quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XXVI

O TEMPO DA VINGANÇA

João Anatalino Rodrigues

 De cima da nave da Catedral de Notre de Paris, o Mestre dos pedreiros-livres de França, Jean de Longwy, olhava, melancolicamente para a Ille de la Cité. Lá, naquela pequena mancha de areia lodosa, seu tio, o Grão- Mestre da outrora poderosa Ordem dos Templários, juntamente com o Preceptor da Normandia, havia sido queimado, alguns dias antes. Ele ali estava inspecionando os trabalhos de restauração de uma das naves da imponente catedral. Seus pedreiros, cerca de vinte, pendurados nos andaimes, vistos de longe, poderiam ser confundidos com as estátuas que ornavam os nichos do frontispício, não fossem os movimentos que faziam. 

Duas eram suas preocupações naquele momento. A primeira era a incumbência que seu tio, Jacques de Molay, lhe dera na última vez que lhe permitiram visitá-lo no calabouço. O velho Grão-Mestre já não tinha mais esperança de que a Ordem pudesse sobreviver e tinha certeza também de que sua vida não seria poupada. 

– Mas a Irmandade não pode, simplesmente, desaparecer – disse de Molay ao sobrinho. – Ela certamente continuará a existir em outros reinos, com outros nomes. Já temos informação de que na Escócia, o rei Robert Bruce, não só deu proteção aos nossos Irmãos escoceses, impedindo que eles fossem perseguidos e mortos, como também acoitou diversos dos nossos cavaleiros que conseguiram fugir da França. Eles agora estão lá, ajudando o rei na sua luta contra Eduardo II, pela independência da Escócia. 

– Sim, meu Irmão. Essas informações são verdadeiras. Eu também as recebi. E soube mais. Que o rei Robert está propenso a fundar uma nova Ordem, sob o patrocínio de Santo André, que como sabeis, é o santo padroeiro da Escócia. Lorde Sinclair estaria á testa desse empreendimento, que só ainda não foi formalizado por causa da situação militar. O rei está reunindo um exército nas Highlands e logo uma grande batalha, que creio será decisiva para essa guerra, deverá ocorrer.

– Mas esse Sinclair não é aquele de depôs contra os nossos Irmãos, na Escócia? Como ele estaria agora á testa de um empreendimento desses?– perguntou de Molay.

– Ele foi a isso coagido pelo arcebispo de Midlothian. E muitos outros nobres que nos apoiavam tiveram que fazer a mesma coisa para não serem excomungados – respondeu Longwy. 

─ Entendo ─ suspirou fundo o Grão-Mestre. A ameaça de excomunhão ainda é um fantasma que assusta essa gente. 

– Sabeis que uma ameaça de excomunhão não é coisa da qual a maioria dos nossos nobres faça troca. A Igreja ainda tem muita força para fazer com que servos se voltem contra seus senhores. E ninguém gosta de trabalhar para um excomungado ─ disse Longwy.

– Um dia – suspirou Jacques de Molay – essa influência acabará e cada um terá liberdade para acreditar naquilo que falar mais abertamente ao seu espírito. A ditadura que a religião exerce sobre a consciência das pessoas deixará de existir. Foi esse desejo que nos perdeu, meu caro sobrinho, – concluiu, desconsolado, o Grão-Mestre.

– É cedo para aceitar a derrota, meu Irmão. As pessoas ainda estão contaminadas pelo terror que a Igreja incute em suas mentes. Vede o que fizeram aos pobres habitantes do Langedoc, que ousaram praticar uma religião diferente daquela que Roma defende. Não sobrou ninguém para contar a história pelo lado deles – disse Longwy.

– Salvo Messire Guilherme de Nogaret – respondeu de Molay, com um sorriso amargo.

– Esse aí... esse ai, – disse Longwy, com um profundo suspiro e uma enigmática expressão no olhar – esse aí é uma cobra vestida com pele de cordeiro. 

– No caso de acontecer o que estamos prevendo, ele deve ser o primeiro – disse o Grão-Mestre ─ passando a mão espalmada pela garganta como se a estivesse cortando com uma faca.

– Podeis ficar tranquilo quanto a isso – respondeu Longwy.

– Quanto aos nossos Irmãos nos outros reinos e Ultramar, que notícias tendes deles? – perguntou de Molay.

– As melhores notícias vêm de Portugal, meu Irmão. Lá, nenhum Templário foi incomodado. A Ordem foi dissolvida por que o rei, Don Dinis, não quis desobedecer ao decreto do papa, mas ele tomou sob sua proteção os nossos Irmãos e conservou em seu poder todos os bens do Templo para devolvê-los assim que tudo estiver terminado. Sabe-se que o rei Don Dinis está pensando também em criar uma nova Ordem para substituir o Templo em Portugal. Em Castela e Aragão também há algumas informações que nos levam a acreditar que novas Ordens serão fundadas para continuar o nosso trabalho, ou que então eles serão absorvidos nas Ordens já existentes. Tanto em terras de Espanha, Portugal e Escócia, principalmente, a Ordem sobrevive. 

– Abençoados sejam, Irmão. – Conto convosco para que a nossa tradição seja preservada e o nosso ideal continue a ser cultivado no seio dessas novas Ordens – disse Jacques de Molay.

– Podeis ficar tranquilo quanto a isso, meu Irmão – respondeu Longwy. A propósito, continuou ele – as compagnonnages não foram atingidas. Nós continuamos a manter os nossos ofícios e a praticar as nossas tradições. A Igreja precisa de nós para construir os seus templos e os reis e os barões para construir os seus edifícios, Creio que se tivermos o devido cuidado, seremos deixados em paz. 

– Mas ouvi dizer que muitos dos vossos mestres pedreiros também foram presos e torturados – disse o Grão-Mestre.

– Sim. E alguns até foram queimados, juntamente com os Irmãos cavaleiros. Mas os bispos, nas províncias, chegaram á conclusão que se queimassem todos os mestres pedreiros que tinham alguma ligação com o Templo logo ficariam sem profissionais para fazer suas obras. E sabeis como eles gostam delas cada vez mais suntuosas – disse Longwy.

– É. Nisso eles são muito ciosos. Dilapidam as rendas de seus reinos e paróquias na construção de templos suntuosos, enquanto o povo vive de esmolas ─ lamentou de Molay.

– E pregam que essa é vontade de Deus – respondeu Longwy. – Mas é o que dizem os Evangelhos, não é? A quem muito tem, mais será dado, de quem nada tem, o pouco que tem ainda lhes será tirado. Eles levam a sério esse postulado e fazem tudo para que esse provérbio infeliz se torne realidade. 

─ Essa é uma grande verdade que Nosso Senhor nos ensinou ─ disse de Molay.

─ Realmente. E é uma pena que a Igreja tenha trocado a verdade da mensagem dele por um projeto de poder ─ disse Longwy. 

─ Tereis a oportunidade de mudar isso, meu sobrinho. Vós e vossos Irmãos maçons. Espero que tenhais mais sorte do que nós ─ disse de Molay, com um suspiro.

─ Eu também, meu Irmão. E que Deus nos ajude. 

O carcereiro bateu na grade com o punho da espada anunciando que a hora da visita tinha acabado. Jean de Longwy levantou-se para sair. Deu três longos e apertados abraços cruzados no velho Grão-Mestre, unindo as espáduas, á esquerda, e á direita novamente. Em cada um dos abraços, três batidas nas costas, um do outro. Enquanto praticava esse estranho ritual, aproveitou para murmurar ao seu ouvido:

– Seja o que for que aconteça, meu tio, podeis estar certo que nossos inimigos não ficarão impunes. 

─ Nekan, Adonai!, murmurou o Grão-Mestre do Templo ao ouvido do sobrinho.

─ Chou begoal─ respondeu Longwy.

Jean de Longwy era um homem de cerca de cinquenta anos. Baixo e atarracado de corpo, pouco se assemelhava ao seu tio por parte de mãe, Jacques de Molay. O Grão-Mestre da Ordem do Templo era um homem alto, de testa pronunciada e altaneira. Tinha um nariz comprido e fino, destacado num rosto de formato longilíneo que terminava num queixo anguloso. Ele lhe dava um ar de prodigiosa masculinidade.

Longwy, por seu turno, era de estatura baixa, com um pescoço curto, escondido embaixo da gola da espessa cota de malha metálica que diariamente usava como se estivesse sempre pronto para a batalha. Tinha um rosto redondo, de bochechas rosadas e salientes, cujo rubor alguém poderia atribuir aos bons vinhos da Borgonha, do qual ele era consumidor contumaz. Seu queixo quadrado, de longos e ossudos maxilares, passava uma impressão de determinação férrea, que também se refletia nos apertados olhos de pupilas negras que pestanejavam quando falava. 

Arquiteto de profissão, Longwy pertencia á pequena nobreza borgonhesa e era o Mestre da Compagnonnage, a confraria dos pedreiros livres, organização que reunia os profissionais da construção civil na França. Essa corporação era ligada á Irmandade por laços de tradição e profissionalismo. Fora a Ordem do Templo que organizara esses profissionais em uma guilda para que eles servissem ao Templo, construindo suas preceptorias, seus castelos, fortalezas e igrejas. Era formada por profissionais de tanta habilidade, que a própria Igreja, a maior interessada em seus serviços, havia lhes concedido diversos privilégios, necessários ao exercício de uma profissão, que mais que qualquer outra, havia adquirido um tom de sacralidade próxima ao exercício do sacerdócio. 

Jean, senhor de Longwy, feudo do condado borgonhês, havia sido iniciado cavaleiro templário e poderia ter sido, por direito, o herdeiro de seu tio, Jacques de Molay. Certamente, com a morte do velho Grão-Mestre, o seu nome seria um dos indicados para sucedê-lo como comandante da Ordem do Templo. Milagrosamente, escapara do processo movido contra os Templários, graças a uma filigrana jurídica urdida por seus advogados, que conseguiram provar aos inquisidores da Borgonha, onde ele vivia, que a Compagnonnage, a confraria dos pedreiros-livres, não era, de fato, de jure, uma organização ligada formalmente ao Templo, conquanto para ele trabalhasse e até fosse comissionada por seus comandantes para realizar as obras de interesse da Ordem e participasse, como “Homens dos Templários” de alguns de seus assuntos.

Na verdade, os pedreiros constituíam uma confraria própria dentro da Irmandade do Templo. Seus membros eram admitidos por iniciação e somente quando indicados por outros companheiros. O aprendizado, transmitido de geração em geração, por via oral, era feito pelo método iniciático, no qual a linguagem dos símbolos era o meio pelo qual o conhecimento passava do companheiro para aprendiz. Mestre era apenas o chefe da confraria. Os profissionais eram os compagnons, que para o Templo eram chamados de fréres du metier. 

Dada à estrutura dessas confrarias de pedreiros-livres, não é estranho que a sua interação com os Templários tenha ocorrido de forma tão estreita. Na base do espírito que os movimentava talvez se encontrassem os mesmos elementos de motivação, embutidos na ideia de um corporativismo elitista, que os distinguia do vulgo ignorante e servil. Nesse sentido, os pedreiros livres ─ conhecidos como maçons ─ se sentiam ligados aos ideais românticos de uma Cavalaria espiritual que sonhava com um mundo onde as masmorras fossem construídas para enterrar o vício e os templos para abrigar a virtude. Esse também era o ideal da nova Cavalaria, que São Bernardo havia incutido no espírito dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão. O mundo deveria ser construído para a glória de Deus e não para alimentar a vaidade humana. Nesse sentido, a habilidade do arquiteto e do pedreiro que construíam os grandes templos da fé cristã era uma arte sagrada. As catedrais eram mensagens da esperança divina depositada no homem. Eram santuários feitos para o encontro do espírito humano com o Espírito do Criador, ele mesmo considerado um arquiteto, o Grande Arquiteto do Universo. Por isso a catedral medieval acolhia todas as tendências da fé popular, manifestadas em seus medos, desejos, anseios e esperanças, para que fossem levadas á divindade para quem o monunento era consagrado. A catedral era o livro onde os “Operários do Bom Deus”, colocavam o testemunho de uma maravilhosa ciência. 

– De fato – dizia Messire de Longwy ao misterioso interlocutor, vestido de monge, que estava sentado á sua frente – há muitas coisas nas tradições que observamos que precisam ser revistas, se quisermos que elas sobrevivam a mais esse ataque da Igreja.

– E, sobretudo, precisamos preservar, agora com mais cuidado e inteligência, os nossos segredos – respondeu o monge.

– Temos que fazer como os vossos Irmãos da Obra – disse Longwy.

– É verdade – respondeu o monge. É preciso cerrar as bocas.

– Só podemos admitir em nossos segredos verdadeiros adeptos, que do ofício participem pelo espírito da obra e não por empenhos da profissão ─ disse Longwy.

─ Tendes razão. Uma ciência como a nossa não pode ser compartilhada com profanos. Na cabeça de quem não a entende ela se torna magia, superstição e coisas do Diabo ─ respondeu o monge.

─ E heresia─ suspirou, com amargura, Longwy.

─ Que acabam levando á fogueira os seus detentores ─ completou o monge.

– É isso mesmo. Entendestes bem o espírito da coisa – disse Longwy. – Daqui para frente, os maçons trabalharão nas sombras. Para todos os efeitos seremos apenas uma organização laica, secular, uma corporação de ofício, cujas particularidades se referem apenas aos seus interesses corporativos, mas internamente continuaremos a perseguir os objetivos que motivaram a fundação da nossa Irmandade de monges guerreiros.

– Pensais em abrir a Compagnonnage para a entrada de pessoas de outras profissões? – perguntou o monge.

– Por enquanto, somente para os “Irmãos da Obra”, como vós Irmão Everardo, cuja ocupação tem finalidades semelhantes á nossa, e para nobres cavaleiros, cuja posição na política dos reinos nos seja de utilidade – disse Longwy. – Mais tarde talvez possamos aceitar outras pessoas que forem do nosso interesse. Nesse momento, vós os adeptos da alquimia, como bem sabeis, também estão na mira da Inquisição. Embora muitos luminares da Igreja, como o nosso amado São Bernardo, tenham sido praticante da Filosofia, e até alguns papas tivessem se encantado com a vossa Arte, é muito grande a desconfiança desses padres ignorantes da Inquisição. Assim, a nossa Irmandade dos pedreiros livres poderá ser um bom escudo de proteção para os vossos Irmãos filósofos.

─ Bem pensado ─ disse o monge ─ Pois a nossa ciência, como a vossa, é um filho que só tem mãe. Como vós, nós também somos “Filhos da Viúva”. 

─ Entendestes bem a questão, mestre Everardo. A vossa ciência e a nossa comungam do mesmo ideal e trabalham com o mesmo princípio. Apenas as vias são diferentes ─, respondeu Longwy.

– É isso mesmo – repetiu mestre Everardo, o monge alquimista que também fora um dos “Homens dos Templários” e que graças aos bons serviços que prestava ao bispo da sua diocese escapara vivo ao processo movido contra o Templo. 

Vivo, mas não ileso. Na sua perna direita, que coxeava, trazia a marca da tortura a que fora submetido na prisão. Mais do que no corpo mutilado, era no espírito que mestre Everardo de Evreux, o monge alquimista, guardava as maiores cicatrizes dos tormentos que sofrera no calabouço, por ousar mostrar independência de pensamento numa época em que a ditadura da religião, muito mais que a autocracia política dos reis e da nobreza mantinha o povo preso aos grilhões da ignorância e da pobreza mais abjeta.

Ódio. Ódio a quem fizera aquilo com ele e com os Irmãos do Templo, era tudo que conservava Everardo de Evreux vivo. A vingança, só para a vingança, seu cérebro ainda trabalhava. E era para isso que ele viera procurar Messire Jean de Longwy. 

Por que o tempo da vingança havia chegado. E para aquele estranho e sinistro monge, um papel muito relevante estava reservado na execução desses planos.



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