quarta-feira, 9 de novembro de 2016


A PROCURA DO EQUILÍBRIO PERDIDO


Autor: João Anatalino

O equilíbrio cósmico 


Houve uma época na vida da humanidade em que todos os homens tinham consciência da unidade do universo e sabiam que o céu e a terra eram complementos um do outro. Ambos refletiam uma Consciência maior que os havia pensado.

Em dado momento, porém, ocorreu uma ruptura entre essas estruturas, fazendo delas compartimentos dois estanques. Essa é ideia que se transmite na tradição hermética e está assente em todas as doutrinas esotéricas que acreditam na existência de civilizações anteriores á nossa.

Essa ruptura foi interpretada pela tradição religiosa como sendo uma queda do homem do seu status anterior, de parente dos deuses, Daí surgiu a visão dialética do cosmo como se ele fosse composto de estruturas diversas, incomunicáveis entre si, opostas, antagônicas e, ás vezes, até inconciliáveis. A produção universal, fosse matéria ou pensamento, passou a ser vista como reação entre energias antagônicas: bem e mal, luz e trevas, verdade e mentira, ação e reação, macho e a fêmea etc. O divino e o profano, da mesma forma que céu e terra, tornaram-se unidades independentes, cuja unidade foi rompida e precisava ser recomposta através de uma atitude religiosa por parte dos homens. A religião, como tentativa de religar os deuses aos homens foi o resultado dessa impostura.

Nos primórdios da nossa atual civilização os povos se recordavam dessa ruptura, cuja consequência foi interpretada como uma “queda” que provocou a sua expulsão de um paraíso. E a partir dessas lembranças procuraram reconstituir, pela religião, esse estado anterior de unidade onde o múltiplo era um, o que havia dentro era igual ao que havia fora, o que estava cima igual ao que estava em baixo. A experiência mais conhecida e importante nesse sentido foi a que os hebreus, antecedentes dos israelitas, legaram á humanidade. Nesse sentido, a instituição da nação de Israel como maquete da humanidade autêntica e perfeita que Deus desejaria instituir sobre a terra foi a mais clara e contundente experiência nesse sentido. Com a escolha do povo de Israel para ser o “povo eleito”, o que se buscava era a recomposição do equilíbrio cósmico, abalado pela queda do homem. Essa é a ideia que está no centro do estranho conceito cabalístico do Tikun[1

Maat, e o equilíbrio universal

Em contraposição á essa ideia, há quem acredite que a civilização que chegou o mais próximo possível dessa unidade primordial talvez tenha sido a antiga civilização egípcia e as que dela se derivaram, ou seja, as civilizações pré-colombianas. Os ecos de uma cultura ainda incompreensível, apesar de todos os estudos realizados, ainda ressoam pelas ruínas dos monumentais corredores dos imensos e magníficos templos construídos por aqueles povos. Parece que os espíritos dos maçons que construíram as gigantescas tumbas e os colossais edifícios que se encontram nos areais do Egito e nas montanhas andinas e planícies mexicanas e da América Central, lá ainda se conservam para nos dizer que o tempo não existe, que o universo é único, que somos nós que não entendemos as leis naturais, e consequentemente utilizamos mal o fluxo constante da energia que molda o universo, interrompendo a corrente de Maat. 

No Antigo Egito, como sabemos, a idéia de um estado de perfeita ordem e harmonia estava inserida no culto à Maat, a deusa da justiça e da retidão moral. Acreditava-se que essa divindade era a mediadora entre as potências do céu e da terra. Ela regulava as relações entre os deuses, estabelecendo a harmonia entre eles, e também entre os homens, fazendo com que eles vivessem em paz e em união. Por isso, todos os homens de responsabilidade na sociedade egípcia deviam viver de acordo com a Maaty, ou seja, se comportar de acordo com rigorosos princípios religiosos e morais, vivendo uma vida justa e perfeita, em todos os sentidos. Falhar em viver segundo esses princípios implicava em ser julgado com muita severidade no chamado Salão de Maat (também conhecido como Tribunal de Osíris, onde as almas dos mortos eram julgadas), e ser condenado á destruição pela serpente Apépi. Já aqueles que viveram suas vidas de acordo com essas regras eram conduzidos pelo deus Osíris através da Tuat (a terra da escuridão), até o outro lado, onde entravam no território de Rá, o sol radiante, e se integravam à luz que emanava daquele deus. Essa era a reintegração da centelha divina, que está em cada alma humana, ao centro irradiante, que os egípcios identificam no deus Rá, o Sol.

Na iconografia egípcia, a deusa Maat aparece como sendo a esposa, ou a parte feminina do deus Thoth, que com ele veio ao mundo quando as águas do abismo primitivo se abriram pela primeira vez. Seu símbolo era uma pena, que representava a leveza que uma alma devia apresentar quando estivesse diante do tribunal dos deuses. Nos tempos mais antigos do Egito, o nome dessa deusa estava conectada também com os artesãos (que deveriam fazer obras com perfeição), o que justifica o apreço com que o termo Maat é usado na simbologia maçônica. 

Os egípcios usavam o termo de uma forma moral e espiritual, significando direito, verdade, lealdade, honestidade, retidão, caráter, justiça, probidade, etc. De acordo com os antigos egípcios, são essas ações Maaty que instruem os processos cármicos a que estão submetidas todas as almas que nascem no mundo, e nos dão como resultado uma sentença de mérito ou demérito, cuja aplicação reflete em nossas existências orgânicas e espirituais, fazendo de nós criaturas mais ou menos afortunadas, que evoluem ou regridem, numa escalada ascendente ou descendente. É um conceito semelhante ao desenvolvido pelo mestre cabalista Isaac Luria, em sua doutrina.[2]

Esse processo tem como meta um aperfeiçoamento constante das nossas qualidades e virtudes, até um ponto onde possamos transcender da nossa condição de meros seres humanos para uma esfera mais sutil da realidade cósmica. Esse é o sentido da nossa escalada da matéria para o espírito e a finalidade de toda a vida. 

A função dos Antigos Mistérios

Era crença dos antigos egípcios que a sua civilização lhes tinha sido transmitida diretamente pelo Deus Thoth, que viera à terra justamente para essa missão civilizadora. Ele lhes deu os rudimentos da civilização, ensinando-lhes a agricultura, a metalurgia e a organização social. Ele ensinou todas essas coisas a Osiris, o primeiro rei a governar em todas as terras do Egito, e este a propagou entre todos os povos do reino, mantendo a harmonia e a paz, até o dia em que foi assassinado e esquartejado por seu invejoso irmão Seth.

Essa é, precisamente, a função dos chamados Antigos Mistérios egípcios, festivais rituais nos quais se representava a reconstituição do corpo dilacerado do rei-deus Osíris por seu invejoso irmão Seth, na lenda conhecida como Mistérios de Ísis e Osíris. Nessa lenda, o corpo de Osiris, cortado em pedaços e espalhados pelos quatro cantos da terra é reunido e recomposto pela sua esposa-irmã Ísis, que lhe dá novamente a vida. Esse Mistério simboliza a ideia egípcia da reconstituição da unidade cósmica, quebrada pela rebelião do mal contra o bem. [3]

A repercussão na filosofia

É possível que o mal tenha realmente entrado no universo quando os homens começaram a “fazer” história, ou seja, a partir do momento em que passaram a compor exercícios semióticos variados, como consequência da variedade de linguagens que se instalou na terra com a multiplicação das famílias humanas. Por essa razão, os símbolos deixaram de ser comuns e Deus “afastou-se dos homens”, pois desse momento em diante, sua história não seria mais que um reflexo das suas próprias consciências, não mais refletindo a consciência Dele. 

É provável, também, que até certo momento na vida dos grupos que povoaram a terra, tivesse sido possível para eles captar o reflexo da Consciência Divina, e com isso interferir nas próprias ações da natureza. Mas isso, como é possível perceber, deixou simplesmente de acontecer a partir de certa época. É certo que até os tempos de Josué, (pelo menos a Bíblia está a indicar isso), Deus parecia estar bem presente na história humana. Grosso modo, parece que a intervenção divina, imobilizando o sol no firmamento para que os israelitas pudessem marchar em volta das muralhas de Jericó e derrubá-las com o som de suas trombetas, foi uma das últimas ações diretas da Divindade na história dos homens. Depois dela as intervenções diretas de Deus na terra escassearam, e a partir de certa época, não se falou mais nisso. [4]

Tudo acontece como se a divindade se desinteressasse do destino dos homens, provocando uma ruptura entre os dois estratos: o divino e o profano. E por isso o Zaratustra de Nietzsche pode dizer: Deus morreu. [5]

Aqui, precisamente, é onde se insere a religião. Após a separação entre o céu e a terra, entre o sagrado e o profano, alguns espíritos mais sensíveis começaram a pensar num meio de religar essas duas estruturas, recuperando aquele estado de harmonia, ordem e felicidade que acreditavam, um dia, existiu no universo. 
Então inventaram a religião e construíram templos para neles invocar a Divindade, que segundo acreditavam, voltaria a visitar os homens a partir do momento que a reunificação pretendida ocorresse. Por isso é que a função de toda religião é religar o profano ao sagrado. É levar o homem de volta para o território da divindade, como espírito, de onde um dia ele saiu como centelha de luz que capturou massa física.

A rebelião gnóstica

Quando os teólogos transformaram o Cristianismo numa ideologia de massa e a vincularam á cultura do povo romano como religião oficial, a maravilhosa doutrina do mestre de Nazaré deixou de ser uma verdadeira ponte entre o sagrado e profano, para se transformar em mais um instrumento ideológico. E assim também aconteceu com o Islamismo, o Judaísmo, o Bramanismo e todas as demais religiões que foram apropriadas pelos governantes, e utilizadas como instrumento político.

Nesse sentido, Jesus também deixou de ser o Messias, o redentor das almas perdidas, para se tornar apenas mais um ideólogo. O Jesus do Cristianismo oficial transformou-se em mais um filósofo, contestável e doutrinariamente insatisfatório para um espírito que buscava uma realidade divina. Assim pensavam os filósofos neoplatônicos e com base nesse pensamento floresceram as teses gnósticas, como tentativas de recuperar aquele Cristianismo messiânico e mágico que as primeiras comunidades cristãs professaram, e que fez a força do novo credo.

É nesse sentido que os gnósticos cristãos dos primeiro século procuraram preservar a pureza do conhecimento iniciático contido na mensagem cristã. Eles não acreditavam em nenhuma verdade revelada por um Deus particular e preconceituoso, como lhes parecia ser o Deus do Velho Testamento. A verdade, segundo a sensibilidade que os dominava, estava na própria criação que Deus espalhara sobre o universo e não na mensagem de uma pessoa em particular. Da mesma forma que os sacerdotes egípcios e os mestres das religiões orientais, eles pensavam que o conhecimento do mundo divino só podia ser atingido através de uma adequada iniciação, onde a prática ritualística pudesse ser combinada com fórmulas apropriadas de meditação e invocação da divindade. Para esses místicos pensadores dos primeiros séculos, Jesus não tinha em mente criar um novo credo, mas sim reformar o Judaísmo, que ele acreditava ter sido corrompido pelos fariseus, saduceus e outros “doutores” da lei, que segundo ele, interpretavam as escrituras sagradas em seu próprio benefício, “colocando sobre os ombros do povo, fardos que nem com um dedo queriam erguer.” Nesse sentido, ele era o Messias, o Reformador, o Restaurador, que os antigos oráculos profetizaram. Aliás, o termo “Messias” corresponde a um personagem exclusivo da tradição de Israel e se referia a um profeta, ou herói, na mesma linha de Elias, Eliseu, Moisés, Sansão, Davi, etc. ainda que mais poderoso. A sua apropriação como salvador da humanidade, como redentor universal, foi uma criação dos seus discípulos, especialmente do Apóstolo Paulo. Os filósofos gnósticos fizeram a ponte entre as tradições judaicas do Messias e o Cristo universal, arquétipo existente em todas as tradições religiosas dos povos antigos, e os doutores da Igreja se apropriaram da ideia, transformando-a numa religião universal. Daí o entendimento da Igreja de Roma, de que todas as interpretações doutrinárias contrárias á sua constituíam heresias.

Os gnósticos e a Maçonaria 

Os gnósticos acreditavam que a popularização do conhecimento obtido pela prática iniciática acabava por abastardá-lo. Por isso transmitiam a sua doutrina á pequenos grupos, e no mais das vezes, por via oral e sempre através de símbolos e alegorias. Nisso imitavam as antigas sociedades iniciáticas do Oriente, e essa tradição foi transmitida para os hermetistas, que depois deles fundaram diversas Fraternidades para conservação e transmissão dos conhecimentos que pensavam ter obtido em suas nessas práticas. 

Os gnósticos não devem ser confundidos com mágicos ou divulgadores de heresias religiosas, embora em suas práticas, apelassem constantemente para o pensamento mágico. Seus temas são naturalmente religiosos, e não o poderiam deixar de ser, dada á própria cultura no qual se inseriram. Constituíam, na verdade, grupos de livre pensadores que recusavam qualquer dogma e deduziam seus conhecimentos das grandes leis da natureza. Cultuavam o saber pelo saber, sem temores religiosos. Seu objetivo era criar uma ciência do divino, uma teosofia, cujo objetivo era a descoberta dos caminhos para a salvação do homem através do conhecimento, em oposição ao caminho da Igreja, que era o da fé, absoluta e incontestável, nas interpretações dos doutores da Igreja. 

A base da filosofia gnóstica estava em uma visão unificada do universo, onde tudo estava contido em tudo, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o que estava dentro refletia o que estava fora. A função do iniciado era a descoberta dessas realidades e unificá-las em seu espírito, atingindo assim a verdadeira iluminação que constituía, na verdade, a única salvação que o homem poderia almejar. Semelhante á pratica que hoje se observa na Maçonaria, os gnósticos dos primeiros séculos formavam comunidades calcadas na interação mestre-aprendiz, acreditando que tal processo gerava a energia necessária para alimentar a chama sagrada do conhecimento do divino (gnosis). Em função disso desprezavam o clero secular considerando-os como ”ovelhas perdidas”. Para eles, os membros do clero regular eram padres, enquanto eles se consideram monges.

Essa fórmula viria a ser utilizada mais tarde pelos Cavaleiros Templários, o que, de certa forma, contribuiu para o seu afastamento da Igreja. É possível que a transformação da Ordem dos Cavaleiros do Templo do rei /Salomão em sociedade iniciática tenha sido um dos principais motivos da sua condenação pela Igreja. Mas essa é outra história...[6]


[1] Tikun significa reordenação. A Cabala ensina que o pecado de Adão quebrou “a unidade primordial” do universo, fazendo com que a luz divina, que deveria se espalhar pelas “conchas” universais de uma forma ordenada, se dispersasse pelo vazio cósmico. Assim, o objetivo de Deus, ao escolher um povo para “discípulo” e orientador da humanidade era a recomposição dessa unidade quebrada pela queda do homem.

[2] Ver Gershom Schollen- A Cabala e seu Simbolismo- 2006. Nesses dias anteriores aos tempos históricos, os deuses eram tidos como Mestres da construção universal e os homens os seus aprendizes. O que os primeiros faziam no céu refletia sobre a terra, e o que os homens faziam na terra repercutia no céu. Por isso a responsabilidade recíproca na construção e no equilíbrio do edifício cósmico se dividia por igual entre homens e deuses. Um dia esse equilíbrio foi rompido, por isso a desordem, a desarmonia, a injustiça, o mal, enfim, entraram no universo e nele se mantém. E nele se manterá até que nós restabeleçamos esse fluxo, tornando-nos justos e perfeitos novamente. Essa é a ideia que está no cerne da doutrina maçônica.

[3] Quanto á história do assassinato de Osíris por Seth, e sua posterior ressurreição, promovida por sua irmã e esposa Ísis, essa é uma lenda bastante conhecida dos maçons. Para mais informações veja-se a nossa obra Conhecendo a Arte Real, citada. Veja-se também Edward Wallis Budge, Os Deuses Egípcios, Vol I. A propósito, essas tradições egípcias também tem correspondência entre os povos andinos, para quem o Espírito Supremo (Uira Cocha) também promovia a civilização na terra através do seu escolhido, o Inca. Os monumentais templos erguidos pelos incas para homenagear à sua divindade solar não têm outra finalidade a não ser mostrar que seus discípulos, na terra aprenderam bem a lição dos seus mestres divinos.

[4] A doutrina cristã sugere que a suposta ausência de Deus na história dos homens ocorre em virtude de Ele ter mandado a terra seu próprio filho, o qual foi o último enviado divino. Depois da vinda de Jesus, Deus não precisou falar mais com os homens face a face, pois toda comunicação entre o céu e a terra seria feita pela Igreja que ele fundou. Esses postulados encontrariam fundamento nas palavras de Jesus “ Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, 4;3) e “ Tudo que ligares na terra, eu ligarei também no céu” ( Mateus 16,17, ). 

[5] Friedrich Nietzsche- Assim Falava Zaratustra, Ed Hemus, São.Paulo,1979, sustenta que as religiões reveladas (Judaísmo,Cristianismo, Islamismo), destruiram a verdadeira religião, ( as antigas religiões solares) substtuindo-as.por uma farsa ideológica, representada por um Deus cruel e injusto. 

[6] Veja-se a nossa obra, Conhecendo a Arte Real, citado. Veja-se também Sarane Alendrian, op citado. . Sobre a saga dos Templários e a sua face oculta, veja-se o interessante trabalho de Baigent, Leigh e Lincol, The Holly Blood and The Holly Grail, Ed. MacGraw Hill, Londres, 1986.
João Anatalino

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