quinta-feira, 12 de outubro de 2017


OS MONGES MALDITOS

CAPÍTULO XXI

UM LEGADO MALDITO

João Anatalino Rodrigues

Afora o processo dos Templários, outras preocupações estavam tirando o sono do rei francês. Em 1º de maio de 1308, Alberto, o soberano do Sacro Império Romano-Germânico, seu amigo e aliado, havia sido assassinado por um sobrinho daquele monarca por causa de uma disputa de terras. Esse tipo de disputa era comum no fluído ambiente da nobreza feudal. O próprio monarca francês estava a braços naquele momento, em seu próprio reino, com vários conflitos dessa ordem. Especialmente na sua família, onde seu belicoso primo, Robert d’Artóis, sustentava uma encarniçada disputa contra sua própria tia, a condessa Mafalda d’Artois, pela posse da herança da família, que ele havia conferido áquela dama por ocasião do casamento de seu filho, Filipe de Poitiers, com a filha da condessa. Esse conflito marcaria profundamente a história da França e o reinado de Filipe, bem como o futuro de seus filhos.

Para Filipe, o assassinato do imperador Alberto trouxe diversas preocupações. Primeiro porque a sucessão do trono romano-germânico era assunto que muito o interessava. Filipe não desejava que um príncipe hostil assumisse o governo de um império tão poderoso como aquele, cujas fronteiras e interesses com a França eram tão conflitantes. Ele estivera pensando em eleger seu próprio Irmão, Carlos de Valois, como imperador dos povos controlados por esse império. Valóis possuia muitas terras no território romano-germânico e era um postulante natural ao trono daquele reino. Isso não era, entretanto, do gosto do papa Clemente V, que não desejava, nesses territórios, um governante tão ligado á coroa francesa. 

Ele já tinha problemas demais com o rei da França. Um imperador romano-germânico da família de Filipe só iria fortalecê-lo ainda mais e enfraquecer de vez o poder papal, que naquele momento já estava sendo completamente eclipsado pelo rei francês.

Assim, na surdina, fingindo apoiar a candidatura de Carlos de Valois, Clemente V, na verdade, trabalhava para que o colegiado dos príncipes alemães elegesse Henrique, conde de Luxemburgo, para o cargo. O que de fato aconteceu em 27 de novembro de 1308.

O resultado da eleição do imperador alemão, embora não fosse o que Filipe esperava, não obstante, não o desagradou. Henrique de Luxemburgo não era uma personalidade forte, capaz de fazer-lhe sombra. Mesmo soberano de um império poderoso, como era o romano-germânico, o imperador alemão não estava disposto a arranjar encrenca com os franceses. Tão logo coroado, uma de suas primeiras providências foi estabelecer negociações com o monarca francês. Elas culminaram com a assinatura de uma aliança militar, que contemplava um pacto de não agressão e uma promessa de ajuda mútua no caso de um dos estados ser atacado por uma terceira potência hostil. Essa potência, pensava Filipe, bem poderia ser a própria Igreja de Roma.



Embora Clemente V fosse permeável á sua influência e até então não o confrontara de modo aberto, era óbvio que os dois poderes ainda se digladiavam entre si. Praticamente, Filipe forçara o papa a ficar em Poitiers, e depois em Avignon, que embora não fosse território da França, estava, no entanto, mais próximo de Paris do que de Roma.

Clemente V havia cedido aos desejos de Filipe no sentido de abrir o processo contra os Templários, mas continuava reticente quanto á administração dos bens do Templo pela coroa francesa, embora já tivesse assinado documento concordando com isso. Também não era simpático á idéia do rei francês de nomear Filipe de Marigny, bispo que era irmão do seu ministro das finanças, Enguerrand de Marigny, para o arcebispado de Sens. O papa sabia que no cerne dessa pretensão real estava a questão dos Templários, pois o arcebispo dessa diocese, á qual estava afeita também as igrejas de Paris, é que faria o julgamento final desse processo.

Filipe queria, por que queria e precisava, se apropriar dos bens do Templo. Mas Clemente V tinha outras ideias á respeito. Seu desejo era que esses bens fossem transferidos para a Ordem de São João do Hospital, onde ficariam salvaguardados como bens eclesiásticos.

“Os Hospitalários”, escreveu o papa a Filipe, “são os naturais sucessores dos Templários. Se a eles tais bens forem adjudicados, continuarão a cumprir a finalidade para os quais foram doados ao Templo, que é prover as necessidades dos nossos Irmãos na Terra Santa.” Essa era uma justificativa pífia, pois tanto o papa quanto o rei sabiam que não havia mais cristandade na Terra Santa para ser provida. Mas na batalha por esse butim qualquer desculpa valia.

Filipe não respondeu á reivindicação do papa, mas disse que estava aberto á negociações. Salientou, entretanto, que o povo francês tinha direitos que não poderiam ser esquecidos e ele não iria abrir mão disso.



Evidentemente, a solução pretendida por Clemente V não era a que Filipe pretendia. Por isso solicitou imediatamente ao inefável Pierre Dubois, seu advogado conselheiro, um parecer jurídico. Este propôs que Filipe pressionasse o papa para nomear um dos príncipes como rei de algumas possessões que os cristãos ainda mantinham no Oriente Médio. Por meio desse estratagema, ele poderia reclamar os bens da Ordem com a desculpa de aplicá-los numa nova cruzada para recuperar os lugares santos. 

“Nesse sentido, poder-se-ia trabalhar para unir as três Ordens militares que foram fundadas na época das cruzadas e apoiada em seus recursos, uma nova expedição á Terra Santa poderia ter sucesso”, escreveu ele. 

“Duvido que, nessas condições”, complementou, "o papa não seja favorável.”

Talvez Clemente V fosse favorável á uma nova cruzada. Se não era, pelos menos ele aproveitou bem a idéia. Com base nessa pretensão conclamou a todos os príncipes da cristandade a colaborar para essa grande empreitada. Prometeu até um ano de indulgência para quem desse apoio financeiro e militar para a causa. 

Mas quanto á fusão das três Ordens, disse ele, “o projeto seria inexequível”. Com os Templários fora de jogo, era a Igreja quem decidiria por eles. Concordou que os bens do Templo fossem adjudicados ao Hospital e utilizados numa eventual cruzada, mas lembrou que o Templo não tinha mais contingentes militares que pudessem ser usados. 

“A não ser que a Ordem seja reabilitada”, escreveu Clemente V a Filipe, em resposta á proposta de Dubois. Isso o rei não queria nem ouvir falar. Por seu turno, a outra Ordem fundada pelos cruzados, a dos Cavaleiros Teutônicos, já estava engajada em sua própria luta. Sua preocupação agora era conter o avanço dos muçulmanos na Europa Central e impedir que os mongóis se espalhassem também pelo Ocidente.

E depois, os demais reis da cristandade não queriam nem ouvir falar em outra cruzada. Estavam suficientemente comprometidos em resolver problemas em seus próprios territórios. Em Portugal e Espanha, por exemplo, tratava-se de recuperar os territórios perdidos para os mouros nos séculos anteriores. Na Inglaterra era a guerra contra os rebeldes escoceses que não dava quartel ao atrapalhado rei Eduardo II. O próprio Filipe estava muito envolvido com seus problemas internos e externos, especialmente com as cidades flamengas, que lhe não davam sossego.

Nada de nova cruzada, portanto. Mas isso não impediu Filipe, o Belo, e Henrique, o novo imperador Romano-Germânico, de lançar impostos em seus respectivos países para financiar uma expedição que nunca iria se realizar.



Cúmplices nas chicanas e nas manobras sub-reptícias, Filipe, o Belo, e Clemente V não conseguiam, no entanto, se entender em duas questões: primeiro, com quem deveriam ficar os bens do Templo? Segundo: como resolver a questão que envolveu o rei da França com o antecessor de Clemente V, o papa Bonifácio VIII?

O rei francês lembrara Clemente V que o processo aberto contra o antigo Pontífice estava pendente de definição. Bonifácio VIII havia sido acusado por Filipe, de heresia, feitiçaria, usurpação, simonia e até sodomia. Precisamente as mesmas acusações que faria, mais tarde, aos Templários. Em consequência, ele e seu ministro, Guilherme de Nogaret, haviam sido excomungados por aquele papa. Embora o sucessor de Bonifácio VIII tivesse cancelado a excomunhão de Filipe, a de Nogaret ainda estava em vigor. O assunto estava sobre o malhete papal desde a morte do velho Pontífice. Clemente V acedera ao pedido de Filipe, de abrir um processo contra o falecido inimigo, mas adormecera sobre ele. 

Filipe queria agora uma definição e por isso pressionou Clemente V. Este, para atender ao rei convocou, em Avignon, um Concílio para que os acusadores e defensores do falecido papa expusessem suas razões. 

Nem Filipe nem Clemente previram que esse caso iria suscitar tanta celeuma. Pois aquilo que deveria ser apenas um processo jurídico de fachada acabou se degenerando em um sério conflito armado. Partidários do rei e do falecido papa Bonifácio VIII se engalfinharam nas ruas de Avignon. De um lado os papistas defendendo a memória do finado Pontífice, de outro os aliados do rei tentando, a todo custo, condenar, ainda que postumamente, Bonifácio VIII á fogueira (queimando seus ossos, como se fazia com os hereges condenados após a morte). 

Esse era um problema muito complexo que levaria cerca de três anos para ter uma solução final. Ela só viria no Concilio de Viennes, realizado entre 16 de Outubro de 1311 e 6 de Maio de 1312. Nesse concílio Filipe negociaria a extinção formal da Ordem do Templo e o levantamento da excomunhão do rei e a de Nogaret, em troca da retirada das acusações contra Bonifácio VIII. Dessa forma, a paz seria selada entre a Igreja e o rei francês em relação à essa espinhosa questão. Mas antes de chegar a essa solução, mais três anos de marchas e contra marchas no processo iriam arrastar o sofrimentos dos Templários até a tragica solução final.



A bula Ad Providan de 2 de maio de 1312 formalizou a transferências dos bens do Templo para o Hospital. Cerca de um mês antes, através de outra bula, a Vox in Excelso, a própria Ordem do Templo, como organização formal, havia sido abolida. 





A razão do porque o rei da França, que tanto fizera para suprimir a Ordem do Templo e confiscar, para si próprio, os seus bens, finalmente concordara em deixar tudo para os Hospitalários, não constitui nenhum mistério. Na verdade, durante os anos em que o processo esteve correndo, o seu lupino ministro das finanças, Enguerand de Marigny, estivera trabalhando para transferir esses bens para o tesouro da França. Quando os contadores e advogados do Hospital de São João foram ver afinal, no que consistiam os tais bens, eles perceberam o engodo em que tinham caido. Ouro, jóias e objetos de valor não havia nenhum. Das armaduras, semoventes, armas e outros equipamentos militares, Filipe e os demais reis da cristandade já haviam se apropriado. Duplicatas, recibos, titulos de crédito e todo e qualquer documento que gerava rendas e direitos, foram apreendidos e apropriados pelos respectivos tesouros reais. Restavam os bens imóveis. Quanto a estes, Marigny apresentou tantos recibos para o Hospital pagar, em decorrência de despesas realizadas pelo governo francês para custodiar e administrar esses bens, que o crédito que porventura esses bens gerassem, haviam se convertido em volumosos débitos. Os custos com o processo e a manutenção dos Templários em suas prisões foi outra despesa que Marigny logo se apressou a cobrar do Hospital. Assim, no final das contas, os desconsolados tesoureiros do Hospital de São João tiveram que pagar ao tesouro francês uma soma maior do que aquela que pensaram que iriam receber. Na verdade, o que havia sobrado para eles era um verdadeiro “mico.” O tão sonhado tesouro dos Templários, para o Hospital, tornara-se um legado maldito, verdadeiro presente de grego.

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