O ARTESÃO E O FILÓSOFO
Autor: João Anatalino
A ciência e a técnica
A transformação do profissional da construção em filósofo, representado pela passagem do operativo para o especulativo, não eliminou a sacralidade do oficio do maçom, como dizia René Guénon, ao criticar a admissão dos “maçons aceitos” nas Lojas dos pedreiros livres. Apenas fez com que ele deixasse de ser um pedreiro profissional para transformar-se num pedreiro moral. O maçom deixou de construir igrejas, mosteiros, castelos, fortificações, passando a realizar obra de interesse espiritual e social, muitas das quais deixaram sua marca na história. A técnica operativa transmutou-se em atividade do espírito. Seguiu, como toda disciplina que se inscreve no domínio da sabedoria epistêmica, o caminho comum de todas as conquistas da mente humana.
É que toda disciplina cientifica tem sua gênese em uma técnica, praticada empiricamente, tendo como guias apenas a sensibilidade e a habilidade do artesão. Depois, quando submetida ao crivo da razão, ela é organizada e ganha uma epistemologia própria, um método de estudo, incorporando-se ao conhecimento humano como conquista do saber. E da mesma forma que todo conhecimento científico é uma conquista do espírito, é possível justificar também que a passagem da Maçonaria do plano operativo para o especulativo representou uma verdadeira evolução em termos de cultura humana, pois se antes o maçom construía edifícios como mera operacionalização de uma imagem mental, a partir do momento em que a Arte Real organizou-se como disciplina de aperfeiçoamento moral e espiritual do individuo, ela ganhou status de filosofia, tratando não apenas da ciência da construção de edifícios físicos, mas agora também para erguer algo muito mais importante: o edifício moral da humanidade.
A noção de que a técnica sempre precede á ciência é uma idéia de certa forma constrangedora para muitos cientistas que pensam estar realizando descobertas originais com suas experiências de laboratório, ou para os pensadores que reivindicam a primazia na construção de grandes sistemas de pensamento. Muitas vezes, o que a ciência prova ser impossível, a tentativa pura e simples do técnico acaba desmentindo. Pawels e Bergier nos dão alguns exemplos interessantes dessa inversão. “Na nossa opinião” dizem aqueles autores, “ a técnica não é de forma alguma a aplicação prática da ciência. Muito pelo contrário, ela se desenvolve contra a ciência. O eminente matemático e astrônomo Simon Newcomb demonstra que aquilo que é mais pesado que o ar não teria possibilidades de voar. Dois mecânicos de bicicletas provar-lhe-ão o contrário. Rutherford- Millikan, provam que jamais será possível explorar as reservas de energia do núcleo atômico. A bomba de Hiroxima explode. A ciência ensina que uma massa de ar homogênea não pode se dividir em ar quente e frio. Hilsh demonstra que basta fazer circular essa massa através de um tubo apropriado. A ciência coloca barreiras de impossibilidades. O engenheiro, da mesma forma que o mágico sob o olhar do explorador cartesiano, transpõe as barreiras por meio de um fenômeno análogo ao que os físicos chamam o “ efeito do túnel”. [1]
Destarte, o que chamamos de filosofia, ou ciência, talvez seja apenas a especulação sobre a operação. Ou como dizem Bandler e Grinder: primeiro aprendemos a fazer. Depois tentamos compreender como fazemos.[2]
Da arte á filosofia
De certa forma, podemos pensar que a Maçonaria seguiu exatamente esse processo. A partir das técnicas de construção, homens sensíveis, de espírito mais religioso que cientifico, perceberam a possibilidade de uma ascese espiritual mais facilmente realizável através das técnicas de seu oficio do que pela prática ritualística de uma liturgia religiosa. Quando a prática operativa, pura e simples, perdeu seu mercado,
face á própria evolução das técnicas de construção, o exercício da Maçonaria operativa deixou os canteiros de obras para refugiar-se nas sociedades de pensamento. O técnico tornou-se filósofo pela descoberta de que seu conhecimento das construções no plano físico podia ser utilizado para realizar construções espirituais. Passando do concreto para o abstrato, a técnica internalizou-se, transformando-se numa disciplina especulativa.
E nesse sentido, a arte de construir um simulacro do universo no plano físico, que eram os grandes edifícios religiosos, passou a ser a arte de construir esse simulacro dentro do próprio homem e, por extensão, na suas sociedades. Pode-se dizer que a Maçonaria, que antes operava apenas num domínio laico-religioso, passou a operar depois em um domínio mais amplo, que integrava a moral, a psicologia, a sociologia e a política, embora o objetivo da prática maçônica continuasse a ser o mesmo, ou seja, realizar a ascese espiritual do praticante. Num certo sentido, o que antes era uma técnica operativa passou a constituir-se numa ciência do espírito.
A conexão Rosa-Cruz
Um dos mais importantes trabalhos de Carl Gustav Jung tem por tema exatamente a alquimia. Nessa obra, o famoso psicanalista suíço desenvolve a noção dos arquétipos, fazendo uma ponte entre o delírio alquímico e as ansiedades do inconsciente humano para alcançar a realização de seus sonhos. Para Jung, a alquimia era uma técnica que procurava desenvolver, operativamente, o mesmo processo que se desenvolve no inconsciente humano, para dar origem ás suas crenças e sentimentos á respeito do mundo espiritual. Com esse trabalho ele estabeleceu um elo entre o pensamento mágico e a ciência psicológica, mostrando que existe uma clara interação entre os dois domínios cerebrais, que só podem ser estudados em conjunto.
Dessa forma, a arte dos “filhos de Hermes”, como tais eram chamados os alquimistas, provinha de um conjunto de conceitos universais, compartilhados pelo Inconsciente Coletivo da humanidade, pois se fundamentava em mitos, símbolos, alegorias e sensibilidades compartilhadas desde sempre pelo psiquismo da espécie humana, e que se revelava em sonhos, intuições, crenças, superstições e folclores, muitas vezes inexplicáveis pelo crivo da razão, mas muito fortes nas bases estruturais do nosso espírito.
A alquimia era a arte das transmutações. Através da manipulação de certo tipo de matéria prima os alquimistas queriam descobrir o segredo que permitia á natureza realizar a transformação física dos metais. Daí a alquimia ficar conhecida como a técnica de realizar a transmutação de metais comuns, como o estanho e o chumbo, em ouro. Ao mesmo tempo, o operador alquímico, ao penetrar na intimidade da natureza e desvelar os seus segredos, ia também adquirindo uma consciência superior que lhe proporcionava uma elevação espiritual ao nível de uma experiência transcendental. Essa era, exatamente, a esperança dos fundadores da chamada fraternidade dos Rosa-Cruzes, grupo de pensadores herméticos que em fins do século XVI e início do século XVII causaram um grande comoção nas estruturas do pensamento ocidental com suas construções especulativas utópicas, fundamentadas no saber alquímico.[3] Serge Hutin, escrevendo sobre esses místicos filósofos da utopia alquímica , diz que “eles constituem a coletividade dos seres elevados ao estado superior á humanidade vulgar, possuindo dessa forma os mesmos caracteres interiores que lhes permitem reconhecer-se entre si”.[4]
Evocamos essas manifestações porque as reconhecemos aplicáveis á Maçonaria. A idéia de uma sociedade internacional, circunscrita a alguns homens puros e de bons costumes, ligados pelo amor á virtude e a beleza, transformados pela prática iniciática, é exatamente a pregação de todos os filósofos maçons. A ciência maçônica, tal como a alquimia, também é a ciência das transmutações. Ela permite a transformação do próprio espírito do iniciado no sentido de se atingir uma etapa mais desenvolvida, seja no terreno da moralidade exotérica, seja no domínio da plenitude espiritual, esotérica. Essa transmutação, a nível filosófico, é a mesma experimentada pelo alquimista, na sua busca pela pedra filosofal, ou pelo cientista moderno na sua procura por uma explicação racional dos fenômenos da natureza. Como dizem Pawels e Bergier, “estamos numa época em que a ciência, no seu termo máximo, atinge o universo espiritual e transforma o espírito do próprio observador, situando-o num nível diferente do da inteligência cientifica, tornada insuficiente. Aquilo que acontece nos corações dos nossos atomistas é comparável á experiência descrita pelos textos alquímicos e pela tradição rosa-cruz.”[5]
E nós completamos: é o que acontece no espírito do maçom que realmente compreendeu o valor e a finalidade da sua Arte. Assim, se para os alquimistas o corolário da sua obra era a pedra filosofal, para o maçom, a pedra filosofal é o seu próprio espírito aperfeiçoado. Completa-se, dessa forma, o processo que faz do espírito do maçom a sua própria obra de arte. Por isso a Maçonaria é chamada de Arte Real.
[1] Pawels e Bergier- o Despertar dos Mágicos, pg. 66/67
[2] Referência a um pressuposto da neurolinguística, técnica que procura demonstrar como são gerados, em nosso sistema neurológico, os nossos comportamentos, as nossas escolhas e crenças. Essa técnica foi desenvolvida pelos professores americanos Richard Bandler e John Grinder, da Universidade de Palo Alto, Califórnia.
[3] Vide, a esse respeito, Giordano Bruno e a Tradição Iniciática e O Iluminismo Rosa-Cruz, de Frances Yates, citado. Na imagem, Francis Bacon, filósofo e alquimista inglês, (1561 — 1626) é tido como o fundador da ciência moderna. Sua filosofia pregava o exercício da ciência em favor do progresso da humanidade. Sua principal obra filosófica, “Novum Organum” é considerada uma das principais influências para o movimento intelectual que resultou na Maçonaria moderna. Foi participante ativo do movimento Rosa-Cruz
[4] Serge Hutin . História da Alquimia. São Paulo, Cultrix, 1987.
[5] Idem, pg. 53
João Anatalino
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