terça-feira, 27 de junho de 2017



OS SADUCEUS



Por João Anatalino Rodrigues


Por uma série de motivos, qualquer comentário que se faça sobre a seita judaica dos saduceus será sempre problemático. Primeiro porque não se descobriu, até agora, um único documento produzido por algum membro desse grupo, como no caso dos fariseus e dos essênios, sobre os quais existem fartas referências nos escritos dos cronistas cristãos, nos trabalhos de Flávio Josefo e nos escritos rabínicos. O pouco que se sabe sobre esse grupo é o que consta de algumas referências a eles feitas no Novo Testamento (não muito elogiosas, aliás), e a informação de Flávio Josefo de que ele próprio teria convivido com os saduceus em sua juventude.

Nos escritos rabínicos que instruem a Mishná encontraremos muitas referências aos fariseus. Da mesma forma o material que hoje pode ser coletado nos pergaminhos do Mar Morto dá uma boa ideia de quem foram os essênios e como viviam esses fanáticos sectários que são hoje considerados os possíveis inspiradores de Jesus e João Batista.

Porém, as referências que se encontram nos escritos rabínicos acerca dos saduceus são bastante problemáticas do ponto de vista histórico, porque se tratam de informações muito parciais, uma vez que esses escritos, por ter sido produzidos principalmente por fariseus, ou simpatizantes desse grupo sempre se referem aos saduceus como seus adversários políticos e doutrinários.

Ao que parece, nenhum membro dessa seita jamais escreveu ou por outra forma transmitiu ou guardou para a posteridade qualquer informação que pudesse fornecer uma ideia exata da identidade desse grupo, que doutrinas professavam e qual foi a contribuição deixada para a rica cultura judaica.

Apesar do conflito já apontado entre Jesus e os fariseus, que deu a eles uma aura completamente desfavorável, a literatura rabínica de um modo geral os tem apresentado sob uma ótica bastante simpática, concedendo-lhes o privilégio de aparecer como depositários da tradição oral da sabedoria de Israel. Já os saduceus não gozam do mesmo destaque e os parcos registros rabínicos que se referem a eles são praticamente silentes em relação a qualquer atividade que se refira a esse grupo. Dessa forma a identidade histórica desse grupo é difícil de reconstituir.

Destarte, com o que temos hoje à mão é possível fazer o seguinte resumo sobre esse interessante grupo de sectários judeus que, ao que parece, até mais que os fariseus, cultivavam interessantes paralelos com a Maçonaria Moderna.


QUEM FORAM OS SADUCEUS

Todos os registros constantes da literatura rabínica posterior ao Novo Testamento referem-se aos saduceus como sendo oponentes doutrinários dos fariseus e simpatizantes do helenismo. No Talmude babilônico, por exemplo, os saduceus chegam a ser considerados hereges. Assim, o ponto que se registrou deles é que se tratava de um grupo muito elitista, que deteve certo poder político em determinada época da história de Israel, inclusive durante a vida de Jesus. Deduz-se, portanto, que se tratava de uma seita de caráter político-religioso, que disputava doutrinariamente com os fariseus e dividia com estes o poder político e os cargos administrativos da Judeia.

Flávio Josefo informa que os saduceus, da mesma forma que os fariseus, já existiam nos tempos do monarca asmoneu Jônatas (160-143 a. C.) e diz que outro monarca dessa dinastia, João Hircano (134-104 a. C.), os favoreceu em seu governo.

Segundo ainda esse autor, os saduceus teriam exercido forte influência sobre os reis asmoneus durante todo o período de governo dessa dinastia. Tanto quanto se sabe, Herodes, o Grande, que governou a Palestina durante os 40 anos anteriores ao nascimento de Jesus e cerca de seis anos depois, não gostava muito dos saduceus, preferindo escolher seus sumo-sacerdotes entre os membros da seita dos fariseus.

Os saduceus voltaram ao poder quando Roma assumiu o governo direto da Judeia. Os prefeitos, e mais tarde os procuradores que Roma colocara para governar os judeus, frequentemente se apoiavam no poder dos sacerdotes para manter o controle sobre o belicoso e rebelde povo judeu. E como os saduceus já de longa data tinham fama de colaboracionistas, simpatizantes da filosofia grega, foi nessa seita que eles foram buscar seus colaboradores, Anás e Caifaz, responsáveis pela prisão e condenação de Jesus, o primeiro como principal membro do Sanodrin e o segundo como sumo sacerdote, eram saduceus.

Os saduceus, diferentemente dos fariseus, ao que parece, não sobreviveram à destruição de Jerusalém, efetuada pelos romanos em 70 d. C. A literatura rabínica não os menciona depois dessa data. Para Flávio Josefo, que ao que parece tinha menos simpatia por eles do que pelos fariseus, a seita dos saduceus era minoritária e não tinha muitos adeptos. Também não se prestava ao trabalho de divulgar suas doutrinas para o povo, como faziam os fariseus. Era, portanto, uma seita essencialmente elitista que congregava somente pessoas de alguma fortuna ou poder. Pode-se dizer que esse grupo representava o ideal da aristocracia da Judeia.

O nome saduceu sugere que essa seita tem suas origens conectadas às famílias sacerdotais da Antiguidade. Sadoc era o nome do sacerdote que servia Davi e Salomão, conforme informa a Bíblia. Com base nisso, os saduceus costumavam reivindicar a primazia da hierarquia sacerdotal, dizendo-se os únicos legítimos herdeiros dessa titulação. Chamavam a si mesmo de filhos de Sadoc e nessa condição sempre procuravam estar perto do poder, influenciando-o ou mesmo exercendo-o diretamente. Os saduceus, portanto, podem ser considerados como sendo um grupo político-religioso, formado por aristocratas judeus, centrado em Jerusalém e controlando a administração do Templo.

Flávio Josefo

AS DOUTRINAS DOS SADUCEUS

Há poucas referências aos saduceus no Novo Testamento. Eles aparecem uma única vez discutindo com Jesus a questão da reencarnação, que, segundo os evangelistas, e também Flávio Josefo quando, se refere a essa seita, eles refutam. Isso mostra o quanto os saduceus se mantinham afastados da vida popular, preferindo concentrar suas atenções na política. Nos Atos dos Apóstolos eles reaparecem mais uma vez no julgamento de Pedro perante o sinédrio.

Os saduceus rejeitavam as teses dos fariseus, segundo a qual a tradição também fazia lei. Eles diziam que somente a Torá escrita era lei e devia ser cumprida. Talvez esse caráter conservador dos saduceus seja o motivo pelo qual Jesus teve menos conflitos doutrinários com eles do que com os fariseus, pois Jesus também era um conservador que acreditava que a Lei de Moisés era a única que devia ser respeitada. 

Na Mishná, os saduceus sempre aparecem em clara oposição aos fariseus em relação a questões de culto, comportamento e até liturgia. Discordam sobre as duras regras de pureza que os fariseus diziam ser obrigatórias e também parece que tinham ideias diferentes sobre responsabilidade civil, à questão da servidão e sobre algumas tradições religiosas como o respeito ao sábado, as regras de higiene, etc.[1]

A questão sobre a inexistência da ressurreição dos mortos parece ser a principal divergência doutrinária entre os saduceus e os fariseus e deles com Jesus. De fato, como a Torá não fala em ressurreição, os saduceus se recusavam a admiti-la. Pelo menos essa divergência é a que mais transparece no Novo Testamento e nas referências que Flávio Josefo faz a respeito dos saduceus.

Mas na verdade, em se admitindo que os saduceus rejeitassem essa crença, isso nos leva a deduzir que eles rejeitavam também toda a doutrina escatológica dos judeus que sustentava uma consumação final do tempo, com um apocalipse e um consequente julgamento de vivos e mortos, bem como a recompensa final para os crentes e castigo para os descrentes, como se acreditava na época de Jesus e como ele mesmo pregava. E, por inferência, é duvidoso que os saduceus acreditassem até mesmo na vida de um Messias redentor para livrar os judeus do jugo estrangeiro e fundar um novo reino, fosse lá o que fosse esse reino do Messias. Isso explica o rigor com que eles julgaram Jesus e a indiferença com que eles o entregaram aos romanos para que o crucificassem.

Isso não significa, entretanto, que os saduceus não tivessem qualquer tipo de esperança em uma renovação do Estado judaico e em uma nova era de liberdade e prosperidade para o povo judeu. Certamente acreditavam nisso, mas não por meio de uma revolução messiânica, como esperavam os fariseus e principalmente os essênios. Os saduceus eram políticos e atuavam politicamente, sustentando no direito positivo as suas atitudes. E sendo Anás e Caifaz, e o Sinedrin judeu comporto por boa parcela de saduceus, é possível colocar a razão da prisão e condenação sumária de Jesus sob a ótica de uma lógica previsível, pois sua pregação era, sem dúvida, perigosa para a ordem pública então vigente, da qual eles eram os principais fiadores.

Os saduceus, conforme denúncia o evangelista Lucas e Flávio Josefo também confirma, não acreditavam na existência de anjos e espíritos e negavam a existência de um destino a determinar a vida dos homens. Ao contrário, eram ardorosos defensores do livre-arbítrio, sustentando que tudo estava nas mãos das pessoas. Essas eram ideias francamente gregas, por isso se diz que eles eram simpatizantes do helenismo.

OS SADUCEUS E A MAÇONARIA

Talvez até mais que os fariseus e os essênios, a seita dos saduceus pode ser invocada para fornecer uma interessante analogia com a Maçonaria Moderna. Em primeiro lugar temos a noção elitista que informa a cooptação dos membros da Ordem. Essa noção é a mesma que sugere que o maçom há de ser uma pessoa de certa proeminência em seu ambiente social para que ele, ao integrar o seleto grupo para o qual foi convidado, possa acrescer, com seus privilégios de fortuna e qualidades pessoais, ao poder potencial do grupo.

Conquanto muitos maçons possam não concordar com nossa tese, a Maçonaria é essencialmente um grupo de poder. Tal como os iniciados dos Antigos Mistérios, o que se busca na Ordem Maçônica é uma seleção natural de pessoas com potencial material e espiritual para compor uma “central de energia”, para a qual se possam canalizar as esperanças da sociedade nos momentos em que ela precisar. Nesse sentido é que nós vemos a Maçonaria como uma reserva cultural da sociedade e justificamos inclusive sua aparência extremamente elitista e conservadora. Suas ligações com a política, sua interferência nas questões sociais, a discussão dos grandes temas que se referem à vida da sociedade está, dessa forma, inserida na própria missão a que ela se propõe cumprir. Daí muitas vezes, como os fariseus e principalmente os saduceus na história política e religiosa dos judeus, os maçons serem vistos com desconfiança por pessoas e instituições que nada sabem sobre os Obreiros da Arte Real, mas os temem como se eles fossem depositários de algum segredo perigoso para os destinos da humanidade, ou então partidários de alguma conspiração, cujo objetivo é a tomada do poder temporal ou espiritual.

No mais, a seita dos saduceus parece ter adotado a mesma estrutura organizacional dos fariseus, com ritos iniciáticos e formas de cooptação muito semelhantes. Também eram extremamente corporativos, a se julgar pelos comentários que deles faz a literatura rabínica.

(Texto extraído do Livro O Tesouro Arcano – A Maçonaria e seu simbolismo iniciático – João Anatalino Rodrigues – Editora Madras)








[1] John P. Meier, Um Judeu Marginal, op. Cit., vol. II, Livro III.

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