sábado, 15 de outubro de 2016


A MAÇONARIA E O PASSO DA REFLEXÃO


Autor: João Anatalino

O passo da reflexão


O Passo da Reflexão é um simbolismo ligado à chamada queda do homem, ou seja, a expulsão do casal humano do Paraíso em razão da sua desobediência aos preceitos de Deus, que os havia proibido de comer do fruto da Árvore do Conhecimento.1

Essa passagem bíblica é uma metáfora que evoca o momento histórico em que o homem se tornou uma criatura inteligente e passou a fazer reflexões sobre as suas razões de existência. Ele descobriu a natureza do bem e do mal e extensão da sua própria força. Com isso pensou que poderia dominar a natureza e ombrear-se com os próprios deuses que eles cultuavam. Isso é o que diz a Bíblia e também o que sugerem os mitos gregos. Embora essa ideia tenha ficado mais patente na cultura dos helenos, uma cultura profundamente humanista, centralizada no homem como ponto máximo da criação universal, todas as tradições religiosas dos povos antigos sugerem que em dado momento da sua história o homem se sente, ele mesmo, um deus. Parece ser capaz de tudo. Assim, o herói grego, conforme aparece nas lendas e nas tradições da Grécia clássica é um semideus, que em certos momentos, se mostra inclusive mais inteligente e poderoso que os próprios deuses.

Na verdade, o herói das tradições gregas e judaicas nada mais é que uma emulação das virtudes masculinas de dominação, derivada da concepção patriarcal que se instalou na sociedade a partir de certo momento histórico. Com isso, o homem rompeu seus elos com os poderes superiores e afirmou-se como um poder paralelo, capaz de desafiar a própria divindade. Com essa concepção a movê-lo, ele elevou-se acima de sua condição humana, invadiu os territórios que antes eram reservados aos deuses, enfrentou-os, e não raras vezes até conseguiu derrotá-los. Assim é que Ulisses desafia Netuno, Prometeu rouba o fogo divino, Hércules realiza todas suas provas sem que nenhum Deus seja capaz de detê-lo, os faraós tornam-se, eles mesmos, verdadeiros deuses, os gregos fazem de Alexandre uma divindade, os imperadores romanos são deificados e assim por diante. (2)

E. Wallis Budge lembra que o anseio humano pela conquista da divindade era particularmente forte entre os egípcios, que pensavam poder adquiri-la diretamente dos deuses, comendo-os. Na Pirâmide de Unas lê-se que aquele faraó, “comera” parte do corpo dos deuses para obter seus atributos divinos. Com isso se tornara também uma divindade, representada pela estrela Orion. Diz aquele autor que o objetivo dos egípcios era obter a posse do poder mágico e o conhecimento das palavras de passe, que lhes daria poder ilimitado e imortalidade, atributos que só se conferiam à divindade. E o único meio pelo qual poderiam se apossar deles era “comendo o corpo dos próprios deuses”.(3)


Essa prática também foi observada por James Fraser, que relatou em sua obra clássica (O Ramo de Ouro, 1929), o costume dos indígenas da Polinésia de devorar a carne dos seus inimigos. Muito mais que a necessidade de se alimentar, o canibalismo entre as tribos polinésias, africanas e americanas, tinha um sentido esotérico. Eles costumavam comer a carne dos seus inimigos na esperança de adquirir sua força. O próprio Cristianismo não escapou a influência dessa tradição. Jesus concitou seus discípulos a “comer a sua carne e beber o seu sangue” como forma de realizar comunhão com ele. O simbolismo dessa metáfora é evidente. A Igreja Católica, ao adotar o costume de partilhar a hóstia em suas missas incorporou essa tradição aos seus rituais. Nesse costume está o profundo sentido místico de “comer o deus” para realizar a união com ele, isso é, adquirir a sua força.(4)


A teologia hebraica- cristã interpretou o mito da expulsão do casal humano do paraíso como sendo uma consequência do pecado que o homem cometeu contra Deus, instigado pelo seu opositor, Satã, tido como o invejoso anjo do mal que queria usurpar o lugar Dele. Assim, aquilo que para os gregos foi um grito de liberdade do homem em relação aos desígnios divinos, para as religiões inspiradas no monoteísmo hebraico foi uma rebelião perpetrada pelo anjo opositor e espalhada entre os seres humanos. Daí o conceito de pecado e as teorias da expiação e resgate do ser humano, desenvolvidas pelos povos do Oriente Médio e amplamente divulgadas em suas religiões (5)

Parece-nos, todavia, que esse mito não é mais que a evocação inconsciente de um acontecimento biológico, ocorrido na longa história da evolução do organismo humano. Ele significa, na verdade, o momento em que o homem, emergência descontinua numa sucessão de ocorrências biológicas processadas em série, deu um salto qualitativo no seu processo de desenvolvimento e produziu a sua primeira reflexão. E dela emergiu como um deus, com a sensibilidade do bem e do mal, do que era certo e errado, com a sabedoria enfim, ainda que meramente intuitiva, de que havia forças no universo que produziam os acontecimentos, e que eles não eram meramente obras de “entidades” que as perpetravam ao seu bel prazer.
Assim, todos os mitos que evocam uma rebelião do homem contra os deuses, ou o conflito deste com a divindade, nada mais simbolizam que o momento em que o homem deu o grande passo que o fez diferente das demais espécies vivas: o Passo da Reflexão.

Esse é, inclusive o entendimento de alguns teólogos e mestres cabalistas, que vêm nessa metáfora bíblica uma forma de compatibilizar a visão bíblica com as modernas teorias científicas que pregam ser o homem um produto de uma longa evolução que começou na mais primitiva das formas de vida e vem seguindo um processo de desenvolvimento controlado por leis postas na natureza por uma Mente Universal. (6)

O despertar da consciência

De que outra forma se poderia entender a curiosa metáfora imaginada pelo cronista bíblico para figurar o nascimento da consciência no ser humano, senão pensando que o Eterno planejou a sua Criação de forma que ela pudesse evoluir, em diversos ramos distintos, como se ela fosse, de fato, uma Árvore? Constrói-se, dessa forma, uma biogênese, na qual é possível seguir os filamentos que ela manifesta, verificando os graus de complexidade que cada espécie assume em cada momento específico de sua vida.

Teilhard de Chardin, cujo pensamento tem nos socorrido em praticamente todos os enigmas em que os exegetas da Bíblia não o conseguem, nos dá uma boa compreensão desse tema. Ao se referir a Arvore da Vida, que na sua visão é o próprio fenômeno da Criação, nele compreendido todas as manifestações de existência orgânica, desde a primeira e indivisível célula, até o organismo mais complexo que a Natureza engendrou, que é o ser humano, ele releva esse momento especial em que os “olhos do homem se abriram e ele se equiparou aos deuses, conhecendo o bem e o mal”. Em páginas de infinita beleza poética esse magistral filósofo nos mostra como esse “pecado”, ou seja, a aquisição do conhecimento ocorreu. “Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a Reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como um objeto dotado de sua própria consistência e de seu próprio valor; não mais apenas conhecer ─, mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que sabe. Por essa individualização de si mesmo, no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. ”(7)

Nesse texto esse grande filósofo está a nos dizer que uma organização celular ocorrida no interior do organismo humano, mais propriamente uma concentração energética sobre um órgão do nosso corpo, o cérebro, nos fez diferenciar do ramo dos primatas, ao qual pertencemos como espécie. A vida interior, refletida sobre si mesma, nos proporcionou esse salto evolutivo que a Bíblia chama de “comer o fruto do conhecimento do bem e do mal”. O nascimento do Adão terrestre, como ser inteligente e “imagem” do seu Criador, deu-se, portanto, no momento em que ele capturou uma consciência, e o “pecado”, que na dicção bíblica se traduz por comer o fruto da Árvore do Conhecimento, foi o momento limite em que ele praticou a sua primeira reflexão, tomando conhecimento de que tinha um ego, um “self”, que o identificava e lhe dava a capacidade de classificar e entender os próprios pensamentos.

A interpretação científica

Modernas concepções científicas também chegaram ao mesmo patamar de entendimento. Eis como um discurso científico descreve esse momento singular, em que o homem dá o salto qualitativo que o distingue das demais espécies animais: “ Há cerca de cem milhões de anos, o cérebro dos mamíferos deu um grande salto em termos de crescimento. Por cima do tênue córtex de duas camadas ─ às regiões que planejam, compreendem o que é sentido e coordenam o movimento ─, acrescentaram-se novas camadas de células cerebrais, formando o neocórtex. Comparado com o antigo córtex de duas camadas, o neocórtex oferecia uma extraordinária vantagem intelectual. 

O neocortéx do homo sapiens, muito maior do que o de qualquer outra espécie, acrescentou tudo que é distintamente humano (...).” (8)

Até esse momento, os hominídeos, como diz Teilhard de Chardin, acompanhavam a filogênese da criação, apenas como mais um ramo da Árvore da Vida, em seu desenvolvimento normal. Mas a partir do momento em que adquiriu a capacidade de refletir, o homem diferenciou-se entre todas as espécies criadas, passando, como diz a Bíblia, a ser “uma imagem de Deus”, aquele que Ele escolheu para subjugá-la e dominá-la. Quer dizer, o que faz o homem ser uma imagem do seu Criador não é o seu aspecto físico, mas o seu carácter intelectual, pois é deste que transcende a sua parte espiritual.

Sim, porque a partir desse momento o homem adquiriu o livre arbítrio e a capacidade de fazer as próprias escolhas, dando um sentido a evolução. Isso, para uma sensibilidade inocente, que até então não tinha a consciência do próprio ego, deve mesmo ter significado a morte da inocência, a expulsão de um paraíso, onde, por não existir o exercício da escolha, também não existia ansiedade, culpa, estresse, cansaço e náusea da própria existência, por não saber a que ela se destina, nem qual é o seu propósito, como dizia um personagem de Sartre. (9) como salienta o cronista bíblico, o homem pagou caro por essa ação. Foi expulso do paraíso. Mas isso foi para que ele “não comesse também da Árvore da Vida”, pois esse fruto lhe daria a imortalidade. Quer dizer que se os homens tivessem, concomitantemente a aquisição do conhecimento, obtido o dom de viver para sempre, prejudicado estaria todo o projeto do Criador, que planejou a construção do universo de combinação em combinação, através de um plano de evolução, onde a energia que o formata sai do ínfimo (o núcleo atômico) e caminha para o imenso, no plano material, externo, e do simples (a célula) vai para o complexo (no plano espiritual, interno), como intui Teilhard de Chardin quando desenvolve a sua noção hiperfísica do universo.

A Árvore biológica do ser humano

A visão teilhardiana da Árvore da Vida contrasta, naturalmente com as visões literais dos criacionistas, que vêm a espécie humana como nascida a partir de um casal feito a imagem e semelhança de Deus, ou seja, na sua forma orgânica e espiritual já perfeita e acabada. Ao revés ─ e isso significou para esse originalíssimo pensador jesuíta uma feroz repressão da sua própria Igreja ─, ela está muito mais para as teses defendidas pelos adeptos da seleção natural, embora destes Teilhard se afaste quando introduz nessa evolução um componente de espiritualidade, negado pelos evolucionistas. Pois aqui o homem é resultado de um longo processo de evolução, maturado no seio da matéria universal, mas dirigido por uma Vontade que nela atua e se cristaliza. Diferente, pois, do homem obtido simplesmente por seleção natural, que é produto apenas de sínteses químicas que vão se processando pela força das leis que regem a mecânica universal.


Nessa composição cabe um lugar inclusive para o próprio Mal, que na tradição bíblica é o diabo travestido de serpente. Pois não é ele que perverte a parte mais sensível da mente do homem (a sua parte feminina) com um discurso que estimula a sua vaidade? Que mais agradaria ao recém-nascido ego humano do que a ideia de se tornar igual ao próprio Criador? É por isso que a Cabala ensina que “Satã é o nosso Ego, o nosso desejo de ser sempre mais. Ele é o desejo que queima, o egoísmo que exige cada vez maior prazer”. (10)


E por isso a Maçonaria se apresenta como disciplina onde o homem procura aperfeiçoar o seu espírito, erguendo “templos a virtude e cavando masmorras ao vício”. Tudo isso nada mais é uma tentativa de mitigar as razões do Ego para, em troca, obter maiores ganhos em espiritualidade. Essa é, em resumo, a função da prática maçônica. 

1. Gênesis, 2;16 a Bíblia diz que no Éden havia duas árvores: a Árvore da Vida, que concedia a imortalidade e a Árvore do Conhecimento, cujos fruto concediam a ciência do bem e do mal. Foi desta última que o casal humano se apoderou e comeu. Modernas concepções cabalistas vêm nessa metáfora uma advertência de Deus a respeito do conhecimento da energia atômica (capaz de destruir o planeta) e da engenharia genética (passível de dar ao homem o poder de criar e prolongar sua vida).

2. O próprio termo designativo de Fraternidade, que é aplicado a um grupo de tradições comuns vem do grego Frátria, que na antiga Atenas designava uma associação de cidadãos unidos pela mesma cultura religiosa compartilhante dos mesmos símbolos. Eles formavam uma unidade política e religiosa. A legislação de Sólon legitimou essas associações, determinando a sua composição em trinta famílias. Cada tribo podia manter três desses grupos. Assim, Atenas estava dividida em quatro tribos com um total de doze frátrias.

3. E. Wallis Budge, The God of Egipcians, Vol. II, Ed. Dover New York, 1929.

4. No caso cristão tratava-se de um ritual que visava “incorporar” nos apóstolos a natureza divina de Jesus, uma fórmula comum de se realizar “Irmandade”. Aliás, o banquete, a chamada “comensalidade”, praticada por Jesus e seus discípulos, era uma forma bastante comum de simbolizar essa Irmandade entre os povos antigos. O Banquete de Platão é um claro exemplo disso. No caso de Jesus e seus discípulos o banquete da Páscoa, realizado na tarde da quinta-feira e não na sexta, como era costume entre os judeus, mostra a clara disposição de Jesus de realizar um novo pacto entre o povo de Israel e Deus. Por isso também ele reuniu exatamente doze discípulos, cada um simbolizando uma das tribos do antigo Israel.

5.As religiões em questão são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.

6.Nesse sentido veja-se a obra monumental de Teilhard de Chardin “O Fenômeno Humano”, Ed. Cultrix, São Paulo, 1968. Veja-se também Daniel Goleman, Inteligência Emocional, Ed. Objetiva, 1995.

O Fen7.ômeno Humano, op. Citado, pg. 186.

8. Daniel Goleman, PHD- Inteligência Emocional- Ed. Objetiva, pg. 25.

9. Jean Paul Sartre- A Náusea- Círculo do Livro, 1986. Essa “culpa”, essa fadiga, essa náusea de viver, segundo Sartre, é o reflexo do “castigo” dado ao homem pela desobediência. Ter consciência de si mesmo, e ao mesmo tempo sentir-se despregado de um todo, onde a vida lhe aparece como uma existência vazia e sem sentido, destinada apenas a preencher um espaço entre o ser e o nada. Essa é a verdadeira expressão da metáfora da expulsão do paraíso.

10. A Sabedoria da Cabala, op. citado, pg. 152.

  

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