesse nos planos dos beneditinos de Cluny muito antes do chamado de Urbano II, cujo verdadeiro nome era Odón de Lagery, filho da nobre família de Chatillón. Como Gregório, havia professado seus votos na abadia de Cluny ante o mesmíssimo São Hugo em 1970. O Venerável havia detectado sua capacidade e sua inteligência e não tardou em convertê-lo em prior para enviá-lo logo a Roma. Em 1.078 foi nomeado cardeal e Bispo de Ostia por Gregório e mais tarde núncio na França e Alemanha.

Quando o Papa Gregório morreu – com o antipapa Guilberto reinando em Roma – os cardeais elegeram como seu sucessor a Victor III, eleição a qual resistiu o bispo de Óstia. Sem dúvida, com a morte de Victor III, Odón de Lagery foi finalmente coroado papa, cumprindo-se o que, para muitos, havia sido o desejo de Gregório. Logo no conclave de Terracina, onde Odón tomou o nome de Urbano II, o novo papa avocou a difícil tarefa de recompor o poder de Roma que havia ficado reduzido aos territórios normandos. A situação mudou até 1093, época em que o imperador Enrique VI viu seu reinado dramaticamente debilitado por conta das disputas com seu filho Conrado.

Porém Cluny não só havia criado a panificação das peregrinações a Jerusalém, nem se contentaria em colocar a frente da Igreja dois papas dispostos a recuperar o Santo Sepulcro. Cluny foi a ideóloga, a estrategista, o agente de propaganda e a condutora logística da futura expedição. A convocatória ao Concílio de Clermont é uma manobra executada com precisão pelos cluniacences, tão óbvia que não se podia ser ignorada pela história. Com efeito, Urbano II realiza uma extensa viagem pela França antes de chegar a Clermont, uma viagem que o levou pelos mais importantes monastérios cluniacenses e catedrais da região. Na última etapa chega a Cluny onde é recebido com pompa e honras. Se trata do primeiro monge cluniacence que volta a sua abadia mãe vestindo a tiara papa. No dia 25 de outubro de 1.095 benzeu o novo altar maior da abadia

Ali se analisa e se traça a estratégia da expedição. Disse Runciman: “Em Cluny conversara com pessoas ocupadas no movimento dos peregrinos, tanto a Compostela como a Jerusalém. Lhe contariam das insuperáveis dificuldades porque teriam que passar agora os peregrinos a Palestina por conta da desintegração da autoridade turca naquelas zonas. Se informou que não eram só as rotas através da Ásia Menor as que estavam fechadas, mas que a Terra Santa resultava virtualmente inacessível para os peregrinos”. [11]

De sua estadia em Clumny, dizem Pierre Barret e Jean-Noel Gurgand: “o projeto de expedição armada fazia o Oriente pertencer a mais profunda lógica da política cluniacense; seguramente o abade Hugo, o papa e seus conselheiros refletiram largamente durante estas jornadas nos argumentos que empregariam, nos homens aos quais deveriam convencer e nos meios com os quais constituiriam os tesouros de guerra...! [12]

Quando chegou a Clermont, no dia 18 de novembro, a seu lado estava São Hugo o Venerável. A maquinaria cluniacense havia preparado o terreno; o cenário foi uma pradaria vizinha a igreja, cuja capacidade havia sido rebaixada pela grande quantidade de concorrentes.

“Desgraçado de mim – clamou Urbano – se nasci para ver a aflição de meu povo e a prosternação da Cidade Santa, e ficar em paz, que ela seja entregue nas mãos de seus inimigos”! Vós outros pois, meus irmãos queridos, armem-se do zelo de Deus; que cada um de vós cinjam suas cinturas com uma poderosa espada. Amem-se, e sede filhos do Todo Poderoso. Vale mais morrer na guerra, que ver as desgraças de nossa raça e dos lugares santos. Se algum tem o zelo da Lei de Deus, que se uma a nós; vamos a socorrer nossos irmãos. “Rompamos suas ataduras e rechacemos longe de nós seu jugo! Avancem e o Senhor estará com vós. Voltai-vos contra os inimigos da fé e de Cristo essas armas que injustamente haveis ensanguentado com a morte de vossos irmãos [13]

No dia seguinte do chamado à cruzada, em 27 de novembro, Urbano, príncipe dos bispos, se sentou a delinear com o ancião venerável como se levaria a cabo o velho sonho; Jerusalém voltaria a ser cristã. Meses depois a expedição já estava em marcha.

Fim da Primeira Parte – Continue lendo a Segunda Parte: “Godofredo de Bouillón e o Cenáculo do Monte de Sião.”


[1] Gislebert de Mons; “Cronicon Hanoniense” (Madrid, Ediciones Siruela S.A., 1987) Traducción de Blanca Garí de Aguilera, p. 9

[2]Gregorii VII Registrum, Ed. Ph. Jaffé, in Monumenta Gregoriana, II, en: Gallego Blanco, E., “Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad Media”, (Biblioteca de Política y Sociología de Occidente, 1973, Madrid), pp. 174-176.

[3] Gallego Blanco, ob. cit pp. 147.

[4] “Monumenta Germaniae Historica, Constitutiones et Acta, I”, en: Calmette, J., “Textes et Documents d'Histoire, 2, Moyen Age”, (P.U.F., 1953 Paris), pp. 120 y s. Trad. del francés por José Marín R. 

[5] Gebhardt, Victor D. “La Tierra Santa” (Espasa y Cía Editores, Barcelona)

[6] Lamb, Harold, “Carlomagno” (Edhasa, Barcelona, 2002) p. 411

[7] Zuckerman, Arthur J. “A Jewish Princedom in Feudal France” (Comunbia University Press, New York, 1972) pp. 188-189 y ss.

[8] Lamb, loc. cit

[9] Runciman, ob. cit. Vol. I. p. 57

[10] Jacques Heers, “La Primera Cruzada” Editorial Andrés Bello; Barcelona, 1997 p. 78-79

[11] Runciman ob. cit. V.I. p. 112

[12] Barret, Pierre y Gurgand, Jean-Noël ;“Si te olvidara, Jerusalén” La prodigiosa aventura de la Primera Cruzada; (Ediciones Juan Granica S.A., Barcelona; 1984) p. 24, 25 y ss.

[13] Guillermo de Tiro, Histoire des Croisades, I, Éd. Guizot, 1824, Paris, vol. I, pp. 38-45. Trad. del francés por José Marín R.

Extraído do Blog de Eduardo R Callaey

[1] A Ordem de Cluny é uma ordem religiosa monástica católica. É considerada como a sucessora da Ordem de São Bento no chamado movimento monacal. Era também o nome de uma Abadia, situada no distrito administratido da Borgonha, França, que deu o nome a Ordem. 

[2] Bens ou propriedades que tinham isenção de direitos. 

[3] A tonsura é uma cerimônia religiosa em que o bispo dá um corte no cabelo do ordinando ao conferir-lhe o primeiro grau de Ordem no clero, chamado também de "prima tonsura". 

[4] Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e sacramentos) ou temporais ligadas às espirituais (como os benefícios eclesiásticos).

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