terça-feira, 28 de maio de 2019






O MISTÉRIO DAS CATEDRAIS


O oficio de construtor sempre teve um caráter sacro, uma mística própria, uma aura de espiritualidade que o tem acompanhado através dos séculos. 

Conquanto o costume de sacralizar seu ofício já existisse entre os artesãos da construção na antiguidade, foi somente na Idade Média que esse costume ganhou status de verdadeira tradição. A transformação da habilidade operativa em ideal especulativo foi a grande realização dos nossos irmãos medievais. Foram esses profissionais, mais religiosos que técnicos, mais místicos que filósofos, que perceberam que o oficio de construtor, pelas suas características de integralização de formas, manipulação de símbolos e conhecimentos de geometria e matemática, era o que mais se prestava para atender á inclinação própria de uma cultura, que como a medieval, não distinguia o esotérico do exotérico. A arte de construir era aquela que permitia ao seu praticante, ao mesmo tempo, o provimento das necessidades profanas, necessárias para ganhar a vida, e uma realização espiritual.

Especialmente a construção de igrejas, pela mística que nelas se imprimia, era o que mais se prestava a produzir nos seus construtores uma sensação de mágica transcendência, que os fazia crer serem eles os canais pelos quais fluía a própria inteligência divina. Na construção daqueles edifícios monumentais, os artistas da pedra acreditavam repetir o trabalho de Deus na construção do universo.

Com efeito, a catedral medieval não era apenas o local onde os homens podiam sentir-se em comunhão com Deus. Ela era um simulacro do universo, onde todas as manifestações da existência humana se condensavam e encontravam o devido encaminhamento. Fulcanelli descreve magistralmente essa síntese do espírito medieval: “Santuário da Tradição, da Ciência e da Arte, a catedral gótica não deve ser olhada como uma obra unicamente dedicada ao cristianismo, mas antes como uma vasta coordenação de idéias, de tendências, de fé populares, um todo perfeito ao qual nos podemos referir sem receio desde que se trate de penetrar o pensamento dos ancestrais, seja qual for o domínio: religioso, laico, filosófico ou social” escreve esse autor, denotando a densidade espiritual que se condensava naquele edifício, refletindo todas as tendências da vida medieval. “Se há quem entre no edifício para assistir aos ofícios divinos,” prossegue, “se há quem penetre nele acompanhando cortejos fúnebres ou os alegres cortejos das festas anunciadas pelo repicar dos sinos, também há quem se reúna dentro delas noutras circunstâncias. Realizam-se assembléias políticas sob a presidência do bispo; discute-se o preço do trigo ou do gado; os mercadores de pano discutem ai a cotação dos seus produtos; acorre-se a esse lugar para pedir reconforto, solicitar conselho, implorar perdão. E não há corporação que não faça benzer lá a obra prima do seu novo companheiro e que não se reúna uma vez por ano sob a proteção do santo padroeiro”[1].

Aí está, portanto, demonstrada de forma insofismável a convergência do espírito humano para um único ponto, onde ele poderia atingir um pico máximo de densidade, facilitando a comunicação com a divindade. Daí o fato de a catedral gótica ter sido considerada o arquétipo perfeito de todas as construções humanas e o modelo ideal para se realizar o aprimoramento do espírito através do trabalho manual. Essa mística, essa elevação da alma aos domínios mais sutis do espírito só iria ser alcançada mais tarde pela prática da alquimia, arte que visava a mesma finalidade.

Diante disso, não causa escândalo o costume dos maçons operativos de dizer que Deus era o Sublime Arquiteto do Universo, enquanto eles eram seus “demiurgos”, construindo fisicamente os modelos do universo divino. Com efeito, na perfeição das formas, na solidez das estruturas, na harmonia do conjunto, obtida pela perfeição com que se elaborava cada detalhe, é preciso reconhecer, nessa obra máxima da arquitetura medieval, uma construção de espírito, realizada não só a partir da atuação do engenho humano sobre a matéria, mas da própria interação entre os espíritos da matéria trabalhada e do artesão que a manipulava. Dessa idéia á uma sacralização do oficio do construtor foi apenas um passo.

Do operativo para o especulativo

Jean Palou diz que nos tempos primitivos, o oficio sacralizado já pertencia ao domínio do esoterismo, razão pela qual seus conhecimentos eram transmitidos por iniciação.[2]

Isso é verdade, pois embora todos os profissionais da construção, fossem, de certa forma, iniciados, somente a iniciação não lhe conferia uma realização espiritual total. Esta só acontecia com o cumprimento de uma longa cadeia iniciática, na qual se praticava uma liturgia ritual própria, onde o obreiro absorvia o “espírito” da profissão e com ele se interava tornando-se um “eleito” “A iniciação”, escreve aquele autor, “em suas formas, em seus meios, em seus objetivos, Una em seu espírito, múltipla, porém, nas diferentes aplicações das técnicas peculiares a cada ofício, pela Sabedoria que preside á elaboração lógica da Obra, pela Força que possibilita sua realização efetiva, e pela Beleza que proporciona o Amor a cada realizador, isto é, o Conhecimento, ajudava o artífice a se despojar do homem velho, para se transformar num novo homem, criador de objetos e forjador de um novo mundo, finalmente harmonioso.[3]

Eis o porquê de não se permitir ao iniciado, inicialmente um mero aprendiz, compartilhar com os companheiros-mestres os mesmos símbolos, senhas, comportamentos e práticas. E mesmo entre mestres se impunham distinções de grau, pois se todos eram iniciados e ostentavam os mesmos títulos profissionais, muitos poucos, entretanto, eram “eleitos”, ou seja, tinham obtido elevação espiritual de modo a serem considerados mestres também nesse sentido.

Quando a Maçonaria operativa evoluiu para o especulativo, e mais tarde, quando o especulativo integrou na sua liturgia as tradições do hermetismo e da gnose, a mística da profissão do construtor aliou-se ao encantamento próprio da prática alquímica e ao apelo emocional contido na mensagem gnóstica. Se anteriormente, o oficio de construtor se realizava num domínio que era antes de tudo religioso e social, passou, depois disso, a preencher um vasto campo no domínio filosófico e espiritual, pois a especulação, mais que a prática pura e simples de uma arte, ou uma técnica, exige mais da sensibilidade do artista do que a razão e a habilidade física requerem dele. O artista, o técnico, que antes aliava o sentimento religioso ás técnicas da sua arte, teve que buscar nos domínios do esoterismo as justificativas para a sua prática. Depois, no inicio do século XVIII, quando a Arte Real incorporou a mensagem iluminista, foi preciso o desenvolvimento de uma liturgia ritual que possibilitasse a divulgação da nova filosofia, mas que, ao mesmo tempo, transmitisse a mensagem iniciática original de uma inteligência que jamais abandonara suas tradições de buscar a espiritualidade no exercício de uma profissão, ainda que essa prática, agora, fosse apenas simbólica.

A realização espiritual buscada no exercício do ofício, ou na prática da filosofia hermética, passara agora, a ser uma realização moral, onde o iniciado aprenderia a educar-se para ser virtuoso, a partir de um novo arquétipo de homem, que era o “Homem Universal”. Era um aprendizado de filosofia moral em busca de um êxtase espiritual que a cadeia iniciática da Maçonaria pretendia proporcionar aos que nela se iniciavam.É nesse sentido que o verdadeiro mistério das catedrais está no espírito daqueles que as constroem, pois neste é que se reflete a estratégia do Grande Arquiteto do Universo na construção do universso.


[1] Fulcanelli- O Mistério das Catedrais, pg. 50. Na imagem, frontispício da Catedral de Notre Dame, Paris, a mais famosa catedral gótica da Europa.
[2] Jean Palou- A Franco-Maçonaria Simbólica e Iniciática, pg. 28.
[3] Idem. pg.39.
João Anatalino

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