quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XIII

O SAGRADO FEMININO

João Anatalino

Os compagnons também eram chamados de “Filhos da Viúva”. Eles receberam esse apelido por motivos legais e doutrinários. Desde tempos anteriores á sua ligação com o Templo, a lei proibia que as viúvas desses profissionais recebessem pensões em razão da sua morte no exercício do ofício. Então a Igreja, para remediar essa situação patrocinava os filhos dos pedreiros falecidos, colocando-os como aprendizes nas guildas desses profissionais, para que assim suas famílias tivessem algum amparo. Afora isso, os pedreiros livres já haviam introduzido em suas tradições iniciáticas uma espécie de culto á “mãe- universal”.

Essa “mãe universal” identificada como sendo Ísis, a deusa da ressurreição, era a mesma deidade que os Templários cultuavam na forma da lua crescente, ritual esse que desenvolviam no Capítulo LVIII do seu ritual.

Assim se explica também porque todas as sociedades de orientação espiritualista, na França medieval, de alguma forma cultuavam o Sagrado Feminino. E porque todas as cidades francesas tinham a sua própria Notre Dame e muitas delas um templo dedicado á Madeleine. Essas mulheres, Ísis, Maria Mãe, Maria Madalena, Sofia, Ceres, a deusa romana da fertilidade, todas encarnavam o princípio do Sagrado Feminino, o arquétipo da “Mãe da Vida.” 

Nos rituais do Templo, o culto ao Sagrado Feminino havia sido instituído pelo próprio São Bernardo ao redigir as regras da Irmandade. Ele mesmo, segundo uma lenda muito conhecida, teria sido alimentado, quando criança, pelo leite jorrado da imagem de uma Virgem Negra. 

Destarte, essa teria sido a fórmula encontrada pelo santo abade para recompensar os sentidos dos monges guerreiros em face da estrita obrigação de castidade deles exigida. Assim, ao serem proibidos de tocar em mulher, que âncora seria mais eficiente para mitigar essa sensibilidade do que colocá-la na posição inatingível de uma deidade, uma mãe divina, para a qual um simples pensamento lascivo já seria um pecado sem perdão? Pois essa ideologia já transparecia nos ideais da própria Cavalaria profana, onde um cavaleiro tinha como tradição escolher uma dama a quem oferecia a sua proteção, e ás vezes o seu amor, na forma de um culto que estava mais para uma forma de misticismo religioso do que para uma experiência dos sentidos.

Dessa forma, todos os cavaleiros templários, na impossibilidade de ter uma “dama” pessoal, em quem pudessem honrar o Sagrado Feminino, adotavam a Virgem como sua “dama”. Podia ser Maria, mãe de Jesus e viúva de José, o carpinteiro. Maria, a quem alguns monges da Ordem, versados na ciência dos judeus, a cabala, chamavam de Schékinah, a via carnal pela qual a divindade entrara no mundo da matéria. Ou Ísis, a deusa egípcia da fertilidade, ou ainda Maria Madalena, que algumas tradições diziam ter sido a esposa de Jesus. Todas essas mulheres eram viúvas... Tudo então começava a fazer sentido. Todos os praticantes de cultos ao Sagrado Feminino eram “Filhos da Viúva”.

Que os Templários tinham se desviado da ortodoxia católica, isso de Molay sabia. Afinal, ele era o Grão-Mestre Geral da Ordem, e quando frequentara o Capítulo LVIII, antes de tornar-se o supremo comandante do Templo, esses segredos lhe foram revelados. Apenas ele e um círculo muito restrito de altos dignatários do Templo detinham certas informações que, se divulgadas, abalariam os alicerces do cristianismo, provocando profundas modificações na estrutura da sociedade ocidental. Então cabia a ele preservar esses segredos. Que rei não gostaria de saber a verdadeira história da paixão, morte e ressurreição de Jesus, por exemplo? De saber que os evangelhos canônicos não revelavam a verdade sobre Jesus, mas que eram crônicas encomendadas para justificar o monopólio sobre os espíritos, que os bispos de Roma assumiram, ao “vender” a Igreja de Cristo para o imperador Constantino? 

Aprendera que essa verdade fora sufocada no Concilio de Nicéia, quando os bispos da Igreja Romana resolveram proibir todas as outras formas de expressão da fé que Jesus ensinara aos seus discipulos. Todos os demais evangelhos, crônicas e informações escritas sobre Jesus e sua obra na terra foram censuradas, destruídas, ou de alguma forma ocultas, para que ninguém soubesse quem era o verdadeiro Jesus, nem qual a sua verdadeira missão. 

Mas os Templários tinham percorrido toda a Terra Santa. Nos quase cem anos em que dominaram a região tiveram oportunidade de reunir documentos e informações orais que não constavam de nenhum registro oficial, cuja divulgação a Igreja permitia. Especialmente naquele mosteiro no deserto do Egito, na aldeia de Nag Hammadi, onde os monges cenobitas, fugindo do enquadramento que lhes queria dar o bispo Atanásio, de Alexandria, tinham fundado uma comunidade de cristãos ascetas. Nesse lugar, afastados da civilização, como no passado os essênios haviam feito para fugir dos romanos e dos fariseus e saduceus, os monges cenobitas, cristãos conservadores e avessos á política que a Igreja Romana estava tentando impingir ao mundo cristão, haviam fundado uma seita que se dedicava a copiar e conservar documentos antigos. Ali conservaram vários textos que os censores do Vaticano não conseguiram botar a mão, inclusive o único testemunho de um verdadeiro discípulo de Jesus, colhido de primeira mão. Esse texto, segundo, os mestres antigos, revelava o verdadeiro Jesus. Os mestres do Templo conheciam esses textos, mas nunca puderam divulgá-los, pois a cristandade ainda não estava preparada para isso. 

Passou também pela cabeça de Jacques de Molay a possibilidade de que as acusações que estavam sendo feitas aos Templários tivessem também alguma coisa ver com as práticas rituais dos pedreiros-livres ligados á Ordem. Seus segredos rituais, inspirados em ensinamentos do pitagorismo, com referências ás antigas ciências caldaicas, judaicas e egípcias, sempre incomodaram a Igreja, pois remetia a um mundo pagão que os bispos de Roma tanto se esforçaram para enterrar. 

E havia também aquela estranha ocupação a que alguns monges Templários se dedicavam, uma prática ligada á arte que os muculmanos lhes ensinaram, que lhes permitia manipular a “alma” dos metais, para obter transmutações em suas estruturas. 

Jacques de Molay tinha conhecimento de que vários monges pertencentes á Ordem estavam se dedicando á prática alquimica. Eles haviam aprendido essa arte com os alquimistas muçulmanos, os quais, por sua vez, tinham aprendido com os mestres egípcios. Essa era uma arte milenar que, segundo uma antiga tradição egípcia, lhes havia sido ensinada pelo deus Hórus, que os gregos chamavam de Hermes. Por isso o título que lhe davam de “arte hermética”.

Mas de Molay nunca se importara muito com essas informações. Primeiro porque não tinha muita certeza de que isso fosse possível. Fabricar ouro através de manipulações em minerais simples como o chumbo, o ferro, o estanho e o cobre parecia ser coisa de velhos contadores de histórias, ou então de peregrinos, como aqueles que iam á catedral de Canterbury para cultuar São Thomas ‘a Becket, ou os que iam a Santiago de Compostela em busca de experiências espirituais. Até já visitara alguns laboratórios onde a “Arte” era praticada e se encantara com os capiteis, os alambiques, os fornos e demais aparelhagens que aqueles “Irmãos da Obra” usavam em sua estranha ocupação. Um desses alquimistas, o mestre Everardo de Evreux, se tornara seu amigo e protegido. Mas, a bem da verdade, nunca conseguiu presenciar uma verdadeira transmutação. Segundo lhe dissera mestre Everardo, a pedra filosofal, derradeiro composto da obra alquímica, era um artefato tão difícil de obter que somente alguns eleitos de Deus o conseguiam. Muitos empregavam nesse trabalho a vida inteira sem consegui-lo. Ele era como o Graal, a relíquia mais sagrada do cristianismo, que os lendários cavaleiros do passado procuravam e que agora, segundo se dizia, os próprios Templários eram os guardiões. 

Jacques de Moplay esboçou um sorriso discreto diante dessas especulações. Ele sabia muito bem o que era o Graal. Um segredo que os Templários guardavam a sete chaves e somente o revelariam se um dia houvesse condições políticas para isso. No entanto, gostaria que a crença dos alquimistas tivesse algum fundo de verdade. Se houvesse um artefato com tal poder... Um composto mágico que fosse capaz de transformar chumbo em ouro. Ou então, agir sobre o espirito do homem com um poder capaz de transformá-lo, de um momento para o outro, de um simples ser ignorante e passageiro, em outro cuja inteligência seria próxima á de um Deus, e cuja vida seria quase eterna. Pois era essa a promessa feita á quem conseguisse encontrar a pedra filosofal... 

Depois, a pedra filosofal poderia ser mais uma maneira de engordar o tesouro da Ordem. Por isso o Templo encorajava e financiava alguns de seus monges a trabalhar nessa ocupação, que para muitos era demencial. De uma forma ou de outra, se lucro não trouxesse, também não haveria prejuízo. Alguns bons resultados já tinham sido obtidos. O aço fabricado nas forjas templárias era mais duro e resistente do que o fabricado em outras oficinas. As boticas templárias eram muito melhores providas de medicamentos, unguentos e outros produtos químicos do que em qualquer outro lugar; os couros fabricados pelos cortumes do Templo eram mais resistentes e duradouros. Tudo obtido através das pesquisas e das experiêrncias feitas pelos alquimistas da Ordem.

Aliás, essa lenda já corria mundo. Muita gente pensava que os alquimistas do Templo haviam descoberto a pedra filosofal. E que a extraordinária riqueza dos Templários vinha dos seus laboratórios, onde os monges alquimistas haviam aprendido a transformar chumbo, ferro e outros metais comuns em ouro e prata. Afinal, perguntavam os incrédulos, onde os Templários iam buscar tanta prata, sendo esse um metal raríssimo na Europa? No entanto, o Templo possuía estoques imensos desse metal...

Jacques de Molay esboçou outro sorriso em face desse pensamento. Ele sabia de onde vinha a prata dos Templários. Esse era outro dos grandes segredos da Ordem. Em pensamento viu as galeras com a cruz templária singrando os desconhecidos mares que os superticiosos marinheiros mediterrâneos chamavam de Mar Exterior. Seu sorriso se ampliou ao lembrar-se dos titulos que os marinheiros templários colocavam nesses mapas para despistar suas rotas. Aqui a Ilha dos Dragões. Acolá o Rochedo dos Ciclopes, mais além a Terra dos Homens Vermelhos...

Mas logo seu semblante se anuviou novamente. Um pensamento desagradável e preocupante trouxe de volta sua mente, que vagueava por terras inóspitas e habitadas por povos de tes avermelhada e olhos puchados, á semelhança dos orientais. As figuras de Filipe, o Belo, Guilherme de Nogaret e Clemente V, encheram de novo a tela da sua visão interior. Seu coração se contraiu como um passarinho que tivesse sendo esmagado pela sua mão. 

“Como Adão e Eva foram expulsos do Paraíso por terem comido o fruto do conhecimento do bem e do mal, não teremos nós, o mesmo destino, pelo fato de sabermos demais?”, concluiu ele.

Maçonaria e alquimia. Muita gente sabia que a Ordem do Templo congregava em suas fileiras os maçons e os alquimistas. Que ela permitia e até incentivava que alguns monges se dedicassem á procura desse tesouro dos tesouros, que era a pedra filosofal. Isso não constituia nenhum problema, embora essa prática também fosse condenada pela Igreja, que a considerava coisa de bruxos e feiticeiros. Mas se até o santo protetor da Ordem, o divino São Bernardo, tinha fama de maçom e alquimista...

Destarte, a Ordem do Templo era uma mãe que abrigava em seu seio os verdadeiros obreiros da Arte Real. Os “Artesãos da Obra” e os “Pedreiros do Bom Deus”. Pois juntos, o artesão e filósofo praticavam as “Artes” que ensinavam o espírito humano a construir o verdadeiro reino de Deus na terra. Eram as ciências que buscavam, uma o conhecimento de como manipular a matéria, e a outra, como modelar a atividade divina.

Porém, o que mais o preocupava, agora, ali sentado no banco de pedra rústica da cela da prisão, que lhe servia também de cama, era o fato de alguém ter comentado, fora do círculo íntimo dos altos dignatários da Ordem sobre os ritos de recepção de noviços e sobre segredos que só aos mais graduados se comunicavam. 

Jacques de Molay lamentava não ter se informado melhor sobre esses assuntos e não ter proposto uma disciplina mais rígida nesse sentido, para coibir essas inconfidências. Ele tinha consciência de que, se alguém soubesse, de fato, o que passava nas iniciações dos noviços e depois, o que se ensinava dentro dos Capítulos, e particularmente o LVIII, isso iria trazer muitos problemas. E se a extensão dos conhecimentos do rei Filipe e seus ministros a esse respeito fosse maior do que parecia ser, ele não tinha dúvidas que seriam usados para levá-los á perdição. Sentiu-se, por um momento, velho e fragilizado. Sabia enfrentar um inimigo no campo de batalha. Nunca teve medo de medir-se com qualquer adversário frente á frente. Sua espada sempre falara mais alto. Mas nesse campo de luta política e religiosa que se abria á sua frente ele não tinha armas com a quais pudesse combater em igualdade de condições. Não sabia ler nem escrever. Não tinha o dom da palavra articulada e fácil que os inquisidores e os advogados do rei ostentavam. Nem comprendia, de fato, as razões da maioria das estranhas práticas que haviam sido introduzidas na Ordem por Robert de Craon, antigo Grão-Mestre geral da Ordem, quando eles ainda viviam na Terra Santa. Nem mesmo tinha certeza de que aquele crânio, com aquelas tíbias cruzadas em baixo, que ele mostrava aos Irmãos no Capítulo LVIII, era o crânio do Senhor Jesus Cristo, que os fundadores da Ordem haviam desenterrado no Santo Sepulcro. E se tudo também não fosse apenas mais uma manipulação, como a que a Igreja teria feito em relação á verdadeira história de Jesus? E se os fundadores da Ordem, ou os Mestres que o antecederam tivessem inventado essa história? Seria verdadeira a informação de que a Notre Dame, a quem eles prestavam reverência, como a Virgo, Ísis, Maria, a mãe de Jesus e Maria Madalena, talvez sua esposa, eram todas a mesma pessoa, apenas um símbolo que revenciava o Sagrado Feminino, responsável pela vida na terra? Ísis, Maria mãe, Maria Madalena, Sofia, a mãe da sabedoria, Notre Dame, a Virgem que concebe sem pecado... No fim, todas mulheres viúvas. Isso pelo menos, ele agora entendia. Sabia finalmente porque os Templários, na intimidade do Círculo Interno, chamavam-se a si mesmos de “Filhos da Viúva”. E porque prestavam reverências áquele símbolo que representava uma lua crescente. Mas no fundo, no fundo, ele também era um homem cheio de dúvidas. 









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